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Globalização cultural e multiculturalismo na América Latina: análise a partir de experiências das civilizações pré-colombianas

Prof. Dr. Renato Seixas

Resumo: Não é possível forjar identidade cultural única para a América Latina. Desde tempos ancestrais a região experimenta o multiculturalismo. As civilizações pré-colombianas, que realizaram impressionantes projetos de integração regional, precisaram criar sistemas para harmonizar culturas dominantes e culturas locais. Processos semelhantes de mediação simbólica estão em andamento na contemporaneidade.

Abstract: It is not possible to create a unique cultural identity for Latin America. Since ancient times the region has been experiencing multiculturalism. The pre-colombian civilizations, which implemented highly impressive projects of regional integration, needed to create systems to harmonize dominant cultures and local cultures. Similar processes of symbolic mediation are presently in development.

Sumário: Introdução. 1- Desenvolvimento cultural autônomo na América Latina. 2- As primeiras culturas na fase de povoamento das Américas. 3- Identidade cultural nas altas civilizações da América Latina pré-colonial. 4- Geografia e identidade cultural na América Latina. 5- Eliminação da memória coletiva e cultural na América Latina pré-colonial. 6- Aspectos da cosmologia e da cultural das altas civilizações pré-colombianas. Considerações finais.

Introdução

Na literatura de várias áreas de conhecimento tem sido comum encontrar afirmações de que estaria em desenvolvimento processo de homogeneização cultural mundial. Os poderes dominantes ou hegemônicos que controlam a dinâmica das relações globais, especialmente por meio da grande mídia, estariam cada vez mais desintegrando culturas locais e substituindo-as por quadros culturais gerais, homogêneos, baseados em critérios definidos por aqueles poderes e conforme seus interesses. Todavia, muitas e muitas vezes tais afirmações contidas na literatura não correspondem aos fatos do mundo real.

No final da década de 1980 e começo da década de 1990 diversos fatos contribuíram para alterar a ordem internacional estabelecida desde o término da Segunda Guerra Mundial. Houve a queda do muro de Berlim e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas se dissolveu. Terminava a Guerra Fria e o mundo perdia sua configuração bipolar de equilíbrio de poder, que vigorara desde o fim da década de 1940. Como única superpotência mundial remanesciam os Estados Unidos da América, que, embora sem poder suficiente para imporem seus interesses ao resto do mundo, não deixam de ser ouvidos em qualquer assunto de relevância internacional (Kennedy, 1989 ). A partir de então, proliferam lutas regionais com caráter de autoafirmação cultural local,  nacionalista ou religiosa (Huntington, 1997). De fato, em diversos casos a identidade nacional se mistura e se confunde com a identidade religiosa e, para se autoafirmar, desencadeia lutas caracterizadas pela polarização de uma religião contra outra. É interessante esse fenômeno porque é muito semelhante ao que ocorreu por ocasião do surgimento e consolidação dos Estados nacionais europeus entre os séculos XV e XVII. Na época em que começaram a se formar os Estados nacionais europeus ainda não havia um poder ideológico organizado, minimamente dominante ou hegemônico para mobilizar para a guerra as diversas facções conflitantes. Por isto, as guerras assumiam características de conflitos religiosos, os quais, naquele contexto, simbolizavam as disputas de um poder ideológico contra outro (Chaunu, 1993). Apenas entre o último quarto do século XVII e as duas primeiras décadas do século XIX é que a ideologia Liberalista logrou se impor no ocidente e, então, parte das tradicionais guerras religiosas foi substituída por guerras ideológicas e nacionalistas (Morgenthau, 2003). Marcos importantes dessa fase histórica ocidental foram a independência dos Estados Unidos da América, a Revolução Industrial inglesa, a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas.

Ora, o mundo está se reorganizando em busca de um novo equilíbrio de poder multipolar; proliferam atualmente conflitos e guerras de autoafirmação cultural local, nacional ou religiosa; países estão sendo formados ou dilacerados em decorrência desses conflitos; blocos e coalizões regionais, continentais e mesmo globais estão sendo formados ou consolidados na sociedade internacional com base nas afinidades culturais de seus membros (Huntington, 1997). É evidente, portanto, a importância da identidade cultural (ou da falta dela) implicada nesses fenômenos. Entretanto, mesmo considerada a relevância da identidade cultural, não há na história da humanidade nenhum exemplo de homogeneização identitária. Mesmo com o advento de grandes impérios, como foram o Império Romano e o Império Han, nunca foi possível forjar uma única identidade para todos os povos por eles abrangidos. A identidade cultural imposta por poderes dominantes sempre teve que coexistir com múltiplas identidades locais dos povos submetidos.

Nessas circunstâncias, não podem ser aceitas sem reservas, por exemplo, afirmações correntes no sentido de que a cultura latino-americana estaria sendo substituída pela cultura de Hollywood ou de que, através da grande mídia, haveria imposição irresistível de elementos culturais de países dominantes em face dos povos da América Latina. Efetivamente ocorrem tais fenômenos de manipulação e de imposição cultural, porém todos eles são em grande parte submetidos a complexos processos de mediação simbólica, por meio dos quais cada indivíduo e cada grupo filtram e metabolizam elementos culturais alienígenas, incorporando-os ou não ao quadro geral de referências culturais aquela específica comunidade (Martín-Barbero, 2006).

Diante dessas considerações iniciais e com base em estudos precedentes (Seixas, 2006), este trabalho parte das seguintes hipóteses: 1ª) é impossível efetivar homogeneização cultural plena em qualquer lugar do mundo e, portanto, também na América Latina. Poderosas forças de autoafirmação cultural e identitária são mobilizadas para resistir à tendência de homogeneização cultural desejada por potências dominantes da sociedade internacional. Nos limites deste trabalho não há possibilidade de explorar como essas forças de resistência operam. Essa tarefa foi realizada noutro estudo ao qual se remete o leitor (Seixas, 2008). 2ª) qualquer projeto de integração dos países da América Latina só terá possibilidade de êxito duradouro se contemplar o multiculturalismo e a plurinacionalidade existentes na região. Processos latino-americanos de integração econômica, social ou mesmo política precisam estabelecer de modo claro, democrático e flexível políticas abrangentes do multiculturalismo e da plurinacionalidade acima referidos. Tendo em vista os limites editoriais a que este trabalho tem que se adequar, para testar as hipóteses de pesquisa é imperativo fazer recortes, adiante especificados.

O objeto central deste estudo é investigar se há e como está configurada uma identidade latino-americana, uniforme e compartilhada por todos os povos habitantes da região, ou se, ao contrário, há múltiplas identidades latino-americanas, as quais se transformam continuamente e formam um mosaico cultural na região. As questões fundamentais que este estudo quer examinar são as seguintes:

Existe uma identidade cultural genuinamente latino-americana? Se essa identidade cultural existir, quais seriam os elementos gerais ou particulares de identificação cultural que a caracterizariam? Como os elementos gerais de identificação da cultura ocidental dominante ou hegemônica (européia e norte-americana) coexistiriam com os elementos de identidade cultural da América Latina?

Como primeiro recorte desta pesquisa optou-se por isolar os povos da América Latina de seus contatos com outros povos, especialmente os europeus e os norte-americanos. Por isto, escolheu-se um período da história dos povos pré-colombianos anterior aos descobrimentos europeus. Nesse contexto, os habitantes da hoje chamada América Latina não estavam sob as imposições ou influências culturais de povos alienígenas conquistadores, colonizadores ou imperialistas. O segundo recorte da pesquisa põe foco nas chamadas “altas civilizações pré-colombianas”. Em decorrência da amplitude territorial, do poder, do desenvolvimento cultural, tecnológico e político dessas civilizações, puderam exercer imensa influência sobre os povos que vieram a dominar antes da chegada dos descobridores europeus. Todavia, como se verá no decorrer deste trabalho, nenhuma das altas civilizações pré-colombianas conseguiu forjar uma única cultura, dominante, homogênea. Ao contrário, todas elas precisaram formar alianças com os povos dominados e, em maior ou menor grau, aceitar as especificidades culturais locais de cada um deles. O terceiro recorte da pesquisa limita o estudo às três civilizações pré-colombianas mais desenvolvidas: maia, asteca e inca. Mais uma vez, os limites editoriais definidos para este trabalho não permitem exposição das características de cada uma das três civilizações selecionadas. Tal análise foi realizada noutro trabalho (Seixas, 2006).  Aqui serão examinados aspectos gerais comuns às três civilizações estudadas. Por fim, o quarto recorte do estudo diz respeito ao grau de generalização ou de especificidade a ser adotado para examinar o fenômeno da identidade cultural. Para examinar as questões fundamentais apresentadas acima, foi necessário estabelecer certo grau de generalização a respeito da identidade cultural. Optou-se por partir de critérios mais amplos, generalizantes, universalizantes, suficientes para poder abranger o maior número possível de grupos sociais latino-americanos. Somente assim se poderá falar de identidade cultural da ou na América Latina. Portanto, não são objetivos deste trabalho estudar: (i) as especificidades de culturas locais latino-americanas comparadas umas com as outras; e (ii) as especificidades culturais de certas classes sociais em contraste com outras classes dentro do mesmo grupamento social. Noutras palavras, não é objetivo desta pesquisa estudar a identidade cultural da América Latina considerando, por exemplo, se os elementos culturais preponderantes no sertão nordestino brasileiro teriam penetrado na cultura dos povos andinos, ou vice-versa.

Desde logo é bom esclarecer aqui que as expressões “culturas hegemônicas” ou “culturas não hegemônicas” não terão, neste trabalho, a significação específica que Gramsci atribuiu à hegemonia(Bobbio, Mateucci et Pasquino, 2004). Para Gramsci, a hegemonia pressupõe que um certo poder é imposto por um grupo social a outro e, por meio de mecanismos ideológicos, tal imposição aparece como natural e legitimada perante o grupo sujeito àquele poder, que o aceita de modo mais pacífico. Neste trabalho usa-se a palavra “hegemonia” num sentido mais amplo que, em certa medida, contém a significação que lhe foi dada por Gramsci, porém abrange também a situação em que, em certo lugar, momento histórico e contexto, um poder ou elemento cultural prepondera sobre outros poderes ou elementos culturais concorrentes, quer sejam ou não aceitos pelos grupos sociais sujeitos ao poder ou elemento cultural preponderante.

1. Desenvolvimento cultural autônomo na América Latina

Não considerada a fase contemporânea da globalização, a identidade cultural na América Latina apresenta três fases importantes. A primeira diz respeito ao povoamento das Américas, em que grupos diferentes se instalaram na região e desenvolveram suas próprias culturas. Depois, como conseqüência do processo evolutivo da fase anterior, vem a fase das altas civilizações americanas pré-coloniais. Essas duas primeiras fases são importantes porque refletem o desenvolvimento cultural autônomo das Américas, em particular do que viria a ser a América Latina. A literatura adiante referida costuma dizer que as Américas tiveram desenvolvimento cultural autóctone depois que a passagem pelo estreito de Bering foi interrompida, impedindo assim que influências culturais exteriores continuassem a ser transmitidas para o Novo Continente. Isto significa que durante muito tempo os povos americanos desenvolveram sua cultura particular, refletida nas estruturas econômicas, sociais e políticas que cada povo adotava. A terceira fase importante foi a da colonização dos povos americanos pelos europeus. A partir dessa última fase, diversos elementos culturais das civilizações dominantes ou hegemônicas da Europa foram transplantados para a América Latina e Caribe. Ocorreram choques culturais amplos e profundos. A predominância da cultura dos colonizadores é marcante desde então, mas não foi suficiente para eliminar muitos dos elementos culturais indígenas. Por essas razões, sem nenhuma pretensão de narrar a história dos povos americanos em algumas páginas, o desenvolvimento deste estudo procurou acompanhar as três principais fases evolutivas da cultura latino-americana, acima indicadas.

A intenção é destacar alguns elementos culturais de cada uma das fases, na medida em que pareceram pertinentes para os fins deste trabalho. Durante a pesquisa foram examinadas as estruturas culturais, sociais, econômicas e políticas dos povos estudados. Constatou-se que muitos dos elementos culturais da América Latina pré-colonial têm paralelo com outras culturas, especialmente a cultura européia: princípios de organização política do Estado; estrutura social classista; separação entre trabalho intelectual e braçal; sistema produtivo; cobrança de tributos; instrumentos de dominação ideológica, especialmente o uso da religião para esse fim. Na verdade, com base em conhecimentos gerais de História, foi possível constatar que alguns desses elementos culturais são arquetípicos e estão presentes em muitas outras civilizações. Todavia, no caso específico dos povos americanos pré-coloniais, a combinação desses elementos culturais teve a marca local. Mesmo invocando arquétipos, cada um desses povos fez suas próprias narrativas míticas que possibilitaram a coesão interna de sua cultura. Assim, sobre o modelo arquetípico geral, os pré-colombianos imprimiram seus elementos culturais particulares. É óbvio que os limites definidos para a realização deste trabalho não permitem que se faça um rastreamento de todas as culturas e um exame particular e profundo de cada uma delas. Na verdade, o que se quer é apresentar algo como uma fotografia, ou no máximo um “curta metragem” das culturas selecionadas. O fundamental é encontrar elementos culturais com base nos quais se possa reconhecer uma ou mais identidades da América Latina, sempre a partir de graus de generalização.

2. As primeiras culturas na fase de povoamento das Américas

Muitas culturas ancestrais latino-americanas desapareceram ou, no máximo, deixaram alguns traços incorporados em culturas posteriores. Com base em documentação arqueológica, estudiosos estimam que a presença humana nas Américas começou por volta de 50.000 anos atrás. Contingentes humanos teriam migrado da Ásia, atravessado o estreito de Bering, que naquela época estaria congelado e formava uma ponte entre a Ásia e a América do Norte. Essas correntes migratórias chegaram à América do Norte, de onde foram se reproduzindo e se deslocando para a América Central e depois para a América do Sul. Se essa suposição estiver correta, sua conseqüência mais importante seria que, terminada a glaciação e interrompida a passagem pelo estreito de Bering, os povos americanos teriam ficado ilhados e, por isto, teriam desenvolvido culturas autóctones. Por outro lado, há indícios arqueológicos de que contingentes migratórios da Polinésia também teriam chegado por mar em embarcações primitivas. Seja como for, o fato é que esses primeiros povoadores das Américas desenvolveram culturas próprias, vez por outra revelando alguma semelhança com culturas asiáticas e polinésias. Eram inicialmente povos nômades, dedicados à caça e à coleta, eventualmente à pesca. Teriam uma organização de bandos, com lideranças circunstanciais. Muito lentamente iniciaram um processo de fixação de povoamentos e de sedentarização, que passou a ser mais evidente há aproximadamente 10.000 anos atrás, conforme dados arqueológicos disponíveis (Cardoso, 1981).

Em função da característica nômade ou seminômade desses primeiros povoadores americanos, seus constantes deslocamentos em busca de melhores condições de sobrevivência provocaram constantes choques entre os diferentes grupos. Em conseqüência, desde muito cedo os povos americanos convivem com a profunda questão de identidade cultural. Grupos dominantes ou hegemônicos certamente desejavam impor não só o seu poder, mas também a sua cultura aos grupos subjugados. Portanto, o conflito entre culturas dominantes ou hegemônicas e não hegemônicas não é um fenômeno atual na América Latina. Começou há milhares de anos atrás e apresenta a mesma questão central: a luta simbólica de vida ou morte entre culturas que querem se autoafirmar e ter reconhecido o seu valor diante de outra diferente. É claro que os conflitos culturais contemporâneos são muitíssimo mais complexos, profundos e abrangentes do que os conflitos culturais entre alguns povos nômades ancestrais. Porém isto não altera a questão essencial acima indicada. Nesse contexto, é fácil admitir que centenas de culturas surgiram nas Américas. Algumas desapareceram completamente; outras se miscigenaram; e outras mais tiveram seus períodos de dominância ou hegemonia. Quais dessas culturas resgatar para construir uma identidade cultural americana? No caso específico da América Latina, haveria um conjunto de elementos culturais que, reunidos, seriam suficientes para que se possa afirmar: esse é o rosto da América Latina?!

3. Identidade cultural nas altas civilizações da América Latina pré-colonial

A identidade cultural de qualquer grupo social é construída com elementos culturais arquetípicos, híbridos ou dominantes.  Todos esses elementos se combinam e se complementam para juntos comporem uma identidade cultural. Por isto, a identidade cultural latino-americana será construída com elementos culturais daquelas três espécies. Terá elementos ancestrais de identificação cultural; terá outros elementos de diversas culturas que precisam coexistir sob certas circunstâncias; terá elementos culturais subjugados por outras culturas em certos momentos; e terá elementos culturais que simbolizarão a auto-afirmação da identidade latino-americana perante culturas rivais.

Atualmente está em pauta a necessidade de afirmação da cultura da América Latina em face de culturas dominantes ou hegemônicas. Então, quais são os elementos de identificação cultural da América Latina que lhe permitirão se autoafirmar em face das culturas concorrentes? É muito simplista tratar essa questão reduzindo-a exclusivamente, ou preponderantemente, a uma oposição ideológica entre capitalismo versus comunismo/socialismo. Tem sido comum na literatura(por exemplo, Peregalli, 1994) afirmar que o passado das civilizações latino-americanas está associado à posse comum dos meios de produção, a um sistema de reciprocidade tributária entre os Estados e as comunidades, etc. A partir do modelo marxista, muitos autores têm pretendido “reconhecer” na América Latina uma vocação inata, intrínseca, para o comunismo e socialismo (Ferreira, 1991). Tal oposição ideológica, tomada isoladamente, não pode ser suficiente para definir a identidade cultural de nenhum povo. Em primeiro lugar, porque os modelos marxistas (como qualquer construção teórica) são ideais e nem sempre encontram exata correspondência na realidade. Apresentam anomalias, portanto. Em segundo lugar, porque as duas ideologias postas em confronto pressupõem elementos de identificação que não são específicos nem para a América Latina nem para qualquer outro povo. Uma sociedade dizer-se capitalista, comunista, socialista não define sua identidade. Chineses, russos, coreanos do norte e alemães orientais eram todos povos que adotaram ideologia e regime produtivo comunista e, no entanto, ninguém se atreveria a dizer que esses povos têm a mesma identidade cultural. Inglaterra e Índia adotam o capitalismo e têm identidades culturais profundamente distintas. Em terceiro lugar, porque no caso específico da América Latina, as civilizações mais adiantadas (maia, asteca e inca) apresentavam traços extremamente contraditórios no que concerne à sua suposta vocação para o comunismo ou para o socialismo. Havia indicações muito fortes da criação de formas diferenciadas de uso dos meios de produção, tendentes à configuração de propriedade privada, ou algo parecido com esta; havia inequívoca organização social em classes, algumas vezes sendo impossível a ascensão social; havia evidências irrefutáveis de exploração de uma classe por outras. Em quarto lugar, porque as estruturas sociais e produtivas das civilizações latino-americanas ancestrais estavam intimamente relacionadas com o fenômeno religioso, que na verdade moldava e justificava aquelas estruturas. Querer interpretar tais estruturas a partir e exclusivamente do materialismo histórico marxista não é suficiente para compreender a complexidade cultural daqueles povos. Assim como não se pode entender e compreender a civilização egípcia  ou a muçulmana  sem recorrer ao elemento religioso e mítico, também no caso das civilizações latino-americanas pré-coloniais não se pode estudar seu sistema produtivo e sua estrutura social sem relacioná-los com o profundo sentimento religioso daqueles povos. Era a religião que dava coesão às estruturas sociais e produtivas das civilizações latino-americanas pré-coloniais. Tanto isto é verdade que, após a conquista da região pelos colonizadores europeus, bastou desarticular o sistema religioso para esfacelar os sistemas social e produtivo dos povos dominados (Romano, 1989). Em quinto lugar, se fosse verdade que a América Latina inteira teria uma vocação inata para adotar o modelo produtivo comunista ou socialista e ter estruturas sociais correspondentes àquele modelo, teria sido possível para Bolívar realizar a unificação latino-americana no início do século XIX, na medida em que se dispusesse a adotar aquelas estruturas. Bem ao contrário, estão em curso na América Latina diversos processos de integração. Todos esses processos integracionistas avançam com extrema lentidão e muita dificuldade. Isto revela que os elementos de identificação econômica e ideológica não são suficientes para configurar uma identidade cultural universal entre dois ou mais povos e, obviamente, não dão nenhuma identidade própria para a América Latina. Finalmente, em sexto lugar, não se pode desconsiderar que a história da América Latina pré-colonial é a história de lutas incessantes entre seus povos, em disputa por terras e por mão-de-obra obrigada a trabalhar em troca de subsistência e de vida muito humilde. Não se pode dizer que as estruturas sócio-econômicas adotadas, por exemplo, pelos Estados maia, asteca e inca eram boas e justas apenas porque tais estados, muitas vezes apenas em retórica, garantiam aos seus súditos alimentação, vestuário, aposentadoria, educação. O sistema tributário adotado nessas civilizações só poderia ser justificado ideologicamente mediante essas retribuições. Os camponeses, artesãos e soldados comuns viviam apenas com os recursos imprescindíveis para sua subsistência. Dentro do sistema não havia possibilidade alguma de acumularem excedentes para si mesmos. Não podiam enriquecer. Todo o excedente da produção era destinado ao Estado, cujas despesas eram crescentes e obrigavam-no a exigir cada vez mais tributos das classes inferiores. Além disso, a super expansão dos impérios (imperial overstretching) criava a necessidade contínua de obter mais terras a serem cultivadas, para que houvesse maior arrecadação tributária. Esse círculo vicioso provocava infindáveis lutas entre os povos latino-americanos pré-coloniais. Cada um desses povos queria, por um lado, expandir sua dominação ou hegemonia ou, por outro lado, livrar-se da dominação imposta por povo rival. Em qualquer dessas duas situações, não se alteravam as condições de vida dos camponeses e outras classes sociais baixas: continuavam a trabalhar em troca de subsistência; não tinham direito de reter qualquer riqueza material para si mesmos; pagavam tributos cada vez maiores ora a um senhor, ora a outro; eram mantidos afastados da alfabetização e de qualquer forma de educação que pudesse levá-los a questionar o sistema vigente.

Como se vê, não é razoável querer definir a identidade da América Latina recorrendo apenas à oposição ideológica entre capitalismo, comunismo ou socialismo. É claro que em alguma medida esses elementos também são importantes para, em conjunto com outros, compor a identidade cultural de um povo. É preciso, então, procurar identificar quais seriam os outros elementos culturais com base nos quais, adotado certo grau de generalização, seria possível configurar de modo mais estável uma identidade cultural da América Latina.

4. Geografia e identidade cultural na América Latina

A geografia pode não ser absolutamente determinante para a construção de identidades culturais, mas é certo que as influencia significativamente. No caso específico da América Latina, o meio geográfico influenciou de modo evidente a formação e a afirmação de culturas locais, que não foram totalmente eliminadas nem mesmo pelo poderio das altas civilizações maia, asteca e inca.

Na América Latina há quatro grandes regiões, ou subsistemas geográficos (Mello, 1996) que tiveram grande importância no desenvolvimento cultural: a) a América Central e Caribe; b) o subsistema amazônico; c) o subsistema andino; e d) o subsistema platino. Cada um desses subsistemas apresenta subdivisões, como é o caso do subsistema andino, que tem faixas paralelas à Cordilheira dos Andes formando costa litorânea, faixas desérticas ou semi-áridas, escarpas montanhosas e platôs andinos. Nesse subsistema desenvolveram-se as culturas dos povos andinos. Embora esses diferentes povos apresentes traços identitários comuns, cada um deles tem ainda hoje forte sentimento de sua cultura local e específica. Por exemplo, o trançados dos tecidos, suas cores e ocasiões de uso indicam a posição do indivíduo na hierarquia social, seu estado civil, etc. O subsistema amazônico domina grande parte da América Latina. Não se pode atribuir ao meio geográfico caráter determinante de uma cultura específica, porém é impossível negar que a floresta amazônica influencia em grande parte as formas de ocupação humana do território, os sistemas de produção e mesmo a organização social dos povos que nela habitam. No subsistema platino há desertos e geleiras e ali também se desenvolveram culturas específicas que resistem até os dias atuais.

O fato de o ser humano ter notável aptidão para se adaptar a ambientes geográficos variados evidencia que estes interferem na formação da identidade cultural de um povo. Esta diversidade de meios geográficos explica em parte a grande dificuldade com que avançam os processos de integração econômica, política e cultural na América Latina.

5. Eliminação da memória coletiva e cultural na América Latina pré-colonial

A reconstrução da memória coletiva e cultural na América Latina é especialmente difícil por causa da escassez de documentos históricos que revelem elementos culturais dos povos americanos antes da conquista da região pelos colonizadores europeus. Os espanhóis, em especial, ao conquistarem os povos maia, asteca e inca, destruíram templos, palácios, cidades, objetos rituais e de arte, documentos, registros administrativos e contábeis, desenhos, pinturas, painéis narrativos. A destruição desse acervo de documentos e cidades prejudica demais a tentativa de reconstruir de maneira fiel a cultura daquelas civilizações. No caso das culturas dos povos indígenas brasileiros, a situação foi um pouco diferente (Castro, 1992). O colonizador português encontrou indígenas que ainda estavam em fase cultural do período neolítico bem anterior às fases em que estavam os maias, astecas ou incas. Por isto, o índio brasileiro não chegou a construir cidades, palácios, templos e não tinha escrita nem administração de um Estado. Desse modo, a reconstituição do universo cultural do indígena brasileiro é mais fácil, porque muitas comunidades ainda hoje vivem como viviam seus antepassados antes da conlonização lusitana. Isto tem permitido aos antropólogos e sociólogos estudar e compreender o indígena brasileiro com relativa precisão (Lévy-Strauss, 1993).  Em qualquer desses casos, a reconstituição do universo cultural dos povos latino-americanos depende, em primeiro lugar, da documentação arqueológica disponível, dos relatos orais colhidos junto aos seus descendentes, em comunidades mais ou menos preservadas, e em documentos históricos posteriores à colonização européia. Entre estes últimos, têm especial importância os documentos denominados “visitações”  que, com todas as ressalvas necessárias, dão uma idéia a respeito de vários aspectos culturais dos povos submetidos ao domínio europeu, tais como estrutura social, estrutura econômica, vestuário, hábitos alimentares, festividades, divindades adoradas, rituais religiosos, sistema administrativo, organização política, estado geral de saúde dos povos, tipo de habitação, organização familiar, relação entre população rural e urbana, etc.

6. Aspectos da cosmologia e da cultural das altas civilizações pré-colombianas

Toda e qualquer cultura dotada de um mínimo de organização interna constrói sistemas explicativos do mundo, criando modelos de conduta que devem ser seguidos e obedecidos pelos indivíduos e pelo grupo social. São esses sistemas e estruturas que dão sentido e coesão à sociedade. Em síntese, a produção e sistematização de uma cosmologia social é imprescindível para o funcionamento e para a reprodução mental e material de qualquer sociedade. No caso específico das chamadas “altas culturas” pré-coloniais centro e sul-americanas, e mesmo naquelas culturas americanas que não chegaram a alcançar esse estágio de organização cultural, as narrativas do imaginário social assumiram enorme importância. A sistematização cultural não era apenas uma forma de conhecimento abstrato. Ao contrário, as narrativas míticas e simbólicas faziam parte do cotidiano desses povos porque estavam intimamente associadas a todo o sistema produtivo e às estruturas e instituições sociais. Todos esses povos americanos viviam fundamentalmente da produção agrícola. Conhecer e prever os fenômenos da natureza era, portanto, absolutamente essencial para sua sobrevivência e reprodução. Tal necessidade os levou – pela prática e pela observação cuidadosa dos fatos da natureza – a constatar a correlação muito estreita entre os movimentos dos corpos celestes e a ordem e o ritmo dos fatos da natureza, em especial a sucessão das estações do ano, os períodos de chuva, o movimento das marés, etc. Com base nesses conhecimentos, foi possível ao homem americano adaptar suas forças produtivas às exigências da natureza. Nesse contexto, o trabalho de identificação, compreensão e organização dos movimentos dos corpos celestes e de sua relação com a produção agrícola tornou-se cada vez mais complexo e especializado. Essa atividade deu origem a uma classe sacerdotal, cada vez mais especializada em identificar e interpretar a vontade divina comunicada aos humanos por meio das estrelas, do Sol e da Lua. Para que essa missão dos sacerdotes fosse adequadamente realizada, centros cerimoniais foram construídos tanto para o culto às divindades como para permitir melhor observação do céu. Conseqüentemente, também se tornou necessário criar uma burocracia a serviço desses centros cerimoniais e, logo depois, com o crescimento dos centros urbanos, teve que surgir uma burocracia administrativa. Os movimentos migratórios dos povos americanos geraram conflitos: primeiro, entre grupos nômades e sedentários; depois, entre grupos sedentários que disputavam entre si terras férteis. Daí a necessidade da criação e manutenção de uma classe de guerreiros em cada sociedade. Os favores e a proteção das divindades eram, pois, preocupação constante na vida cotidiana dos povos americanos. Por isto, a força das narrativas simbólicas entre eles era muito significativa (Soustelle, 1997). A concepção cosmogênica de cada um desses povos era expressa e traduzida por meio não só das narrativas, mas da prática ritual observada em diversos momentos do dia. Em todas as civilizações americanas pré-coloniais havia estruturas sociais de classes bem nítidas. A base social era composta por grande número de camponeses que, com seu trabalho e por meio do pagamento dos tributos, sustentavam todas as demais classes improdutivas. Essas estruturas sociais eram profundamente justificadas e legitimadas por meio da religião e, sobretudo, por mecanismos que impediam os camponeses e as classes inferiores de acumularem qualquer tipo de poder: não recebiam educação que lhes permitisse criticar os fundamentos do sistema; não podiam acumular qualquer riqueza material; não tinham outras formas de se fazerem representar perante os poderes dominantes ou hegemônicos a não ser através das pessoas que as classes dominantes indicavam, as quais, por sua vez, tinham inequívoco interesse na manutenção do sistema. Cabe aqui observar que todas as civilizações americanas pré-coloniais baseavam-se preponderantemente na cultura do milho, que foi iniciada provavelmente pelos maias e depois se espalhou por toda a América Central e a América do Sul. Por isto, para tais civilizações, o milho tinha o mesmo significado simbólico e sagrado que têm o trigo e o pão para as civilizações cristãs, por exemplo.

Enfim, de modo geral, as altas civilizações pré-colombianas compartilhavam as mesmas concepções cosmogênicas; cultuavam mais ou menos as mesmas divindades (apesar das designações diferentes com que se referiam a estas); seguiam os mesmos princípios religiosos, adotavam o mesmo sistema produtivo e econômico; tinham estruturas sociais praticamente idênticas; com algumas especificidades, administravam seus territórios com base nos mesmos princípios e técnicas; apresentavam graus de desenvolvimento tecnológico muitíssimo semelhantes; cada uma delas acreditava-se escolhida pelos deuses para cumprir uma missão civilizatória dos povos que subjugavam. Mesmo com tantos traços identitários em comum, nenhuma dessas civilizações pré-colombianas consegui impor às demais uma única cultura homogênea e aceita por todos sua própria identidade cultural. O Império Inca, única civilização pré-colombiana que de modo apropriado merece a designação de império, jamais logrou impor totalmente sua cultura aos povos que dominou.

De fato, os incas conseguiram formar um Estado fortemente centralizado e bem administrado, dotado de aparelhamento político, militar, religioso e cultural organizado de modo a manter sob sua autoridade os povos submetidos. Além disto, foi também a única civilização americana que expandiu seu território a ponto de abranger, pelo menos em parte, os três subsistemas geopolíticos que caracterizam a América do Sul: o subsistema amazônico, o subsistema andino e o subsistema platino. O Império inca abrangeu grande parte da zona costeira do Oceano Pacífico, da Cordilheira dos Andes e da floresta amazônica (na porção não brasileira), absorvendo significativas porções dos territórios hoje ocupados pela Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Argentina e Chile. Em cada um desses subsistemas geopolíticos há subdivisões internas, decorrentes de alterações no meio geográfico, às vezes drásticas. Por exemplo, na parte peruana do Império inca, a civilização se espalhou pelo litoral costeiro do Oceano Pacífico, escalou a Cordilheira dos Andes e penetrou em parte da floresta amazônica. Mas a tendência do Império inca foi a de acompanhar o trajeto da Cordilheira dos Andes, ao longo da qual a geografia dispõe o ambiente em faixas litorânea (às vezes entremeada de desertos ou zonas áridas), montanhosa e de floresta tropical. Essas faixas são freqüentemente cortadas por vales transversais. As características geográficas encontradas influenciaram a formação de povoados relativamente isolados uns dos outros e, mais tarde, comunidades com traços nítidos de cidades-estado, dotadas de forte sentimento de identidade local. Por isso, é realmente admirável o projeto de unificação imperial levado a cabo pelos incas, que conseguiram ser criativos para, por um lado, impor sua dominação a essas comunidades locais e, por outro lado, assegurar que tais comunidades não perdessem seu próprio senso de identidade e, assim, aceitassem de modo relativamente pacífico e duradouro o domínio inca. A herança cultural e administrativa que os incas receberam dos huaris, tihuanacos e mochicas certamente lhes facilitou o projeto imperial. Esse fenômeno não foi possível nas civilizações maia e asteca.

A célula fundamental do Império Inca era formada pelas comunidades camponesas, denominadas ayllus (Favre, 1985). Nessas comunidades a coesão social era determinada por vínculos sanguíneos, dos quais resultavam diferentes graus de parentesco, e também pela crença dos camponeses de que todos eles descendiam dos mesmos ancestrais míticos. Assim, a justificativa ideológica para a dominação inca se baseava exatamente no parentesco de antepassados míticos divinos, cuja vontade ancestral se materializou na formação de um grande império. Nessas condições, os incas criaram e mantiveram um império centralizado que absorvia milhões de pessoas, impuseram uma língua e uma religião comuns a esses povos (mas tolerando os línguas maternas e os cultos locais). Os métodos dos incas para realizar esse grandioso projeto foram variados, mas envolveram formas generalizadas de violência. Uma das formas mais freqüentes de imposição da dominação, chamada mitamáes, consistia em dividir os povos indóceis e deslocá-los de suas regiões de origem para fixá-los em locais distantes. Com esse procedimento, os incas, rompiam os laços de parentesco, de religião e de identidade local que uniam os rebeldes, tornando muito mais eficaz o sistema de dominação. Outra técnica freqüente de dominação usada pelos incas era a manutenção de reféns, inclusive múmias dos nobres e sacerdotes dos povos dominados. Capturavam as múmias, os líderes e seus familiares de uma comunidade e os mantinham como reféns na capital do Império. Isto assegurava a colaboração da comunidade dominada, temerosa de que seus antepassados mumificados, líderes e sacerdotes não mais retornassem, o que significava, na prática, interromper o diálogo entre os homens comuns e os deuses, pois esse diálogo era intermediado pelos entes mumificados, pelos líderes e sacerdotes de cada comunidade. Uma variação dessa técnica era manter como reféns dos incas apenas os filhos dos nobres da comunidade dominada. Esses reféns seriam educados em escolas incas, a fim assimilarem a cultura inca e reproduzi-la posteriormente nas suas comunidades de origem, para as quais retornavam como novos líderes ou novos sacerdotes (Peragalli, 1994). Acrescente-se a tudo isto o fato de que os incas criaram inúmeras vias de comunicação e estradas que ligavam todas as regiões do Império. Essas vias e estradas eram percorridas rapidamente por mensageiros (chasquis), que tornavam muito eficiente o sistema de comunicação e de troca de informações entre o governo central e as demais regiões dominadas pelos incas.

Para obter a máxima eficiência da estrutura produtiva de seu Império, os incas adotaram duas medidas muito importantes: em primeiro lugar, permitiram que as comunidades locais mantivessem seus cultos religiosos e suas próprias divindades, mas incorporaram naquelas comunidades o culto às divindades incas; em segundo lugar, os incas mantiveram a autoridade e o prestígio do chefe de cada ayllu, o qual, por sua vez, em troca da preservação de seu status, devia fidelidade ao Estado Inca. Formou-se, portanto, uma complexa e delicada rede de alianças entre os líderes de cada ayllu e o Estado Inca: este, em geral, não abolia os privilégios desses líderes locais, mas exigia deles que trabalhassem em favor da difusão e realização dos interesses incas perante a comunidade local. Por conseguinte, no plano ideológico, o pagamento de tributos pela comunidade ao Estado Inca aparecia como legítimo, porque intermediado pelo chefe do ayllu e porque associado a um sistema de reciprocidade garantido pelos incas.

Assim como no Império Inca, também nas civilizações maia e asteca a expansão baseou-se, num primeiro momento, no poderio militar. Mas a manutenção e expansão dessas civilizações realmente dependeu dos mecanismos ideológicos e culturais de controle dos povos submetidos.  O sistema de dominação envolvia mecanismos de cooptação dos líderes locais, bem como mecanismos de persuasão da comunidade para aceitar consensualmente a hegemonia dos dominadores e pagar os tributos devidos sem grande resistência. Portanto, o hard power era substituído ou apoiado pelo soft power, no sentido que Joseph Nye usa esses termos atualmente (Nye, 2002).

Um último aspecto cultural comum entre os incas, astecas e maias e que merece registro é o caráter autárquico de suas economias. Todas essas civilizações apoiavam-se num sistema econômico fechado ao comércio exterior. Eram civilizações com economia predominantemente agrícola. Havia pouca atividade comercial entre os diferentes povos. Cada comunidade tendia a produzir tudo o que precisava, de tal modo que não havia condições favoráveis ao comércio em larga escala. Além disso, como foi comentado, os camponeses não acumulavam excedentes econômicos para si, razão pela qual os lucros comerciais tendiam a ser pequenos. Apenas os maias superaram em parte essas deficiências e constituíram uma verdadeira classe de comerciantes.

Considerações finais

Não têm fundamento razoável os discursos acadêmicos e políticos atualmente correntes, no sentido de que a América Latina estaria sendo vítima da supressão de sua identidade cultural em razão da imposição da cultura de outros povos dominantes da sociedade internacional. Esse tipo de homogeneização cultural jamais aconteceu na história da humanidade e nem tem possibilidade de acontecer especificamente na América Latina. É oportuno retomar as indagações fundamentais que motivaram este estudo:

Existe uma identidade cultural genuinamente latino-americana? Se essa identidade cultural existir, quais seriam os elementos gerais ou particulares de identificação cultural que a caracterizariam? Como os elementos gerais de identificação da cultura ocidental dominante ou hegemônica (européia e norte-americana) coexistiriam com os elementos de identidade cultural da América Latina?

Neste trabalho foi dito que o desenvolvimento cultural da América Latina ocorreu em três principais fases: a do povoamento das Américas; a de formação e apogeu das altas culturas pré-colombianas; e a fase de formação da cultura colonial na região e de seus principais desdobramentos. As duas primeiras fases apresentaram elementos culturais desenvolvidos pelos povos americanos de modo autóctone, pois estavam em estado de isolamento em relação a outras civilizações. No entanto, as estruturas econômicas, sociais, políticas desses povos revelam elementos culturais comuns a outras civilizações e povos não americanos, indicando importante influência de arquétipos culturais também na América Latina. Apesar disto, os povos e civilizações pré-coloniais imprimiram suas marcas nessas estruturas, conciliando ao longo de muitos séculos os elementos culturais arquetípicos com os elementos das culturas locais. Na terceira fase, isto é, quando elementos da cultura européia foram introduzidos rapidamente no universo cultural dos povos indígenas latino-americanos, ocorreram drásticos choques culturais, em que a dominação ou hegemonia cultural da Europa prevaleceu. Todavia, subsistiram alguns fortes elementos culturais indígenas das fases anteriores à colonização.

A análise desenvolvida evidenciou que o problema de choques culturais na América Latina é verdadeiramente ancestral. Desde que as Américas começaram a ser povoadas, grupos humanos persistentemente entram em confrontos uns com os outros. Quaisquer que sejam os motivos desses infindáveis confrontos, em todos eles há uma constante: uma cultura pretende ter hegemonia sobre a cultura rival e ambas lutam buscando o reconhecimento de seu valor e querem se autoafirmar perante culturas rivais. Portanto, falar em identidade cultural latino-americana obriga o pesquisador, em maior ou menor grau, a revolver esse gigantesco mosaico cultural. Minha percepção é de que a cultura na América Latina (claro que noutras partes do mundo também) se assemelha a uma rocha sedimentar. Há camadas culturais muito antigas, às quais se sobrepõem camadas culturais mais recentes, de modo que as vejo “empilhadas” conforme sua ordem de antiguidade e da dominação ou hegemonia que cada qual conseguiu ter em certo momento histórico. Mas em alguns pontos essa rocha sedimentar está partida e, então, é possível enxergar perfeitamente os restos ou “cacos” de culturas antigas que afloram e põem-se em contato com as camadas culturais mais atuais. Ao revolver esse “entulho”, ficamos procurando onde encaixar o “caco” perdido, conforme o colorido dos seus traços sedimentares. Ao realizar essa tentativa de encaixar a peça cultural perdida, é possível observar que há muitos pedaços da rocha sedimentar cultural em que o caco poderia encontrar seu lugar. A rocha cultural, enfim, tem uma composição mais ou menos uniforme, ainda que suas diferentes camadas tenham sido formadas com materiais distintos. Mas é exatamente a combinação de todos esses materiais que dá coesão, consistência, solidez a essa rocha cultural. Mesmo com uma fratura aqui ou ali, o caco cultural pode ser reintegrado à rocha sedimentar cultural, porque é parte dela.

Por esses motivos, não se pode falar de uma identidade da ou na América Latina. A região é um mosaico multidimensional e multicolorido de culturas que se articulam, que têm muitos traços identitários comuns, mas que não abdicam de seus fortes sentimentos de pertencimento a culturas locais bem caracterizadas. Como outras partes do mundo, também a América Latina é multicultural e plurinacional. É de fato impossível pretender a homogneização cultural latino-americana. Os processos de integração que estão em curso na América Latina precisarão contemplar o multiculturalismo e a plurinacionalidade da região. Os processos de mediação simbólica, cultural, na América Latina se desenvolvem desde tempos ancestrais. Continuarão a ocorrer na contemporaneidade, obviamente com maior complexidade e velocidades. No entanto, as as culturas locais dispõem de mecanismos internos mais ou menos eficientes para que não se desintegrem totalmente. Isto faz parte do processo dialético de autoafirmação cultural quando ocorrem os choques entre culturas locais e cultura global. O processo global de integração cultural, que tende a homogeneizar culturas, é o mesmo que, paradoxalmente, acentua as diferenças culturais. Trata-se de processo dialético que envolve a alteridade global-local para construir, reconstruir, transformar, diluir ou miscigenar a identidade cultural do indivíduo e da própria sociedade, hoje de escala planetária (Seixas, 2008).

Mesmo que esteja em curso um amplo e profundo processo de choques culturais provocados pela globalização (Huntington, 1997), esses sedimentos culturais irão se acomodar numa nova camada da grande rocha cultural. Alguns elementos da cultura dominante ou hegemônica vão prevalecer e ficar em sedimentos mais aparentes; alguns elementos das culturas não hegemônicas também vão prevalecer e ocupar o seu lugar na nova camada sedimentar da rocha cultural; finalmente, noutros casos, os materiais orgânicos de que são formadas as culturas dominantes ou hegemônicas e as não hegemônicas vão se misturar e, assim, formarão uma nova substância que se acomodará no seu espaço para formar a atual camada da rocha sedimentar cultural. E, tendo eu aprendido com os maias, com os astecas, com os incas e com os índios brasileiros, estou consciente de que o nosso ciclo também vai terminar. Depois dele, uma nova camada cultural será depositada na rocha que sustenta todas as civilizações …

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Resumo: Não é possível forjar identidade cultural única para a América Latina. Desde tempos ancestrais a região experimenta o multiculturalismo. As civilizações pré-colombianas, que realizaram impressionantes projetos de integração regional, precisaram criar sistemas para harmonizar culturas dominantes e culturas locais. Processos semelhantes de mediação simbólica estão em andamento na contemporaneidade.

Abstract: It is not possible to create a unique cultural identity for Latin America. Since ancient times the region has been experiencing multiculturalism. The pre-colombian civilizations, which implemented highly impressive projects of regional integration, needed to create systems to harmonize dominant cultures and local cultures. Similar processes of symbolic mediation are presently in development.

Sumário: Introdução. 1- Desenvolvimento cultural autônomo na América Latina. 2- As primeiras culturas na fase de povoamento das Américas. 3- Identidade cultural nas altas civilizações da América Latina pré-colonial. 4- Geografia e identidade cultural na América Latina. 5- Eliminação da memória coletiva e cultural na América Latina pré-colonial. 6- Aspectos da cosmologia e da cultural das altas civilizações pré-colombianas. Considerações finais.

Introdução

Na literatura de várias áreas de conhecimento tem sido comum encontrar afirmações de que estaria em desenvolvimento processo de homogeneização cultural mundial. Os poderes dominantes ou hegemônicos que controlam a dinâmica das relações globais, especialmente por meio da grande mídia, estariam cada vez mais desintegrando culturas locais e substituindo-as por quadros culturais gerais, homogêneos, baseados em critérios definidos por aqueles poderes e conforme seus interesses. Todavia, muitas e muitas vezes tais afirmações contidas na literatura não correspondem aos fatos do mundo real.

No final da década de 1980 e começo da década de 1990 diversos fatos contribuíram para alterar a ordem internacional estabelecida desde o término da Segunda Guerra Mundial. Houve a queda do muro de Berlim e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas se dissolveu. Terminava a Guerra Fria e o mundo perdia sua configuração bipolar de equilíbrio de poder, que vigorara desde o fim da década de 1940. Como única superpotência mundial remanesciam os Estados Unidos da América, que, embora sem poder suficiente para imporem seus interesses ao resto do mundo, não deixam de ser ouvidos em qualquer assunto de relevância internacional (Kennedy, 1989 ). A partir de então, proliferam lutas regionais com caráter de autoafirmação cultural local,  nacionalista ou religiosa (Huntington, 1997). De fato, em diversos casos a identidade nacional se mistura e se confunde com a identidade religiosa e, para se autoafirmar, desencadeia lutas caracterizadas pela polarização de uma religião contra outra. É interessante esse fenômeno porque é muito semelhante ao que ocorreu por ocasião do surgimento e consolidação dos Estados nacionais europeus entre os séculos XV e XVII. Na época em que começaram a se formar os Estados nacionais europeus ainda não havia um poder ideológico organizado, minimamente dominante ou hegemônico para mobilizar para a guerra as diversas facções conflitantes. Por isto, as guerras assumiam características de conflitos religiosos, os quais, naquele contexto, simbolizavam as disputas de um poder ideológico contra outro (Chaunu, 1993). Apenas entre o último quarto do século XVII e as duas primeiras décadas do século XIX é que a ideologia Liberalista logrou se impor no ocidente e, então, parte das tradicionais guerras religiosas foi substituída por guerras ideológicas e nacionalistas (Morgenthau, 2003). Marcos importantes dessa fase histórica ocidental foram a independência dos Estados Unidos da América, a Revolução Industrial inglesa, a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas.

Ora, o mundo está se reorganizando em busca de um novo equilíbrio de poder multipolar; proliferam atualmente conflitos e guerras de autoafirmação cultural local, nacional ou religiosa; países estão sendo formados ou dilacerados em decorrência desses conflitos; blocos e coalizões regionais, continentais e mesmo globais estão sendo formados ou consolidados na sociedade internacional com base nas afinidades culturais de seus membros (Huntington, 1997). É evidente, portanto, a importância da identidade cultural (ou da falta dela) implicada nesses fenômenos. Entretanto, mesmo considerada a relevância da identidade cultural, não há na história da humanidade nenhum exemplo de homogeneização identitária. Mesmo com o advento de grandes impérios, como foram o Império Romano e o Império Han, nunca foi possível forjar uma única identidade para todos os povos por eles abrangidos. A identidade cultural imposta por poderes dominantes sempre teve que coexistir com múltiplas identidades locais dos povos submetidos.

Nessas circunstâncias, não podem ser aceitas sem reservas, por exemplo, afirmações correntes no sentido de que a cultura latino-americana estaria sendo substituída pela cultura de Hollywood ou de que, através da grande mídia, haveria imposição irresistível de elementos culturais de países dominantes em face dos povos da América Latina. Efetivamente ocorrem tais fenômenos de manipulação e de imposição cultural, porém todos eles são em grande parte submetidos a complexos processos de mediação simbólica, por meio dos quais cada indivíduo e cada grupo filtram e metabolizam elementos culturais alienígenas, incorporando-os ou não ao quadro geral de referências culturais aquela específica comunidade (Martín-Barbero, 2006).

Diante dessas considerações iniciais e com base em estudos precedentes (Seixas, 2006), este trabalho parte das seguintes hipóteses: 1ª) é impossível efetivar homogeneização cultural plena em qualquer lugar do mundo e, portanto, também na América Latina. Poderosas forças de autoafirmação cultural e identitária são mobilizadas para resistir à tendência de homogeneização cultural desejada por potências dominantes da sociedade internacional. Nos limites deste trabalho não há possibilidade de explorar como essas forças de resistência operam. Essa tarefa foi realizada noutro estudo ao qual se remete o leitor (Seixas, 2008). 2ª) qualquer projeto de integração dos países da América Latina só terá possibilidade de êxito duradouro se contemplar o multiculturalismo e a plurinacionalidade existentes na região. Processos latino-americanos de integração econômica, social ou mesmo política precisam estabelecer de modo claro, democrático e flexível políticas abrangentes do multiculturalismo e da plurinacionalidade acima referidos. Tendo em vista os limites editoriais a que este trabalho tem que se adequar, para testar as hipóteses de pesquisa é imperativo fazer recortes, adiante especificados.

O objeto central deste estudo é investigar se há e como está configurada uma identidade latino-americana, uniforme e compartilhada por todos os povos habitantes da região, ou se, ao contrário, há múltiplas identidades latino-americanas, as quais se transformam continuamente e formam um mosaico cultural na região. As questões fundamentais que este estudo quer examinar são as seguintes:

Existe uma identidade cultural genuinamente latino-americana? Se essa identidade cultural existir, quais seriam os elementos gerais ou particulares de identificação cultural que a caracterizariam? Como os elementos gerais de identificação da cultura ocidental dominante ou hegemônica (européia e norte-americana) coexistiriam com os elementos de identidade cultural da América Latina?

Como primeiro recorte desta pesquisa optou-se por isolar os povos da América Latina de seus contatos com outros povos, especialmente os europeus e os norte-americanos. Por isto, escolheu-se um período da história dos povos pré-colombianos anterior aos descobrimentos europeus. Nesse contexto, os habitantes da hoje chamada América Latina não estavam sob as imposições ou influências culturais de povos alienígenas conquistadores, colonizadores ou imperialistas. O segundo recorte da pesquisa põe foco nas chamadas “altas civilizações pré-colombianas”. Em decorrência da amplitude territorial, do poder, do desenvolvimento cultural, tecnológico e político dessas civilizações, puderam exercer imensa influência sobre os povos que vieram a dominar antes da chegada dos descobridores europeus. Todavia, como se verá no decorrer deste trabalho, nenhuma das altas civilizações pré-colombianas conseguiu forjar uma única cultura, dominante, homogênea. Ao contrário, todas elas precisaram formar alianças com os povos dominados e, em maior ou menor grau, aceitar as especificidades culturais locais de cada um deles. O terceiro recorte da pesquisa limita o estudo às três civilizações pré-colombianas mais desenvolvidas: maia, asteca e inca. Mais uma vez, os limites editoriais definidos para este trabalho não permitem exposição das características de cada uma das três civilizações selecionadas. Tal análise foi realizada noutro trabalho (Seixas, 2006).  Aqui serão examinados aspectos gerais comuns às três civilizações estudadas. Por fim, o quarto recorte do estudo diz respeito ao grau de generalização ou de especificidade a ser adotado para examinar o fenômeno da identidade cultural. Para examinar as questões fundamentais apresentadas acima, foi necessário estabelecer certo grau de generalização a respeito da identidade cultural. Optou-se por partir de critérios mais amplos, generalizantes, universalizantes, suficientes para poder abranger o maior número possível de grupos sociais latino-americanos. Somente assim se poderá falar de identidade cultural da ou na América Latina. Portanto, não são objetivos deste trabalho estudar: (i) as especificidades de culturas locais latino-americanas comparadas umas com as outras; e (ii) as especificidades culturais de certas classes sociais em contraste com outras classes dentro do mesmo grupamento social. Noutras palavras, não é objetivo desta pesquisa estudar a identidade cultural da América Latina considerando, por exemplo, se os elementos culturais preponderantes no sertão nordestino brasileiro teriam penetrado na cultura dos povos andinos, ou vice-versa.

Desde logo é bom esclarecer aqui que as expressões “culturas hegemônicas” ou “culturas não hegemônicas” não terão, neste trabalho, a significação específica que Gramsci atribuiu à hegemonia(Bobbio, Mateucci et Pasquino, 2004). Para Gramsci, a hegemonia pressupõe que um certo poder é imposto por um grupo social a outro e, por meio de mecanismos ideológicos, tal imposição aparece como natural e legitimada perante o grupo sujeito àquele poder, que o aceita de modo mais pacífico. Neste trabalho usa-se a palavra “hegemonia” num sentido mais amplo que, em certa medida, contém a significação que lhe foi dada por Gramsci, porém abrange também a situação em que, em certo lugar, momento histórico e contexto, um poder ou elemento cultural prepondera sobre outros poderes ou elementos culturais concorrentes, quer sejam ou não aceitos pelos grupos sociais sujeitos ao poder ou elemento cultural preponderante.

1. Desenvolvimento cultural autônomo na América Latina

Não considerada a fase contemporânea da globalização, a identidade cultural na América Latina apresenta três fases importantes. A primeira diz respeito ao povoamento das Américas, em que grupos diferentes se instalaram na região e desenvolveram suas próprias culturas. Depois, como conseqüência do processo evolutivo da fase anterior, vem a fase das altas civilizações americanas pré-coloniais. Essas duas primeiras fases são importantes porque refletem o desenvolvimento cultural autônomo das Américas, em particular do que viria a ser a América Latina. A literatura adiante referida costuma dizer que as Américas tiveram desenvolvimento cultural autóctone depois que a passagem pelo estreito de Bering foi interrompida, impedindo assim que influências culturais exteriores continuassem a ser transmitidas para o Novo Continente. Isto significa que durante muito tempo os povos americanos desenvolveram sua cultura particular, refletida nas estruturas econômicas, sociais e políticas que cada povo adotava. A terceira fase importante foi a da colonização dos povos americanos pelos europeus. A partir dessa última fase, diversos elementos culturais das civilizações dominantes ou hegemônicas da Europa foram transplantados para a América Latina e Caribe. Ocorreram choques culturais amplos e profundos. A predominância da cultura dos colonizadores é marcante desde então, mas não foi suficiente para eliminar muitos dos elementos culturais indígenas. Por essas razões, sem nenhuma pretensão de narrar a história dos povos americanos em algumas páginas, o desenvolvimento deste estudo procurou acompanhar as três principais fases evolutivas da cultura latino-americana, acima indicadas.

A intenção é destacar alguns elementos culturais de cada uma das fases, na medida em que pareceram pertinentes para os fins deste trabalho. Durante a pesquisa foram examinadas as estruturas culturais, sociais, econômicas e políticas dos povos estudados. Constatou-se que muitos dos elementos culturais da América Latina pré-colonial têm paralelo com outras culturas, especialmente a cultura européia: princípios de organização política do Estado; estrutura social classista; separação entre trabalho intelectual e braçal; sistema produtivo; cobrança de tributos; instrumentos de dominação ideológica, especialmente o uso da religião para esse fim. Na verdade, com base em conhecimentos gerais de História, foi possível constatar que alguns desses elementos culturais são arquetípicos e estão presentes em muitas outras civilizações. Todavia, no caso específico dos povos americanos pré-coloniais, a combinação desses elementos culturais teve a marca local. Mesmo invocando arquétipos, cada um desses povos fez suas próprias narrativas míticas que possibilitaram a coesão interna de sua cultura. Assim, sobre o modelo arquetípico geral, os pré-colombianos imprimiram seus elementos culturais particulares. É óbvio que os limites definidos para a realização deste trabalho não permitem que se faça um rastreamento de todas as culturas e um exame particular e profundo de cada uma delas. Na verdade, o que se quer é apresentar algo como uma fotografia, ou no máximo um “curta metragem” das culturas selecionadas. O fundamental é encontrar elementos culturais com base nos quais se possa reconhecer uma ou mais identidades da América Latina, sempre a partir de graus de generalização.


2. As primeiras culturas na fase de povoamento das Américas

Muitas culturas ancestrais latino-americanas desapareceram ou, no máximo, deixaram alguns traços incorporados em culturas posteriores. Com base em documentação arqueológica, estudiosos estimam que a presença humana nas Américas começou por volta de 50.000 anos atrás. Contingentes humanos teriam migrado da Ásia, atravessado o estreito de Bering, que naquela época estaria congelado e formava uma ponte entre a Ásia e a América do Norte. Essas correntes migratórias chegaram à América do Norte, de onde foram se reproduzindo e se deslocando para a América Central e depois para a América do Sul. Se essa suposição estiver correta, sua conseqüência mais importante seria que, terminada a glaciação e interrompida a passagem pelo estreito de Bering, os povos americanos teriam ficado ilhados e, por isto, teriam desenvolvido culturas autóctones. Por outro lado, há indícios arqueológicos de que contingentes migratórios da Polinésia também teriam chegado por mar em embarcações primitivas. Seja como for, o fato é que esses primeiros povoadores das Américas desenvolveram culturas próprias, vez por outra revelando alguma semelhança com culturas asiáticas e polinésias. Eram inicialmente povos nômades, dedicados à caça e à coleta, eventualmente à pesca. Teriam uma organização de bandos, com lideranças circunstanciais. Muito lentamente iniciaram um processo de fixação de povoamentos e de sedentarização, que passou a ser mais evidente há aproximadamente 10.000 anos atrás, conforme dados arqueológicos disponíveis (Cardoso, 1981).

Em função da característica nômade ou seminômade desses primeiros povoadores americanos, seus constantes deslocamentos em busca de melhores condições de sobrevivência provocaram constantes choques entre os diferentes grupos. Em conseqüência, desde muito cedo os povos americanos convivem com a profunda questão de identidade cultural. Grupos dominantes ou hegemônicos certamente desejavam impor não só o seu poder, mas também a sua cultura aos grupos subjugados. Portanto, o conflito entre culturas dominantes ou hegemônicas e não hegemônicas não é um fenômeno atual na América Latina. Começou há milhares de anos atrás e apresenta a mesma questão central: a luta simbólica de vida ou morte entre culturas que querem se autoafirmar e ter reconhecido o seu valor diante de outra diferente. É claro que os conflitos culturais contemporâneos são muitíssimo mais complexos, profundos e abrangentes do que os conflitos culturais entre alguns povos nômades ancestrais. Porém isto não altera a questão essencial acima indicada. Nesse contexto, é fácil admitir que centenas de culturas surgiram nas Américas. Algumas desapareceram completamente; outras se miscigenaram; e outras mais tiveram seus períodos de dominância ou hegemonia. Quais dessas culturas resgatar para construir uma identidade cultural americana? No caso específico da América Latina, haveria um conjunto de elementos culturais que, reunidos, seriam suficientes para que se possa afirmar: esse é o rosto da América Latina?!

3. Identidade cultural nas altas civilizações da América Latina pré-colonial

A identidade cultural de qualquer grupo social é construída com elementos culturais arquetípicos, híbridos ou dominantes.[1] Todos esses elementos se combinam e se complementam para juntos comporem uma identidade cultural. Por isto, a identidade cultural latino-americana será construída com elementos culturais daquelas três espécies. Terá elementos ancestrais de identificação cultural; terá outros elementos de diversas culturas que precisam coexistir sob certas circunstâncias; terá elementos culturais subjugados por outras culturas em certos momentos; e terá elementos culturais que simbolizarão a auto-afirmação da identidade latino-americana perante culturas rivais.

Atualmente está em pauta a necessidade de afirmação da cultura da América Latina em face de culturas dominantes ou hegemônicas. Então, quais são os elementos de identificação cultural da América Latina que lhe permitirão se autoafirmar em face das culturas concorrentes? É muito simplista tratar essa questão reduzindo-a exclusivamente, ou preponderantemente, a uma oposição ideológica entre capitalismo versus comunismo/socialismo. Tem sido comum na literatura(por exemplo, Peregalli, 1994) afirmar que o passado das civilizações latino-americanas está associado à posse comum dos meios de produção, a um sistema de reciprocidade tributária entre os Estados e as comunidades, etc. A partir do modelo marxista, muitos autores têm pretendido “reconhecer” na América Latina uma vocação inata, intrínseca, para o comunismo e socialismo (Ferreira, 1991). Tal oposição ideológica, tomada isoladamente, não pode ser suficiente para definir a identidade cultural de nenhum povo. Em primeiro lugar, porque os modelos marxistas (como qualquer construção teórica) são ideais e nem sempre encontram exata correspondência na realidade. Apresentam anomalias, portanto. Em segundo lugar, porque as duas ideologias postas em confronto pressupõem elementos de identificação que não são específicos nem para a América Latina nem para qualquer outro povo. Uma sociedade dizer-se capitalista, comunista, socialista não define sua identidade. Chineses, russos, coreanos do norte e alemães orientais eram todos povos que adotaram ideologia e regime produtivo comunista e, no entanto, ninguém se atreveria a dizer que esses povos têm a mesma identidade cultural. Inglaterra e Índia adotam o capitalismo e têm identidades culturais profundamente distintas. Em terceiro lugar, porque no caso específico da América Latina, as civilizações mais adiantadas (maia, asteca e inca) apresentavam traços extremamente contraditórios no que concerne à sua suposta vocação para o comunismo ou para o socialismo. Havia indicações muito fortes da criação de formas diferenciadas de uso dos meios de produção, tendentes à configuração de propriedade privada, ou algo parecido com esta; havia inequívoca organização social em classes, algumas vezes sendo impossível a ascensão social; havia evidências irrefutáveis de exploração de uma classe por outras. Em quarto lugar, porque as estruturas sociais e produtivas das civilizações latino-americanas ancestrais estavam intimamente relacionadas com o fenômeno religioso, que na verdade moldava e justificava aquelas estruturas. Querer interpretar tais estruturas a partir e exclusivamente do materialismo histórico marxista não é suficiente para compreender a complexidade cultural daqueles povos. Assim como não se pode entender e compreender a civilização egípcia[2] ou a muçulmana[3] sem recorrer ao elemento religioso e mítico, também no caso das civilizações latino-americanas pré-coloniais não se pode estudar seu sistema produtivo e sua estrutura social sem relacioná-los com o profundo sentimento religioso daqueles povos. Era a religião que dava coesão às estruturas sociais e produtivas das civilizações latino-americanas pré-coloniais. Tanto isto é verdade que, após a conquista da região pelos colonizadores europeus, bastou desarticular o sistema religioso para esfacelar os sistemas social e produtivo dos povos dominados (Romano, 1989). Em quinto lugar, se fosse verdade que a América Latina inteira teria uma vocação inata para adotar o modelo produtivo comunista ou socialista e ter estruturas sociais correspondentes àquele modelo, teria sido possível para Bolívar realizar a unificação latino-americana no início do século XIX, na medida em que se dispusesse a adotar aquelas estruturas. Bem ao contrário, estão em curso na América Latina diversos processos de integração. Todos esses processos integracionistas avançam com extrema lentidão e muita dificuldade. Isto revela que os elementos de identificação econômica e ideológica não são suficientes para configurar uma identidade cultural universal entre dois ou mais povos e, obviamente, não dão nenhuma identidade própria para a América Latina. Finalmente, em sexto lugar, não se pode desconsiderar que a história da América Latina pré-colonial é a história de lutas incessantes entre seus povos, em disputa por terras e por mão-de-obra obrigada a trabalhar em troca de subsistência e de vida muito humilde. Não se pode dizer que as estruturas sócio-econômicas adotadas, por exemplo, pelos Estados maia, asteca e inca eram boas e justas apenas porque tais estados, muitas vezes apenas em retórica, garantiam aos seus súditos alimentação, vestuário, aposentadoria, educação. O sistema tributário adotado nessas civilizações só poderia ser justificado ideologicamente mediante essas retribuições. Os camponeses, artesãos e soldados comuns viviam apenas com os recursos imprescindíveis para sua subsistência. Dentro do sistema não havia possibilidade alguma de acumularem excedentes para si mesmos. Não podiam enriquecer. Todo o excedente da produção era destinado ao Estado, cujas despesas eram crescentes e obrigavam-no a exigir cada vez mais tributos das classes inferiores. Além disso, a super expansão dos impérios (imperial overstretching) criava a necessidade contínua de obter mais terras a serem cultivadas, para que houvesse maior arrecadação tributária. Esse círculo vicioso provocava infindáveis lutas entre os povos latino-americanos pré-coloniais. Cada um desses povos queria, por um lado, expandir sua dominação ou hegemonia ou, por outro lado, livrar-se da dominação imposta por povo rival. Em qualquer dessas duas situações, não se alteravam as condições de vida dos camponeses e outras classes sociais baixas: continuavam a trabalhar em troca de subsistência; não tinham direito de reter qualquer riqueza material para si mesmos; pagavam tributos cada vez maiores ora a um senhor, ora a outro; eram mantidos afastados da alfabetização e de qualquer forma de educação que pudesse levá-los a questionar o sistema vigente.

Como se vê, não é razoável querer definir a identidade da América Latina recorrendo apenas à oposição ideológica entre capitalismo, comunismo ou socialismo. É claro que em alguma medida esses elementos também são importantes para, em conjunto com outros, compor a identidade cultural de um povo. É preciso, então, procurar identificar quais seriam os outros elementos culturais com base nos quais, adotado certo grau de generalização, seria possível configurar de modo mais estável uma identidade cultural da América Latina.

4. Geografia e identidade cultural na América Latina

A geografia pode não ser absolutamente determinante para a construção de identidades culturais, mas é certo que as influencia significativamente. No caso específico da América Latina, o meio geográfico influenciou de modo evidente a formação e a afirmação de culturas locais, que não foram totalmente eliminadas nem mesmo pelo poderio das altas civilizações maia, asteca e inca.

Na América Latina há quatro grandes regiões, ou subsistemas geográficos (Mello, 1996) que tiveram grande importância no desenvolvimento cultural: a) a América Central e Caribe; b) o subsistema amazônico; c) o subsistema andino; e d) o subsistema platino. Cada um desses subsistemas apresenta subdivisões, como é o caso do subsistema andino, que tem faixas paralelas à Cordilheira dos Andes formando costa litorânea, faixas desérticas ou semi-áridas, escarpas montanhosas e platôs andinos. Nesse subsistema desenvolveram-se as culturas dos povos andinos. Embora esses diferentes povos apresentes traços identitários comuns, cada um deles tem ainda hoje forte sentimento de sua cultura local e específica. Por exemplo, o trançados dos tecidos, suas cores e ocasiões de uso indicam a posição do indivíduo na hierarquia social, seu estado civil, etc. O subsistema amazônico domina grande parte da América Latina. Não se pode atribuir ao meio geográfico caráter determinante de uma cultura específica, porém é impossível negar que a floresta amazônica influencia em grande parte as formas de ocupação humana do território, os sistemas de produção e mesmo a organização social dos povos que nela habitam. No subsistema platino há desertos e geleiras e ali também se desenvolveram culturas específicas que resistem até os dias atuais.

O fato de o ser humano ter notável aptidão para se adaptar a ambientes geográficos variados evidencia que estes interferem na formação da identidade cultural de um povo. Esta diversidade de meios geográficos explica em parte a grande dificuldade com que avançam os processos de integração econômica, política e cultural na América Latina.

5. Eliminação da memória coletiva e cultural na América Latina pré-colonial

A reconstrução da memória coletiva e cultural na América Latina é especialmente difícil por causa da escassez de documentos históricos que revelem elementos culturais dos povos americanos antes da conquista da região pelos colonizadores europeus. Os espanhóis, em especial, ao conquistarem os povos maia, asteca e inca, destruíram templos, palácios, cidades, objetos rituais e de arte, documentos, registros administrativos e contábeis, desenhos, pinturas, painéis narrativos. A destruição desse acervo de documentos e cidades prejudica demais a tentativa de reconstruir de maneira fiel a cultura daquelas civilizações. No caso das culturas dos povos indígenas brasileiros, a situação foi um pouco diferente (Castro, 1992). O colonizador português encontrou indígenas que ainda estavam em fase cultural do período neolítico bem anterior às fases em que estavam os maias, astecas ou incas. Por isto, o índio brasileiro não chegou a construir cidades, palácios, templos e não tinha escrita nem administração de um Estado. Desse modo, a reconstituição do universo cultural do indígena brasileiro é mais fácil, porque muitas comunidades ainda hoje vivem como viviam seus antepassados antes da conlonização lusitana. Isto tem permitido aos antropólogos e sociólogos estudar e compreender o indígena brasileiro com relativa precisão (Lévy-Strauss, 1993).  Em qualquer desses casos, a reconstituição do universo cultural dos povos latino-americanos depende, em primeiro lugar, da documentação arqueológica disponível, dos relatos orais colhidos junto aos seus descendentes, em comunidades mais ou menos preservadas, e em documentos históricos posteriores à colonização européia. Entre estes últimos, têm especial importância os documentos denominados “visitações”[4] que, com todas as ressalvas necessárias, dão uma idéia a respeito de vários aspectos culturais dos povos submetidos ao domínio europeu, tais como estrutura social, estrutura econômica, vestuário, hábitos alimentares, festividades, divindades adoradas, rituais religiosos, sistema administrativo, organização política, estado geral de saúde dos povos, tipo de habitação, organização familiar, relação entre população rural e urbana, etc.

6. Aspectos da cosmologia e da cultural das altas civilizações pré-colombianas

Toda e qualquer cultura dotada de um mínimo de organização interna constrói sistemas explicativos do mundo, criando modelos de conduta que devem ser seguidos e obedecidos pelos indivíduos e pelo grupo social. São esses sistemas e estruturas que dão sentido e coesão à sociedade. Em síntese, a produção e sistematização de uma cosmologia social é imprescindível para o funcionamento e para a reprodução mental e material de qualquer sociedade. No caso específico das chamadas “altas culturas” pré-coloniais centro e sul-americanas, e mesmo naquelas culturas americanas que não chegaram a alcançar esse estágio de organização cultural, as narrativas do imaginário social assumiram enorme importância. A sistematização cultural não era apenas uma forma de conhecimento abstrato. Ao contrário, as narrativas míticas e simbólicas faziam parte do cotidiano desses povos porque estavam intimamente associadas a todo o sistema produtivo e às estruturas e instituições sociais. Todos esses povos americanos viviam fundamentalmente da produção agrícola. Conhecer e prever os fenômenos da natureza era, portanto, absolutamente essencial para sua sobrevivência e reprodução. Tal necessidade os levou – pela prática e pela observação cuidadosa dos fatos da natureza – a constatar a correlação muito estreita entre os movimentos dos corpos celestes e a ordem e o ritmo dos fatos da natureza, em especial a sucessão das estações do ano, os períodos de chuva, o movimento das marés, etc. Com base nesses conhecimentos, foi possível ao homem americano adaptar suas forças produtivas às exigências da natureza. Nesse contexto, o trabalho de identificação, compreensão e organização dos movimentos dos corpos celestes e de sua relação com a produção agrícola tornou-se cada vez mais complexo e especializado. Essa atividade deu origem a uma classe sacerdotal, cada vez mais especializada em identificar e interpretar a vontade divina comunicada aos humanos por meio das estrelas, do Sol e da Lua. Para que essa missão dos sacerdotes fosse adequadamente realizada, centros cerimoniais foram construídos tanto para o culto às divindades como para permitir melhor observação do céu. Conseqüentemente, também se tornou necessário criar uma burocracia a serviço desses centros cerimoniais e, logo depois, com o crescimento dos centros urbanos, teve que surgir uma burocracia administrativa. Os movimentos migratórios dos povos americanos geraram conflitos: primeiro, entre grupos nômades e sedentários; depois, entre grupos sedentários que disputavam entre si terras férteis. Daí a necessidade da criação e manutenção de uma classe de guerreiros em cada sociedade. Os favores e a proteção das divindades eram, pois, preocupação constante na vida cotidiana dos povos americanos. Por isto, a força das narrativas simbólicas entre eles era muito significativa (Soustelle, 1997). A concepção cosmogênica de cada um desses povos era expressa e traduzida por meio não só das narrativas, mas da prática ritual observada em diversos momentos do dia. Em todas as civilizações americanas pré-coloniais havia estruturas sociais de classes bem nítidas. A base social era composta por grande número de camponeses que, com seu trabalho e por meio do pagamento dos tributos, sustentavam todas as demais classes improdutivas. Essas estruturas sociais eram profundamente justificadas e legitimadas por meio da religião e, sobretudo, por mecanismos que impediam os camponeses e as classes inferiores de acumularem qualquer tipo de poder: não recebiam educação que lhes permitisse criticar os fundamentos do sistema; não podiam acumular qualquer riqueza material; não tinham outras formas de se fazerem representar perante os poderes dominantes ou hegemônicos a não ser através das pessoas que as classes dominantes indicavam, as quais, por sua vez, tinham inequívoco interesse na manutenção do sistema. Cabe aqui observar que todas as civilizações americanas pré-coloniais baseavam-se preponderantemente na cultura do milho, que foi iniciada provavelmente pelos maias e depois se espalhou por toda a América Central e a América do Sul. Por isto, para tais civilizações, o milho tinha o mesmo significado simbólico e sagrado que têm o trigo e o pão para as civilizações cristãs, por exemplo.

Enfim, de modo geral, as altas civilizações pré-colombianas compartilhavam as mesmas concepções cosmogênicas; cultuavam mais ou menos as mesmas divindades (apesar das designações diferentes com que se referiam a estas); seguiam os mesmos princípios religiosos, adotavam o mesmo sistema produtivo e econômico; tinham estruturas sociais praticamente idênticas; com algumas especificidades, administravam seus territórios com base nos mesmos princípios e técnicas; apresentavam graus de desenvolvimento tecnológico muitíssimo semelhantes; cada uma delas acreditava-se escolhida pelos deuses para cumprir uma missão civilizatória dos povos que subjugavam. Mesmo com tantos traços identitários em comum, nenhuma dessas civilizações pré-colombianas consegui impor às demais uma única cultura homogênea e aceita por todos sua própria identidade cultural. O Império Inca, única civilização pré-colombiana que de modo apropriado merece a designação de império, jamais logrou impor totalmente sua cultura aos povos que dominou.

De fato, os incas conseguiram formar um Estado fortemente centralizado e bem administrado, dotado de aparelhamento político, militar, religioso e cultural organizado de modo a manter sob sua autoridade os povos submetidos. Além disto, foi também a única civilização americana que expandiu seu território a ponto de abranger, pelo menos em parte, os três subsistemas geopolíticos que caracterizam a América do Sul: o subsistema amazônico, o subsistema andino e o subsistema platino. O Império inca abrangeu grande parte da zona costeira do Oceano Pacífico, da Cordilheira dos Andes e da floresta amazônica (na porção não brasileira), absorvendo significativas porções dos territórios hoje ocupados pela Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Argentina e Chile. Em cada um desses subsistemas geopolíticos há subdivisões internas, decorrentes de alterações no meio geográfico, às vezes drásticas. Por exemplo, na parte peruana do Império inca, a civilização se espalhou pelo litoral costeiro do Oceano Pacífico, escalou a Cordilheira dos Andes e penetrou em parte da floresta amazônica. Mas a tendência do Império inca foi a de acompanhar o trajeto da Cordilheira dos Andes, ao longo da qual a geografia dispõe o ambiente em faixas litorânea (às vezes entremeada de desertos ou zonas áridas), montanhosa e de floresta tropical. Essas faixas são freqüentemente cortadas por vales transversais. As características geográficas encontradas influenciaram a formação de povoados relativamente isolados uns dos outros e, mais tarde, comunidades com traços nítidos de cidades-estado, dotadas de forte sentimento de identidade local. Por isso, é realmente admirável o projeto de unificação imperial levado a cabo pelos incas, que conseguiram ser criativos para, por um lado, impor sua dominação a essas comunidades locais e, por outro lado, assegurar que tais comunidades não perdessem seu próprio senso de identidade e, assim, aceitassem de modo relativamente pacífico e duradouro o domínio inca. A herança cultural e administrativa que os incas receberam dos huaris, tihuanacos e mochicas certamente lhes facilitou o projeto imperial. Esse fenômeno não foi possível nas civilizações maia e asteca.

A célula fundamental do Império Inca era formada pelas comunidades camponesas, denominadas ayllus (Favre, 1985). Nessas comunidades a coesão social era determinada por vínculos sanguíneos, dos quais resultavam diferentes graus de parentesco, e também pela crença dos camponeses de que todos eles descendiam dos mesmos ancestrais míticos. Assim, a justificativa ideológica para a dominação inca se baseava exatamente no parentesco de antepassados míticos divinos, cuja vontade ancestral se materializou na formação de um grande império. Nessas condições, os incas criaram e mantiveram um império centralizado que absorvia milhões de pessoas, impuseram uma língua e uma religião comuns a esses povos (mas tolerando os línguas maternas e os cultos locais). Os métodos dos incas para realizar esse grandioso projeto foram variados, mas envolveram formas generalizadas de violência. Uma das formas mais freqüentes de imposição da dominação, chamada mitamáes, consistia em dividir os povos indóceis e deslocá-los de suas regiões de origem para fixá-los em locais distantes. Com esse procedimento, os incas, rompiam os laços de parentesco, de religião e de identidade local que uniam os rebeldes, tornando muito mais eficaz o sistema de dominação. Outra técnica freqüente de dominação usada pelos incas era a manutenção de reféns, inclusive múmias dos nobres e sacerdotes dos povos dominados. Capturavam as múmias, os líderes e seus familiares de uma comunidade e os mantinham como reféns na capital do Império. Isto assegurava a colaboração da comunidade dominada, temerosa de que seus antepassados mumificados, líderes e sacerdotes não mais retornassem, o que significava, na prática, interromper o diálogo entre os homens comuns e os deuses, pois esse diálogo era intermediado pelos entes mumificados, pelos líderes e sacerdotes de cada comunidade. Uma variação dessa técnica era manter como reféns dos incas apenas os filhos dos nobres da comunidade dominada. Esses reféns seriam educados em escolas incas, a fim assimilarem a cultura inca e reproduzi-la posteriormente nas suas comunidades de origem, para as quais retornavam como novos líderes ou novos sacerdotes (Peragalli, 1994). Acrescente-se a tudo isto o fato de que os incas criaram inúmeras vias de comunicação e estradas que ligavam todas as regiões do Império. Essas vias e estradas eram percorridas rapidamente por mensageiros (chasquis), que tornavam muito eficiente o sistema de comunicação e de troca de informações entre o governo central e as demais regiões dominadas pelos incas.

Para obter a máxima eficiência da estrutura produtiva de seu Império, os incas adotaram duas medidas muito importantes: em primeiro lugar, permitiram que as comunidades locais mantivessem seus cultos religiosos e suas próprias divindades, mas incorporaram naquelas comunidades o culto às divindades incas; em segundo lugar, os incas mantiveram a autoridade e o prestígio do chefe de cada ayllu, o qual, por sua vez, em troca da preservação de seu status, devia fidelidade ao Estado Inca. Formou-se, portanto, uma complexa e delicada rede de alianças entre os líderes de cada ayllu e o Estado Inca: este, em geral, não abolia os privilégios desses líderes locais, mas exigia deles que trabalhassem em favor da difusão e realização dos interesses incas perante a comunidade local. Por conseguinte, no plano ideológico, o pagamento de tributos pela comunidade ao Estado Inca aparecia como legítimo, porque intermediado pelo chefe do ayllu e porque associado a um sistema de reciprocidade garantido pelos incas.

Assim como no Império Inca, também nas civilizações maia e asteca a expansão baseou-se, num primeiro momento, no poderio militar. Mas a manutenção e expansão dessas civilizações realmente dependeu dos mecanismos ideológicos e culturais de controle dos povos submetidos.  O sistema de dominação envolvia mecanismos de cooptação dos líderes locais, bem como mecanismos de persuasão da comunidade para aceitar consensualmente a hegemonia dos dominadores e pagar os tributos devidos sem grande resistência. Portanto, o hard power era substituído ou apoiado pelo soft power, no sentido que Joseph Nye usa esses termos atualmente (Nye, 2002).

Um último aspecto cultural comum entre os incas, astecas e maias e que merece registro é o caráter autárquico de suas economias. Todas essas civilizações apoiavam-se num sistema econômico fechado ao comércio exterior. Eram civilizações com economia predominantemente agrícola. Havia pouca atividade comercial entre os diferentes povos. Cada comunidade tendia a produzir tudo o que precisava, de tal modo que não havia condições favoráveis ao comércio em larga escala. Além disso, como foi comentado, os camponeses não acumulavam excedentes econômicos para si, razão pela qual os lucros comerciais tendiam a ser pequenos. Apenas os maias superaram em parte essas deficiências e constituíram uma verdadeira classe de comerciantes.

Considerações finais

Não têm fundamento razoável os discursos acadêmicos e políticos atualmente correntes, no sentido de que a América Latina estaria sendo vítima da supressão de sua identidade cultural em razão da imposição da cultura de outros povos dominantes da sociedade internacional. Esse tipo de homogeneização cultural jamais aconteceu na história da humanidade e nem tem possibilidade de acontecer especificamente na América Latina. É oportuno retomar as indagações fundamentais que motivaram este estudo:

Existe uma identidade cultural genuinamente latino-americana? Se essa identidade cultural existir, quais seriam os elementos gerais ou particulares de identificação cultural que a caracterizariam? Como os elementos gerais de identificação da cultura ocidental dominante ou hegemônica (européia e norte-americana) coexistiriam com os elementos de identidade cultural da América Latina?

Neste trabalho foi dito que o desenvolvimento cultural da América Latina ocorreu em três principais fases: a do povoamento das Américas; a de formação e apogeu das altas culturas pré-colombianas; e a fase de formação da cultura colonial na região e de seus principais desdobramentos. As duas primeiras fases apresentaram elementos culturais desenvolvidos pelos povos americanos de modo autóctone, pois estavam em estado de isolamento em relação a outras civilizações. No entanto, as estruturas econômicas, sociais, políticas desses povos revelam elementos culturais comuns a outras civilizações e povos não americanos, indicando importante influência de arquétipos culturais também na América Latina. Apesar disto, os povos e civilizações pré-coloniais imprimiram suas marcas nessas estruturas, conciliando ao longo de muitos séculos os elementos culturais arquetípicos com os elementos das culturas locais. Na terceira fase, isto é, quando elementos da cultura européia foram introduzidos rapidamente no universo cultural dos povos indígenas latino-americanos, ocorreram drásticos choques culturais, em que a dominação ou hegemonia cultural da Europa prevaleceu. Todavia, subsistiram alguns fortes elementos culturais indígenas das fases anteriores à colonização.

A análise desenvolvida evidenciou que o problema de choques culturais na América Latina é verdadeiramente ancestral. Desde que as Américas começaram a ser povoadas, grupos humanos persistentemente entram em confrontos uns com os outros. Quaisquer que sejam os motivos desses infindáveis confrontos, em todos eles há uma constante: uma cultura pretende ter hegemonia sobre a cultura rival e ambas lutam buscando o reconhecimento de seu valor e querem se autoafirmar perante culturas rivais. Portanto, falar em identidade cultural latino-americana obriga o pesquisador, em maior ou menor grau, a revolver esse gigantesco mosaico cultural. Minha percepção é de que a cultura na América Latina (claro que noutras partes do mundo também) se assemelha a uma rocha sedimentar. Há camadas culturais muito antigas, às quais se sobrepõem camadas culturais mais recentes, de modo que as vejo “empilhadas” conforme sua ordem de antiguidade e da dominação ou hegemonia que cada qual conseguiu ter em certo momento histórico. Mas em alguns pontos essa rocha sedimentar está partida e, então, é possível enxergar perfeitamente os restos ou “cacos” de culturas antigas que afloram e põem-se em contato com as camadas culturais mais atuais. Ao revolver esse “entulho”, ficamos procurando onde encaixar o “caco” perdido, conforme o colorido dos seus traços sedimentares. Ao realizar essa tentativa de encaixar a peça cultural perdida, é possível observar que há muitos pedaços da rocha sedimentar cultural em que o caco poderia encontrar seu lugar. A rocha cultural, enfim, tem uma composição mais ou menos uniforme, ainda que suas diferentes camadas tenham sido formadas com materiais distintos. Mas é exatamente a combinação de todos esses materiais que dá coesão, consistência, solidez a essa rocha cultural. Mesmo com uma fratura aqui ou ali, o caco cultural pode ser reintegrado à rocha sedimentar cultural, porque é parte dela.

Por esses motivos, não se pode falar de uma identidade da ou na América Latina. A região é um mosaico multidimensional e multicolorido de culturas que se articulam, que têm muitos traços identitários comuns, mas que não abdicam de seus fortes sentimentos de pertencimento a culturas locais bem caracterizadas. Como outras partes do mundo, também a América Latina é multicultural e plurinacional. É de fato impossível pretender a homogneização cultural latino-americana. Os processos de integração que estão em curso na América Latina precisarão contemplar o multiculturalismo e a plurinacionalidade da região. Os processos de mediação simbólica, cultural, na América Latina se desenvolvem desde tempos ancestrais. Continuarão a ocorrer na contemporaneidade, obviamente com maior complexidade e velocidades. No entanto, as as culturas locais dispõem de mecanismos internos mais ou menos eficientes para que não se desintegrem totalmente. Isto faz parte do processo dialético de autoafirmação cultural quando ocorrem os choques entre culturas locais e cultura global. O processo global de integração cultural, que tende a homogeneizar culturas, é o mesmo que, paradoxalmente, acentua as diferenças culturais. Trata-se de processo dialético que envolve a alteridade global-local para construir, reconstruir, transformar, diluir ou miscigenar a identidade cultural do indivíduo e da própria sociedade, hoje de escala planetária (Seixas, 2008).

Mesmo que esteja em curso um amplo e profundo processo de choques culturais provocados pela globalização (Huntington, 1997), esses sedimentos culturais irão se acomodar numa nova camada da grande rocha cultural. Alguns elementos da cultura dominante ou hegemônica vão prevalecer e ficar em sedimentos mais aparentes; alguns elementos das culturas não hegemônicas também vão prevalecer e ocupar o seu lugar na nova camada sedimentar da rocha cultural; finalmente, noutros casos, os materiais orgânicos de que são formadas as culturas dominantes ou hegemônicas e as não hegemônicas vão se misturar e, assim, formarão uma nova substância que se acomodará no seu espaço para formar a atual camada da rocha sedimentar cultural. E, tendo eu aprendido com os maias, com os astecas, com os incas e com os índios brasileiros, estou consciente de que o nosso ciclo também vai terminar. Depois dele, uma nova camada cultural será depositada na rocha que sustenta todas as civilizações …

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[1] É conveniente registrar aqui a conceituação desses elementos. Os elementos arquetípicos são compostos por fatores biogenéticos, pelos mitos e pelas narrativas que fixam a origem de uma certa sociedade. Esses fatores, por serem universais, estão presentes no inconsciente coletivo e freqüentemente emergem nas diversas manifestações da vida cotidiana. Os elementos culturais híbridos se originam das relações culturais intertextuais, dos contatos entre culturas diferentes, dos processos sincréticos de elementos culturais de povos distintos, de valores, ritos, símbolos que provêm de universos culturais diferentes e que são reorganizados num cosmos no âmbito de uma cultura específica. Finalmente, os elementos dominantes, que são os elementos selecionados pelos poderes hegemônicos no contexto de certa cultura, a partir de critérios que correspondam aos interesses daqueles poderes, e, a seguir, são disseminados para serem reabsorvidos pela sociedade com significados simbólicos também hegemônicos. É nesses sentidos, portanto, que neste trabalho serão feitas referências aos elementos culturais arquetípicos, híbridos e dominantes.

[2] MELLA, Federico A. Arborio. O Egito dos faraós: história, civilização, cultura. São Paulo: Hemus, 1994.

[3] DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004.

[4] As “visitações” consistiam em relatórios que os colonizadores faziam a respeito das informações que colhiam nas comunidades dos povos dominados.

Identidade cultural, comunicação e mediação simbólica nas sociedades de consumo do Mercosul: subsídios para aplicação do Direito do Consumidor

Prof. Dr. Renato Seixas, Prof. Alexandre Giorgio, Maria Elisabete Rabello, Juliane Cavalcante e Madai Mello

Resumo: as normas de proteção ao consumidor editadas pelo Mercosul para regular a comunicação no mercado de consumo adotam critérios utilitaristas e tecnicistas e, também, modelo comunicacional em que os consumidores são vistos como sujeitos receptores passivos. Tais normas não captam os aspectos dialéticos da comunicação e da mediação simbólica no mercado de consumo, que o tornam importante espaço para exercício da cidadania e para a reconstrução de identidades culturais.

Abstract: the consumers protection laws issued by Mercosul to regulate the communication within the consumer market adopt utilitary and technicist criteria and, also, a communication standard in which the consumers are seen as passive receivers. Such laws are not able to grasp the dialectical aspects of the communications and symbolic mediations in the consumer market that make it an important place to exercise the citizenship and to reconstruct cultural identities.

Sumário: Introdução. 1- Legislação do Mercosul sobre informação no mercado de consumo. 2- Liberdade de informação, identidade cultural e mediação simbólica nas sociedades de consumo. 3- Identidade cultural e comunicação nas sociedades tradicionais. 4- Identidade cultural e comunicação nas sociedades modernas. 5- Cultura, poder, informação e mediação simbólica no mercado de consumo. 6- Reformulação de identidade cultural no mercado de consumo. Considerações finais.

Introdução

A globalização contemporânea é multidimensional e desencadeia processos cada vez mais amplos, profundos e complexos de interdependência entre os diferentes atores das sociedades nacionais e internacionais. A produção de bens está estruturada em sofisticadas redes empresariais articuladas em escala mundial (Seixas, 2004). Os mercados de consumo estão integrados como nunca antes estiveram. Variedades infinitas de produtos e serviços são colocadas nesses mercados diariamente. Os consumidores são profundamente estudados em diversas áreas de conhecimento. Os mercados de produção e de consumo apresentam segmentação crescente. Fornecedores do mundo inteiro disputam a preferência dos consumidores por produtos e serviços. A competição acirrada obriga os fornecedores a buscarem estratégias eficientes de comunicação com os consumidores, de modo que estes últimos se identifiquem rapidamente com os produtos e serviços que lhes são oferecidos. O mercado de consumo torna-se um lugar imaginário para o exercício da cidadania (Canclini, 2005). Nesse lugar as relações multidimensionais de diferentes atores se entrelaçam e se transformam. Fornecedores não disputam apenas as preferências dos consumidores. Por outro lado, os consumidores não disputam somente os bens que lhes são oferecidos. No mercado de consumo são oferecidos e disputados valores simbólicos que refletem a cultura, a organização da sociedade e a distribuição de poderes entre seus atores. Processos dialéticos extremamente complexos se desenvolvem nesse ambiente, provocando transformações multidimensionais. Nesse contexto, merece atenção especial o estudo dos processos de afirmação ou de transformação da identidade cultural de certos grupos sociais e, de modo ainda mais específico, dos processos de comunicação social relacionados a tais aspectos culturais. O mercado de consumo não é, portanto, apenas um ambiente de disputas econômicas. Muito mais que isto, esse mercado é ambiente de disputas culturais (Seixas, 2006).  Nele, são disputados valores e ideias, que podem ou não ser representados por bens econômicos. Por isto, o desenvolvimento do mercado de consumo tende a corresponder ao amadurecimento da democracia em certa sociedade. A democracia pressupõe a livre manifestação e debate de ideias e valores que permeiam a vida social. Pressupõe, pois, a liberdade de informar, o direito de informar e o direito à informação. Daí decorre a importância de apresentar e compreender alguns aspectos do processo dialético de comunicação social nas modernas sociedades de consumo. Em particular, é preciso compreender como se comportam e que funções têm os atores envolvidos nesse processo, e também como provocam as transformações culturais que, por sua vez, realimentarão o ciclo.

Nesse ponto torna-se necessário verificar como, com que amplitude e com que profundidade as normas do Direito do Consumidor tentam captar a dinâmica e a complexidade dos processos de comunicação social nas sociedades de consumo modernas. Este trabalho pretende demonstrar que tais normas do Direito do Consumidor são essencialmente utilitárias, tecnicistas e, sobretudo, que são unidimensionais, pois não apreendem nem compreendem os complexos processos dialéticos de transformações culturais e de disputa de valores simbólicos que ocorrem no mercado de consumo. Referidas normas jurídicas são utilitárias e tecnicistas porque colocam em foco, de modo pobre e reducionista, a obrigação do fornecedor de prestar informações ao consumidor, e o direito do consumidor de receber aquelas informações, para que as práticas de consumo se realizem de modo seguro, consciente e equilibrado. As mesmas normas são unidimensionais porque se enclausuram numa torre de observação estritamente jurídica. Não captam, não compreendem e não conseguem regular os fenômenos multidimensionais relacionados ao processo de comunicação que se desenvolve no mercado de consumo de uma sociedade moderna, democrática, complexa, multicultural e provavelmente plurinacional.

Basta acentuar, por enquanto, alguns aspectos imediatamente relevantes, que serão aprofundados no decorrer deste trabalho. As normas jurídicas que regulam a obrigação do fornecedor de informar o consumidor baseiam-se em teorias da comunicação largamente ultrapassadas. Imaginam um emissor ativo (o fornecedor), que elabora uma mensagem comunicacional pronta e acabada (sobre o próprio fornecedor e sobre o bem de consumo), com significados pré-determinados, a ser transmitida a um receptor passivo (o consumidor), que simplesmente decodifica o conteúdo e o significado da mensagem comunicacional e a ela reage, praticando ou não o ato de consumo. Tal perspectiva unidimensional põe em evidência a dificuldade e a resistência que o Direito, como um todo, tem de estabelecer dialogia com outras áreas de conhecimento. Neste estudo ficará evidenciado que nem o emissor da mensagem (aqui, o fornecedor) pode controlar seu conteúdo e significado, nem o receptor dela (no caso, o consumidor) é passivo, na medida em que transforma o conteúdo e o significado da mensagem conforme o contexto cultural em que o processo comunicacional se desenvolve (Cruz, 1986). Além disso, o Direito do Consumidor contempla aspectos individuais, coletivos e difusos das relações de consumo. Sendo assim, qualquer mensagem comunicacional nas sociedades modernas está sujeita à mediação de seu conteúdo por parte dos atores receptores que, por conseguinte, não são passivos (Martín-Barbero, 2006). Ao contrário, são agentes transformadores dos possíveis significados do conteúdo da mensagem comunicacional. Enfim, as mensagens comunicacionais que circulam no mercado de consumo correspondem à polifonia e à polissemia inerentes ao debate democrático e a disputa cultural e simbólica em desenvolvimento em certa sociedade (Medina, 1988).

Não é objetivo deste trabalho cotejar, comparativamente, o teor de cada dispositivo legal. O que se quer evidenciar, em essência, é que a disciplina legal constitui um quadro muito geral, meramente informativo, do funcionamento do sistema de proteção ao consumidor. Os dispositivos legais precisam ser preenchidos com elementos culturais de cada grupo de consumidores. Tal atividade de integração normativa necessariamente precisa ser inter e transdisciplinar, pois as atuais sociedades de consumo são plurinacionais, multiculturais, complexas e sujeitas a mutações rápidas e muitas vezes radicais de seus elementos culturais. Se os operadores do Direito não estiverem atentos a estes aspectos, será pouco eficiente qualquer projeto de harmonização ou de unificação das normas de proteção ao consumidor, quer no âmbito nacional quer no internacional.

Em resumo, este estudo tem por objetivos apresentar, discutir e compreender: a) alguns aspectos da dialética dos processos de comunicação social inerentes às sociedades de consumo; b) o processo de mediação simbólica e de reconstrução de significados culturais intertextuais dos bens e das mensagens de comunicação que circulam nas sociedades de consumo contemporâneas; c) como se desenvolve a reformulação da identidade cultural das modernas sociedades de consumo; d) a necessidade de interpretação inter e transdisciplinar das normas jurídicas que tentam regular o dever de informação que o fornecedor tem em face do consumidor e, por outro lado, o direito à informação que o consumidor tem em face do fornecedor.

1. Legislação do Mercosul sobre informação no mercado de consumo

Na América Latina têm sido editadas diversas normas para regular as relações de consumo. Dados os limites editoriais estabelecidos para a publicação deste trabalho, não há possibilidade de examinar a evolução histórica nem o conteúdo dessas normas. Por essa razão, a análise será genérica, não se fixando em normas jurídicas específicas de certa legislação nacional. Mesmo assim, é fato que todas as leis consumeristas editadas na América Latina contemplam a obrigação do fornecedor de prestar ao consumidor informações verdadeiras, claras, completas e suficientes para que o consumidor possa decidir de modo consciente se praticará ou não o ato de consumo. Nesse sentido, há dispositivos nas leis brasileira nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor); argentinas nºs 24.240/93 (lei de defesa do consumidor), 19.724 (contraos por adesão) e 22.802 (lei de lealdade comercial); paraguaia nº 1.334/98 (lei de defesa do consumidor); uruguaia nº 17.189/99; mexicana de 1992 (lei de defesa do consumidor); chilena 19.496/97 (lei de proteção ao consumidor); e no projeto de lei boliviana de 1999. No âmbito do Mercosul, têm ocorrido várias tentativas de harmonização das normas de proteção ao consumidor, entre as quais destacam-se o Protocolo de Defesa do Consumidor (1997), as Resoluções nºs Resolução 124/96 (lista de direitos mínimos do consumidor) e 126/96 (disciplina de publicidade no mercado de consumo), a Declaração dos princípios gerais sobre defesa do consumidor no Mercosul (1999) e a Declaração dos Direitos Fundamentais dos Consumidores do Mercosul (2000).

Tendo em vista as tentativas do Mercosul de harmonizar as legislações dos Estados-membros, será aqui considerada apenas a Declaração dos Direitos Fundamentais dos Consumidores do Mercosul sobre a comunicação entre fornecedores e consumidores no mercado de consumo. Essa Declaração sintetiza princípios contidos nas demais leis consumeristas sobre a matéria objeto deste estudo e que tendem a adotar critérios meramente utilitários, tecnicistas e insuficientes para que se possa apreender e compreender os complexos processos dialéticos de transformações culturais e de disputa de valores simbólicos que ocorrem no mercado de consumo. Os países latino-americanos como um todo, e os do Mercosul em particular, estão em diferentes estágios de desenvolvimento. Alguns têm economia preponderantemente primária, ao passo que outros já avançaram consideravelmente como sociedades industrializadas. Nos países em que predomina a economia primária, há incontáveis grupos sociais que ainda se caracterizam como sociedades tradicionais, ou seja, que não adentraram o universo cultural das sociedades industrializadas. Nessas sociedades mais tradicionais, as relações de consumo ainda não atingiram grau de maturidade comparável ao das sociedades industrializadas. Como se verá mais adiante, os processos de comunicação social e de reformulação da identidade cultural nas sociedades tradicionais são bastante diferentes daqueles que ocorrem em sociedades industrializadas. Por conseguinte, as disputas por bens de consumo nas sociedades tradicionais e nas modernas refletem, como não poderia deixar de ser, as distintas disputas culturais e os valores simbólicos que permeiam tais sociedades. Logicamente, os processos de comunicação entre fornecedores e consumidores em cada um desses mercados de consumo expressam a polifonia e a polissemia que emergem dessas relações de consumo.

Há, portanto, muitas assimetrias entre os países latino-americanos preocupados com a proteção do consumidor. Aliás, vários dos países da América Latina sequer atingiram o estágio em que a proteção legislativa do consumidor tenha se tornado indispensável. Tantas assimetrias, naturalmente, dificultam a circulação de bens de consumo e a implementação de estratégias comerciais mais amplas, distorcem a livre concorrência, não asseguram segurança e qualidade aceitáveis de certos bens de consumo em mercados outros que não o local. Nessas circunstâncias, cada um dos distintos mercados de consumo se organiza com base num quadro próprio de referências culturais, a partir do qual os bens de consumo passam a ter significações específicas para aquele determinado grupo social. É este fenômeno que este trabalho procurará evidenciar.

2. Liberdade de informação, identidade cultural e mediação simbólica nas sociedades de consumo

Os indivíduos integrantes de uma sociedade são diferentes entre si e, por conseguinte, a identidade cultural dessa sociedade incorpora e expressa essa diversidade essencial do ser humano. Os elementos de identificação cultural são sempre valorados pelos indivíduos que compõem o grupo social e pelo próprio grupo. Tais elementos têm específicos significados válidos para aquele grupo social, naquele lugar e momento histórico. Conforme seja maior ou menor o valor atribuído a esses elementos de identificação cultural, será possível dizer se são essenciais ou secundários para a definição da identidade daquela sociedade (Merton,1968). A vida social apresenta aspectos multidimensionais. Esses aspectos referem-se a bens de todos os tipos, dos quais o ser humano precisa se apoderar para existir e sobreviver. Cada um desses aspectos e bens pode ser mais valorizado ou menos valorizado pela sociedade de época para época e de lugar para lugar. A sociedade tende a se manter mais coesa conforme os elementos de identificação cultural que mais valorizar sejam suficientes para possibilitar que o maior número possível de indivíduos se identifique com o universo cultural assim composto. Esse efeito exige, portanto, que o universo cultural de tal sociedade seja o mais representativo e o mais amplo possível, de tal maneira que todos os indivíduos, coletividades e subgrupos que compõem aquela mesma sociedade tenham possibilidade de reconhecer sua identidade cultural (Merle, 2003). O mesmo processo ocorre no relacionamento de diferentes povos. Se povos distintos apresentarem alguns elementos comuns de identificação cultural, aos quais atribuam significados e valores correspondentes, tenderão a formar alianças e blocos entre si (Harrison et Huntington, 2002). Os elementos de identificação cultural que integram o universo cultural de uma sociedade, de um povo, ou de um conjunto de povos, envolvem – sempre – alguma forma de linguagem e de comunicação. Essa linguagem pode ser a fala, a escrita, o conjunto dos sinais gráficos, os símbolos de qualquer espécie, a arte em geral, os mitos presentes no inconsciente coletivo do grupo social e, enfim, qualquer meio pelo qual o ser humano comunique a outrem suas idéias, crenças, mitos, temores e sentimentos de qualquer espécie. Daí porque a identidade cultural se manifesta por meio da comunicação, no sentido mais amplo possível do vocábulo (Chomsky, 1998). A linguagem está implícita em todos os fatos e bens que fazem parte da vida do ser humano e é preciso que seja lida e compreendida culturalmente. Em síntese, é preciso compreender os significados intertextuais dos elementos culturais com base nos quais se forma, se transforma ou se afirma a identidade cultural de um grupo social (Seixas, 2006).

É preciso, pois, compreender a liberdade de informação, os processos de comunicação e o próprio mercado de consumo a partir de abordagem inter e transdiciplinar. Além disto, a liberdade de informação, o direito de informar e o direito à informação pressupõem uma sociedade livre, democrática e razoavelmente amadurecida. As diversas classes e os diferentes setores que compõem uma sociedade têm seus respectivos sistemas de valores e de significados culturais. Esse acervo cultural se entrelaça no mercado de consumo – lugar imaginário em que as intersecções de valores simbólicos ocorrem – que é também uma arena em que atuam os agentes mediadores dos referidos significados culturais intertextuais daquela sociedade. São estes mediadores que captam, processam, reinterpretam e devolvem ao meio social os valores e signos das relações sociais multidimencionais (Medina, 1988). Os elementos culturais arquetípicos, híbridos e dominantes, cada qual composto de fragmentos culturais gerados pela globalização, ingressam desordenadamente no mercado de consumo e, neste, através da ação dos agentes mediadores de significados culturais intertextuais, os aludidos elementos são reorganizados num cosmos apreensível e compreensível pelos agentes socioeconômicos. Portanto, a lógica do mercado de consumo não é estritamente econômica e não pode ser definida apenas a partir da vontade dos poderes dominantes ou hegemônicos, nem das mensagens autoritárias difundidas nos meios de comunicação social. Os diferentes grupos componentes da sociedade estabelecem os significados culturais intertextuais com base nos quais a vida social é regulada. São acordos simbólicos e rituais por meio dos quais tais atores definem quais são os valores culturais daquela sociedade. Nesses rituais, os grupos sociais usam os bens materiais introduzidos no mercado de consumo como ícones ou símbolos dos valores sociais definidos pelo consenso geral e, assim, reorganizam o caos do mercado, transformando-o em cosmos. É oportuna a observação de Canclini (2005:65):

(…). Mas em um sentido mais radical, o consumo se liga, de outro modo, com a insatisfação que o fluxo errático dos significados engendra. Comprar objetos, pendurá-los ou distribui-los pela casa, assinalar-lhes um lugar em uma ordem, atribuir-lhes funções na comunicação com os outros, são os recursos para se pensar o próprio corpo, a instável ordem social e as interações incertas com os demais. Consumir é tornar inteligível um mundo onde o sólido se evapora. Por isso, além de serem úteis para a expansão do mercado e a reprodução da força de trabalho, para nos distinguirmos dos demais e nos comunicarmos com eles, como afirmam Douglas e Isherwood, “as mercadorias servem para pensar”.

É nesse jogo entre desejos e estruturas que as mercadorias e o consumo servem também para ordenar politicamente cada sociedade. O consumo é um processo em que os desejos se transformam em demandas e em atos socialmente regulados. (…).

Os processos de comunicação social e de atribuição de significados culturais intertextuais relacionados com o mercado de consumo das sociedades modernas são distintos, em importantes aspectos, dos que ocorrem nas sociedades tradicionais.

3. Identidade cultural e comunicação nas sociedades tradicionais

Sociedades tradicionais são as que ainda não atingiram certo grau de complexidade e de industrialização. Apresentam algumas características constantes, não necessariamente cumulativas. Sua economia tende a ser preponderantemente rural ou extrativista, ou artesanal, baseada no sistema mercantil-simples, com pequenas unidades produtoras e trocas econômicas mais ou menos limitadas ao seu próprio território e população. As relações humanas, por isto, desenvolvem-se em espaço geográfico que pode ser delimitado com precisão e abrangem pequenos grupos sociais facilmente identificáveis. Claro, há graus diferenciados de cada um desses aspectos e as correlações entre eles dão a cada sociedade tradicional traços próprios de identidade local.

Em sociedades tradicionais os elementos de identidade cultural local tendem a ser muito estáveis. As noções de tempo e de espaço têm grande importância na dinâmica da vida social e dos processos de comunicação que nela ocorrem. A vida social envolve poucas pessoas e acontece em espaços geográficos mais restritos, em comparação com sociedades complexas. Os diferentes grupos sociais que compõem certa sociedade tradicional desenvolvem processos e estratégias próprias para estabelecerem relações e comunicações uns com os outros (Certeau, 1994). Há espaços, urbanos ou rurais, mais ou menos reservados para certos grupos. Há lugares de passagem com diferentes significados para cada grupo social. Há pontos de referência social e cultural em que se apóiam as memórias coletiva e individual (Halbwacz, 2006). Mais do que os meios de comunicação social, antes chamados “meios de comunicação de massa”, há outras instituições que promovem ou facilitam os relacionamentos sociais, econômicos e identitários: o mercado local, a igreja, a praça, o clube, a avenida, a escola, a padaria, o posto de saúde, a procissão, o bar, a farmácia, as festas locais, as demoradas conversas entre vizinhos. Os processos de comunicação social tendem a ser mais espontâneos e, em geral, baseados em aspectos personalíssimos dos diferentes atores que dele participam. Tais processos abrangem poucos indivíduos ou pequenos grupos e acontecem em lugares específicos e em ocasiões determinadas. Os assuntos mais relevantes objeto da comunicação tendem a ser os de interesse local, muitas vezes restritos a certos grupos sociais. Por isto, os meios de comunicação social mais abrangentes, como a televisão, o rádio e as novas mídias eletrônicas, não têm o mesmo poder de persuasão e de convencimento que costumam ter nas sociedades modernas, industrializadas. Esses meios de comunicação social, em alguma medida, precisam oferecer conteúdos que se aproximem dos interesses das sociedades tradicionais, que tenham significação mais específica para elas. As sociedades tradicionais tendem a ser mais impermeáveis e resistentes a elementos culturais exógenos. As transformações culturais nessas sociedades tendem a ser mais lentas e graduais. Os indivíduos e pequenos grupos que as compõem têm mais tempo para metabolizar elementos culturais exógenos com os elementos culturais locais. Em termos comparativos com as sociedades complexas, a identidade cultural nas sociedades tradicionais é mais estável, homogênea, bem localizada, apoiada em referências com forte significação coletiva, menos fragmentada e menos pré-disposta a incorporar com rapidez elementos culturais alienígenas (Giddens, 2000).

4. Identidade cultural e comunicação nas sociedades modernas

Sociedades modernas são as que alcançaram alto grau de complexidade e de industrialização. Estão envolvidas com os processos cada vez mais amplos e profundos de inter-relações que caracterizam a globalização contemporânea. As sociedades modernas são multiculturais. Os Estados em que elas se desenvolvem geralmente abrangem muitas nações. Tais sociedades vivenciam intensos processos de descentralização, deslocalização e fragmentação cultural, econômica e política. Em decorrência disso, surgem novas identidades culturais. A denominada “crise de identidade”, em qualquer dessas esferas, é parte de um amplo e profundo movimento de transformação que desloca as estruturas de identidade cultural das sociedades modernas dos seus centros tradicionais referência cultural (Giddens, 2000). Tudo isso torna instáveis os critérios com base nos quais os indivíduos e grupos sociais costumavam construir sua identidade. As múltiplas dimensões da globalização, especialmente no que diz respeito aos meios de telecomunicação, tornou muito relativas, imprecisas e mutantes as tradicionais noções de tempo e de espaço. O progresso tecnológico nas áreas de telecomunicações e transportes praticamente eliminou a importância relativa do espaço e do tempo na dinâmica dos fenômenos globais. Ora, o espaço e o tempo sempre foram importantes coordenadas para validar e dar sentido aos sistemas de representações culturais. Conforme essas coordenadas vão se tornando cada vez mais fluídas, os próprios sistemas de representação nelas baseados ficam mais permeáveis a novas influências culturais: questões culturais suscitadas em lugares distantes ou em tempos diferentes tornam-se questões atuais e locais para indivíduos e sociedades que, em princípio, estariam temporal e fisicamente apartados daquelas questões. A noção ou a impressão de que tudo acontece aqui e agora faz com que fenômenos culturais globais passem a ter uma significação simbólica local, transformando os paradigmas de identificação cultural até então vigentes. Em razão dos meios de telecomunicação existentes, núcleos culturais muito diferentes entre si, localizados em pontos do planeta distantes uns dos outros, hoje podem interagir de modo instantâneo. No passado esses contatos entre povos diferentes progrediam lentamente, ao longo de séculos, de modo que tais povos tiveram tempo razoável para incorporar novos elementos à sua própria cultura, conforme se fazia necessário ou conveniente. Esse processo atualmente é muito mais intenso e, em termos relativos de tempo, é também instantâneo. Disto resultam os fenômenos da descentralização, deslocamento e fragmentação cultural a que todos se submetem na fase contemporânea da globalização. Tornou-se comum o uso do neologismo glocalização para expressar o contraste, a interação, a assimilação e o hibridismo do conjunto de fenômenos multidimensionais da globalização correlacionados com os fenômenos igualmente multifacetados de uma localidade e de um povo em particular. Stuart Hall apreendeu muito bem essa dinâmica no que atine aos aspectos culturais (Hall, 2005:9-10):

Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo.(…).

Hall aponta três concepções de identidade do sujeito: o sujeito do Iluminismo; o sujeito sociológico; e o sujeito pós-moderno. O sujeito do Iluminismo era concebido a partir da forte expressão de seu individualismo. Era indivíduo totalmente centrado, unificado e dotado de racionalidade para conduzir suas ações no ambiente social. A identidade desse sujeito se concentrava em seu interior e o acompanhava em toda a sua trajetória de vida. Por outro lado, o sujeito sociológico foi concebido em decorrência da crescente complexidade do mundo moderno. A construção da identidade do sujeito não podia mais ser feita exclusivamente a partir dos critérios de identidade pessoal e subjetiva. Percebeu-se que o núcleo interior desse sujeito não era e nem podia ser autônomo e autosuficiente. Ao contrário, sua identidade estava correlacionada com a identidade de outros indivíduos do corpo social, os quais atuavam como mediadores de signos para a construção da identidade cultural subjetiva. Hall ressalta que, de acordo com essa concepção sociológica, a identidade do sujeito é formada por sua interação com o meio social. Embora o sujeito ainda mantenha um núcleo individual de identidade, tal núcleo sofre diversas influências oriundas de seu diálogo com os mundos culturais exteriores a ele, os quais desencadeiam um movimento de transformação da identidade subjetiva, integrando-a à identidade social em constante mutação. O sujeito de algum modo organiza essas identidades culturais internas e externas e constrói um novo quadro de referências a respeito de seu lugar no mundo social e cultural. Usando uma feliz figura de linguagem, Hall diz que a identidade “costura” o sujeito à estrutura, dando-lhe estabilidade e possibilidade de predizer alguns dos movimentos culturais nos quais se integra. Todavia, na fase atual da globalização, a construção dessa identidade do sujeito sociológico também está atravessando uma crise sem precedentes, fato que levou Hall a investigar a terceira forma de identidade cultural: a do sujeito pós-moderno. Explica que a identidade do sujeito sociológico está em crise porque, atualmente, o que está em processo de transformação é a própria estrutura exterior à qual a identidade interior do sujeito se ligava para construir seus quadros de referência. O sujeito antes tinha uma identidade unificada e estável. Agora tem identidade fragmentada, muitas vezes contraditória e ainda não reorganizada. Alguns elementos de identificação cultural, externos ao sujeito, estão transformando as estruturas e instituições que serviam de referências para que ele formasse sua própria identidade no meio social. Tudo passou a ser provisório, problemático e variável. Nessas circunstâncias tão instáveis, tem início a construção da identidade cultural do sujeito pós-moderno, a que se refere Hall nestes termos (Hall, 2005:11-12):

Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (…). É definida historicamente e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”(…). A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.

A crise de identidade provocada pela dinâmica da globalização gera profundo processo dialético e provoca o fenômeno da glocalização. O indivíduo vivencia simultaneamente a influência de diferentes culturas que abalam a noção de identidade cultural “estável” com que ele estava habituado no contexto local em que se insere. Desses choques culturais, ora decorre a hibridização das culturas global e local; ora resulta uma situação circunstancial, transitória ou permanente, de hegemonia de uma cultura sobre a outra (ou seja, da cultura global sobre a local, ou vice-versa); ora advêm fraturas em que se confrontam a cultura global e a local (Huntington, 1997). Tudo isto faz com que o indivíduo tenha que revisar os critérios que servem de base para sua própria identidade cultural como da sociedade em que vive.

Diversos movimentos filosóficos e sociais importantes conduziram a esse processo de glocalização, relativizando a importância do indivíduo no contexto social e global. Surge assim concepção mais nítida do papel social do indivíduo, que passou a ser profundamente relacionado com o interior das grandes estruturas e instituições em que se fundamentam as sociedades modernas. Referidos movimentos filosóficos demonstraram as múltiplas interações e condicionamentos em que esse indivíduo está envolvido na dinâmica social. Desenvolveram-se explicações alternativas sobre como os indivíduos formam internamente suas identidades através de sua participação em relações sociais mais amplas e, por outro lado, a respeito do modo como os processos e estruturas sociais são sustentados pelos papéis que os indivíduos desempenham neles.

Por outro lado, as culturas locais dispõem de mecanismos internos mais ou menos eficientes para que não se desintegrem totalmente. Isto faz parte do processo dialético de autoafirmação cultural comentado anteriormente neste trabalho. É curioso – e é mesmo paradoxal – observar que o processo global de integração cultural, que tende a fazer (parafraseando Marx) uma gelatina cultural, é o mesmo que acentua as diferenças culturais. Ao lado da tendência de homogeneização cultural global, há a tendência de acentuar a diferença cultural local. Trata-se de processo que envolve a alteridade global-local para construir, reconstruir, transformar, diluir ou miscigenar a identidade cultural do indivíduo e da própria sociedade, hoje de escala planetária. Tais fenômenos são bem visíveis nas complexas e multidimensionais relações que se estabelecem nos mercados de consumo das sociedades modernas.

Contudo, o processo de globalização é assimétrico. Nem todas as partes do mundo se envolvem nesse processo de modo uniforme e simultâneo. A globalização é desequilibrada, heterogênea e assincrônica (Dupas, 2005). Embora de modo não homogêneo, é certo que atualmente observa-se um movimento generalizado no sentido de redefinição das identidades nacionais que buscam sua auto-afirmação perante as demais culturas com as quais interagem na arena global. Esse é um dos efeitos multidimensionais da globalização. Isto ocorre porque a globalização torna cada vez mais relativa a ideia clássica de sociedade como um corpo bem definido e delimitado, dotado de mecanismos internos e externos muito claros para permitir que seus integrantes se identifiquem com uma certa cultura. O processo dialético de autoafirmação entre culturas conflitantes apresenta três efeitos importantes, de certo modo contraditórios (Canclini, 1991): 1º) as identidades culturais atravessam grave processo de desintegração provocado pelo crescimento da homogeneização cultural globalizada; 2º) as identidades nacionais e locais, ou particularistas, realizam importante esforço de resistência à globalização cultural, buscando sua autoafirmação; e 3º) é fato que as identidades nacionais, locais e particularistas estão absorvendo novos elementos culturais e estão se tornando culturas híbridas.

Como destacado anteriormente, os países da América Latina apresentam profundas assimetrias internas e externas. Há muitos grupos organizados como sociedades tradicionais e com forte sentimento de identidade cultural local. Há também numerosos grupos já organizados em sociedades industrializadas, ou em vias de industrialização, que, por sua vez, adotam outros quadros gerais de identidade cultural. Por essas razões, os mercados de consumo de cada um desses grupos apresentam diferentes graus de amadurecimento e de complexidade. Em conseqüência, tanto os bens como as informações que circulam nesses mercados passam por processos de mediação simbólica (cultural, portanto) que as normas consumeristas consideradas não conseguem nem apreender nem compreender.

5. Cultura, poder, informação e mediação simbólica no mercado de consumo

Canclini (2005:28-30) ressalta que a cultura é indissociável do sistema econômico adotado por certa sociedade. Esse autor vê a cultura como um produto do sistema com função de produzir e de reproduzir os significados abrangidos no processo produtivo:

(…), preferimos restringir o uso do termo cultura para a produção de fenômenos que contribuem, mediante a representação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para a compreensão, reprodução ou transformação do sistema social, ou seja, a cultura diz respeito a todas as práticas e instituições dedicadas à administração, renovação e reestruturação do sentido.

(…). Toda produção de significado (filosofia, arte, a própria ciência) é passível de ser explicada em termos de relação com suas determinantes sociais. Mas essa explicação não esgota o fenômeno. A cultura não apenas representa a sociedade; cumpre também, dentro das necessidades de produção do sentido, a função de reelaborar as estruturas sociais e imaginar outras novas. Além de representar as relações de produção, contribui  para a sua reprodução, transformação e para a criação de outras relações.

De fato, toda manifestação cultural há de ser estudada em conexão com os demais elementos produtivos do sistema social. Qualquer prática cultural é simultaneamente econômica e simbólica, pois é assim que se reproduz o conjunto de representações de uma sociedade. A cultura está inserida no processo produtivo e, para que se possa estudá-la, é preciso percorrer todas as etapas de tal processo, a saber, a produção cultural, sua circulação, recepção e reprodução. Não é possível compreender o processo cultural fora de seu contexto. Por isto, a cultura é um dos instrumentos de dominação usados por certos grupos sociais, ao lado do poder político e do poder econômico. Esses grupos não podem indefinidamente basear seu domínio na força econômica ou política. O domínio cultural passa a ser imprescindível para assegurar poder a tais grupos. A cultura se presta a convencer os demais indivíduos a aceitarem a estrutura de dominação econômica e política como se fosse legítima e natural. Desse modo, oculta-se a violência inerente ao processo de adaptação do indivíduo a uma estrutura em cuja construção não interveio, bem como a fazer com que a imposição desta estrutura seja sentida como socialização ou adequação necessária para a vida em sociedade. A configuração exposta por Canclini constitui o que neste trabalho se denomina estrutura cultural dominante, em que os elementos de identificação cultural são apropriados, manipulados e difundidos pelos setores dominantes ou hegemônicos de um dado sistema social, de modo autoritário e hierarquizado, para que, com base naqueles elementos, os demais integrantes da sociedade construam sua identidade cultural.

Milhares de bens são introduzidos de modo caótico nos mercados de consumo. Os consumidores, então, individualmente ou em grupos, desenvolvem processos democráticos de mediação simbólica por meio dos quais segregam, classificam e hierarquizam esses bens que lhes são oferecidos. Essa mediação simbólica é feita com base nos elementos culturais de identificação adotados pelos indivíduos e grupos envolvidos. O resultado do processo configura uma ordem geral que tende a refletir a distribuição de poder na sociedade, a polifonia e a polissemia existentes nos mercados de consumo. Assim, as decisões dos consumidores não são baseadas, apenas, em critérios tecnicistas ou utilitaristas atinentes aos bens de consumo. Ao contrário, os processos de comunicação no mercado de consumo e a disputa pelos bens de consumo refletem práticas democráticas, disputas simbólicas e culturais entre os atores envolvidos. Os bens de consumo funcionam, portanto, como signos desses conflitos e práticas. Na medida em que as normas jurídicas consumeristas põem foco na função utilitarista ou tecnicista da informação no mercado de consumo, deixam escapar os aspectos muito mais relevantes acima referidos.

Daí decorre que as tentativas de harmonização da legislação consumerista na América Latina como um todo, e no Mercosul em especial, não poderão progredir de modo efetivo se deixarem de considerar os aspectos multidimensionais mencionados até aqui. Não se trata, então, de buscar apenas harmonização e equilíbrio econômico nos mercados consumidores latino-americanos. Trata-se, na verdade, de regular as disputas culturais, simbólicas e políticas em que estão envolvidos os diferentes grupos sociais e países da América Latina e do Mercosul. É nesse contexto que a informação no mercado de consumo precisa ser examinada.

A partir do surgimento dos Estados nacionais, acentuou-se a tendência de confinar a identidade cultural no território nacional. A identidade cultural passou cada vez mais a ser narrada na história nacional, a ser simbolizada pelos heróis nacionais, a compor sua forma na etnia nacional. O Estado-nação, fechado em suas fronteiras, era o reduto seguro em que se podia encontrar uma cultura nacional homogênea que funcionava como um grande quadro de referência para um povo, permitindo-lhe ter um sentimento de identidade comum e, ao mesmo tempo, dando ao indivíduo o conforto de pertencer a uma comunidade com quem podia compartilhar sua vida (Eagleton, 2005). Era possível distinguir o nacional daquilo que era estrangeiro. Cultura nacional e cultura estrangeira se articulavam e se complementavam, mas não se confundiam. Os bens oferecidos ao consumo traziam a marca e significação simbólica de uma certa sociedade nacional. Cada país podia, ou não, abrir suas fronteiras para receber bens e significados culturais de outros países, porém tinha critérios mais ou menos estáveis para reconhecer o que era nacional e o que era estrangeiro. Na medida em que o processo de globalização multidimensional se tornou mais amplo, intenso e profundo, especialmente em decorrência da expansão do comércio industrial mundial, o reducionismo dualista nacional–estrangeiro expôs cada vez mais sua fragilidade conceitual e pragmática. Os bens assim produzidos e comercializados circulam em territórios transnacionais e não têm mais tanta ligação com um determinado local ou país. Seu significado cultural incorpora fragmentos das diversas culturas dos lugares por onde circula. Na fase atual da globalização é difícil saber quais bens são nacionais e quais são estrangeiros. A globalização produz constantes interações entre sistemas de produção e entre culturas diferentes que estão em centros distintos, mas que são integrados funcionalmente. Cada indivíduo, ao selecionar os bens que deseja consumir, atribui significados a tais objetos. Com base nesses significados, o indivíduo define em que aspectos se identifica e se integra a uma certa sociedade, e em quais outros aspectos se considera diferente dela. Assim, os comportamentos de consumo num ambiente globalizado implicam em processos de identificação cultural multicentrados, transnacionais e que reúnem fragmentos culturais de diferentes origens. A identidade cultural não pode mais ser definida de modo seguro com base no simbolismo inerente ao Estado-nação. A identidade cultural nessas sociedades é construída por meio dos hábitos de consumo locais e transnacionais.

6. Reformulação de identidade cultural no mercado de consumo

O mercado de consumo nas sociedades modernas, industrializadas e democráticas transformou-se em lugar para exercício da cidadania. É uma das instituições por meio das quais os indivíduos podem exercer sua cidadania e provocar transformações sociais para tornar a sociedade mais justa e solidária. De fato, para que os produtores do mundo inteiro conquistem novos mercados, precisam simultaneamente construir e atribuir a seus produtos significados universais, homogêneos. Para isso, dependem dos meios de comunicação social, especialmente da publicidade. O discurso corrente de que a globalização gera homogeneidade cultural, padronização de valores, hábitos e instituições, pressupõe que os indivíduos e grupos sociais são seres passivos, manipuláveis e incapazes de tomar decisões por si mesmos. Estariam condenados aos ditames dos poderes hegemônicos e da mídia global a serviço destes. Essas pressuposições nem sempre correspondem à realidade. A concepção de que haveria irresistível direcionismo do comunicador e passividade total do receptor da mensagem comunicada, por meio da qual seria possível aos poderes dominantes ou hegemônicos impor “às massas” elementos culturais específicos, não levava em conta a dialética intrínseca do processo comunicacional. Medina (1988) chama a atenção para o fato de que, a partir de certo ponto, uma rede de comunicação e de disseminação de conteúdos de interesse dos poderes hegemônicos escapa ao seu poder de controle porque apresenta dinâmica dialética que altera o significado desses conteúdos. Pondera que as sociedades avançadas dependem do livre intercâmbio de informações orientadas para a ação e para a renovação, e não para a passividade contemplativa. A comunicação é organizada para interferir no presente e não para manter a tradição. Sublinha que houve época em que se considerava que os meios de comunicação social reproduziam uma cultura industrializada, em que a importância dos criadores dessa cultura era eliminada ou minimizada, pois esses meios de comunicação eram governados pelos princípios da rentabilidade e da homogeneização cultural impessoal. Todavia, exatamente porque a mensagem comunicacional é produto cultural, não é possível homogeneizá-la de modo absoluto. Qualquer manifestação cultural tem o elemento criativo. Por esse motivo, surge uma relação dialética entre o sistema de produção ou reprodução cultural e o criador dos elementos culturais absorvidos no sistema. Mesmo no bojo da “cultura de massa”, o criador de um produto cultural o assina: imprime nesse produto sua marca com que se distingue dos demais.

Medina faz referência à divisão cultural em antiga e nova, proposta por Moles. A cultura antiga corresponderia à forma de pirâmide e seria construída essencialmente por meio do sistema educacional. A nova cultura seria um mosaico, em oposição à imagem da pirâmide, e teria duas camadas: a de “cultura de massa”, alimentada pelos meios de comunicação social; e outra camada composta por criadores integrantes da sociedade intelectual. A primeira camada – de “cultura de massa” – gera um fluxo contínuo de mensagens de todos os tipos, com múltiplos sentidos, mas consubstanciado em fragmentos culturais dispersos num sistema de comunicação que não lhes dá suporte duradouro. A segunda camada – a dos criadores – absorve os fragmentos dispersos no sistema de comunicação, reorganiza esses fragmentos e os transforma em novas mensagens que serão, então, reabsorvidas pelos meios de comunicação social. Realiza-se, assim, um processo dinâmico e dialético entre as duas camadas. De fato, os meios de comunicação social difundem informações provenientes de todos os lugares do mundo. Os poderes hegemônicos selecionam, organizam e editam as informações e os elementos simbólicos dominantes que têm interesse de difundir. Todavia, todas essas mensagens e os bens a que se referem são mediados por agentes sociais, formais ou informais, que podem lhes atribuir diferentes significações culturais intertextuais, expressando assim valores locais ou regionais, que podem ou não conflitar com a pretensão de homogeneidade cultural desejada pelos poderes dominantes ou hegemônicos (Martín-Barbero, 2006). Por fim, os próprios destinatários das mensagens e dos bens (os consumidores, em última análise) também lhes atribuem significados, que podem ou não coincidir com os desejados pelos poderes dominantes ou hegemônicos. Por isto, ao mesmo tempo em que essas informações difundidas pelos referidos poderes combinam diversos elementos culturais, também podem acentuar identidades culturais locais, pois os seus significados intertextuais são mediados por diferentes agentes sociais.

Em razão dos processos dialéticos até aqui examinados, as intervenções dos indivíduos como mediadores sociais de significados culturais intertextuais são particularmente relevantes nos comportamentos de consumo. O consumidor exercita sua cidadania no exato instante em que toma sua decisão de consumir ou não o que lhe é oferecido. É o indivíduo quem decide o que realmente tem valor simbólico para ele, em relação, em conexão com os significados culturais intertextuais do grupo social a que pertence. O mesmo raciocínio é válido para um grupo social local ou regional. Por isto, por mais que se tente homogeneizar a cultura, há elementos culturais que são assimilados pelo indivíduo, outros que são rejeitados por ele, e outros que são hibridizados com elementos culturais locais ou individuais. Desse modo, o indivíduo interfere nas relações sociais e pode provocar nelas mudanças importantes. Após ressaltar que há grande assimetria na produção e difusão de informações pela mídia a serviço dos poderes hegemônicos globais, Canclini (2005:42-45) observa:

No entanto, quando se reconhece que ao consumir também se pensa, se escolhe e reelabora o sentido social, é preciso se analisar como esta área de apropriação de bens e signos intervém em formas mais ativas de participação do que aquelas que habitualmente recebem o rótulo de consumo. Em outros termos, devemos nos perguntar se ao consumir não estamos fazendo algo que sustenta, nutre e, até certo ponto, constitui uma nova maneira de ser cidadãos.
(…).
A aproximação à cidadania, à comunicação de massa e ao consumo, entre outros fins, tem de reconhecer estes novos cenários de constituição do público [o autor refere-se às instituições por meio das quais se expressa o interesse público] e mostrar que, para se viver em sociedades democráticas, é indispensável admitir que o mercado de opiniões cidadãs inclui tanta variedade e dissonância quanto o mercado da moda e o do entretenimento. Lembrar que nós cidadãos também somos consumidores leva a descobrir na diversificação dos gostos uma das bases estéticas que justificam a concepção democrática da cidadania.

Diante dessas considerações, fica claro que os países da América Latina já mobilizados para regular as relações de consumo não podem se preocupar, apenas, com os aspectos econômicos e de política transnacional inerentes aos processos de integração regional ou sub-regional, como o Mercosul. Nos mercados de consumo de cada um desses países, e nos mercados em vias de integração em que participam, ocorrem disputas simbólicas que refletem, direta ou indiretamente, a distribuição de poderes entre tais Estados e, também, a distribuição de poderes entre os diferentes grupos sociais que compõem aqueles estados. Tanto as mensagens comunicacionais como os bens que circulam nesses mercados de consumo captam e expressam a polifonia e a polissemia das práticas dos consumidores cidadãos. Daí resulta clara a insuficiência das normas consumeristas apegadas a critérios utilitários ou tecnicistas para regular a comunicação no mercado de consumo. A compreensão do fenômeno do consumo requer abordagem inter e transdiciplinar, por meio da qual possam ser estudados com maior abrangência e profundidade os processos simbólicos de comunicação e de recepção entre os poderes hegemônicos e os consumidores, sempre no contexto social em que tais processos ocorrem.

Eis porque Canclini (205:60) propõe um conceito amplo de consumo: “(…) o consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e o uso dos produtos. (…).”Esclarece que não se pode compreender os hábitos de consumo apenas com base numa suposta racionalidade econômica, nem como manifestações determinadas por manipulação dos meios de comunicação. O consumo também não pode ser analisado como simplesmente mais uma fase do ciclo de produção e reprodução social, ou seja, como o momento em que se completaria o processo de criação, produção e circulação de bens no mercado de consumo massificado. A esse respeito, o autor diz (2005:61):

(…). Uma teoria mais complexa sobre a interação entre produtores e consumidores, entre emissores e receptores, tal como a desenvolvem algumas correntes da antropologia e da sociologia urbana, revela que no consumo se manifesta também uma racionalidade sociopolítica interativa. Quando vemos a proliferação de objetos e de marcas, de redes de comunicação e de acesso ao consumo da perspectiva dos movimentos de consumidores e de suas demandas, percebemos que as regras – móveis – da distinção entre grupos, da expansão educacional e das inovações tecnológicas e da moda também intervêm nestes processos. (…). Consumir é participar de um cenário de disputas por aquilo que a sociedade produz e pelos modos de usá-lo. A importância que as demandas pelo aumento do consumo e pelo salário indireto adquirem nos conflitos sindicais, e a reflexão crítica desenvolvida pelas associações de consumidores são evidências de como o consumo é pensado pelos setores populares. Se alguma vez esta questão foi território de decisões mais ou menos unilaterais, hoje é um espaço de interação no qual os produtores e emissores não só devem seduzir os destinatários, mas também justificar-se racionalmente. (…).

Uma terceira linha de trabalhos, os que estudam o consumo como um lugar de diferenciação e distinção entre as classes e grupos, tem chamado a atenção para os aspectos simbólicos e estéticos da racionalidade consumidora. Existe uma lógica na construção dos signos de status e nas maneiras de comunicá-los. (…) nas sociedades contemporâneas boa parte da racionalidade das relações sociais se constrói, mais do que na luta pelos meios de produção, pela disputa em relação à apropriação dos meios de distinção simbólica. (…). A lógica que rege a apropriação dos bens como objetos de distinção não é a da satisfação de necessidades, mas sim a da escassez desses bens e da impossibilidade de que outros os possuam.

Contudo, nessas pesquisas costuma-se ver os comportamentos de consumo como se só servissem para dividir. Porém, se os membros de uma sociedade não compartilhassem os sentidos dos bens, se estes só fossem compreensíveis à elite ou à maioria que os utiliza, não serviriam como instrumentos de diferenciação. (…).

Assim, novos objetos introduzidos no mercado de consumo devem corresponder à lógica simbólica e cultural dos diferentes consumidores. O desejo de adquirir novos bens não é irracional, mas sim estreitamente vinculado aos elementos que definem as culturas individual e coletiva dos consumidores.

Considerações finais

Pretendeu-se evidenciar neste trabalho que as normas consumeristas do Mercosul que regulam as mensagens de comunicação entre fornecedores e consumidores são gerais e abstratas, no sentido de que, em essência, limitam-se a fixar muito amplamente alguns critérios utilitaristas ou tecnicistas atinentes aos bens de consumo. Essas normas concebem o processo de comunicação a partir do modelo, muito ultrapassado, de emissor ativo (fornecedor) comunicando mensagem com conteúdo pronto e acabado para um receptor passivo (o consumidor). Todavia, não é mais sustentável a argumentação tradicional de que os meios de comunicação social são inexoravelmente manipuladores de massas de consumidores passivos (o que não significa dizer que nunca sejam manipuladores ou que não haja consumidores passivos prontos a consumir qualquer coisa que lhes seja oferecida). Os significados culturais das mensagens de comunicação difundidas pelos meios de comunicação social, e também dos bens introduzidos no mercado de consumo, são mediados pelos agentes do próprio mercado, os quais, como já foi dito, captam, processam, reinterpretam e devolvem ao meio social os valores e signos desses bens no contexto das relações sociais multidimencionais. Esses mediadores atuam em seus respectivos grupos familiares, nos seus bairros, nas suas associações religiosas, sociais e políticas, nas suas cidades e, numa escala mais ampla, no país. Nesses espaços multicentrados ocorrem as intersecções culturais e os processos de reelaboração de significados culturais disseminados na sociedade. Os indivíduos e grupos sociais selecionam os bens que desejam consumir atribuindo a cada um desses bens significados que, no contexto social, indiquem uma posição, uma ordem numa escala de valores mais ampla, estabelecida por meio do consenso simbólico de tal sociedade. Esse consenso, por sua vez, resulta do exercício da cidadania também no mercado de consumo, onde, além da disputa pelos bens de consumo, também ocorrem práticas democráticas, intercâmbio de idéias e de complexas mediações simbólicas. Os elementos culturais contidos nesse quadro geral representam os valores e significados culturais intertextuais que aquela específica sociedade considera importantes num dado momento histórico. Cada um dos integrantes dessa sociedade, no entanto, pode propor outros significados e, desse modo, pode interferir no conjunto de valores simbólicos contidos no quadro geral de referência cultural. Em decorrência desses processos de mediação, é possível transformar, mesmo radicalmente, os significados culturais intertextuais das mensagens difundidas pelos meios de comunicação social e os dos bens introduzidos no mercado de consumo. Assim, mesmo admitindo a existência de poderes dominantes ou hegemônicos na sociedade, bem como a existência de meios de comunicação social a serviço desses poderes, não se pode absolutamente desprezar o poder dos mediadores de significados culturais intertextuais, pois é nesse contexto que ocorrem as intersecções culturais com base nas quais os indivíduos e os grupos constroem suas identidades culturais na fase contemporânea da globalização.

Se os operadores do Direito não estiverem atentos a estes aspectos, será pouco eficiente qualquer projeto de harmonização ou de unificação das normas de proteção ao consumidor, quer no âmbito nacional quer no internacional. No caso específico da América Latina, é incontestável a existência do multiculturalismo e dos Estados plurinacionais. A aplicação das normas de proteção aos consumidores há de ser feita com atenção a tais especificidades e, sobretudo, considerando os processos de reformulação ou de afirmação cultural de cada povo.

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O PRINCÍPIO DA ISONOMIA APLICADO À RELAÇÃO JURÍDICA DE CONSUMO NA LEGISLAÇÃO ARGENTINA E BRASILEIRA

Prof. Dr. Renato Seixas

Doutor em Ciências da Integração da América Latina pelo PROLAM-USP[1]

Professor de Direito Civil e de Direito Processual Civil

 

 

APRESENTAÇÃO

 

 

Nas sociedades contemporâneas mais evoluídas, em que se procura assegurar tratamento justo e igualitário para todos os indivíduos, o princípio da isonomia é, com certeza, um dos mais importantes para a organização do ordenamento normativo jurídico. O aludido princípio está impregnado nas normas jurídicas e rege a interpretação e aplicação delas na vida social. Esse princípio, portanto, é universal, aplicável a todos os ramos do Direito e não apenas ao Direito do Consumidor. Para que seja realizado o princípio da isonomia, é necessário que cada ramo do Direito adote outros princípios, quer gerais, quer especiais, de modo a criar condições materiais adequadas ao tratamento mais igualitário possível entre os indivíduos e em determinadas circunstâncias. É o que ocorre, por exemplo, no Direito do Trabalho, no Direito Tributário, no Direito Previdenciário, no Direito Penal, no Direito Locatício e em tantos outros ramos da ciência jurídica.

 

A literatura de Direito do Consumidor aponta reiteradamente os princípios gerais e específicos que governam esse ramo do Direito. Por exemplo, fala-se freqüentemente no princípio da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, a fim de justificar a existência e a aplicação de normas protetoras dos consumidores. Ocorre que todos esses princípios e normas disciplinadoras das relações de consumo pressupõem a necessidade de realização do princípio da isonomia que, como dito, é princípio universal em Direito. De fato, não seria necessário cogitar do princípio da isonomia se os sujeitos que estabelecem entre si relações de consumo estivessem em idêntica situação jurídica, se tivessem igual poder social, econômico, cultural, técnico. Enfim, se tais sujeitos pudessem negociar entre si em situação de plena igualdade, é claro que a realização do princípio da isonomia independeria de proteção jurídica adicional para algum desses sujeitos. Mas nem sempre essa situação de igualdade real acontece. Por isto, é preciso que o Estado intervenha nas relações jurídicas, sociais e econômicas criando mecanismos que eliminem ou minimizem as situações de desigualdade entre os diversos sujeitos e assegure tanto quanto possível, de acordo com as circunstâncias, a realização do ideal de isonomia.

 

Este estudo tem por objetivo examinar, de modo geral e sumário, quais foram as causas históricas, econômicas, sociais e jurídicas determinantes da criação e do desenvolvimento da chamada sociedade de produção e consumo massificados. Quer-se também apontar as razões gerais que provocaram a situação de vulnerabilidade dos consumidores em face dos fornecedores e, em conseqüência, criaram a necessidade de intervenção do Estado para disciplinar as relações de consumo. Fixado esse contexto geral, examinar-se-á como esses fenômenos foram transferidos para a América Latina, incorporando-se à vida econômica, social e jurídica dos povos latino-americanos. Esse encadeamento de fatos explica por quê o Direito do Consumidor é razoavelmente uniforme nas nações em que o mercado de consumo atingiu certo grau de desenvolvimento e de maturidade. Essa consistência teórica e prática do Direito do Consumidor é extremamente importante no mundo contemporâneo, em que se fala insistentemente em “globalização” cultural, econômica, jurídica e até social. Sabendo-se que o Direito do Consumidor apresenta essa consistência e uniformidade teórica, adotando princípios e normas semelhantes em diversos países, é evidente que as relações de consumo transnacionais tornam-se mais seguras. Nessas circunstâncias, as condutas de consumidores e fornecedores serão disciplinadas de maneira razoavelmente uniforme e, por outro lado, os eventuais conflitos de consumo entre esses sujeitos tenderão a ser resolvidos com critérios bastante semelhantes em cada país. Esse estudo foi realizado de modo mais amplo e mais profundo em nosso trabalho apresentado como dissertação de tese de mestrado[2]. No presente trabalho, serão examinados apenas os critérios a partir dos quais as leis argentina e brasileira de proteção ao consumidor estabeleceram os elementos essenciais da relação jurídica de consumo. A análise aqui realizada parte exatamente da necessidade de realização do princípio da isonomia nas relações jurídicas de consumo. Sob essa perspectiva, pretende-se explicar a razão pela qual foram criados, na legislação examinada, conceitos de consumidor por equiparação e, ainda, por quais motivos é preciso admitir que a entidade abstrata (personificada ou não) seja considerada consumidora.

 

 

(1) CAUSAS DETERMINANTES DO SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE DE CONSUMO

 

O processo de expansão comercial e de colonização européia ocorrido principalmente nos séculos XV a XVII teve duas grandes e importantes conseqüências, a saber: (a) estruturou-se com base numa inafastável divisão de funções econômicas entre as metrópoles e suas respectivas colônias; e (b) possibilitou para as nações colonialistas enorme acumulação de capitais disponíveis (Prado Júnior, 1984).

 

As nações colonialistas organizaram a atividade econômica de suas respectivas colônias de tal modo que estas últimas, sempre em benefício das metrópoles a que estavam vinculadas, deveriam produzir e fornecer apenas produtos naturais e matérias primas com alto valor no mercado europeu. Por outro lado, todos os demais bens industrializados necessários à vida colonial seriam fornecidos pela metrópole. Estabeleceu-se, assim, o chamado “Pacto Colonial”, por meio do qual a atividade econômica, comercial e cultural da colônia com o exterior somente poderia realizar-se por intermédio da respectiva metrópole, sendo vedado à colônia estabelecer qualquer relação internacional com terceiros (Prado Júnior, 1984). Esta bipolaridade colônia-metrópole possibilitou que as metrópoles européias colonialistas tivessem uma impressionante acumulação de capitais excedentes disponíveis, os quais poderiam ser investidos noutras atividades lucrativas (Cipolla, 1974). Ora, podendo as metrópoles dispor de matérias-primas baratas e fornecidas com exclusividade por suas colônias, para depois revendê-las por altíssimo preço no mercado europeu e, além disso, podendo também dispor de enormes recursos acumulados pela exploração comercial colonialista, criou-se um contexto favorável ao desenvolvimento técnico e tecnológico que veio a desencadear a chamada Revolução Industrial, cujo marco histórico é fixado na segunda metade do século XVIII, especialmente na Inglaterra (Heers, 1981).

 

De fato, as nações européias colonizadoras tinham interesse em manter colônias capazes de lhes fornecer os gêneros primários com o menor custo possível (Marx, 1996). As colônias não tinham como interferir nas oscilações de preços de seus produtos no mercado internacional. De outro lado, as metrópoles acumulavam lucros fantásticos em decorrência do exercício do monopólio comercial com suas colônias, já que obtinham os gêneros primários a baixo custo e os vendiam no mercado mundial a preços muito altos (Castro, 1992). A acumulação capitalista comercial européia criou as condições necessárias para o surgimento do capitalismo industrial na Europa (Prado Júnior, 1984). Os excedentes econômicos gerados na fase do capitalismo comercial, em grande parte drenados das colônias, permitiram a elevação do nível social dos países europeus e o aumento populacional na região. Isto possibilitou a formação de um potencial mercado interno consumidor dos produtos industrializados na Europa (Heers, 1981). Parte dos excedentes econômicos foi investida em novas tecnologias produtivas, gerando bens de melhor qualidade e menor custo. A população, então, pode adquirir maior quantidade de bens a custo mais reduzido e, assim, os mercados europeus ampliaram-se progressivamente, fomentando ainda mais a atividade industrial e agrícola (Prado Júnior, 1984). Mais tarde, em meados do século XVIII, quando o capitalismo europeu adentrou a fase industrial de produção e consumo de massa, tornou-se imperativo expandir os mercados consumidores (Ferro, 1996). A Revolução Industrial, como se comentará um pouco mais adiante, transformou significativamente o universo cultural europeu e mundial. Estabeleceu-se novo modelo sócio-econômico em que a produção de bens e serviços deixou de ser artesanal e destinada preponderantemente ao comércio local ou colonial. Essa produção passou a ser massificada e destinada ao consumo também massificado em escala mundial (Kemp, 1985). Essas tendências da então nova economia mundial desde logo se mostraram incompatíveis com a manutenção do “Pacto Colonial”. Consequentemente, as nações européias industrializadas, lideradas pela Inglaterra, exerceram fortes pressões contra as nações colonialistas que ainda mantinham o dito Pacto em vigor. Foi nessas circunstâncias que, paulatinamente, o sistema colonial estabelecido a partir do século XV foi se desmantelando para, já no início do século XIX, ceder espaço para o chamado capitalismo industrial (Prado Júnior, 1984). Contando com esses novos mercados, as nações européias industrializadas conseguiram escoar em grande escala seus produtos manufaturados e passaram a adquirir, a baixo custo, mais gêneros primários produzidos pelos povos colonizados e, mais tarde, pelas nações independentes subdesenvolvidas (Kemp, 1985).

 

Com o paulatino desenvolvimento do capitalismo industrial, o panorama cultural e sócio-econômico da Europa e das regiões expostas à sua influência sofreu transformações muito mais profundas e definitivas. Um dos mais importantes aspectos dessa Revolução Industrial consistiu exatamente na modificação dos processos de produção, de distribuição e de circulação comercial dos bens industrializados (Fioravante et al., 1991). Antes do amadurecimento da fase capitalista comercial de produção e, portanto, antes do advento da Revolução Industrial, a produção de bens tendia a ser feita artesanalmente ou, ainda, desde a Idade Média, por meio das chamadas “Corporações de Ofício”. Os serviços também eram organizados e executados de modo artesanal ou por meio de pequenas entidades produtivas. Nesse contexto, produziam-se bens e realizavam-se serviços em pequena escala e que eram destinados, preponderantemente, ao consumo local, embora também ocorresse a produção de excedentes para exportação para outras regiões ou países, especialmente para as regiões coloniais (Kemp, 1985). Além de tudo isto, o processo de divisão do trabalho ainda não tinha alcançado o grau de complexidade e de sofisticação que mais tarde apresentaria (Marx, 1996). Assim, por exemplo, o artesão fabricante de um objeto qualquer o produzia em pequena quantidade e participava de todas as fases de fabricação desse bem, controlando melhor a qualidade do produto, apesar do pouco desenvolvimento tecnológico. Esse objeto fabricado de modo artesanal tendia a ser comercializado diretamente pelo fabricante na comunidade em que vivia, de tal maneira que o fornecedor e consumidor estavam muito próximos um do outro, tendiam a se conhecer e a resolver entre si eventuais conflitos decorrentes das relações de consumo. A produção excedente desses objetos seria secundariamente destinada ao comércio noutras regiões da Europa ou à exportação. A Revolução Industrial transformou essa realidade de modo irreversível (Marx, 1996). Acentuou-se a divisão das atividades produtivas rurais e urbanas. Os artesãos e trabalhadores em geral foram deslocados de suas casas e pequenas oficinas e instalados em grandes fábricas. Nessas fábricas, ocorreu um complexo processo de divisão do trabalho para que os bens fossem produzidos em série (Smith, 1996). Cada operário tornou-se altamente especializado num detalhe do produto final. Máquinas sofisticadas substituíram diversas etapas do trabalho manual e viabilizaram a produção massificada de bens industrializados. A produção assim obtida não era mais destinada preponderantemente ao consumo local. Ao contrário, a produção passou a ser organizada para a exportação em escala mundial e com vistas a um consumo massificado (Galbraith, 1996). A atividade dessas indústrias e o seu aperfeiçoamento tecnológico geraram a oportunidade para o desenvolvimento de variados serviços igualmente especializados, tais como a armazenagem, o transporte, a distribuição, a pesquisa para aperfeiçoamento do maquinário, os serviços bancários e securitários, os serviços de profissionais liberais de todas as espécies, a criação de infraestrura naval, portuária e viária, a criação de empregos públicos, apenas para citar alguns (Kalecki, 1997).

 

Esses fenômenos todos acrescentaram novos elementos à cultura dos povos europeus e também à cultura dos povos sujeitos à sua influência em todo o mundo. De meados do século XVII até meados do século XIX predominaram os dogmas da filosofia liberalista e do racionalismo. Os indivíduos, governados pela Razão, deveriam gozar da maior liberdade possível para auto-regularem seus interesses privados, de modo que a atividade estatal deveria restringir-se exclusivamente aos assuntos de interesse público (Smith, 1996). Um dos principais dogmas da filosofia liberalista que regeu a Revolução Industrial inglesa e, depois, a Revolução Francesa, era exatamente o de que o Estado deveria ocupar-se apenas de assuntos absolutamente indispensáveis para a manutenção da sociedade. Assim, o Estado deveria cuidar da organização das cidades, dos serviços públicos essenciais, da distribuição de Justiça pública, das vias de transporte, da segurança pública, da Administração Pública, da tributação uniforme, abstendo-se o mais possível de interferir em todo e qualquer assunto atinente às atividades privadas. Os indivíduos regulariam seus próprios interesses por meio de contratos, dispensando a intervenção estatal para esse fim (Smith, 1996). Essa concepção de laissez faire, laissez passer que prevaleceria no âmbito privado provocou situações de desequilíbrio econômico e social que poriam em risco o próprio sistema produtivo e a integridade das nações européias, como se verá a seguir.

 

 

(2) CAUSAS DA CRISE DO ESTADO LIBERALISTA E INTERVENCIONISMO ESTATAL NA ECONOMIA PRIVADA

 

Num ambiente de liberalismo inebriante, as forças produtivas e sociais do continente europeu desorganizaram-se. Sem que qualquer controle estatal abrangente fosse exercido sobre a produção e a comercialização de bens, os agentes econômicos podiam produzir tudo o que queriam e nas quantidades que desejassem (Marx, 1996). Dispondo potencialmente de imensos mercados consumidores espalhados em todo o mundo, as nações européias industrializadas pareciam acreditar que toda a sua produção poderia sempre ser consumida (Myrdal, 1997). No entanto, as regiões colonizadas ou recém egressas do colonialismo não contavam com população capaz de consumir toda a produção européia. A mão-de-obra daquelas regiões ainda era servil ou semi-servil e, portanto, sem recursos para adquirir os bens industrializados postos à sua disposição (Mill, 1996). Nesse contexto, a Europa deparou-se com sucessivas crises de superprodução, queda de preços, desemprego e conflitos sociais.

 

A expansão das atividades fabris acarretou grande aglomeração nas cidades da Europa industrializada (Kemp, 1985). Grandes bairros operários foram criados e isto provocou intenso processo de especulação imobiliária. Apesar da generalizada pouca qualidade das habitações e da quase inexistente infraestrutura para saneamento básico nos bairros operários, os aluguéis alcançaram níveis elevadíssimos para a época. Tornou-se prática comum a ameaça de retomada dos imóveis locados como meio de pressão dos proprietários para aumentarem os aluguéis. A necessidade de melhor aproveitamento do solo urbano possibilitou maior desenvolvimento da construção de edifícios com planos horizontais sobrepostos. As condições de higiene eram tão precárias nesses bairros que se tornou comum a ocorrência de epidemias e doenças crônicas. Por outro lado, também as condições de trabalho nas fábricas e nas minas de carvão (que eram fundamentais para o funcionamento das indústrias) eram, em geral, deploráveis. A indústria, sempre em expansão tanto para atender à demanda dos mercados internos como dos mercados internacionais, precisava de abundante mão-de-obra barata e de carvão a baixo custo para prover o funcionamento dos fornos industriais. Por isto, pouco a pouco foram sendo absorvidas na atividade industrial e de mineração todas as pessoas disponíveis para o trabalho. Famílias inteiras integraram-se nessa nova realidade. Assim, além do homem, a quem tradicionalmente competia o sustento material da família, passou-se a usar também a mão-de-obra feminina e a de crianças que, em qualquer idade, tivessem condições de produzir. Os operários não tinham direitos trabalhistas, podendo ser sumariamente demitidos a qualquer tempo. As jornadas de trabalho eram em geral muito longas, chegando a dezoito horas diárias, sem descanso semanal ou férias. Os salários eram muito baixos e não havia a menor preocupação com os acidentes laborativos (Marx, 1978 e 1996). Se o operário de acidentasse ou adoecesse, seria demitido e prontamente substituído, já que havia enorme contingente de desempregados disposto a trabalhar por diminuta remuneração (Kemp, 1985). Essa população proletária estava marginalizada e excluída da maior parte dos serviços estatais (Marx, 1978). Como a produção industrial era destinada preponderantemente à exportação em escala mundial, não se tinha em vista a necessidade de melhorar as condições de vida da população local, a fim de aumentar a base de consumidores nacionais e de fomentar o consumo interno em maior escala. Em decorrência do novo modelo produtivo apontado, o consumidor final dos produtos industrializados poderia estar em qualquer lugar do mundo. Entre tal consumidor e o fornecedor dos bens interpunham-se incontáveis intermediários de todas as espécies. Em razão disto, tornou-se difícil, ou mesmo impossível, para o consumidor resolver diretamente com o fornecedor os eventuais conflitos de consumo. Esses consumidores não recebiam, em geral, informações sobre as especificações dos bens de consumo, sobre os cuidados a serem observados para evitar riscos à saúde, à segurança ou à vida dos adquirentes ou usuários desses bens. Ora, um dos princípios em que se fundamentava filosofia liberalista era o de que todos os cidadãos eram iguais perante a lei, igualdade essa que era apenas formal (Gaxote, 1945). Na realidade, as imensas diferenças econômicas, sociais, culturais, étnicas e tantas outras impediam que, materialmente, os cidadãos fossem mesmo iguais uns aos outros. Num contexto de tantos abusos, irromperam inúmeros conflitos sociais, econômicos e políticos no território europeu. Não se pode deixar de observar que os movimentos comunistas e socialistas formaram-se e tomaram corpo e força especialmente no decorrer do século XIX (especialmente com o “Manifesto Comunista” de F. Engels e em conseqüência das influências marxistas). Esses conflitos contrapunham as classes menos privilegiadas a um Estado controlado pela burguesia comercial, industrial e financeira e, também, pelo clero (Marx, 1978 e 1996).

 

A situação de vulnerabilidade de certos grupos ou setores sociais em face de outros desencadeou grave crise dos fundamentos da sociedade liberalista. O princípio da isonomia formal de todos perante a lei sofreu sérios questionamentos e, em conseqüência, passou-se a buscar maior igualdade substancial entre os indivíduos e entre os diferentes grupos sociais. Também o princípio do liberalismo econômico foi revisado, já que as diversas forças atuantes no mercado não conseguiram alcançar um ponto de equilíbrio natural capaz de evitar as sucessivas crises sociais e econômicas registradas pela história. Esses fenômenos determinaram a necessidade de uma crescente e generalizada intervenção estatal na vida privada, especialmente no que diz respeito à autonomia de vontade privada. Por isto é que a intervenção estatal na economia privada ocorreu, de início, em pontos importantes da estrutura social e econômica, tais como nas relações trabalhistas, previdenciárias, locatícias e de ocupação do espaço urbano. Um dos aspectos mais importantes da autonomia de vontade privada é a autonomia de vontade negocial ou contratual. A autonomia de vontade contratual tem conteúdo complexo, pois abrange a liberdade do sujeito de decidir por si mesmo: a) se quer contratar ou não; b) com quem irá contratar; c) que tipo de contrato celebrará; d) qual será o conteúdo do contrato. A situação de desequilíbrio crônico em que se encontravam certos grupos sociais em face de outros impedia que os grupos vulneráveis exercessem com plenitude sua autonomia de vontade negocial ou contratual. Para corrigir essas distorções e restaurar a autonomia contratual dos indivíduos vulneráveis, o Estado precisou editar leis especiais protetoras daqueles sujeitos. Essa intervenção estatal tinha, e ainda tem, por objetivo essencial a restauração ou a criação de pontos de equilíbrio econômico e social no âmbito de determinados países. Uma das mais importantes formas de intervencionismo estatal no contexto apontado foi o surgimento das leis de proteção aos consumidores. O dirigismo estatal em matéria contratual nas relações de consumo é, por conseguinte, apenas um dos múltiplos aspectos dessas transformações que aqui se indicou em linhas muito gerais (Alpa, 1977).

 

Como se pode notar a partir dessas resumidas informações, modificou-se profunda e amplamente o universo cultural da Europa e das regiões do mundo que estavam sob sua influência. Novos valores sociais, econômicos, políticos, ideológicos, religiosos foram incorporados à cosmologia européia. Esses valores foram sendo paulatinamente transferidos às nações sujeitas à hegemonia da Europa. 

 

 

(3) TRANSFERÊNCIA DO SISTEMA JURÍDICO EUROPEU PARA A AMÉRICA LATINA

 

A estruturação legal das relações jurídicas nos países latinos proveioessencial e indiretamente, do Direito Romano. Os princípios que informam essas relações foram essencialmente extraídos do Direito Romano e daí passaram para a legislação dos povos e países que um dia estiveram sob influência do Império Romano (Trabucchi, 1967). Grande parte do Direito Romano, adaptado a cada fase da evolução das nações européias, foi adotada como direito vigente em vários países europeus desde o século XIII até o início do XIX. Somente quando começaram os movimentos das grandes codificações legislativas européias, no século XIX, é que o sistema do Direito Romano veio a ser substituído pelos códigos que foram sendo editados em cada país, a começar pelo Código Civil francês de 1804 (Colin e Capitant, 1975). Mas, note-se bem, grande parte do sistema do Direito Romano foi incorporada como base dos referidos códigos. O Direito Romano deixou de ser aplicado como direito produzido pelo Império Romano, mas foi sendo paulatinamente incorporado, por meio do costume ou de normas oficiais, ao ordenamento jurídico de cada nação e, por fim, foi absorvido pelas grandes codificações (Lehmann, 1956). Sendo assim, observando-se a estrutura dos institutos jurídicos encontrados no Direito Romano e contrastando-a com a estrutura desses institutos existentes no direito moderno dos países que se filiam àquele sistema jurídico, constata-se a enorme influência do pensamento jurídico romanista (Enneccerus-Kipp-Wolff, 1981). O Direito brasileiro e também o Direito argentino têm sua estruturação básica espelhada no sistema jurídico Romano, especialmente as teorias obrigacional e contratual (Stiglitz, 1993 e 1994). De fato, o Direito Romano havia sido absorvido, em grande parte, pela legislação lusitana, que, por sua vez, vigorou durante largo período no Brasil (Diniz, 1991). Mesmo depois de declarada a independência política do Estado brasileiro, a legislação lusitana continuou a ser usada e aplicada como direito nacional brasileiro. Por isto, o Direito brasileiro recebeu enorme influência das codificações européias que, por sua vez, inspiraram-se no Direito Romano (Gomes, 1995). Por outro lado, o mesmo Direito Romano influenciou a legislação espanhola e daí passou para o Direito argentino que, além disso, também foi muitíssimo influenciado pela legislação civilista brasileira (Espínola, 1977). Não se pode deixar de observar que o Código Civil argentino foi elaborado a partir do projeto de Código Civil brasileiro desenvolvido por Teixeira de Freitas (Diniz, 1991).

 

Foi nesse contexto de influências legislativas européias que se organizaram tanto o Direito brasileiro como o argentino (Diniz, 1991). No Direito Privado desses dois países encontram-se princípios e fundamentos que refletem a concepção filosófica liberalista que predominava na Europa daquela época, já com algumas restrições decorrentes do intervencionismo estatal (Pereira, 1989). A disciplina geral das obrigações e dos contratos é regida, por conseguinte, por tais princípios e fundamentos (Gomes, 1997). Por esses motivos, os princípios que regem o Direito brasileiro e o Direito argentino são muito semelhantes. Essa semelhança ocorre também no sistema legal que Brasil e Argentina desenvolveram para regular as modernas relações de consumo (Stiglitz, 1994).

 

Pode-se afirmar, então, que estão presentes nos ordenamentos jurídicos da Argentina e do Brasil diversos elementos da cultura jurídica, social e econômica da Europa. Conseqüentemente, a disciplina legal do mercado de consumo massificado da América Latina também surgiu e se desenvolveu sob a influência da legislação européia. O mercado de consumo latino-americano foi criado para atender aos interesses coloniais e industriais dos países centrais da Europa durante os séculos XV a XIX. Mais tarde, nos séculos XIX e XX, sobreveio a inequívoca influência dos Estados Unidos da América (Padis et al., 1979). Por essas razões, as normas jurídicas que compõem o sistema de proteção ao consumidor são mais ou menos homogêneas na legislação dos países em que o mercado de consumo já atingiu certo grau de maturidade. As normas de proteção ao consumidor são regidas por princípios jurídicos mais ou menos uniformes, são organizadas em subsistemas normativos especiais, resguardam aproximadamente os mesmos interesses jurídicos dos consumidores, prevêem sanções muito semelhantes a serem aplicadas contra quem vier a desobedecê-las (Ferrier, 1996). A legislação de proteção ao consumidor é preponderantemente intervencionista, ou seja, as normas jurídicas editadas pelo Estado interferem nas relações jurídicas de consumo para, por um lado, limitar a liberdade de conduta dos fornecedores, impedindo-os de adotar certos comportamentos considerados nocivos aos consumidores ou obrigando-os a observar determinadas condutas em favor dos consumidores; e, por outro lado, para assegurar aos consumidores condições equilibradas para que possam exercer sua autonomia de vontade nas contratações de consumo (Alpa e Patti).

 

 

(4) FUNDAMENTOS GERAIS DA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR E EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

 

O Direito do Consumidor é ramo do Direito constituído por um conjunto de princípios, institutos e preceitos jurídicos que têm por objetivo disciplinar as relações jurídicas de consumo (Rosa, 1995). O Direito do Consumidor reconhece que existe um acentuado desequilíbrio entre consumidores e fornecedores no âmbito do mercado de consumo. Essa situação de desequilíbrio torna os consumidores vulneráveis em face dos fornecedores e frustra o ideal do princípio da isonomia. Essa inferioridade do consumidor pode manifestar-se de variadas formas, ou seja, a inferioridade pode ser econômica, cultural, técnica, social, entre outras. Exatamente por isto, o consumidor não pode exercer com plenitude sua autonomia de vontade privada em face do fornecedor. A situação de inferioridade do consumidor em face do fornecedor permite que este último cometa abusos no mercado de consumo. Por essas razões, o Estado tem que intervir nas relações de consumo para eliminar ou reduzir o desequilíbrio e a vulnerabilidade dos consumidores diante dos fornecedores (Sidou, 1977).. Como se verá mais adiante, essas relações jurídicas de consumo formam-se pelo menos com três elementos essenciais: a) o sujeito fornecedor de bens no mercado de consumo; b) os bens introduzidos no mercado de consumo; e c) o sujeito consumidor dos bens introduzidos no mercado de consumo (Lucca, 2000). Sendo assim, as normas jurídicas integrantes do Direito do Consumidor regulam os direitos, deveres e obrigações tanto dos consumidores como dos fornecedores de bens no âmbito do mercado de consumo (Almeida, 1993). O fato de a lei conceder essa proteção jurídica ao consumidor não significa, absolutamente, que o consumidor não tenha deveres e obrigações em face do fornecedor, que é a outra parte da relação jurídica de consumo. Certamente que o consumidor os tem e deve cumpri-los. Por outro lado, também o fornecedor de bens tem muitos direitos em face do consumidor. Na verdade, bem analisada cada situação, verificar-se-á que existe uma constante correlação entre os direitos do consumidor e os do fornecedor (Ferrara, 1983). Por exemplo, se o fornecedor tem o dever de dar ao consumidor informações claras, precisas, verdadeiras e de fácil entendimento a respeito do consumo de certo bem, o consumidor, por seu turno, tem o dever de consumir o bem de acordo com as recomendações dadas pelo fornecedor. Em muitos casos as normas de Direito do Consumidor permitem ao fornecedor e ao consumidor que negociem, dentro de certos limites, seus respectivos interesses jurídicos (Calais-Auloy, 1986). Isto acontece porque, nesses casos, a norma jurídica estabelece que a vulnerabilidade do consumidor diante do fornecedor não existe ou, se existe, é mais branda, de tal modo que o consumidor, em tese, pode exercer sua autonomia de vontade privada em igualdade de condições com o fornecedor. Noutras situações, porém, a norma jurídica previamente define uma situação jurídica como prejudicial ao consumidor vulnerável. A norma estabelece que, em tais casos, o consumidor não pode exercer plenamente sua autonomia de vontade privada em face do fornecedor, que se apresenta mais poderoso em relação ao consumidor. A vulnerabilidade do consumidor, nessas circunstâncias, agrava-se a tal ponto que é presumível que ele sofrerá prejuízos (Lorenzetti, 1997). Para eliminar ou minimizar esse efeito nocivo, a norma jurídica estabelece regras pétreas de conduta, tanto para o consumidor quanto para o fornecedor, no sentido de obrigá-los a observar o comportamento que a norma prescreve para cada um deles (Marques, 1999). Nessas circunstâncias, ambos ficam adstritos àquele comportamento e, mesmo que queiram proceder de modo diverso, não podem fazê-lo. Não podem porque a norma, ao descrever o comportamento que deseja ver observado, estabelece a sanção jurídica punitiva de tornar absolutamente ineficaz qualquer comportamento em desacordo com seu mandamento (Filomeno, 1991). Logo, ainda que o consumidor queira convencionar com o fornecedor algo diferente do que a norma determina, essa convenção, juridicamente, não tem efeitos em tudo aquilo que possa ser prejudicial ao consumidor. Não há, pois, qualquer vantagem para o fornecedor em proceder em desacordo com a norma em questão. Essa é a razão pela qual a maior parte das normas do Direito do Consumidor é de ordem pública e de interesse social. Nesses casos o consumidor e o fornecedor não podem contrariá-las, sob pena de ineficácia jurídica da conduta adversa à lei (Grinover et al., 1997).

 

Há, ainda, outro sentido em que as normas de Direito do Consumidor são de ordem pública e de interesse social. São muitas as razões jurídicas, históricas, sociais e econômicas pelas quais o Estado precisou intervir na economia privada[3]. No estágio atual desse processo de intervencionismo estatal, cada vez mais o Estado precisa disciplinar diversos aspectos das relações jurídicas de consumo (Gomes, 1980 e 1994). O desenvolvimento econômico e social de uma nação depende de uma enormidade de fatores, entre os quais estão, apenas a título de exemplo, a existência de poupança popular, os instrumentos de financiamento da produção e do consumo de bens, a organização dos mercados, a capacidade de tal nação de exportar bens ou sua necessidade de importá-los, a distribuição de renda, a saúde e a educação da população, as taxas de crescimento populacional, a ocupação do território, a existência de recursos naturais exploráveis de modo sustentado (Fadlallah et al., 1982). Em maior ou menor grau, todos esses aspectos fomentam, direta ou indiretamente, a formação, o desenvolvimento e o crescimento do mercado de consumo, interno e externo (Rosa, 1995). Portanto, é preciso buscar incessantemente, o equilíbrio e a harmonia entre todos os fatores relacionados ao desenvolvimento econômico, social e jurídico, de tal modo que os benefícios desse desenvolvimento sejam partilhados do modo mais justo possível no ambiente social. Assim, mais uma vez o princípio da isonomia mostra-se de fundamental importância para a realização desses objetivos. Nesse contexto, o intervencionismo estatal no mercado de consumo ocorre, por princípio, para atender a relavantíssimos interesses sociais e para proteger bens jurídicos considerados, pela lei, essenciais à consecução dos objetivos daquela nação. Como se vê, o intervencionismo estatal no âmbito do Direito do Consumidor não decorre apenas de uma reconhecida necessidade de proteger os consumidores vulneráveis. Tal intervencionismo decorre, preponderantemente, da necessidade de realizar o princípio da isonomia do modo mais amplo e profundo possível, de sorte a resguardar os bens e interesses sociais que estão associados às diversas relações jurídicas de consumo, tendo-se em vista os objetivos mais elevados do país. Essas considerações são muito importantes porque, além da proteção específica do consumidor vulnerável, as normas de Direito do Consumidor protegem, direta ou indiretamente, muitos outros interesses sociais, tais como, por exemplo, a cultura, os valores éticos, a não discriminação, a função social das empresas, a dignidade da pessoa humana.

 

Enfim, quando atualmente se fala em Direito do Consumidor, é preciso que se tenha sempre em mente que as normas que o compõem destinam-se a promover o desenvolvimento harmônico e equilibrado das relações jurídicas de consumo. Essa evolução das relações de consumo é essencial para o bem estar da sociedade (Rosa, 1995). Quer-se proteger o consumidor vulnerável, porém não se deseja, de outro lado, desestimular a atividade econômica produtiva. Se a proteção do consumidor, de modo geral, for tão rigorosa, tão implacável, tão intransigente, o fornecedor, em geral, poderá sentir-se desestimulado para produzir e para introduzir bens no mercado de consumo (Ferrara, 1983). Se os fornecedores assim procedessem em quantidade significativa, seria inexorável uma desaceleração da economia, que desencadearia crises sociais, trabalhistas, fiscais, entre outras. É claro que tudo isto contraria os mais elevados interesses sociais. Portanto, não se pode deixar de proteger o consumidor de modo eficiente, mas também não se pode inviabilizar ou desestimular a atividade econômica do fornecedor. Encontrar o equilíbrio nesse contexto não é tarefa fácil, até porque o mercado de consumo massificado é extremamente mutável. Acrescente-se a isto tudo o fenômeno da globalização econômica. O fluxo de bens e de recursos entre os diversos países torna ainda mais delicado o equilíbrio antes mencionado (Baudrillard, 1991). É então preciso criar e adotar normas jurídicas uniformes para a proteção dos consumidores dos diversos países que têm intensa atividade de troca econômica entre si. No caso específico do Brasil e da Argentina, a legislação de proteção aos consumidores é razoavelmente uniforme. Não é possível, neste estudo, examiná-las com a abrangência e profundidade desejadas[4]. No entanto, mesmo no que concerne às normas examinadas nos limites deste trabalho, é fácil verificar a possibilidade de harmonizar dispositivos contidos nas leis editadas pelos dois países. Isto facilita sobremaneira a proteção dos consumidores argentinos que consomem na Argentina bens de consumo fornecidos por brasileiros, e vice-versa.

 

 

(5) O PRINCÍPIO DA ISONOMIA E SUA IMPORTÂNCIA NAS RELAÇÕES JURÍDICAS DE CONSUMO

 

Como foi explicado, o fundamento ético essencial das normas de proteção ao consumidor está no princípio da isonomia, segundo o qual é preciso assegurar tratamento igualitário aos sujeitos de direito que se encontram em situação jurídica igual, e dar tratamento diferente aos sujeitos de direito que estejam em situações jurídicas diferentes, de modo a reduzir as desigualdades entre eles tendo-se em vista determinados fins (Bastos e Martins, 1989). O princípio constitucional da isonomia tem duplo conteúdo jurídico: refere-se tanto à igualdade de todos perante a lei (isonomia formal) como à igualdade de todos no que concerne ao tratamento que lhes é dado pela lei (isonomia material). Sucintamente, o mencionado princípio exige, por um lado, que se trate igualmente os sujeitos de direito que estão na mesma situação jurídica definida com certos critérios legais e em consideração a determinados fins jurídicos e, por outro lado, que se trate diferentemente os sujeitos que estão em situação jurídica diversa, caracterizada com critérios legais distintos e para fins jurídicos também diferentes (Meirelles, 1992). Por isto, a aplicação do princípio constitucional da isonomia requer que: a) sejam fixados os critérios discriminadores com base nos quais será distinguida uma situação jurídica de outra; e b) seja estabelecida uma correlação lógica entre os critérios discriminadores adotados para caracterizar uma dada situação jurídica e as finalidades jurídicas que se tem em vista para aquela situação específica. Depois de breves considerações sobre a evolução histórica do princípio constitucional da isonomia, BASTOS e MARTINS (1989, p. 7-9) explicam:

 

“(…). É sabido que o Texto Constitucional veda que certas situações sejam erigidas em elemento discriminador. (…).

 

É forçoso, todavia, considerar que, a despeito do destaque dado à proibição desses discrímens, não é, na verdade, neles que repousa o exato conteúdo do princípio da isonomia. O que este realmente protege são certas finalidades, o que, de resto, não é uma particularidade do tema em estudo, mas de todo o direito, que há de ser sempre examinado à luz da teleologia que o informa. Assim é que o discrímen “sexo” torna-se inegavelmente inaceitável sempre que o mesmo seja eleito com o propósito de desnivelar materialmente o homem da mulher. Será suficiente, contudo, evidenciar que o discrímen “sexo” foi escolhido precisamente com a finalidade de atenuar os desníveis entre eles, para torná-lo válido. Em síntese, só se tem por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontre a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito.

 

(…).

 

Quem com invulgar mérito despertou a atenção de nossas letras jurídicas para a importância da finalidade na compreensão do princípio isonômico foi Celso Antonio Bandeira de Mello, em “Vantagens pessoais e vantagens de carreira” (RDP, 18:107-15, out./dez. 1971):

 

“O problema do reconhecimento das diferenciações que não podem ser feitas sem quebra do princípio da isonomia se biparte em duas questões. A primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação. A segunda reporta-se à correlação existente entre fator erigido em critério de discriminação e a disparidade estabelecida no tratamento. Esclarecendo melhor: tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada.

 

(…).

 

Como a discriminação de situações pela lei é normal (por ser esta mesma sua função), a indagação correta a propósito do problema na isonomia é: o que não pode ser discriminado sem ofensa ao princípio da igualdade? ou seja, quando não é possível à lei desigualar situações?

 

A proibição de desequiparações encontra restrição efetiva muito menos no elemento erigido como critério diferencial que no vínculo relacionador do critério assumido com a diferenciação realizada.”

 

(…).

 

Daí se conclui quão insuficiente é, na verdade, a afirmação de grande parte de nossa doutrina e jurisprudência de que o princípio da igualdade consiste em “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam”. Não que seja errada tal assertiva. É que ela é tautológica, uma vez que o cerne do problema remanesce irresolvido, qual seja, saber quem são os iguais e quem os desiguais. A igualdade e a desigualdade não residem intrinsecamente nas coisas, situações e pessoas, porquanto, em última análise, todos os entes se diferem entre si, por mínimo que seja. O que acontece é que certas diferenças são tidas por irrelevantes, segundo o critério que se tome como discrímen. Assim, por exemplo, ao se aglutinarem diversas pessoas debaixo da noção de funcionário público estão-se ignorando muitas distinções que estas efetivamente apresentam no que diz respeito, v.g., a estatura, posição econômica, cor etc.

 

(…).

 

Mais uma vez resulta claro que o problema da isonomia só pode ser resolvido a partir da consideração do binômio elemento discriminador – finalidade da norma.”

 

Também SILVA (1994, p. 211), comentando o princípio constitucional da isonomia, esclarece:

 

“(…), o princípio não pode ser entendido em sentido individualista, que não leve em conta as diferenças entre grupos. Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstratamente iguais, pois o tratamento igual (…) não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica que os “iguais” podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo legislador. Este julga, assim, como “essenciais” ou “relevantes” certos aspectos ou características das pessoas, das circunstâncias ou das situações nas quais essas pessoas se encontram, e funda sobre esses aspectos ou elementos as categorias estabelecidas pelas normas jurídicas; por conseqüência, as pessoas que apresentam os aspectos “essenciais” previstos por essas normas são consideradas encontrar-se nas “situações idênticas”, ainda que possam diferir por outros aspectos ignorados ou julgados irrelevantes pelo legislador; vale dizer que as pessoas ou situações são iguais ou desiguais de modo relativo, ou seja, sob certos aspectos. Nesse sentido, já se pronunciou, também, Seabra Fagundes, para lembrar que os “conceitos de igualdade e de desigualdade são relativos, impõem a confrontação e o contraste entre duas ou várias situações, pelo que onde uma só existe não é possível indagar de tratamento igual ou discriminatório.”

 

Portanto, é certo que o princípio constitucional da isonomia veda o tratamento discriminatório de sujeitos que se encontram em situação jurídica igual, como também veda o tratamento igualitário dos sujeitos que se encontram em situação jurídica distinta. Todavia, a igualdade ou desigualdade entre as situações jurídicas é caracterizada em função dos critérios discriminadores escolhidos,os quais, por sua vez, são definidos em atenção à finalidade jurídica correlacionada a cada uma daquelas situações consideradas. [5] É preciso verificar qual o critério discriminante adotado e para qual finalidade jurídica tal critério foi escolhido. Nesse sentido, é interessante trazer ao contexto da análise a lição de MELLO (1993, p. 134):

 

“Em decorrência do disposto no art. 5º (sic), XXX, não é admissível estabelecer discriminações por motivo de idade ou sexo para admissão em empregos, vedação esta que também se aplica aos certames para provimento de cargos públicos, dada a remissão a ele feita pelo art. 39, § 2º. É evidente, entretanto, que o que o Texto Constitucional quis interditar foi que os fatores sexo e idade fossem tomados, só por si, como causas de discriminação. Por isto mesmo não é inconstitucional estabelecer limite de idade quando o concurso destinar-se a determinados cargos ou empregos cujo desempenho requeira esforços físicos ou cause acentuados desgastes intoleráveis a partir de faixas etárias mais elevadas. O mesmo se diga, analogamente, no que atina a restrições de sexo. Podem ocorrer hipóteses em que a especifidade das funções justifique a limitação. Assim, exempli gratia, não afrontaria a Constituição proibir que pessoas do sexo masculino participassem de concurso para cargos de “polícia feminina”.

 

O consagrado MEIRELLES (1992, p. 374) compartilha do entendimento de que o princípio da isonomia não é violado se o critério discriminante estiver vinculado a uma finalidade jurídica específica que justifique a discriminação, e exemplifica:

 

“(…) se determinado cargo de datilógrafo pode ser exercido indiferentemente por pessoas do sexo feminino ou masculino, a discriminação fundada nesse atributo pessoal do candidato será indevida; entretanto, se o que a Administração deseja é uma pessoa do sexo feminino para ocupar o cargo de datilógrafo numa penitenciária de mulheres, o estabelecimento desse requisito não constituirá discriminação ilegal, uma vez que visa a atender a uma legítima conduta administrativa. Daí porque a jurisprudência tem admitido como válidas exigências que, à primeira vista, pareceriam atentatórias ao princípio da isonomia, tais como as que limitam a acessibilidade a certos cargos em razão da idade, sexo, categoria profissional, condições mínimas de capacidade física e mental e outros requisitos de adequação ao cargo. (…).”.

 

Desse modo, a legislação de proteção ao consumidor se justifica na medida em que é instrumento para realizar, tão plenamente quanto possível, o princípio da isonomia, tanto no que concerne à isonomia formal quanto à substancial. A legislação consumerista reduz ou elimina a vulnerabilidade do consumidor em face do fornecedor, no âmbito do mercado de consumo, naquelas situações em que o consumidor não poderia exercer de modo razoável e equilibrado a sua autonomia de vontade privada. Sendo assim, o princípio da isonomia permeia as normas de Direito do Consumidor e tem importantíssima função na atividade interpretativa do conteúdo daquelas normas. Entre outros argumentos, é exatamente o princípio da isonomia que explica a razão pela qual a pessoa jurídica, em certos casos, é considerada consumidora e, então, passa a merecer a proteção das leis consumeristas. É também o princípio da isonomia que justifica a inserção das entidades jurídicas despersonalizadas no âmbito do Direito do Consumidor, quer como fornecedoras, quer como consumidoras. Por fim, é ainda o princípio da isonomia que dá consistência jurídica à disciplina da conduta de fornecedores nacionais e estrangeiros em face dos consumidores de certo país, na medida em que tal princípio exige que todos esses fornecedores respeitem os direitos dos consumidores. O consumidor, em qualquer nação, tende a estar em situação de vulnerabilidade em face dos fornecedores nacionais ou estrangeiros. Logo, as normas consumeristas procuram sempre neutralizar ou reduzir essa situação de vulnerabilidade e restaurar a isonomia entre as partes das relações jurídicas de consumo. Esse fenômeno retrata coincidência teórica e finalística às leis consumeristas dos diversos países que já atingiram certo grau de maturidade nas relações de consumo.

 

 

(6) OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR

 

Em cumprimento ao mandamento constitucional contido nos artigos 5º, inciso XXXII e 170, inciso, V, da Constituição Federal brasileira, e do artigo 48 de suas Disposições Transitórias, foi editada, em 11 de setembro de 1990, a lei ordinária nº 8.078, que é o atual “Código de Proteção e Defesa do Consumidor”, ou simplesmente CDC, como será designado daqui por diante[6].

 

O artigo 1º, do CDC, assim está redigido:

 

“Art. 1º. O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e de interesse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.”

 

A Argentina, por sua vez, estabeleceu a necessidade de proteção do consumidor no artigo 42 de sua Constituição (Stiglitz, 1994), nos seguintes termos:

 

“Artículo 42. Los consumidores y usuarios de bienes y servicios tienen derecho, en la relación de consumo, a la protección de su salud, seguridad e intereses económicos; a la información adecuada y veras; a la libertad de elección y a condiciones de trato equitativo y digno.

 

Las autoridades proveerán a la protección de eses derechos, a la educación para el consumo, a la defensa de la competencia contra toda forma de distorción de los mercados, al control de los momopolios naturales y legales, al de la calidad y eficiencia de los servicios públicos, y a la constitución de asociaciones de consumidores y usuarios.

 

La legislación establecerá procedimientos eficaces para la prevención y solución de conflictos, y los marcos regulatórios de los servicios públicos de competencia nacional, previendo la necesaria participación de las asociaciones de consumidores y usuarios y de las provincias interesadas, en los organismos de control.”

 

O dispositivo constitucional argentino, por si só, já atribui à lei de proteção ao consumidor o status de lei de ordem pública, que deverá conformar-se àqueles mandamentos do artigo 42 retro transcrito. Não há possibilidade, portanto, de a lei infraconstitucional dispor em desarmonia com a norma da Carta Maior da Argentina. Por outro lado, não podem os consumidores e fornecedores proceder de modo divergente da norma constitucional ou da própria lei de proteção ao consumidor (Stiglitz, 1994). Em obediência a esse mandamento constitucional, foi então editada a lei 24.240, de 22.09.1993, que disciplina as relações jurídicas de consumo. O artigo 65 da lei dispõe:

 

“ARTÍCULO 65. – La presente ley es de orden público, rige en todo el territorio nacional (omissis)”.

 

Como se vê, tanto o artigo 1º do CDC, quanto o artigo 42 da Constituição da República Argentina têm regras semelhantes e contemplam os mesmos princípios para a proteção ao consumidor (Lorenzetti, 1997). Observa-se desde logo que os mencionados dispositivos preocuparam-se essencialmente com a situação de vulnerabilidade dos consumidores em face dos fornecedores. Por essa razão, as leis consumeristas em ambos os países são de ordem pública e de interesse social, nos termos já explicitados anteriormente. Procura-se assegurar o maior equilíbrio possível entre os interesses de consumidores e de fornecedores, de modo a realizar o princípio da isonomia conforme já comentado.

 

 

(7) RELAÇÕES JURÍDICAS DE CONSUMO E CONCEITOS DE CONSUMIDOR

 

O Direito do Consumidor disciplina apenas as relações jurídicas de consumo, isto é, tem por objeto as relações jurídicas estabelecidas entre o fornecedor de bens de consumo e o consumidor desses bens, no âmbito do mercado de consumo (Nunes, 2000). As relações jurídicas estabelecidas pelos fornecedores entre si, bem como aquelas formadas pelos consumidores entre si, continuam todas regidas pelo Direito comum, Civil ou Comercial, conforme o caso. Pode-se dizer, então, que as relações jurídicas de consumo têm três elementos essenciais, a saber (Lucca, 2000): a) um sujeito qualificado como fornecedor de bens de consumo; b) os próprios bens de consumo a serem fornecidos; e c) consumidor daqueles bens de consumo. Ausente qualquer desses elementos essenciais, não se forma uma relação jurídica de consumo e, por conseguinte, será inaplicável o Direito do Consumidor (Lorenzetti, 1997). Deve-se, pois, examinar detidamente cada um dos referidos elementos essenciais.

 

 

(7.1) CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE FORNECEDOR DE BENS DE CONSUMO

 

No CDC, o conceito de fornecedor de bens de consumo é dado pelo caput do artigo 3º, que tem esta redação:

 

“Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestações de serviços.

 

(omissis).”

 

A lei argentina de proteção ao consumidor estabelece o conceito  de fornecedor no seu artigo 2º, com os seguintes termos:

 

“ARTÍCULO 2º – Proveedores de cosas o servicios. Quedan obligados al cumplimiento de esta ley todas las personas físicas o jurídicas, de naturaleza pública o privada que, en forma profesional, aun ocasionalmente, produzcan, importen, distribuyan o comercialicen cosas o presten servicios a consumidores o usuarios. Se excluyen del ámbito de esta ley los contratos realizados entre consumidores cuyo objeto sean cosas usadas.

 

No tendrán el carácter de consumidores o usuarios quienes adquieran, almanecen, utilicen o consuman bienes o servicios para integrarlos en procesos de producción, transformación, comercialización o prestación a terceros. No están comprendidos en esta ley los servicios de profesionales liberales que requieran para su ejercicio título universitario y matrícula otorgada por colegios profesionales reconocido oficialmente o autoridad facultada para ello, pero sí la publicidad que se haga de su ofrecimiento.”

 

Ambos os conceitos legais, o brasileiro e o argentino, têm em comum o fato de serem amplos (Stiglitz, 1994). Além disso, identificam o fornecedor de bens de consumo sempre como um sujeito de direito que desenvolve uma atividade profissional, com finalidade lucrativa, relacionada à introdução de bens de consumo no mercado de consumo (Nunes, 2000). Deveras, fornecedor pode ser uma pessoa humana ou uma entidade jurídica fictícia, personificada ou não. Esse sujeito de direito, o fornecedor, ocupará um dos pólos da relação jurídica de consumo que vier a estabelecer com o consumidor, quer tal relação tenha natureza contratual ou meramente obrigacional.

 

O fornecedor exerce profissionalmente alguma atividade relacionada aos bens que são introduzidos no mercado de consumo. Essa atividade profissional pressupõe habitualidade e busca de lucratividade por parte do fornecedor (Lorenzetti, 1997). O fornecimento de bem para o mercado de consumo sem essas características de profissionalismo afasta-se do conceito legal de fornecedor (Marques, 1999). Se alguém introduzir bens no mercado de consumo com lucro, mas de maneira não habitual, não será fornecedor. Por exemplo, se alguém, sem habitualidade, vender seu automóvel usado para alguém no mercado de consumo, mesmo com vantagem financeira, não será reputado um fornecedor. De outro lado, o fato de alguém habitualmente introduzir bens no mercado de consumo, porém sem interesse comercial, igualmente descaracteriza o fornecedor de que se ocupa o Direito do Consumidor. Por exemplo, se uma entidade beneficente, habitualmente, produzir e distribuir refeições para pessoas carentes, não será considerada fornecedora.

 

A atividade profissional do fornecedor há de estar relacionada com o funcionamento do mercado de consumo (Bittar, 1990). Cuida-se aqui das atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestações de serviços. É óbvio que este elenco legal não é exaustivo. Qualquer outra atividade semelhante a estas, exercida em caráter profissional pelo fornecedor com o propósito de abastecer o mercado de consumo, pode ser suficiente para a identificação do fornecedor (Lorenzetti, 1997).

 

 

(7.2) CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DOS BENS DE CONSUMO

 

Os bens de consumo são os objetos das relações jurídicas de consumo. Os fornecedores tornam esses bens disponíveis no mercado de consumo e os consumidores os adquirem ou utilizam (Lorenzetti, 1997). Não há conceito legal de bem de consumo. Trata-se de conceito econômico que a ciência jurídica adota. No CDC, os elementos caracterizadores do bem de consumo estão nos parágrafos 1º e 2º do artigo 3º. Eis o texto da lei brasileira:

 

“Art. 3º. (omissis).

 

§ 1º Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

 

§ 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive os de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”

 

A lei argentina de proteção ao consumidor igualmente preocupou-se reunir os elementos caracterizadores do bem de consumo, conforme consta em seu artigo 1º, que tem esta redação:

 

“ARTICULO 1°.- Objeto. La presente ley tiene por objeto la defensa de los consumidores o usuarios. Se consideran consumidores o usuarios, las personas físicas o jurídicas que contratan a título oneroso para su consumo final o beneficio propio o de su grupo familiar o social:

 

a) La adquisición o locación de cosas muebles;

 

b) La prestación de servicios;

 

c) La adquisición de inmuebles nuevos destinados a vivienda, incluso los lotes de terreno adquiridos con el mismo fin, cuando la oferta sea pública y dirigida a personas indeterminadas.”

 

Os bens de consumo são de duas espécies, portanto: (a) os produtos; e (b) os serviços (Stiglitz, 1994).

 

Os produtos são bens econômicos e jurídicos introduzidos no mercado de consumo pelo fornecedor. Apesar da linguagem da lei brasileira, que se refere aos produtos como bens móveis ou imóveis, materiais ou não, é evidente que a interpretação da norma tem que ser extensiva, de modo a compatibilizá-la com as demais normas de Direito do Consumidor e de todo o ordenamento jurídico (Diniz, 1989). Como se verá mais adiante, o artigo 7º do CDC expressamente introduz no sistema normativo do Direito do Consumidor todas as demais normas do ordenamento jurídico brasileiro compatíveis com a proteção do consumidor. Por isto, as disposições do Código Civil brasileiro que classificam os bens em diferentes espécies podem perfeitamente ser invocadas para o fim de caracterizar os bens de consumo (Marques, 1999). Considerações semelhantes são cabíveis à disciplina argentina referente aos bens de consumo (Lorenzetti, 1997).

 

Os serviços também são bens de consumo, com conteúdo econômico e jurídico. Não é qualquer serviço que poderá ser caracterizado como bem de consumo. A lei argentina, por exemplo, excluiu os serviços dos profissionais liberais. A lei brasileira, por seu turno, excluiu os serviços decorrentes de relações de emprego. Mas, além dos serviços trabalhistas, estão ainda excluídos todos os demais serviços prestados sem remuneração. Por conseguinte, pela lei brasileira, somente poderá ser considerado bem de consumo o serviço prestado mediante remuneração e que não tenha natureza trabalhista (Nunes, 2000). Essa conclusão, que decorre da letra da lei, é corroborada em face do conceito de fornecedor de bem de consumo. Esse fornecedor introduz no mercado de consumo, em caráter profissional (ou seja, com habitualidade e com objetivo de lucratividade), os bens de consumo, que são os produtos e os serviços. Ora, se o serviço for prestado gratuitamente, embora de modo habitual, faltará um dos requisitos para que seja considerado bem de consumo: a remuneração, que corresponde exatamente ao objetivo profissional que o fornecedor há de ter. Alguém que preste serviço gratuitamente não é fornecedor, e esse serviço não é bem de consumo. Não se forma, então, uma relação jurídica de consumo (Grinover et al., 1997).

 

É preciso ter atenção especial para uma hipótese: pode ocorrer que um fornecedor preste ao consumidor um serviço denominado “gratuito” e, desse modo, alegue precisamente essa “gratuidade do serviço” para tentar descaracterizar uma dada relação jurídica de consumo. Tome-se um exemplo, apenas. É bastante comum que estabelecimentos comerciais (supermercados, restaurantes, farmácias, bancos, lojas, centros de compras) “ofereçam” a seus clientes “estacionamento gratuito” durante o período de permanência desses clientes naqueles estabelecimentos. Ora, de modo geral esses serviços de estacionamento nada têm de gratuitos! Seu custo já está embutido no preço de outros serviços ou produtos comercializados por aqueles fornecedores. Os consumidores pagam – e muito bem – por tais serviços de estacionamento. Exatamente porque a remuneração por esses serviços, ou seu custo para o fornecedor, está diluída no preço dos demais bens fornecidos pelo mesmo fornecedor, é evidente que mesmo os clientes que não se utilizam dos estacionamentos pagam pelo serviço. Os clientes que se utilizam do estacionamento fazem-no apenas por um tempo reduzido, mas pagam indiretamente uma fração do custo total de manutenção desses serviços “gratuitos”. Em casos como esses, a aparente gratuidade dos serviços não os desqualifica como verdadeiros bens de consumo.

 

 

 (7.3) CONCEITOS DE CONSUMIDOR

 

A conceituação do consumidor é questão tormentosa, tanto no CDC como na lei argentina de proteção ao consumidor. A dificuldade de se fazer essa conceituação precisa ser bem explicada. O Direito do Consumidor surgiu e desenvolveu-se preponderantemente na América do Norte e na Europa ocidental (Bittar, 1990). O sistema jurídico que prevalece na América do Norte é o da Common Law, de modo que teve menor influência na organização do Direito do Consumidor na América do Sul, cujas nações filiam-se, todas, ao sistema jurídico romano-germânico (Souza, 1996). A legislação européia sobre proteção do consumidor e sobre as relações jurídicas de consumo foi surgindo paulatinamente (Bougoignie, 1988). Assim, apenas para exemplificar, editava-se uma lei para regular o uso de contratos de adesão no mercado de consumo e, para esse fim, criava-se um conceito de consumidor. Editava-se outra lei para regular a atividade publicitária nos meios de comunicação de massa e, para essa finalidade, criava-se outro conceito de consumidor. Depois, fazia-se outra lei para disciplinar a responsabilidade civil dos fabricantes de produtos industrializados por danos causados aos usuários de seus produtos e, mais uma vez, criava-se ainda outro conceito de consumidor. Durante algumas décadas, foi esse o procedimento de organização do Direito do Consumidor na Europa ocidental. O Brasil buscou inspiração na legislação européia para criar e organizar o seu próprio Direito do Consumidor e, por conseguinte, precisou assimilar todos aqueles diversos conceitos de consumidor que haviam sido criados para situações muito específicas (Marques, 1999). Entretanto, ao invés de editar também leis específicas para situações específicas, o Brasil optou por fazer uma lei geral, abrangente, disciplinadora das relações jurídicas de consumo em todos os seus aspectos mais relevantes (Grinover et al., 1997). Essa lei teria estrutura substancial típica de uma codificação, estabelecendo princípios, diretrizes, regras gerais e também específicas, de natureza civil, criminal e administrativa, de maneira a criar um verdadeiro sistema de Direito do Consumidor e incorporá-lo ao ordenamento jurídico do Brasil. Introduziu nesse novo sistema elementos de muitas das normas então existentes na legislação européia de proteção ao consumidor (Grinover et al., 1997). E foi com esse projeto arrojado que sobreveio o CDC. A Argentina adotou o mesmo modelo, embora não com a mesma amplitude e organização sistemática encontrada no CDC (Lorenzetti, 1997). Em decorrência desses fatos, o CDC, bem como a lei argentina de proteção ao consumidor, precisaram utilizar conceitos diferentes de consumidor para situações também diferentes que ocorrem no mercado de consumo. Procedendo desse modo, as leis argentina e brasileira procuraram realizar, em certas circunstâncias, o princípio da isonomia no âmbito do mercado de consumo. O CDC apresenta quatro diferentes conceitos de consumidor. A lei argentina, três (Stiglitz, 1994). Esses conceitos devem ser analisados.

 

 

(7.3.1) CONCEITO GERAL DE CONSUMIDOR NO CDC

 

O CDC criou um conceito geral de consumidor e mais três conceitos de consumidor por equiparação. Isto quer dizer que há três situações jurídicas descritas no CDC em que os sujeitos protegidos não são verdadeiramente consumidores, porém, para certos fins, são tratados como se fossem consumidores, vale dizer, recebem a mesma proteção legal que seria dada a um consumidor que estivesse na mesma situação jurídica em que tais sujeitos se encontram (Mukai et al., 1991). Portanto, os efeitos da equiparação não são universais. Os consumidores por equiparação somente são tratados como consumidores, por ficção legal, nas situações e casos específicos indicados pelo CDC. É claro que, se a equiparação tivesse efeitos universais, não teria o menor sentido o CDC criar quatro conceitos distintos de consumidor (Almeida, 1993).

 

O conceito geral de consumidor está estampado no caput do artigo 2º, do CDC, nestes termos:

 

“Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

 

“(omissis).”

 

A pessoa humana é, por natureza, consumidora. Entretanto, para os fins do Direito do Consumidor, para que a pessoa humana seja considerada consumidora é necessário que adquira ou utilize o bem de consumo como destinatária final. Isto quer dizer que esse consumidor final retira o bem de consumo da cadeia de distribuição e de circulação de bens existente no mercado de consumo para usá-lo privativamente, ou no interior de pequena coletividade (Nascimento, 1991).

 

Com relação à “pessoa jurídica”, isto é, às entidades jurídicas fictícias, várias observações precisam ser feitas. O artigo 2º do CDC diz que o consumidor é o adquirente ou usuário final do bem de consumo. Pois bem. De modo geral, as entidades jurídicas fictícias não adquirem os bens de consumo para seu uso próprio e tão pouco se apresentam como usuárias finais desses bens. O normal é que as entidades jurídicas fictícias adquiram ou utilizem bens como “insumos”, ou seja, como bens que serão empregados na sua atividade empresarial e que, após serem transformados ou incorporados a outros bens, serão reintroduzidos na cadeia de produção, distribuição e circulação existente no mercado de produção e consumo massificados. Nessas situações em que entidades jurídicas fictícias realmente adquirem bens como insumos (pois sem esses bens não conseguiriam cumprir seus respectivos objetivos), é claro que não podem então ser qualificadas como consumidoras, já que não são as adquirentes ou usuárias finais dos bens em questão (Marques, 1999). Não obstante isto, a lei diz que há situações em que as pessoas jurídicas podem ser consumidoras. Em que hipóteses, então, essas entidades seriam adquirentes ou usuárias finais dos bens de consumo? O problema merece muita reflexão e não é neste breve estudo que se vai resolvê-lo. Todavia, algumas observações podem ser feitas.

 

Há casos em que as pessoas jurídicas adquirem ou utilizam bens que não são essenciais para a consecução de seus respectivos objetivos. Poderiam prescindir desses bens e nem por isto seriam prejudicadas. Ao adquirirem ou usarem os referidos bens, fazem-no com o propósito de retirá-los do mercado de consumo, interrompendo a circulação deles nesse ambiente. Desse modo, tornaram-se adquirentes ou usuárias finais de bens de consumo e, por conseguinte, devem ser tratadas como consumidoras (Marques, 1999). Não se pode ignorar que a lei brasileira refere-se a “pessoa jurídica” como consumidora, na medida em que tal entidade adquira ou utilize, como destinatária final, um bem de consumo. Acrescente-se a esses argumentos um outro. Com apoio no sistema de Direito do Consumidor e também no princípio constitucional da isonomia, é preciso ressaltar que um dos principais fundamentos que justificam a proteção do consumidor é, precisamente, sua vulnerabilidade em face do fornecedor no âmbito do mercado de consumo. As normas componentes desse sistema de Direito do Consumidor gravitam em torno da situação de vulnerabilidade do consumidor e do princípio da isonomia, conforme já examinado neste estudo. Há uma presunção legal absoluta, que não admite prova em contrário, no sentido de que a pessoa humana consumidora é sempre vulnerável diante do fornecedor nas relações de consumo (Grinover et al., 1997). A entidade jurídica fictícia, por seu turno, presumidamente não é vulnerável em suas relações no mercado de consumo, mas pode produzir prova de sua vulnerabilidade circunstancial diante de certo fornecedor. Nesse último caso, se for provado que a entidade fictícia é vulnerável em suas relações no mercado de consumo, então deverá ser protegida como consumidora (Marques, 1999). Imagine-se uma pequena empresa de contabilidade que, para realizar sua atividade, tenha adquirido um único computador da IBM e alguns poucos programas da Microsoft. Esses bens, na verdade, são insumos necessários à prestação dos serviços de contabilidade. Contudo, a pequena empresa os adquiriu para uso próprio, sem intenção de reintroduzi-los no mercado de consumo, até porque rapidamente ficarão obsoletos. O computador não funciona bem e os programas apresentam defeitos. Essa pequena empresa teria tido condições técnicas, econômicas, jurídicas para negociar em igualdade de condições com a IBM e com a Microsoft quando adquiriu os bens? Essa empresa de contabilidade não seria visivelmente vulnerável em face dos fornecedores apontados? Se exatamente os mesmos bens houvessem sido adquiridos por uma pessoa física, e se apresentassem os mesmos vícios e defeitos, essa pessoa física não mereceria a proteção das leis consumeristas? A empresa de contabilidade não é um sujeito de direito exposto às práticas existentes no mercado de consumo? Onde estaria o critério discricionário justo e legítimo que permitiria, no âmbito do Direito do Consumidor, dar tratamentos diferentes à pessoa física e à pequena empresa de contabilidade? Parece que, com base na prova de vulnerabilidade da empresa contábil, seria justíssimo que ela merecesse a proteção como consumidora. A situação seria completamente diferente se, por exemplo, aqueles bens houvessem sido adquiridos por uma empresa de desenvolvimento e prestação de serviços de redes de informática. Essa empresa teria todas as condições técnicas e, talvez, também econômicas e jurídicas para negociar em condições razoáveis com a IBM e com a Microsoft.

 

Nessas circunstâncias, para que uma entidade abstrata, personificada ou não, seja considerada consumidora é preciso, em primeiro lugar, que seja adquirente ou usuária de bem de consumo (e não de insumo), como destinatária final, de tal maneira que retire o aludido bem da cadeia de produção, distribuição e circulação existente no mercado de produção e consumo massificados. Além disso, é ainda preciso que essa pessoa jurídica seja reconhecida como vulnerável em certa situação jurídica em face do fornecedor do bem. Ora, se a referida entidade abstrata adquire ou utiliza, como destinatária final, um bem de consumo e se, além disso, encontra-se em situação de vulnerabilidade diante do fornecedor daquele bem no mercado de consumo, não há razão jurídica para negar-lhe a proteção do Direito do Consumidor. Proceder de modo diverso significaria lançar por terra não só o princípio da isonomia, como também os demais princípios que regem o Direito do Consumidor.

 

Há, ainda, outras ponderações importantes a fazer. A denominação “pessoa jurídica” tem significado técnico específico e identifica uma entidade jurídica fictícia dotada de personalidade jurídica própria (Ruggiero, 1999). Mas há outras entidades jurídicas fictícias que não são dotadas de personalidade jurídica e que, contudo, adquirem ou utilizam, como destinatárias finais, bens de consumo. Imagine-se, por exemplo, a massa falida, a massa insolvente civil, o espólio, o condomínio regido pela lei 4.591/64, os condomínios organizados em forma de fundos de investimento, os fundos de pensão (Pereira, 1989). Todas essas entidades adquirem produtos e serviços no mercado de consumo ou são usuárias desses bens (Marques, 1999). Estariam elas excluídas do conceito geral de consumidor, em razão da expressão técnica “pessoa jurídica” usada pela lei brasileira? Não parece ser razoável uma resposta negativa. Ora, se uma pessoa jurídica, que é em essência um sujeito de direito, pode ser considerada consumidora, porque outros sujeitos de direito – que se encontram na mesma situação jurídica – não poderiam ser também consumidores? Lendo-se o CDC inteiro (e também a lei argentina de proteção ao consumidor), não se encontra um só dispositivo que justifique tratamento desigual para as entidades jurídicas fictícias personalizadas em comparação com as despersonalizadas. Ao que tudo indica, a linguagem do artigo 2º do CDC utilizou a palavra “pessoa” porque ela é mais comum do que a expressão “sujeito de direito”. Ora, no contexto do dispositivo e do próprio CDC, seria muito mais lógico usar-se a expressão “sujeito de direito”. Adotando-se também uma interpretação sistemática, relacionando o artigo 2º do CDC com todo o sistema normativo brasileiro, especialmente com a Constituição Federal, conforme recomenda DINIZ (1987 e 1989), chega-se à conclusão de que é possível considerar consumidoras quaisquer entidades jurídicas fictícias que sejam adquirentes ou usuárias finais de bens de consumo e que sejam vulneráveis em face do fornecedor. A não ser assim, ter-se-á que reconhecer a inconstitucionalidade parcial do aludido artigo 2º, naquilo em que ele discrimina, sem justo motivo, as entidades jurídicas fictícias personalizadas em comparação com as despersonalizadas.

 

 (7.3.2) CONCEITOS DE CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO NO CDC

 

Como foi mencionado antes, o CDC criou três conceitos de consumidor por equiparação. Em todos os três casos, observa-se que a equiparação fundamenta-se no princípio da isonomia. A lei estabelece critérios jurídicos a partir dos quais define a igualdade ou a desigualdade entre determinadas situações jurídicas relacionadas a fins específicos. A seguir, a lei realiza o princípio da isonomia, concedendo proteção jurídica a sujeitos que, embora não sendo rigorosamente consumidores, estão na mesma situação jurídica em que estaria o consumidor. Mais uma vez é importante ressaltar que essas equiparações não são universais, isto é, são equiparações feitas pela lei em situação específica e para fins restritos.

 

 O primeiro deles encontra-se no parágrafo único do artigo 2º, que assim se lê:

 

“Art. 2º (omissis).

 

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.”

 

A relação jurídica de consumo tem no mínimo duas partes: o fornecedor de bens de consumo e o consumidor desses bens, que normalmente os adquire ou usa como destinatário final. Quem não é parte na relação de consumo é terceiro e, a rigor, não seria consumidor. Ocorre que o artigo aqui analisado foi sensível à realidade do mercado de consumo. De fato, há sujeitos que não são partes na relação de consumo, mas nela intervêm para fruir certo bem (Nascimento, 1991). Esses sujeitos podem ser considerados individual ou coletivamente. Nesse último caso, os integrantes da coletividade podem ser determináveis ou não, sem que isto afete negativamente seu direito à proteção como consumidores. O fundamento ético dessa norma legal é, mais uma vez, o princípio da isonomia. Os referidos sujeitos não são consumidores porque não adquiriram os bens de consumo e nem utilizam esses bens como destinatários finais. Todavia, esses sujeitos comportam-se em relação aos bens de consumo como se fossem verdadeiros consumidores, como se os tivessem realmente adquirido como destinatários finais. Por esses motivos, esses intervenientes em relação jurídica de consumo alheia devem ser tratados como se fossem consumidores (Mukai et al., 1991). Veja-se um exemplo. Um casal organiza sua festa de matrimônio, contratando para esse fim o fornecimento de diversos produtos e serviços. Aluga-se o imóvel em que a festa ocorrerá, contrata-se o fornecimento da decoração, da comida, das bebidas, dos músicos, dos manobristas de estacionamento de veículos, de pessoal de apoio e tudo o mais de praxe. As relações jurídicas de consumo foram estabelecidas entre o casal e cada um dos fornecedores de bens necessários à festa. Os convidados para a festa de matrimônio não são partes naquelas relações jurídicas, mas intervêm em todas elas. Usam o imóvel locado, apreciam a decoração do salão, comem, bebem, ouvem música e dançam, deixam seus veículos com os manobristas que os estacionarão em local próprio, utilizam-se dos serviços dos garçons, dos seguranças e, enfim, de tudo que o evento festivo lhes proporciona. No que concerne ao modo de fruição de todos esses bens de consumo, não há diferença entre eles e os verdadeiros consumidores (o casal de noivos). Dada a igualdade da situação em que se encontram (a de fruir os bens de consumo), não há razão para não conceder a eles a mesma proteção que é concedida ao casal consumidor.

 

Outro conceito de consumidor por equiparação encontra-se no artigo 17, do CDC. Eis o texto do dispositivo:

 

“Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.”

 

A Seção a que se refere o artigo 17 é a de número II, do Capítulo IV, do CDC. A Seção II trata da responsabilidade civil do fornecedor pelo fato danoso provocado por defeito do produto ou do serviço, causador de prejuízos ao consumidor, reparáveis por meio de indenização pecuniária. O artigo 17 equipara ao consumidor qualquer pessoa que seja vítima de um acidente de consumo. A hipótese do artigo 17 é muito interessante. A vítima do evento danoso não é a consumidora nos termos do conceito geral de consumidor (não é adquirente ou usuário final do bem de consumo). Não há exigência de que a vítima do acidente de consumo seja um interveniente em relação de consumo alheia (não se trata, portanto, da hipótese prevista no artigo 2º, parágrafo único, do CDC). A vítima do acidente de consumo é equiparada ao consumidor porque está na mesma situação jurídica em que o consumidor estaria se tivesse, ele próprio, sofrido a lesão. Deveras, se o consumidor verdadeiro sofrer um acidente de consumo, terá direito a ser indenizado. Por outro lado, se um interveniente numa relação de consumo sofresse o mesmo acidente de consumo, seria indenizado porque interveio naquela relação e foi por isto equiparado ao consumidor. Nesses dois casos, as vítimas tinham a legítima expectativa de consumo seguro e isento de riscos para a vida, saúde, segurança e patrimônio. Ora, se o fornecedor tinha que cumprir esses deveres e obrigações em face do consumidor, porque estaria isento de cumpri-los em face de terceiros? O artigo 17 do CDC, então, colocou a vítima do acidente de consumo na mesma situação em que estaria o consumidor verdadeiro. O fornecedor passou a ter em relação a ambos (o consumidor e a vítima do acidente) os mesmos deveres e obrigações concernentes à segurança e aos riscos dos produtos e serviços que introduz no mercado (Nunes, 2000). Por exemplo, o fabricante de bebidas tem o dever de desenvolver um vasilhame seguro e sem riscos, ou com riscos controlados, a fim de evitar danos ao consumidor. Um sujeito adquire num bar uma garrafa dessa bebida. Formam-se relações jurídicas de consumo entre o consumidor, o dono do bar e o fabricante da bebida. No balcão em que a bebida é servida, está sentado ao lado desse consumidor um outro sujeito. No instante em que a garrafa de bebida está sendo aberta, a pressão do gás a faz explodir e um dos estilhaços de vidro fere a pessoa que estava ao lado do verdadeiro consumidor. Ora, para os fins do artigo 17 do CDC, é indiferente que a pessoa ferida não seja o verdadeiro consumidor. A regra da lei considera de modo peremptório que o fabricante da bebida descumpriu sua obrigação de segurança e esta conduta foi a causa do dano. Se o estilhaço tivesse ferido o consumidor, a indenização seria devida. Como feriu terceiro, este é equiparado ao consumidor para receber a mesma proteção que o verdadeiro consumidor teria recebido. O artigo 17 realiza, então, o princípio da isonomia.

 

Finalmente, o último conceito de consumidor por equiparação contido no CDC está no seu artigo 29, cuja redação é a que segue:

 

“Art. 29 Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.”

 

O artigo 29 do CDC refere-se aos Capítulos V e VI do Código. O Capítulo V disciplina as práticas comerciais que se ocorrem no mercado de consumo. Nesse Capítulo do CDC encontram-se as normas referentes à oferta e às informações a serem fornecidas aos consumidores; as regras específicas sobre a atividade publicitária no mercado de consumo; as disposições repressoras das práticas comerciais abusivas contra os consumidores; as normas sobre os procedimentos inidôneos de cobrança de dívida dos consumidores; o regramento básico sobre a constituição e funcionamento dos bancos de dados de consumidores. Já o Capítulo VI do CDC contém as normas de proteção contratual dos consumidores, inclusive no que concerne aos contratos de adesão; apresenta um elenco exemplificativo de cláusulas contratuais que são consideradas pela lei como objetivamente abusivas e prejudiciais aos consumidores.

 

Pois bem. O artigo 29 do CDC apresenta o conceito mais amplo de consumidor por equiparação. O consumidor verdadeiro, conforme conceituado no caput do artigo 2º do CDC, expõe-se às práticas do mercado de consumo referidas pelo artigo 29 do mesmo Código. Assim, se os direitos do consumidor viessem a ser violados pelos fornecedores, tal consumidor poderia invocar a proteção legal a que se refere aquele artigo 29. Observe-se, porém, que não só os consumidores propriamente ditos estão expostos às praticas comerciais aqui consideradas (Filomeno, 1991). Veja-se alguns exemplos.

 

Ao ser veiculada uma mensagem publicitária na televisão, é impossível para o fornecedor segregar os destinatários da publicidade: esta atingirá consumidores e não consumidores dos produtos ou serviços anunciados (Pasqualotto, 1997).

 

O fornecedor está proibido de introduzir no mercado de consumo bens perigosos e, se assim proceder, estará obrigado a dar ampla notícia sobre a periculosidade daqueles bens. Essa obrigação de informar abrange consumidores e não consumidores dos produtos e serviços que o mencionado fornecedor introduzir no mercado de consumo. Do mesmo modo, o fornecedor é obrigado a informar os riscos que seus produtos e serviços oferecem e, ainda, é obrigado a fornecer instruções de uso correto e seguro desses bens. Esses deveres e obrigações precisam ser cumpridos, indistintamente, em face de consumidores e não consumidores (Campos, 1996).

 

Os bancos de dados de consumidores são alimentados por informações fornecidas, preponderantemente, pelos diversos fornecedores que atuam no mercado de consumo. Pode ocorrer que certos consumidores mantenham relações jurídicas de consumo com alguns fornecedores, mas não com outros tantos. Apesar disto, o fornecedor que dispõe dos dados de seus consumidores pode, abusivamente ou não, fornecer tais dados a outros fornecedores sem o consentimento de cada consumidor interessado. Por essas razões, um consumidor que não tem relação de consumo com determinado fornecedor pode ver-se exposto a essa situação em que seus dados e informações são revelados.

 

Em decorrência de casos como os exemplificados, o artigo 29 preferiu equiparar ao consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, que estejam expostas às práticas existentes no mercado de consumo (Nunes, 2000). O dispositivo, por conseguinte, concede a esses sujeitos a proteção do Direito do Consumidor independentemente do fato de cada um deles ter ou não uma relação jurídica de consumo já estabelecida com certo fornecedor. Mais que isto, a dita proteção é outorgada mesmo que o sujeito protegido nem mesmo venha a estabelecer a relação de consumo com qualquer fornecedor (Marques, 1999). Enfim, para que haja a equiparação de que trata o artigo 29 do CDC, basta que o sujeito esteja exposto à atividade dos fornecedores no mercado de consumo (Grinover et al., 1997). A lei define determinados critérios para estabelecer pontos de identidade entre as situações jurídicas em que estão o consumidor e o sujeito equiparado ao consumidor. Definidos os parâmetros de identificação dessas situações jurídicas, a lei realiza o princípio da isonomia, concedendo proteção a quem não é consumidor, porém encontra-se em situação jurídica que a lei considera igual à situação em que estaria o próprio consumidor.

 

Esse sistema de equiparação de certos sujeitos à figura do consumidor tem o mérito de conceder a proteção do Direito do Consumidor para todos aqueles que, direta ou indiretamente, interagem com os fornecedores em certas situações que a lei, com critérios por ela definidos, considera iguais às situações em que o consumidor estaria. Os fornecedores, por seu turno, precisam ser conscientes, responsáveis, diligentes, e prudentes de modo constante, cumprindo seus deveres e obrigações com probidade. Sabem que se esses deveres ou obrigações forem ignorados, estarão sujeitos a graves sanções civis, criminais e administrativas. Além disto, sabem também que a proteção dos consumidores existe nos planos individual, coletivo e difuso (Alvim et al., 1991). Dessa maneira, a violação de qualquer dever ou obrigação do fornecedor poderá acarretar para ele, por exemplo, a obrigação de indenizar o consumidor individual, a coletividade de consumidores ou mesmo os grupos de consumidores titulares de interesses difusos. Acrescente-se a isto a possibilidade de se impor aos fornecedores relapsos pesadas multas e outras sanções administrativas, bem como as punições criminais.

 

Examinados os conceitos de consumidor existentes no CDC, cabe agora verificar os que existem na lei argentina de proteção ao consumidor. Ver-se-á que eles, na essência, correspondem aos da lei brasileira.

 

 

(7.4) CONCEITOS DE CONSUMIDOR NA LEI ARGENTINA

 

(7.4.1) CONCEITO GERAL DE CONSUMIDOR

 

Os artigos 1º e 2º da lei argentina fornecem o conceito geral de consumidor nos termos que seguem:

 

“ARTICULO 1°.- Objeto. La presente ley tiene por objeto la defensa de los consumidores o usuarios. Se consideran consumidores o usuarios, las personas físicas o jurídicas que contratan a título oneroso para su consumo final o beneficio propio o de su grupo familiar o social:

 

a) La adquisición o locación de cosas muebles;

b) La prestación de servicios;

c) La adquisición de inmuebles nuevos destinados a vivienda, incluso los lotes de terreno adquiridos con el mismo fin, cuando la oferta sea pública y dirigida a personas indeterminadas.

 

ARTICULO 2°.- (omissis).

 

No tendrán el carácter de consumidores o usuarios quienes adquieran, almacenen, utilicen o consuman bienes o servicios para integrarlos en procesos de producción, transformación, comercialización o prestación a terceros. No están comprendidos en esta ley los servicios de profesionales liberales que requieran para su ejercicio título universitario y matrícula otorgada por colegios profesionales reconocidos oficialmente o autoridad facultada para ello, pero sí la publicidad que se haga de su ofrecimiento.”

 

Da disposição legal decorrem imediatamente dois conceitos: o de consumidor geral e o de grupo de pessoas que intervêm em relação de consumo alheia (Stiglitz, 1994). É o mesmo modelo da lei brasileira. Também para a lei argentina o consumidor é um sujeito de direito (pessoa humana ou entidade jurídica fictícia). É consumidor quem adquire a título oneroso o bem de consumo para uso próprio, retirando-o, portanto, da cadeia de distribuição e de circulação de bens do mercado de consumo. Em suma: é consumidor o adquirente ou usuário final do bem de consumo (Lorenzetti, 1997). Quem adquirir o bem como insumo não é reputado consumidor. Esse conceito da lei argentina corresponde ao conceito geral de consumidor adotado pelo CDC no Brasil.

 

 

(7.4.2) CONCEITOS DE CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO

 

A leitura do caput do artigo 1º da lei argentina de proteção ao consumidor permite, como foi dito, a construção de outro conceito: o de consumidor por equiparação. Quando a lei diz que considera “consumidor” o “grupo familiar ou social” que utiliza como destinatário final o bem de consumo, está obviamente se referindo a sujeitos que não são os adquirentes daquele bem, mas que intervieram em relação jurídica de consumo celebrada por outro sujeito que é consumidor e ao qual o grupo está vinculado (Stiglitz, 1994). Deveras, se o grupo, por si mesmo, for o adquirente do bem de consumo, será considerado consumidor nos termos do conceito legal geral de consumidor. Inversamente, quando o grupo não adquire, por si mesmo, o bem de consumo, não deveria ser considerado como consumidor. No entanto, tendo em vista que o referido grupo: (1º) relaciona-se com alguém que é verdadeiramente um consumidor; e (2º) é interveniente em relação jurídica de consumo estabelecida por aquele consumidor; a lei argentina cuidou de equiparar o grupo familiar ou social ao consumidor, como se de fato os elementos desse grupo tivessem estabelecido as aludidas relações de consumo (Lorenzetti, 1997). Esse conceito de consumidor por equiparação, estabelecido no caput do artigo 1º da lei argentina corresponde, visivelmente, ao conceito de consumidor por equiparação de que trata o artigo 2º, parágrafo único, do CDC (Stiglitz, 1994).

 

Por fim, o artigo 7º da lei argentina de proteção ao consumidor cria mais um conceito de consumidor por equiparação, como segue:

 

“ARTICULO 7°.- Oferta. La oferta dirigida a consumidores potenciales indeterminados, obliga a quien la emite durante el tiempo en que se realice, debiendo contener la fecha precisa de comienzo y de finalización, como así también sus modalidades, condiciones o limitaciones.

 

(omissis).”

 

O dispositivo refere-se a “consumidores potenciais indeterminados”, ou seja, a pessoas que não são consumidoras, mas que são tratadas como se fossem para aqueles fins específicos referidos na lei argentina de proteção ao consumidor (Lorenzetti, 1997). Essa regra legal corresponde, então, ao artigo 29 do CDC, que também equiparou ao consumidor todos os sujeitos que estiverem expostos às práticas existentes no mercado de consumo. Observe-se, porém, que a lei argentina refere-se a pessoas que sejam potenciais consumidoras, vale dizer, que possam ser adquirentes ou usuárias finais de bens de consumo (Sozzo, 1996). O conceito não abrange as entidades que adquiram ou utilizem os bens como insumos  (Stiglitz, 1994).

 

(8) CONCLUSÕES

 

O Direito do Consumidor surgiu e se desenvolveu num contexto jurídico, econômico, social e político bastante específico, no qual o consumidor se encontrava em situação de séria vulnerabilidade em face do fornecedor. Essa vulnerabilidade do consumidor impedia que ele exercesse com plenitude sua autonomia de vontade privada nas suas relações de consumo. Essa situação frustrava a realização do princípio da isonomia entre os consumidores e fornecedores no âmbito do mercado de consumo. A legislação consumerista surge, então, como instrumento de intervenção estatal destinado a restaurar o equilíbrio de interesses dos agentes no mercado de consumo. Essa legislação, de ordem pública e de interesse social, pretende eliminar ou reduzir a vulnerabilidade dos consumidores em face dos fornecedores. As normas do Direito do Consumidor asseguram que as relações de consumo sejam estabelecidas de acordo com o princípio da isonomia. Trata-se diferentemente sujeitos que se encontram em situações jurídicas distintas, em função de certas finalidades jurídicas. Nesse contexto, as normas do Direito do Consumidor protegem os sujeitos de direito que, na qualidade de consumidores, ou que na condição de sujeitos legalmente equiparados aos consumidores, estão em situação de vulnerabilidade em face dos fornecedores. A estes últimos a lei impõe deveres e obrigações que não podem ser afastados nem mesmo com a concordância dos consumidores. A realização do princípio da isonomia permeia, assim, o conteúdo das normas de Direito do Consumidor.

 

Por essas razões, pode-se dizer que, nos seus aspectos estruturais e essenciais, as leis argentina e brasileira de proteção ao consumidor surgiram em decorrência do mesmo contexto evolutivo do mercado de consumo. Adotam os mesmos princípios e coincidem em vários dos critérios necessários à caracterização das relações jurídicas de consumo. Em especial, as duas leis comentadas coincidem bastante com relação aos conceitos de fornecedor e de consumidor, e ao indicarem os critérios a partir dos quais se pode classificar o bem como bem de consumo ou como insumo. Tudo isto possibilita que as normas mencionadas sejam interpretadas e aplicadas de modo razoavelmente uniforme no Brasil e na Argentina, sempre com atenção ao princípio da isonomia. Fornecedores brasileiros que introduzam bens de consumo no mercado argentino estarão sujeitos a normas semelhantes às que encontram no Brasil. Por outro lado, os fornecedores argentinos que fornecem bens de consumo no mercado brasileiro também estarão sujeitos a leis consumeristas bastante parecidas com as vigentes na Argentina.

 

Em síntese, as leis argentina e brasileira de proteção ao consumidor inserem-se no contexto evolutivo do mercado de consumo organizado pelas nações hegemônicas ocidentais. É natural, portanto, que a legislação dos países abrangidos por esse processo evolutivo adote os mesmos princípios e diretrizes para a disciplina do mercado de consumo. Esse fenômeno é facilmente observável em relação aos dispositivos das leis argentina e brasileira de proteção ao consumidor que estabelecem os elementos caracterizadores da relação jurídica de consumo. A uniformidade de conceitos possibilita que as relações de consumo entre fornecedores de um desses países e consumidores do outro país sejam estabelecidas de modo seguro, de acordo com os mesmos paradigmas e princípios do Direito do Consumidor. Nesse sentido, o princípio da isonomia é fundamental para dar estabilidade às relações jurídicas de consumo e, em especial, para permitir a correta identificação dos sujeitos merecedores da proteção especial concedida pelo Direito do Consumidor.

 

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[1] O Programa de Integração da América Latina – PROLAM é um curso de pós-graduação multidisciplinar em Mestrado e Doutorado, oferecido pela USP, e que tem por objetivo a realização de estudos e pesquisas voltados para a integração da América Latina.

 

[2] Dissertação de mestrado apresentada no PROLAM-USP em maio/2001 com o título “Análise comparativa da legislação argentina e brasileira de proteção ao consumidor contra publicidade enganosa e abusiva no contexto cultural desses países”.

 

[3] Esse tema foi desenvolvido em nossa obra “Análise comparativa da legislação argentina e brasileira de proteção ao consumidor contra publicidade enganosa e abusiva no contexto cultural desses países”.

 

 

[4] Em nossa obra “Análise comparativa da legislação argentina e brasileira de proteção ao consumidor contra publicidade enganosa e abusiva no contexto cultural desses países” foi realizado um estudo comparativo razoavelmente abrangente dos principais dispositivos da lei argentina de proteção ao consumidor e do CDC.

 

[5] Ferreira Filho, Manoel Gonçalves, in “Comentários à Constituição Brasileira de 1.988”, São Paulo, Ed. Saraiva, 1990, 1.v, p. 27, diz que “O imperativo do tratamento desigual dos que estão em situação desigual na medida em que se desigualam impõe, por exemplo, ao legislador o estabelecimento de leis especiais, que protejam determinadas categorias. Para isto, editam-se leis destinadas a amparar os economicamente fracos: os trabalhadores; os mal alojados; os inquilinos, e assim por diante. Ocorre, porém, que a apreciação dessas desigualdades que devem ser compensadas ou reparadas é sujeita a critérios políticos. (…). O legislador há de estabelecer tratamento desigual para situações desiguais, mas, se tratar desigualmente situações que não são desiguais, o que sucede quando beneficia desarrazoadamente determinadas categorias, incide em inconstitucionalidade.” No mesmo sentido Pinto Ferreira, in “Comentários à Constituição Brasileira, Ed. Saraiva, 1989, 1.v., p. 62, quando esclarece: “Não se trata evidentemente de igualdade absoluta, nem de igualdade econômica, conduzindo ao nivelamento social. Balladore Pallieri salienta que o princípio não obriga a tratar igualmente situações de fatos desiguais, proibindo apenas o arbítrio diante de diferenciações fundamentadas em qualidades pessoais do indivíduo, tais como raça, riqueza, sexo, profissão, classe etc. A igualdade deve ser proporcional. A cláusula que fundamenta o princípio da igualdade tem sentido específico: ’O que o princípio da isonomia propõe é o tratamento igual aos realmente iguais, igualdade real e não nominal, igualdade integral e não incidental ou particular’ (decisão do TJSP, RT 411:182).”

 

[6] Formalmente, o CDC é uma lei ordinária, pois o processo legislativo adotado para sua elaboração foi o correspondente ao de lei ordinária. Para que, do ponto de vista formal, o CDC fosse verdadeiramente um Código, teria sido imprescindível a obediência ao processo legislativo reservado à elaboração de Código legal. Os Códigos legais, em geral, envolvem maior e mais profunda reflexão legislativa, já que essa categoria de normas jurídicas, de modo preponderante, incorpora princípios jurídicos, regras e institutos de maior relevo social. Logo, considerado apenas o aspecto formal de elaboração legislativa, o CDC não é um Código. Todavia, do ponto de vista substancial, o CDC organizou um sistema normativo de extrema importância no que concerne à disciplina das relações jurídicas de consumo. O CDC contém princípios, institutos, diretrizes e normas essenciais ao desenvolvimento harmônico das relações de consumo (Grinover et al., 1997). Por isto, substancialmente, o CDC é um Código legal e representa, sem dúvida, importantíssimo sistema jurídico dentro do ordenamento jurídico brasileiro. O CDC é lei de ordem pública e de interesse social. Isto significa dizer que suas disposições não podem ser contrariadas nem mesmo se os agentes que atuam no mercado de consumo estiverem de acordo com tal contrariedade (Almeida, 1993).