Energia e desenvolvimento na nova ordem mundial

Prof. Dr. Renato Seixas

É possível tratar da regulação jurídica de questões energéticas e ambientais a partir de múltiplas perspectivas. Pode-se, por exemplo, elencar as principais normas sobre o tema, nacionais e internacionais, e analisá-las de modo sistêmico. Obtém-se, assim, razoável compreensão dos marcos jurídicos regulatórios sobre a matéria ambiental. Ocorre que, tradicionalmente, o Direito é ciência que pretende ser auto-suficiente. As análises jurídicas evitam o mais possível trabalhar com as chamadas questões meta-jurídicas (KELSEN, 2006). Estas passariam a ter relevância na exata medida em que fossem contempladas pelas próprias normas jurídicas, caso em que, é óbvio, deixariam de ser meta-jurídicas (REALE, 2002). Acontece que a fase contemporânea da globalização apresenta fenômenos multidimensionais e interdependentes. Não importa se o olhar do estudioso ou do simples observador se fixa numa sociedade complexa e pós-moderna, ou numa sociedade tradicional e ainda não industrializada. Os fenômenos globais transcendem fronteiras, desafiam sistemas políticos, confrontam normas da vida social em geral e normas de Direito, em especial. O Direito nacional e o Direito Internacional não conseguem mais regular de modo suficiente as principais questões multidimensionais inerentes à fase atual da globalização. O paradigma da auto-suficiência científica do Direito é resultado da própria concepção fragmentalista da ciência que predomina na cultura ocidental desde meados do século XVI. Como se sabe, qualquer modelo teórico é uma simplificação da realidade, que é riquíssima. Nenhum paradigma consegue apreender e explicar todos os fenômenos da realidade-objeto do estudo científico. O modelo teórico escolher com critérios próprios os fatos essenciais da realidade que quer sintetizar e compreender. Os fenômenos que escapam ao paradigma são chamados anomalias, ou seja, são fatos que não correspondem à síntese analítica e compreensiva daquele modelo teórico específico. Nem por isto as anomalias invalidam o paradigma adotado. Na verdade, confirmam a eficiência geral do paradigma e evidenciam que há exceções que o modelo não consegue explicar, justificar e compreender. O estudioso precisa comparar os diversos paradigmas e verificar, então, qual dos deles permite compreender mais e melhor o fenômeno da realidade que quer estudar (HUNTINGTON, 1997). Noutras palavras, o estudioso precisa identificar qual dos modelos teóricos possíveis apresenta menor número de anomalias. O modelo teórico que for mais compreensivo (aspecto quantitativo dos fenômenos estudados) e justificar melhor (aspecto qualitativo, no sentido de haver o menor número possível de anomalias) há de ser considerado o mais eficiente, até que surja outro paradigma que o supere nos dois aspectos apontados. Há, portanto, evidente crise de paradigma na ciência do Direito. É imprescindível que o Direito intensifique seu diálogo com outras ciências, adotando perspectiva multi, inter e transdiciplinar, sem o que não lhe será possível compreender os fenômenos da realidade que pretende regular (MORIN, 2005).
Nesse contexto, ao invés de elencar e analisar de modo sistêmico as normas jurídicas que contêm marcos regulatórios para a geração de energia e proteção ambiental (o que, aliás, já foi feito por estudiosos brilhantes), este artigo tem por objetivo refletir de modo mais amplo a respeito da reorganização dinâmica da sociedade internacional na fase contemporânea da globalização e, assim, compreender como múltiplos fenômenos se entrelaçam e confluem para estruturar a regulação (não apenas jurídicos) que orienta a produção de energia e o desenvolvimento com sustentabilidade ambiental.

Na Terra dos contrastes: produção, consumo, migrações e desequilíbrio ambiental
A evolução tecnológica da humanidade é antiga e complexa. Para os fins deste artigo, será suficiente resgatar alguns aspectos dessa evolução a partir da primeira revolução industrial, situada em meados do século XVIII.
O planeta Terra tem aproximadamente 500 milhões de km², dos quais cerca de 350 milhões de km² são ocupados por mares e oceanos. Remanescem 150 milhões de km² de terras emersas e em grande parte delas há desertos, gelos eternos e florestas impenetráveis que tornam impossível a ocupação humana permanente. Setenta por cento dessas porções terrestres localizam-se no hemisfério norte do planeta. Nos blocos continentais da América do Norte e da Eurásia estão concentrados aproximadamente 70% a 80% dos recursos energéticos necessários ao funcionamento da economia contemporânea e à manutenção do nível global de consumo da humanidade (como as reservas de petróleo); parques industriais e redes de infra-estrutura de produção, armazenamento, distribuição e comercialização de bens econômicos. Em resumo, 80% da riqueza econômica do mundo atual estão no hemisfério norte. A maior parte do produto mundial bruto atual é gerada pelos países de alta renda. O fluxo de comércio exterior ocorre preponderante no hemisfério norte, passando pelo eixo hegemônico EUA/Canadá – União Européia – Índia – China – Coréia do Sul – Japão. A produção científica e tecnológica concentra-se nos países ricos no hemisfério norte, especialmente nos EUA, Europa ocidental e Japão. Estima-se que 95% das patentes protegidas no mundo sob os acordos internacionais de propriedade intelectual sejam de titularidade de empresas transnacionais sediadas nos EUA, na Europa ocidental e no Japão, especialmente no que diz respeito a medicamentos, bioengenharia e produtos eletrônicos de alta tecnologia . O mundo tem hoje quase 6 bilhões e 600 milhões de habitantes. Perto de 75% desse contingente populacional está vivendo no hemisfério norte do planeta, preponderantemente na Eurásia e América do Norte. Observa-se também que nos países mais desenvolvidos do hemisfério norte as taxas de natalidade e de mortalidade são significativamente baixas. Em alguns países, as taxas de crescimento demográfico chegam a ser negativas. Isto significa que o Produto Interno Bruto dos países ricos concentra-se progressivamente não só no interior de cada país desenvolvido, mas também significa que ocorre impressionante concentração da riqueza mundial e de consumo exatamente nesses países ricos em contraste com a pobreza persistente dos países não desenvolvidos, como se verá mais adiante.
Os elevados índices de industrialização no hemisfério norte devem ser correlacionados com os alarmantes indicadores de devastação ambiental sem precedentes na história da humanidade. Calcula-se que a superfície terrestre do planeta estava recoberta por 65 milhões de km² de florestas no início do século XIX. Atualmente, as melhores estimativas indicam que apenas 38 milhões de km² de florestas permaneceram. Nenhuma cobertura florestal representativa de equilíbrio ambiental é encontrada no hemisfério norte, exceto a vegetação ainda resistente no sudeste asiático e que, como se sabe, tem sido sistematicamente devastada nas últimas décadas em decorrência do crescimento econômico dos países daquela região.
O panorama geral acima apresentado deve ser contrastado com a situação geral dos países não desenvolvidos localizados no hemisfério sul do planeta. Pouco mais de 20% por cento da superfície terrestre, excluídos o Pólo Norte e a Antártida, estão localizados no hemisfério sul. Desse percentual há que se excluir porções geladas, desertificadas ou recobertas por florestas que impedem ocupação humana regular. Apenas 20% dos recursos energéticos tradicionais disponíveis e necessários ao dinamismo da economia contemporânea encontram-se no hemisfério sul (não consideradas aqui as fontes alternativas de energia limpa e renovável). Os parques industriais, redes de infra-estrutura de produção, armazenamento, distribuição e comercialização de bens econômicos ainda estão em processo de integração funcional e de desenvolvimento, ou permanecem isolados em regiões subdesenvolvidas.  O conjunto de países da América Latina e Caribe apresenta população total estimada em 570 milhões de pessoas; a África tem outros 940 milhões de indivíduos. Essas regiões representam pouco mais de 23% da população da Terra e produzem menos de 20% da riqueza mundial. As relações de comércio internacional apresentam pouca intensidade entre os países não desenvolvidos. Seus principais parceiros comerciais estão localizados no hemisfério norte e são preponderantemente países ricos, que compram principalmente (mas não apenas) bens primários dos países pobres ou em desenvolvimento. Os países do hemisfério sul apresentam baixa produção científica e tecnológica relativa, ou seja, em comparação com a produção intelectual dos países desenvolvidos. Os bens que os países periféricos produzem e inserem no comércio internacional têm baixo valor agregado, razão pela qual sua produção e comercialização somente são viáveis quando alcançada determinada escala de mercado. Isto os torna mais dependentes de países ricos. Menos de 5% das patentes protegidas no mundo sob os acordos internacionais de propriedade intelectual são de titularidade de empresas localizadas em países do hemisfério sul. Como dito acima, somente pouco menos de 20% da população mundial habitam os países meridionais da Terra. Essa população apresenta elevadas taxas de natalidade e de mortalidade. O crescimento demográfico no hemisfério sul é muito maior que o dos países ricos do hemisfério norte e gera pressões econômicas, ambientais e culturais constantes. Atualmente ocorrem grandes fluxos emigratórios dos países não desenvolvidos (quer os do hemisfério norte quer os do hemisfério sul) em direção aos países desenvolvidos e hegemônicos . O conjunto desses fatores indica as razões pelas quais é pequena a renda per capita nos países não desenvolvidos, correlacionada à concentração de renda em apenas alguns segmentos sociais.
É importante observar que as principais reservas ambientais que garantem um mínimo de equilíbrio ao ecossistema mundial localizam-se no hemisfério sul, especialmente na América do Sul e na África. Apenas para dar um exemplo, a bacia hidrográfica amazônica tem cerca de 20% da reserva de água potável do mundo, num momento em que esse bem apresenta evidências de escassez crescente. As possibilidades mais promissoras de aproveitamento de energia limpa e renovável também estão no hemisfério sul. Os países em que tais recursos se encontram precisam criar e realizar políticas de desenvolvimento sustentável (D’ISSEP, 2004). Isto, obviamente, representa dificuldade adicional para a região sul porque traz limitações ao aproveitamento imediato dos recursos ambientais e ao crescimento econômico (embora a preservação ambiental não seja a única causa da lentidão do desenvolvimento econômico na região). De fato, se China, Taiwan, Coréia do Sul e outros países do sudeste asiático tivessem que conciliar a preservação ambiental com suas necessidades de crescimento econômico, será que teriam as impressionantes taxas de crescimento que tiveram nas últimas décadas?
Essa situação de desequilíbrio ambiental torna-se mais grave ao se observar a história e o sentido dos fluxos migratórios mundiais. No decorrer dos séculos XVIII e XIX, os países hegemônicos da Europa registraram grandes fluxos emigratórios em direção a várias partes do mundo, em especial para o continente americano (PRADO JÚNIOR, 1984). Isto lhes permitiu compatibilizar seus meios produtivos existentes com os respectivos contingentes demográficos e, assim, acelerar o desenvolvimento econômico e social. Ao mesmo tempo, os emigrados puderam se desenvolver nos locais para onde foram, especialmente na América do Norte, sem pressões demográficas e com abundantes recursos naturais à sua disposição. A situação atual no hemisfério sul é substancialmente distinta. No século XX e começo do século XXI, constata-se enorme crescimento demográfico nos países não desenvolvidos mas, sobretudo, nos do hemisfério sul. Aumento demográfico, diminuição de PIB, aumento da pobreza. Como dito, o crescimento econômico desses países tem sido baixo se comparado ao dos países desenvolvidos do hemisfério norte. Esses fenômenos têm provocado fortes fluxos emigratórios dos países não desenvolvidos em direção aos países desenvolvidos do hemisfério norte. É situação exatamente inversa àquela dos fluxos emigratórios dos séculos XVIII e XIX. Mas, qual é o tratamento dado pelos países hegemônicos a esses fluxos migratórios oriundos de países não desenvolvidos? Contenção. Expulsão. Repressão. Extermínio (veja-se, por exemplo, a falta de investimentos dos países ricos, em montante suficiente, para conter a grave crise sanitária que assola a África meridional). O afluxo de imigrantes vindos de países não desenvolvidos exigiria esforço de adaptação da ordem social, cultural, política e econômica dos países desenvolvidos. Por isto, em geral, esses países têm adotado medidas para dificultar a entrada legal de imigrantes, a não ser, em número controlado, como mão-de-obra barata e desqualificada. Na verdade, está se desenvolvendo interessante dicotomia geográfica que não ocorreu durante os séculos XV a XIX. Naquele período, o crescimento demográfico ocorria nos mesmos centros de desenvolvimento econômico, científico e tecnológico. Por isto foi possível que os países europeus suportassem emigrações massificadas do centro para a periferia do sistema internacional. No decorrer dos séculos XX e começo do XXI constata-se situação inversa, porque o crescimento demográfico mais acentuado ocorre nos países que têm menor desenvolvimento. O ecossistema dos países não desenvolvidos não está em condições de suportar significativo aumento demográfico sem desenvolvimento econômico sustentável. Há evidentes limitações para a exploração econômica desses recursos ambientais. A reversão desse cenário exige tempo e investimentos em pesquisas científicas e tecnológicas. A tendência de haver fluxos constantes de imigração em direção aos países desenvolvidos tem desdobramentos importantes. Nesses países estão concentrados recursos e riquezas que poderiam suportar o crescimento demográfico atual. Todavia, se aumentar a concentração demográfica nesses países, certamente aumentará também o nível geral de consumo, gerando pressões ainda maiores sobre o seu meio ambiente meio ambiente já tão degradado. Para evitar que esses fluxos imigratórios continuem, os países desenvolvidos precisarão fazer maciços investimentos nos países não desenvolvidos, de modo a viabilizar o desenvolvimento econômico e social nestes últimos. Isto poderia ter o efeito de reter os fluxos emigratórios, ou invertê-los em direção aos países não desenvolvidos. É isto, por exemplo, o que os EUA têm feito para conter os fluxos emigratórios do México para os EUA e reter a população mexicana em seu país natal. Além disto, esses investimentos precisam permanecer nos países, no sentido de ser redistribuída a riqueza mundial. Esta estratégia dá resultados e a história tem exemplos contundentes disto: os investimentos externos feitos para a reconstrução da Alemanha e do Japão, após o término da Segunda Guerra Mundial, e também os investimentos externos mais recentes para a reconstrução da Federação Russa após a dissolução da União Soviética.

A reorganização da sociedade mundial e a fragmentação produtiva: empresas-rede, demanda energética e impactos ambientais
Em 1991 ocorreu o colapso da União Soviética. Dissolveu-se o sistema de equilíbrio bipolar que havia sido estabelecido durante a Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética. Desapareceu a correspondente divisão do planeta em rígidas áreas de influência daquelas duas potências dominantes. A partir de então, ocorreu natural dispersão dos países antes alinhados com uma ou outra das superpotências mencionadas (DUPAS, 2005). Cada um desses países passou a procurar seu próprio espaço no novo ambiente das relações internacionais e a identificar seus parceiros (antigos ou novos) e os atores hostis. A Nova Ordem Mundial tende a ser multipolar. É provável que por algum tempo o equilíbrio de poder no mundo seja definido em função da existência de uma superpotência (atualmente os Estados Unidos da América), que dividirá sua influência com grandes potências mundiais. Potências regionais médias terão influência relativa nas suas respectivas regiões. Por fim, potências sub-regionais terão alguma influência em seus espaços geopolíticos (HUNTINGTON, 1997). Disto decorre fragmentação dos poderes político, econômico, cultural e militar entre os atores da sociedade internacional (MATHIAS e RODRIGUES, 2004). Nesse contexto, consolidou-se a organização da produção mundial por meio das denominadas estruturas empresariais em rede (CHESNAYS, 1996). Essa forma de organização produtiva começou a ganhar importância relativa a partir da década de 1970 (BARROS, 2001). Desde então, em decorrência das corridas armamentista e espacial entre as duas grandes potências da Guerra Fria e, portanto, da necessidade que tinham de ampliar suas respectivas áreas de influência nos mercados mundiais, houve crescente e consistente investimento em novas tecnologias produtivas. Num cenário mundial de acirrada competição ideológica, política, militar e econômica, era preciso melhorar a qualidade de produtos e serviços, diminuir custos de produção, racionalizar e tornar mais eficiente cada etapa do processo produtivo e conquistar novos mercados consumidores (THÉRET e BRAGA, 1998). As duas grandes potências e seus respectivos países alinhados lançaram-se, assim, em processos cada vez mais complexos de divisão do trabalho produtivo e de integração econômica. Para alcançar esses objetivos, entre outras estratégias, os países desenvolvidos usaram as empresas transnacionais estruturadas em redes produtivas (SEIXAS, 2004). A empresa transnacional clássica era responsável por duas formas de integração produtiva: a integração vertical e a horizontal. No sentido pertinente a este estudo, a integração vertical diz respeito ao controle hierárquico das fases produtivas no interior de uma mesma empresa. Todas as fases desse processo produtivo são realizadas e controladas por essa empresa, desde a criação do produto até sua efetiva fabricação e colocação nos mercados. O mesmo raciocínio é aplicável aos serviços, que são planejados e realizados internamente pela empresa. Trata-se, assim, de integração das fases produtivas dentro da empresa e de acordo com organização hierarquizada das etapas da produção. Por outro lado, para os fins deste trabalho, entende-se por integração horizontal o relacionamento não hierarquizado entre diversas empresas que combinam suas respectivas atividades para a produção de certo bem (produto ou serviço). Todavia, não há entre essas empresas uma articulação funcional hierarquizada e essencial, ou seja, essas empresas não participam necessariamente de uma cadeia produtiva integrada verticalmente em que lhes compete a realização de certa etapa da produção de certo bem, dentro de uma lógica pré-definida por uma entidade de hierarquia superior. O relacionamento entre essas diferentes empresas baseia-se em contratos específicos para produção de componentes, fornecimento de insumos e realização de serviços. Simplesmente ocorrem interações entre as diferentes empresas conforme suas respectivas especialidades e com base na lei da oferta e demanda de mercado. As duas formas de integração acima referidas combinaram-se e deram origem ao que se passou a chamar de estruturas empresariais em rede, ou simplesmente empresas-rede. O processo de estruturação das empresas-rede é engenhoso. Dentro de uma mesma empresa, como se sabe, há diferentes níveis de competência, como, por exemplo, criação, planejamento estratégico, pesquisa e desenvolvimento de produtos e serviços, controle de insumos, produção de partes componentes do produto ou serviço final, montagem, armazenamento, distribuição e comercialização. No modelo de integração vertical, todos esses níveis de competência encontram-se na mesma empresa. No modelo de empresas-rede esses níveis de competência são separados e atribuídos a diferentes empresas, que trabalharão de modo coordenado, cada qual realizando determinada etapa essencial do processo de produção, porém de acordo com diretrizes estabelecidas hierarquicamente por algumas dessas empresas em face das demais. O conjunto dessas empresas funciona como se fosse uma única empresa, mas cada uma continua tendo sua própria personalidade jurídica e estrutura produtiva interna (BARROS, 2001). De modo geral, a estruturação empresarial em rede, com diferentes níveis de competência, segue um padrão (SEIXAS, 2009). No primeiro nível de competência há uma empresa central em que se concentra o capital intelectual da produção, isto é, a inteligência da atividade produtiva. Nessa unidade central se realizam as atividades de pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias e métodos de produção, criação de produtos e serviços, planejamento estratégico e, enfim, toda e qualquer atividade intelectual necessária à produção. A empresa central, em geral, está sediada no território de um país desenvolvido. Sua atividade faz uso de tecnologia no estado da arte e tem altíssimo valor agregado, além de exigir mão-de-obra (ou seria melhor dizer cérebro-de-obra?) altamente especializada e cara. Portanto, essa unidade central requer pequeno número relativo de trabalhadores e diretamente não degrada o meio ambiente. No segundo nível de competência surge um conjunto de empresas estrategicamente estabelecidas em países diferentes, conforme as conveniências das diversas etapas do processo produtivo global de determinado bem. As empresas de segundo nível são controladas societariamente pelas empresas de primeiros nível. Essas múltiplas unidades produtivas de segundo nível atuam racionalmente de acordo com a etapa do processo produtivo que lhes foi atribuída dentro da rede. Por exemplo, a etapa da produção que exigir uso intensivo de mão-de-obra irá se estabelecer em país ou países em que haja abundante mão-de-obra, pouca pressão sindical, legislação trabalhista e previdenciária mais flexível e menos onerosa. A etapa da produção que fizer uso intensivo de recursos ambientais tenderá a se fixar em país ou países em que a legislação de proteção ambiental seja inexistente ou menos severa. A empresa incumbida da aquisição de insumos e distribuição do produto final haverá de se instalar em países com melhor infra-estrutura de transportes e de telecomunicações. As empresas responsáveis pelo financiamento da atividade produtiva procurarão se instalar em países que tenham sistema financeiro mais evoluído e estável. Esse modelo de estruturação do segundo nível de competências permite à rede obter quase sempre o menor custo relativo de produção. Além disso, permite que a rede elimine ou minimize riscos produtivos, na medida em que dispersa suas unidades em diferentes países e consegue ter mobilidade suficiente para transferir qualquer etapa do processo produtivo de um país para outro, sem que isto prejudique a produção ou acarrete grande perda de capital investido na atividade. Além disso, tal estrutura impede que a unidade central do primeiro nível de competência tenha que assumir certos riscos políticos e institucionais, tais como os de degradação ambiental, desrespeito à legislação trabalhista ou previdenciária, sonegação tributária, etc. Esses riscos permanecem confinados na empresa do segundo nível de competência que a eles se expõe e, mais ainda, permanecem enclausurados no país receptor de tal empresa de segundo nível. Finalmente, há um terceiro nível de competências produtivas. Esse nível é composto por centenas, às vezes milhares, de micro, pequenas e médias empresas pulverizadas em vários países e que trabalham para as empresas de segundo nível mediante contratação específica. As unidades produtivas do terceiro nível são incumbidas de atividades que fazem uso intensivo de mão-de-obra barata e de recursos ambientais (em grande parte, não renováveis). Produzem bens de baixo valor agregado que serão, posteriormente, integrados em conjuntos de bens pelas empresas do segundo nível de competência. Em geral, são as empresas de segundo nível que montam o produto ou consolidam o serviço final e os encaminham para distribuição no mercado. As empresas do terceiro nível organizam sua produção segundo os critérios definidos pelas empresas do primeiro e do segundo nível de competência. Tendem a ser pouco diversificadas e com extremo grau de dependência em relação às empresas dos níveis superiores de competência. A própria existência e viabilidade das empresas do terceiro nível depende de sua integração ao sistema produtivo em rede. Essas empresas em geral assumem os principais riscos ambientais, trabalhistas, previdenciários e tributários inerentes ao processo produtivo em rede. Sua margem de lucratividade tende a ser pequena. A pulverização da atividade produtiva no terceiro nível permite que as empresas do primeiro e do segundo nível transfiram qualquer etapa do processo de uma empresa para outra, de uma região para outra, de um país para outro sem prejuízo significativo para a produção. Isto extermina o poder de pressão de uma empresa do terceiro nível sobre as empresas dos níveis superiores. Por isso mesmo, as empresas integradas no terceiro nível da produção concentram-se em países não desenvolvidos.
Nesse contexto, a fase atual da globalização apresenta aspecto muito interessante e diretamente relacionado com a lógica das estruturas produtivas em rede. As principais fontes de produção de energia alternativa, limpa e renovável estão localizadas no hemisfério sul. Portanto, passa a existir uma tendência significativa de que as etapas do processo de produção que consomem mais energia se fixem em países do hemisfério sul. São necessários novos investimentos e desenvolvimento de tecnologia para a produção de energia renovável, em particular, e para a produção de bens, em geral. Esses investimentos tendem a permanecer nos países em que as fontes de energia são estratégicas para o funcionamento da economia mundial. Tudo isto provocará alterações na dinâmica interna das estruturas produtivas em rede, aumentando a importância estratégica das empresas de segundo e de terceiro nível que estiverem localizadas nos países não desenvolvidos com melhores oportunidades de aproveitamento energético. Este fenômeno tende a aumentar e acelerar o nível de desenvolvimento nessas regiões.

Reflexões, tendências e encaminhamentos
No conjunto, todos esses aspectos evidenciam a fragmentação dos poderes político, econômico, cultural e militar entre os atores da atual sociedade internacional. Os problemas que emergem na fase atual da globalização são transnacionais e multidimensionais: distribuição assimétrica de poder e de riqueza; explosão demográfica; pressões migratórias; crises sanitárias; escassez de água potável, de combustíveis fósseis e minerais; produção de fontes alternativas de energia, limpas e renováveis; desenvolvimento econômico e social sustentável e mais justo; diminuição dos níveis de consumo das sociedades pós-modernas; produção de alimentos de modo compatível com o crescimento da população planetária. Estas são apenas algumas das grandes questões sobre as quais a humanidade precisa refletir séria e profundamente. Não há possibilidade de solucioná-los apenas com normas jurídicas nacionais ou internacionais, até mesmo porque a figura tradicional do Estado-nação, embora continue a ser muito importante, também atravessa profundo processo de reformulação (FUKUYAMA, 2005). Portanto, é inviável pensar em marcos regulatórios exclusivamente a partir do paradigma da auto-suficiência do Direito. Do mesmo modo, políticas públicas e recursos exclusivamente locais serão insuficientes para o enfrentamento das questões globais. Impõe-se a prática da multidisciplinaridade e do diálogo polifônico e polissêmico para planejar, implantar e executar de políticas diferenciadas, coordenadas, com abrangência nacional, regional e transnacional. Naturalmente, tudo isto exige grande esforço de cooperação entre todos os atores da sociedade internacional contemporânea.
Como dito, o hemisfério sul apresenta as condições geográficas ideais para o bom aproveitamento das fontes energéticas alternativas e renováveis, em especial muito sol, ventos e recursos hídricos abundantes. A demanda mundial por fontes renováveis de energia é imensa e não há indícios de que vá diminuir. Ao contrário, os níveis de consumo de bens no mundo têm aumentado de modo contínuo, embora assimétrico, e a demanda por energia tende a crescer também. Ora, a se prestigiar as famosas teorias das vantagens comparativas (estática, de SMITH, 2000) ou dinâmica (de RICARDO, 2001), torna-se possível inverter os vetores de poder global e, por conseguinte, reposicionar o hemisfério sul como área estratégica para a produção de energia renovável. Talvez a venda, pelo hemisfério sul, desse insumo imprescindível para o funcionamento da economia global possa devolver, pelo menos em parte, as riquezas monetárias que as potências dominantes do sistema mundial drenaram da região em mais de cinco séculos de exploração. Isto seria um sonho ou uma possibilidade real? Mais uma vez, só um amplo debate pode apontar possíveis caminhos para essas mudanças. Para que tal discussão ocorra, é fundamental a existência de meios de comunicação social responsáveis e livres. Em particular, os jornalistas estão capacitados para captar as múltiplas vozes e significados que emergem da vida social e, assim, cumprem importantíssima função de mediação simbólica nas sociedades. A produção e o aproveitamento de energia renovável, bem como o desenvolvimento sustentável, não podem ser excluídos desse contexto. Por fim, a questão da regulação dessa matéria precisa contemplar os aspectos apontados neste trabalho, a fim de que não fique divorciada da realidade dinâmica do mundo contemporâneo.

Referências bibliográficas
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* Renato Seixas, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986), é mestre e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam) da Universidade de São Paulo e professor da Escola de Artes e Ciências Humanas (EACH) da USP, nos Cursos de Lazer e Turismo e de Marketing

Globalização cultural e multiculturalismo na América Latina: análise a partir de experiências das civilizações pré-colombianas

Prof. Dr. Renato Seixas

Resumo: Não é possível forjar identidade cultural única para a América Latina. Desde tempos ancestrais a região experimenta o multiculturalismo. As civilizações pré-colombianas, que realizaram impressionantes projetos de integração regional, precisaram criar sistemas para harmonizar culturas dominantes e culturas locais. Processos semelhantes de mediação simbólica estão em andamento na contemporaneidade.

Abstract: It is not possible to create a unique cultural identity for Latin America. Since ancient times the region has been experiencing multiculturalism. The pre-colombian civilizations, which implemented highly impressive projects of regional integration, needed to create systems to harmonize dominant cultures and local cultures. Similar processes of symbolic mediation are presently in development.

Sumário: Introdução. 1- Desenvolvimento cultural autônomo na América Latina. 2- As primeiras culturas na fase de povoamento das Américas. 3- Identidade cultural nas altas civilizações da América Latina pré-colonial. 4- Geografia e identidade cultural na América Latina. 5- Eliminação da memória coletiva e cultural na América Latina pré-colonial. 6- Aspectos da cosmologia e da cultural das altas civilizações pré-colombianas. Considerações finais.

Introdução

Na literatura de várias áreas de conhecimento tem sido comum encontrar afirmações de que estaria em desenvolvimento processo de homogeneização cultural mundial. Os poderes dominantes ou hegemônicos que controlam a dinâmica das relações globais, especialmente por meio da grande mídia, estariam cada vez mais desintegrando culturas locais e substituindo-as por quadros culturais gerais, homogêneos, baseados em critérios definidos por aqueles poderes e conforme seus interesses. Todavia, muitas e muitas vezes tais afirmações contidas na literatura não correspondem aos fatos do mundo real.

No final da década de 1980 e começo da década de 1990 diversos fatos contribuíram para alterar a ordem internacional estabelecida desde o término da Segunda Guerra Mundial. Houve a queda do muro de Berlim e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas se dissolveu. Terminava a Guerra Fria e o mundo perdia sua configuração bipolar de equilíbrio de poder, que vigorara desde o fim da década de 1940. Como única superpotência mundial remanesciam os Estados Unidos da América, que, embora sem poder suficiente para imporem seus interesses ao resto do mundo, não deixam de ser ouvidos em qualquer assunto de relevância internacional (Kennedy, 1989 ). A partir de então, proliferam lutas regionais com caráter de autoafirmação cultural local,  nacionalista ou religiosa (Huntington, 1997). De fato, em diversos casos a identidade nacional se mistura e se confunde com a identidade religiosa e, para se autoafirmar, desencadeia lutas caracterizadas pela polarização de uma religião contra outra. É interessante esse fenômeno porque é muito semelhante ao que ocorreu por ocasião do surgimento e consolidação dos Estados nacionais europeus entre os séculos XV e XVII. Na época em que começaram a se formar os Estados nacionais europeus ainda não havia um poder ideológico organizado, minimamente dominante ou hegemônico para mobilizar para a guerra as diversas facções conflitantes. Por isto, as guerras assumiam características de conflitos religiosos, os quais, naquele contexto, simbolizavam as disputas de um poder ideológico contra outro (Chaunu, 1993). Apenas entre o último quarto do século XVII e as duas primeiras décadas do século XIX é que a ideologia Liberalista logrou se impor no ocidente e, então, parte das tradicionais guerras religiosas foi substituída por guerras ideológicas e nacionalistas (Morgenthau, 2003). Marcos importantes dessa fase histórica ocidental foram a independência dos Estados Unidos da América, a Revolução Industrial inglesa, a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas.

Ora, o mundo está se reorganizando em busca de um novo equilíbrio de poder multipolar; proliferam atualmente conflitos e guerras de autoafirmação cultural local, nacional ou religiosa; países estão sendo formados ou dilacerados em decorrência desses conflitos; blocos e coalizões regionais, continentais e mesmo globais estão sendo formados ou consolidados na sociedade internacional com base nas afinidades culturais de seus membros (Huntington, 1997). É evidente, portanto, a importância da identidade cultural (ou da falta dela) implicada nesses fenômenos. Entretanto, mesmo considerada a relevância da identidade cultural, não há na história da humanidade nenhum exemplo de homogeneização identitária. Mesmo com o advento de grandes impérios, como foram o Império Romano e o Império Han, nunca foi possível forjar uma única identidade para todos os povos por eles abrangidos. A identidade cultural imposta por poderes dominantes sempre teve que coexistir com múltiplas identidades locais dos povos submetidos.

Nessas circunstâncias, não podem ser aceitas sem reservas, por exemplo, afirmações correntes no sentido de que a cultura latino-americana estaria sendo substituída pela cultura de Hollywood ou de que, através da grande mídia, haveria imposição irresistível de elementos culturais de países dominantes em face dos povos da América Latina. Efetivamente ocorrem tais fenômenos de manipulação e de imposição cultural, porém todos eles são em grande parte submetidos a complexos processos de mediação simbólica, por meio dos quais cada indivíduo e cada grupo filtram e metabolizam elementos culturais alienígenas, incorporando-os ou não ao quadro geral de referências culturais aquela específica comunidade (Martín-Barbero, 2006).

Diante dessas considerações iniciais e com base em estudos precedentes (Seixas, 2006), este trabalho parte das seguintes hipóteses: 1ª) é impossível efetivar homogeneização cultural plena em qualquer lugar do mundo e, portanto, também na América Latina. Poderosas forças de autoafirmação cultural e identitária são mobilizadas para resistir à tendência de homogeneização cultural desejada por potências dominantes da sociedade internacional. Nos limites deste trabalho não há possibilidade de explorar como essas forças de resistência operam. Essa tarefa foi realizada noutro estudo ao qual se remete o leitor (Seixas, 2008). 2ª) qualquer projeto de integração dos países da América Latina só terá possibilidade de êxito duradouro se contemplar o multiculturalismo e a plurinacionalidade existentes na região. Processos latino-americanos de integração econômica, social ou mesmo política precisam estabelecer de modo claro, democrático e flexível políticas abrangentes do multiculturalismo e da plurinacionalidade acima referidos. Tendo em vista os limites editoriais a que este trabalho tem que se adequar, para testar as hipóteses de pesquisa é imperativo fazer recortes, adiante especificados.

O objeto central deste estudo é investigar se há e como está configurada uma identidade latino-americana, uniforme e compartilhada por todos os povos habitantes da região, ou se, ao contrário, há múltiplas identidades latino-americanas, as quais se transformam continuamente e formam um mosaico cultural na região. As questões fundamentais que este estudo quer examinar são as seguintes:

Existe uma identidade cultural genuinamente latino-americana? Se essa identidade cultural existir, quais seriam os elementos gerais ou particulares de identificação cultural que a caracterizariam? Como os elementos gerais de identificação da cultura ocidental dominante ou hegemônica (européia e norte-americana) coexistiriam com os elementos de identidade cultural da América Latina?

Como primeiro recorte desta pesquisa optou-se por isolar os povos da América Latina de seus contatos com outros povos, especialmente os europeus e os norte-americanos. Por isto, escolheu-se um período da história dos povos pré-colombianos anterior aos descobrimentos europeus. Nesse contexto, os habitantes da hoje chamada América Latina não estavam sob as imposições ou influências culturais de povos alienígenas conquistadores, colonizadores ou imperialistas. O segundo recorte da pesquisa põe foco nas chamadas “altas civilizações pré-colombianas”. Em decorrência da amplitude territorial, do poder, do desenvolvimento cultural, tecnológico e político dessas civilizações, puderam exercer imensa influência sobre os povos que vieram a dominar antes da chegada dos descobridores europeus. Todavia, como se verá no decorrer deste trabalho, nenhuma das altas civilizações pré-colombianas conseguiu forjar uma única cultura, dominante, homogênea. Ao contrário, todas elas precisaram formar alianças com os povos dominados e, em maior ou menor grau, aceitar as especificidades culturais locais de cada um deles. O terceiro recorte da pesquisa limita o estudo às três civilizações pré-colombianas mais desenvolvidas: maia, asteca e inca. Mais uma vez, os limites editoriais definidos para este trabalho não permitem exposição das características de cada uma das três civilizações selecionadas. Tal análise foi realizada noutro trabalho (Seixas, 2006).  Aqui serão examinados aspectos gerais comuns às três civilizações estudadas. Por fim, o quarto recorte do estudo diz respeito ao grau de generalização ou de especificidade a ser adotado para examinar o fenômeno da identidade cultural. Para examinar as questões fundamentais apresentadas acima, foi necessário estabelecer certo grau de generalização a respeito da identidade cultural. Optou-se por partir de critérios mais amplos, generalizantes, universalizantes, suficientes para poder abranger o maior número possível de grupos sociais latino-americanos. Somente assim se poderá falar de identidade cultural da ou na América Latina. Portanto, não são objetivos deste trabalho estudar: (i) as especificidades de culturas locais latino-americanas comparadas umas com as outras; e (ii) as especificidades culturais de certas classes sociais em contraste com outras classes dentro do mesmo grupamento social. Noutras palavras, não é objetivo desta pesquisa estudar a identidade cultural da América Latina considerando, por exemplo, se os elementos culturais preponderantes no sertão nordestino brasileiro teriam penetrado na cultura dos povos andinos, ou vice-versa.

Desde logo é bom esclarecer aqui que as expressões “culturas hegemônicas” ou “culturas não hegemônicas” não terão, neste trabalho, a significação específica que Gramsci atribuiu à hegemonia(Bobbio, Mateucci et Pasquino, 2004). Para Gramsci, a hegemonia pressupõe que um certo poder é imposto por um grupo social a outro e, por meio de mecanismos ideológicos, tal imposição aparece como natural e legitimada perante o grupo sujeito àquele poder, que o aceita de modo mais pacífico. Neste trabalho usa-se a palavra “hegemonia” num sentido mais amplo que, em certa medida, contém a significação que lhe foi dada por Gramsci, porém abrange também a situação em que, em certo lugar, momento histórico e contexto, um poder ou elemento cultural prepondera sobre outros poderes ou elementos culturais concorrentes, quer sejam ou não aceitos pelos grupos sociais sujeitos ao poder ou elemento cultural preponderante.

1. Desenvolvimento cultural autônomo na América Latina

Não considerada a fase contemporânea da globalização, a identidade cultural na América Latina apresenta três fases importantes. A primeira diz respeito ao povoamento das Américas, em que grupos diferentes se instalaram na região e desenvolveram suas próprias culturas. Depois, como conseqüência do processo evolutivo da fase anterior, vem a fase das altas civilizações americanas pré-coloniais. Essas duas primeiras fases são importantes porque refletem o desenvolvimento cultural autônomo das Américas, em particular do que viria a ser a América Latina. A literatura adiante referida costuma dizer que as Américas tiveram desenvolvimento cultural autóctone depois que a passagem pelo estreito de Bering foi interrompida, impedindo assim que influências culturais exteriores continuassem a ser transmitidas para o Novo Continente. Isto significa que durante muito tempo os povos americanos desenvolveram sua cultura particular, refletida nas estruturas econômicas, sociais e políticas que cada povo adotava. A terceira fase importante foi a da colonização dos povos americanos pelos europeus. A partir dessa última fase, diversos elementos culturais das civilizações dominantes ou hegemônicas da Europa foram transplantados para a América Latina e Caribe. Ocorreram choques culturais amplos e profundos. A predominância da cultura dos colonizadores é marcante desde então, mas não foi suficiente para eliminar muitos dos elementos culturais indígenas. Por essas razões, sem nenhuma pretensão de narrar a história dos povos americanos em algumas páginas, o desenvolvimento deste estudo procurou acompanhar as três principais fases evolutivas da cultura latino-americana, acima indicadas.

A intenção é destacar alguns elementos culturais de cada uma das fases, na medida em que pareceram pertinentes para os fins deste trabalho. Durante a pesquisa foram examinadas as estruturas culturais, sociais, econômicas e políticas dos povos estudados. Constatou-se que muitos dos elementos culturais da América Latina pré-colonial têm paralelo com outras culturas, especialmente a cultura européia: princípios de organização política do Estado; estrutura social classista; separação entre trabalho intelectual e braçal; sistema produtivo; cobrança de tributos; instrumentos de dominação ideológica, especialmente o uso da religião para esse fim. Na verdade, com base em conhecimentos gerais de História, foi possível constatar que alguns desses elementos culturais são arquetípicos e estão presentes em muitas outras civilizações. Todavia, no caso específico dos povos americanos pré-coloniais, a combinação desses elementos culturais teve a marca local. Mesmo invocando arquétipos, cada um desses povos fez suas próprias narrativas míticas que possibilitaram a coesão interna de sua cultura. Assim, sobre o modelo arquetípico geral, os pré-colombianos imprimiram seus elementos culturais particulares. É óbvio que os limites definidos para a realização deste trabalho não permitem que se faça um rastreamento de todas as culturas e um exame particular e profundo de cada uma delas. Na verdade, o que se quer é apresentar algo como uma fotografia, ou no máximo um “curta metragem” das culturas selecionadas. O fundamental é encontrar elementos culturais com base nos quais se possa reconhecer uma ou mais identidades da América Latina, sempre a partir de graus de generalização.

2. As primeiras culturas na fase de povoamento das Américas

Muitas culturas ancestrais latino-americanas desapareceram ou, no máximo, deixaram alguns traços incorporados em culturas posteriores. Com base em documentação arqueológica, estudiosos estimam que a presença humana nas Américas começou por volta de 50.000 anos atrás. Contingentes humanos teriam migrado da Ásia, atravessado o estreito de Bering, que naquela época estaria congelado e formava uma ponte entre a Ásia e a América do Norte. Essas correntes migratórias chegaram à América do Norte, de onde foram se reproduzindo e se deslocando para a América Central e depois para a América do Sul. Se essa suposição estiver correta, sua conseqüência mais importante seria que, terminada a glaciação e interrompida a passagem pelo estreito de Bering, os povos americanos teriam ficado ilhados e, por isto, teriam desenvolvido culturas autóctones. Por outro lado, há indícios arqueológicos de que contingentes migratórios da Polinésia também teriam chegado por mar em embarcações primitivas. Seja como for, o fato é que esses primeiros povoadores das Américas desenvolveram culturas próprias, vez por outra revelando alguma semelhança com culturas asiáticas e polinésias. Eram inicialmente povos nômades, dedicados à caça e à coleta, eventualmente à pesca. Teriam uma organização de bandos, com lideranças circunstanciais. Muito lentamente iniciaram um processo de fixação de povoamentos e de sedentarização, que passou a ser mais evidente há aproximadamente 10.000 anos atrás, conforme dados arqueológicos disponíveis (Cardoso, 1981).

Em função da característica nômade ou seminômade desses primeiros povoadores americanos, seus constantes deslocamentos em busca de melhores condições de sobrevivência provocaram constantes choques entre os diferentes grupos. Em conseqüência, desde muito cedo os povos americanos convivem com a profunda questão de identidade cultural. Grupos dominantes ou hegemônicos certamente desejavam impor não só o seu poder, mas também a sua cultura aos grupos subjugados. Portanto, o conflito entre culturas dominantes ou hegemônicas e não hegemônicas não é um fenômeno atual na América Latina. Começou há milhares de anos atrás e apresenta a mesma questão central: a luta simbólica de vida ou morte entre culturas que querem se autoafirmar e ter reconhecido o seu valor diante de outra diferente. É claro que os conflitos culturais contemporâneos são muitíssimo mais complexos, profundos e abrangentes do que os conflitos culturais entre alguns povos nômades ancestrais. Porém isto não altera a questão essencial acima indicada. Nesse contexto, é fácil admitir que centenas de culturas surgiram nas Américas. Algumas desapareceram completamente; outras se miscigenaram; e outras mais tiveram seus períodos de dominância ou hegemonia. Quais dessas culturas resgatar para construir uma identidade cultural americana? No caso específico da América Latina, haveria um conjunto de elementos culturais que, reunidos, seriam suficientes para que se possa afirmar: esse é o rosto da América Latina?!

3. Identidade cultural nas altas civilizações da América Latina pré-colonial

A identidade cultural de qualquer grupo social é construída com elementos culturais arquetípicos, híbridos ou dominantes.  Todos esses elementos se combinam e se complementam para juntos comporem uma identidade cultural. Por isto, a identidade cultural latino-americana será construída com elementos culturais daquelas três espécies. Terá elementos ancestrais de identificação cultural; terá outros elementos de diversas culturas que precisam coexistir sob certas circunstâncias; terá elementos culturais subjugados por outras culturas em certos momentos; e terá elementos culturais que simbolizarão a auto-afirmação da identidade latino-americana perante culturas rivais.

Atualmente está em pauta a necessidade de afirmação da cultura da América Latina em face de culturas dominantes ou hegemônicas. Então, quais são os elementos de identificação cultural da América Latina que lhe permitirão se autoafirmar em face das culturas concorrentes? É muito simplista tratar essa questão reduzindo-a exclusivamente, ou preponderantemente, a uma oposição ideológica entre capitalismo versus comunismo/socialismo. Tem sido comum na literatura(por exemplo, Peregalli, 1994) afirmar que o passado das civilizações latino-americanas está associado à posse comum dos meios de produção, a um sistema de reciprocidade tributária entre os Estados e as comunidades, etc. A partir do modelo marxista, muitos autores têm pretendido “reconhecer” na América Latina uma vocação inata, intrínseca, para o comunismo e socialismo (Ferreira, 1991). Tal oposição ideológica, tomada isoladamente, não pode ser suficiente para definir a identidade cultural de nenhum povo. Em primeiro lugar, porque os modelos marxistas (como qualquer construção teórica) são ideais e nem sempre encontram exata correspondência na realidade. Apresentam anomalias, portanto. Em segundo lugar, porque as duas ideologias postas em confronto pressupõem elementos de identificação que não são específicos nem para a América Latina nem para qualquer outro povo. Uma sociedade dizer-se capitalista, comunista, socialista não define sua identidade. Chineses, russos, coreanos do norte e alemães orientais eram todos povos que adotaram ideologia e regime produtivo comunista e, no entanto, ninguém se atreveria a dizer que esses povos têm a mesma identidade cultural. Inglaterra e Índia adotam o capitalismo e têm identidades culturais profundamente distintas. Em terceiro lugar, porque no caso específico da América Latina, as civilizações mais adiantadas (maia, asteca e inca) apresentavam traços extremamente contraditórios no que concerne à sua suposta vocação para o comunismo ou para o socialismo. Havia indicações muito fortes da criação de formas diferenciadas de uso dos meios de produção, tendentes à configuração de propriedade privada, ou algo parecido com esta; havia inequívoca organização social em classes, algumas vezes sendo impossível a ascensão social; havia evidências irrefutáveis de exploração de uma classe por outras. Em quarto lugar, porque as estruturas sociais e produtivas das civilizações latino-americanas ancestrais estavam intimamente relacionadas com o fenômeno religioso, que na verdade moldava e justificava aquelas estruturas. Querer interpretar tais estruturas a partir e exclusivamente do materialismo histórico marxista não é suficiente para compreender a complexidade cultural daqueles povos. Assim como não se pode entender e compreender a civilização egípcia  ou a muçulmana  sem recorrer ao elemento religioso e mítico, também no caso das civilizações latino-americanas pré-coloniais não se pode estudar seu sistema produtivo e sua estrutura social sem relacioná-los com o profundo sentimento religioso daqueles povos. Era a religião que dava coesão às estruturas sociais e produtivas das civilizações latino-americanas pré-coloniais. Tanto isto é verdade que, após a conquista da região pelos colonizadores europeus, bastou desarticular o sistema religioso para esfacelar os sistemas social e produtivo dos povos dominados (Romano, 1989). Em quinto lugar, se fosse verdade que a América Latina inteira teria uma vocação inata para adotar o modelo produtivo comunista ou socialista e ter estruturas sociais correspondentes àquele modelo, teria sido possível para Bolívar realizar a unificação latino-americana no início do século XIX, na medida em que se dispusesse a adotar aquelas estruturas. Bem ao contrário, estão em curso na América Latina diversos processos de integração. Todos esses processos integracionistas avançam com extrema lentidão e muita dificuldade. Isto revela que os elementos de identificação econômica e ideológica não são suficientes para configurar uma identidade cultural universal entre dois ou mais povos e, obviamente, não dão nenhuma identidade própria para a América Latina. Finalmente, em sexto lugar, não se pode desconsiderar que a história da América Latina pré-colonial é a história de lutas incessantes entre seus povos, em disputa por terras e por mão-de-obra obrigada a trabalhar em troca de subsistência e de vida muito humilde. Não se pode dizer que as estruturas sócio-econômicas adotadas, por exemplo, pelos Estados maia, asteca e inca eram boas e justas apenas porque tais estados, muitas vezes apenas em retórica, garantiam aos seus súditos alimentação, vestuário, aposentadoria, educação. O sistema tributário adotado nessas civilizações só poderia ser justificado ideologicamente mediante essas retribuições. Os camponeses, artesãos e soldados comuns viviam apenas com os recursos imprescindíveis para sua subsistência. Dentro do sistema não havia possibilidade alguma de acumularem excedentes para si mesmos. Não podiam enriquecer. Todo o excedente da produção era destinado ao Estado, cujas despesas eram crescentes e obrigavam-no a exigir cada vez mais tributos das classes inferiores. Além disso, a super expansão dos impérios (imperial overstretching) criava a necessidade contínua de obter mais terras a serem cultivadas, para que houvesse maior arrecadação tributária. Esse círculo vicioso provocava infindáveis lutas entre os povos latino-americanos pré-coloniais. Cada um desses povos queria, por um lado, expandir sua dominação ou hegemonia ou, por outro lado, livrar-se da dominação imposta por povo rival. Em qualquer dessas duas situações, não se alteravam as condições de vida dos camponeses e outras classes sociais baixas: continuavam a trabalhar em troca de subsistência; não tinham direito de reter qualquer riqueza material para si mesmos; pagavam tributos cada vez maiores ora a um senhor, ora a outro; eram mantidos afastados da alfabetização e de qualquer forma de educação que pudesse levá-los a questionar o sistema vigente.

Como se vê, não é razoável querer definir a identidade da América Latina recorrendo apenas à oposição ideológica entre capitalismo, comunismo ou socialismo. É claro que em alguma medida esses elementos também são importantes para, em conjunto com outros, compor a identidade cultural de um povo. É preciso, então, procurar identificar quais seriam os outros elementos culturais com base nos quais, adotado certo grau de generalização, seria possível configurar de modo mais estável uma identidade cultural da América Latina.

4. Geografia e identidade cultural na América Latina

A geografia pode não ser absolutamente determinante para a construção de identidades culturais, mas é certo que as influencia significativamente. No caso específico da América Latina, o meio geográfico influenciou de modo evidente a formação e a afirmação de culturas locais, que não foram totalmente eliminadas nem mesmo pelo poderio das altas civilizações maia, asteca e inca.

Na América Latina há quatro grandes regiões, ou subsistemas geográficos (Mello, 1996) que tiveram grande importância no desenvolvimento cultural: a) a América Central e Caribe; b) o subsistema amazônico; c) o subsistema andino; e d) o subsistema platino. Cada um desses subsistemas apresenta subdivisões, como é o caso do subsistema andino, que tem faixas paralelas à Cordilheira dos Andes formando costa litorânea, faixas desérticas ou semi-áridas, escarpas montanhosas e platôs andinos. Nesse subsistema desenvolveram-se as culturas dos povos andinos. Embora esses diferentes povos apresentes traços identitários comuns, cada um deles tem ainda hoje forte sentimento de sua cultura local e específica. Por exemplo, o trançados dos tecidos, suas cores e ocasiões de uso indicam a posição do indivíduo na hierarquia social, seu estado civil, etc. O subsistema amazônico domina grande parte da América Latina. Não se pode atribuir ao meio geográfico caráter determinante de uma cultura específica, porém é impossível negar que a floresta amazônica influencia em grande parte as formas de ocupação humana do território, os sistemas de produção e mesmo a organização social dos povos que nela habitam. No subsistema platino há desertos e geleiras e ali também se desenvolveram culturas específicas que resistem até os dias atuais.

O fato de o ser humano ter notável aptidão para se adaptar a ambientes geográficos variados evidencia que estes interferem na formação da identidade cultural de um povo. Esta diversidade de meios geográficos explica em parte a grande dificuldade com que avançam os processos de integração econômica, política e cultural na América Latina.

5. Eliminação da memória coletiva e cultural na América Latina pré-colonial

A reconstrução da memória coletiva e cultural na América Latina é especialmente difícil por causa da escassez de documentos históricos que revelem elementos culturais dos povos americanos antes da conquista da região pelos colonizadores europeus. Os espanhóis, em especial, ao conquistarem os povos maia, asteca e inca, destruíram templos, palácios, cidades, objetos rituais e de arte, documentos, registros administrativos e contábeis, desenhos, pinturas, painéis narrativos. A destruição desse acervo de documentos e cidades prejudica demais a tentativa de reconstruir de maneira fiel a cultura daquelas civilizações. No caso das culturas dos povos indígenas brasileiros, a situação foi um pouco diferente (Castro, 1992). O colonizador português encontrou indígenas que ainda estavam em fase cultural do período neolítico bem anterior às fases em que estavam os maias, astecas ou incas. Por isto, o índio brasileiro não chegou a construir cidades, palácios, templos e não tinha escrita nem administração de um Estado. Desse modo, a reconstituição do universo cultural do indígena brasileiro é mais fácil, porque muitas comunidades ainda hoje vivem como viviam seus antepassados antes da conlonização lusitana. Isto tem permitido aos antropólogos e sociólogos estudar e compreender o indígena brasileiro com relativa precisão (Lévy-Strauss, 1993).  Em qualquer desses casos, a reconstituição do universo cultural dos povos latino-americanos depende, em primeiro lugar, da documentação arqueológica disponível, dos relatos orais colhidos junto aos seus descendentes, em comunidades mais ou menos preservadas, e em documentos históricos posteriores à colonização européia. Entre estes últimos, têm especial importância os documentos denominados “visitações”  que, com todas as ressalvas necessárias, dão uma idéia a respeito de vários aspectos culturais dos povos submetidos ao domínio europeu, tais como estrutura social, estrutura econômica, vestuário, hábitos alimentares, festividades, divindades adoradas, rituais religiosos, sistema administrativo, organização política, estado geral de saúde dos povos, tipo de habitação, organização familiar, relação entre população rural e urbana, etc.

6. Aspectos da cosmologia e da cultural das altas civilizações pré-colombianas

Toda e qualquer cultura dotada de um mínimo de organização interna constrói sistemas explicativos do mundo, criando modelos de conduta que devem ser seguidos e obedecidos pelos indivíduos e pelo grupo social. São esses sistemas e estruturas que dão sentido e coesão à sociedade. Em síntese, a produção e sistematização de uma cosmologia social é imprescindível para o funcionamento e para a reprodução mental e material de qualquer sociedade. No caso específico das chamadas “altas culturas” pré-coloniais centro e sul-americanas, e mesmo naquelas culturas americanas que não chegaram a alcançar esse estágio de organização cultural, as narrativas do imaginário social assumiram enorme importância. A sistematização cultural não era apenas uma forma de conhecimento abstrato. Ao contrário, as narrativas míticas e simbólicas faziam parte do cotidiano desses povos porque estavam intimamente associadas a todo o sistema produtivo e às estruturas e instituições sociais. Todos esses povos americanos viviam fundamentalmente da produção agrícola. Conhecer e prever os fenômenos da natureza era, portanto, absolutamente essencial para sua sobrevivência e reprodução. Tal necessidade os levou – pela prática e pela observação cuidadosa dos fatos da natureza – a constatar a correlação muito estreita entre os movimentos dos corpos celestes e a ordem e o ritmo dos fatos da natureza, em especial a sucessão das estações do ano, os períodos de chuva, o movimento das marés, etc. Com base nesses conhecimentos, foi possível ao homem americano adaptar suas forças produtivas às exigências da natureza. Nesse contexto, o trabalho de identificação, compreensão e organização dos movimentos dos corpos celestes e de sua relação com a produção agrícola tornou-se cada vez mais complexo e especializado. Essa atividade deu origem a uma classe sacerdotal, cada vez mais especializada em identificar e interpretar a vontade divina comunicada aos humanos por meio das estrelas, do Sol e da Lua. Para que essa missão dos sacerdotes fosse adequadamente realizada, centros cerimoniais foram construídos tanto para o culto às divindades como para permitir melhor observação do céu. Conseqüentemente, também se tornou necessário criar uma burocracia a serviço desses centros cerimoniais e, logo depois, com o crescimento dos centros urbanos, teve que surgir uma burocracia administrativa. Os movimentos migratórios dos povos americanos geraram conflitos: primeiro, entre grupos nômades e sedentários; depois, entre grupos sedentários que disputavam entre si terras férteis. Daí a necessidade da criação e manutenção de uma classe de guerreiros em cada sociedade. Os favores e a proteção das divindades eram, pois, preocupação constante na vida cotidiana dos povos americanos. Por isto, a força das narrativas simbólicas entre eles era muito significativa (Soustelle, 1997). A concepção cosmogênica de cada um desses povos era expressa e traduzida por meio não só das narrativas, mas da prática ritual observada em diversos momentos do dia. Em todas as civilizações americanas pré-coloniais havia estruturas sociais de classes bem nítidas. A base social era composta por grande número de camponeses que, com seu trabalho e por meio do pagamento dos tributos, sustentavam todas as demais classes improdutivas. Essas estruturas sociais eram profundamente justificadas e legitimadas por meio da religião e, sobretudo, por mecanismos que impediam os camponeses e as classes inferiores de acumularem qualquer tipo de poder: não recebiam educação que lhes permitisse criticar os fundamentos do sistema; não podiam acumular qualquer riqueza material; não tinham outras formas de se fazerem representar perante os poderes dominantes ou hegemônicos a não ser através das pessoas que as classes dominantes indicavam, as quais, por sua vez, tinham inequívoco interesse na manutenção do sistema. Cabe aqui observar que todas as civilizações americanas pré-coloniais baseavam-se preponderantemente na cultura do milho, que foi iniciada provavelmente pelos maias e depois se espalhou por toda a América Central e a América do Sul. Por isto, para tais civilizações, o milho tinha o mesmo significado simbólico e sagrado que têm o trigo e o pão para as civilizações cristãs, por exemplo.

Enfim, de modo geral, as altas civilizações pré-colombianas compartilhavam as mesmas concepções cosmogênicas; cultuavam mais ou menos as mesmas divindades (apesar das designações diferentes com que se referiam a estas); seguiam os mesmos princípios religiosos, adotavam o mesmo sistema produtivo e econômico; tinham estruturas sociais praticamente idênticas; com algumas especificidades, administravam seus territórios com base nos mesmos princípios e técnicas; apresentavam graus de desenvolvimento tecnológico muitíssimo semelhantes; cada uma delas acreditava-se escolhida pelos deuses para cumprir uma missão civilizatória dos povos que subjugavam. Mesmo com tantos traços identitários em comum, nenhuma dessas civilizações pré-colombianas consegui impor às demais uma única cultura homogênea e aceita por todos sua própria identidade cultural. O Império Inca, única civilização pré-colombiana que de modo apropriado merece a designação de império, jamais logrou impor totalmente sua cultura aos povos que dominou.

De fato, os incas conseguiram formar um Estado fortemente centralizado e bem administrado, dotado de aparelhamento político, militar, religioso e cultural organizado de modo a manter sob sua autoridade os povos submetidos. Além disto, foi também a única civilização americana que expandiu seu território a ponto de abranger, pelo menos em parte, os três subsistemas geopolíticos que caracterizam a América do Sul: o subsistema amazônico, o subsistema andino e o subsistema platino. O Império inca abrangeu grande parte da zona costeira do Oceano Pacífico, da Cordilheira dos Andes e da floresta amazônica (na porção não brasileira), absorvendo significativas porções dos territórios hoje ocupados pela Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Argentina e Chile. Em cada um desses subsistemas geopolíticos há subdivisões internas, decorrentes de alterações no meio geográfico, às vezes drásticas. Por exemplo, na parte peruana do Império inca, a civilização se espalhou pelo litoral costeiro do Oceano Pacífico, escalou a Cordilheira dos Andes e penetrou em parte da floresta amazônica. Mas a tendência do Império inca foi a de acompanhar o trajeto da Cordilheira dos Andes, ao longo da qual a geografia dispõe o ambiente em faixas litorânea (às vezes entremeada de desertos ou zonas áridas), montanhosa e de floresta tropical. Essas faixas são freqüentemente cortadas por vales transversais. As características geográficas encontradas influenciaram a formação de povoados relativamente isolados uns dos outros e, mais tarde, comunidades com traços nítidos de cidades-estado, dotadas de forte sentimento de identidade local. Por isso, é realmente admirável o projeto de unificação imperial levado a cabo pelos incas, que conseguiram ser criativos para, por um lado, impor sua dominação a essas comunidades locais e, por outro lado, assegurar que tais comunidades não perdessem seu próprio senso de identidade e, assim, aceitassem de modo relativamente pacífico e duradouro o domínio inca. A herança cultural e administrativa que os incas receberam dos huaris, tihuanacos e mochicas certamente lhes facilitou o projeto imperial. Esse fenômeno não foi possível nas civilizações maia e asteca.

A célula fundamental do Império Inca era formada pelas comunidades camponesas, denominadas ayllus (Favre, 1985). Nessas comunidades a coesão social era determinada por vínculos sanguíneos, dos quais resultavam diferentes graus de parentesco, e também pela crença dos camponeses de que todos eles descendiam dos mesmos ancestrais míticos. Assim, a justificativa ideológica para a dominação inca se baseava exatamente no parentesco de antepassados míticos divinos, cuja vontade ancestral se materializou na formação de um grande império. Nessas condições, os incas criaram e mantiveram um império centralizado que absorvia milhões de pessoas, impuseram uma língua e uma religião comuns a esses povos (mas tolerando os línguas maternas e os cultos locais). Os métodos dos incas para realizar esse grandioso projeto foram variados, mas envolveram formas generalizadas de violência. Uma das formas mais freqüentes de imposição da dominação, chamada mitamáes, consistia em dividir os povos indóceis e deslocá-los de suas regiões de origem para fixá-los em locais distantes. Com esse procedimento, os incas, rompiam os laços de parentesco, de religião e de identidade local que uniam os rebeldes, tornando muito mais eficaz o sistema de dominação. Outra técnica freqüente de dominação usada pelos incas era a manutenção de reféns, inclusive múmias dos nobres e sacerdotes dos povos dominados. Capturavam as múmias, os líderes e seus familiares de uma comunidade e os mantinham como reféns na capital do Império. Isto assegurava a colaboração da comunidade dominada, temerosa de que seus antepassados mumificados, líderes e sacerdotes não mais retornassem, o que significava, na prática, interromper o diálogo entre os homens comuns e os deuses, pois esse diálogo era intermediado pelos entes mumificados, pelos líderes e sacerdotes de cada comunidade. Uma variação dessa técnica era manter como reféns dos incas apenas os filhos dos nobres da comunidade dominada. Esses reféns seriam educados em escolas incas, a fim assimilarem a cultura inca e reproduzi-la posteriormente nas suas comunidades de origem, para as quais retornavam como novos líderes ou novos sacerdotes (Peragalli, 1994). Acrescente-se a tudo isto o fato de que os incas criaram inúmeras vias de comunicação e estradas que ligavam todas as regiões do Império. Essas vias e estradas eram percorridas rapidamente por mensageiros (chasquis), que tornavam muito eficiente o sistema de comunicação e de troca de informações entre o governo central e as demais regiões dominadas pelos incas.

Para obter a máxima eficiência da estrutura produtiva de seu Império, os incas adotaram duas medidas muito importantes: em primeiro lugar, permitiram que as comunidades locais mantivessem seus cultos religiosos e suas próprias divindades, mas incorporaram naquelas comunidades o culto às divindades incas; em segundo lugar, os incas mantiveram a autoridade e o prestígio do chefe de cada ayllu, o qual, por sua vez, em troca da preservação de seu status, devia fidelidade ao Estado Inca. Formou-se, portanto, uma complexa e delicada rede de alianças entre os líderes de cada ayllu e o Estado Inca: este, em geral, não abolia os privilégios desses líderes locais, mas exigia deles que trabalhassem em favor da difusão e realização dos interesses incas perante a comunidade local. Por conseguinte, no plano ideológico, o pagamento de tributos pela comunidade ao Estado Inca aparecia como legítimo, porque intermediado pelo chefe do ayllu e porque associado a um sistema de reciprocidade garantido pelos incas.

Assim como no Império Inca, também nas civilizações maia e asteca a expansão baseou-se, num primeiro momento, no poderio militar. Mas a manutenção e expansão dessas civilizações realmente dependeu dos mecanismos ideológicos e culturais de controle dos povos submetidos.  O sistema de dominação envolvia mecanismos de cooptação dos líderes locais, bem como mecanismos de persuasão da comunidade para aceitar consensualmente a hegemonia dos dominadores e pagar os tributos devidos sem grande resistência. Portanto, o hard power era substituído ou apoiado pelo soft power, no sentido que Joseph Nye usa esses termos atualmente (Nye, 2002).

Um último aspecto cultural comum entre os incas, astecas e maias e que merece registro é o caráter autárquico de suas economias. Todas essas civilizações apoiavam-se num sistema econômico fechado ao comércio exterior. Eram civilizações com economia predominantemente agrícola. Havia pouca atividade comercial entre os diferentes povos. Cada comunidade tendia a produzir tudo o que precisava, de tal modo que não havia condições favoráveis ao comércio em larga escala. Além disso, como foi comentado, os camponeses não acumulavam excedentes econômicos para si, razão pela qual os lucros comerciais tendiam a ser pequenos. Apenas os maias superaram em parte essas deficiências e constituíram uma verdadeira classe de comerciantes.

Considerações finais

Não têm fundamento razoável os discursos acadêmicos e políticos atualmente correntes, no sentido de que a América Latina estaria sendo vítima da supressão de sua identidade cultural em razão da imposição da cultura de outros povos dominantes da sociedade internacional. Esse tipo de homogeneização cultural jamais aconteceu na história da humanidade e nem tem possibilidade de acontecer especificamente na América Latina. É oportuno retomar as indagações fundamentais que motivaram este estudo:

Existe uma identidade cultural genuinamente latino-americana? Se essa identidade cultural existir, quais seriam os elementos gerais ou particulares de identificação cultural que a caracterizariam? Como os elementos gerais de identificação da cultura ocidental dominante ou hegemônica (européia e norte-americana) coexistiriam com os elementos de identidade cultural da América Latina?

Neste trabalho foi dito que o desenvolvimento cultural da América Latina ocorreu em três principais fases: a do povoamento das Américas; a de formação e apogeu das altas culturas pré-colombianas; e a fase de formação da cultura colonial na região e de seus principais desdobramentos. As duas primeiras fases apresentaram elementos culturais desenvolvidos pelos povos americanos de modo autóctone, pois estavam em estado de isolamento em relação a outras civilizações. No entanto, as estruturas econômicas, sociais, políticas desses povos revelam elementos culturais comuns a outras civilizações e povos não americanos, indicando importante influência de arquétipos culturais também na América Latina. Apesar disto, os povos e civilizações pré-coloniais imprimiram suas marcas nessas estruturas, conciliando ao longo de muitos séculos os elementos culturais arquetípicos com os elementos das culturas locais. Na terceira fase, isto é, quando elementos da cultura européia foram introduzidos rapidamente no universo cultural dos povos indígenas latino-americanos, ocorreram drásticos choques culturais, em que a dominação ou hegemonia cultural da Europa prevaleceu. Todavia, subsistiram alguns fortes elementos culturais indígenas das fases anteriores à colonização.

A análise desenvolvida evidenciou que o problema de choques culturais na América Latina é verdadeiramente ancestral. Desde que as Américas começaram a ser povoadas, grupos humanos persistentemente entram em confrontos uns com os outros. Quaisquer que sejam os motivos desses infindáveis confrontos, em todos eles há uma constante: uma cultura pretende ter hegemonia sobre a cultura rival e ambas lutam buscando o reconhecimento de seu valor e querem se autoafirmar perante culturas rivais. Portanto, falar em identidade cultural latino-americana obriga o pesquisador, em maior ou menor grau, a revolver esse gigantesco mosaico cultural. Minha percepção é de que a cultura na América Latina (claro que noutras partes do mundo também) se assemelha a uma rocha sedimentar. Há camadas culturais muito antigas, às quais se sobrepõem camadas culturais mais recentes, de modo que as vejo “empilhadas” conforme sua ordem de antiguidade e da dominação ou hegemonia que cada qual conseguiu ter em certo momento histórico. Mas em alguns pontos essa rocha sedimentar está partida e, então, é possível enxergar perfeitamente os restos ou “cacos” de culturas antigas que afloram e põem-se em contato com as camadas culturais mais atuais. Ao revolver esse “entulho”, ficamos procurando onde encaixar o “caco” perdido, conforme o colorido dos seus traços sedimentares. Ao realizar essa tentativa de encaixar a peça cultural perdida, é possível observar que há muitos pedaços da rocha sedimentar cultural em que o caco poderia encontrar seu lugar. A rocha cultural, enfim, tem uma composição mais ou menos uniforme, ainda que suas diferentes camadas tenham sido formadas com materiais distintos. Mas é exatamente a combinação de todos esses materiais que dá coesão, consistência, solidez a essa rocha cultural. Mesmo com uma fratura aqui ou ali, o caco cultural pode ser reintegrado à rocha sedimentar cultural, porque é parte dela.

Por esses motivos, não se pode falar de uma identidade da ou na América Latina. A região é um mosaico multidimensional e multicolorido de culturas que se articulam, que têm muitos traços identitários comuns, mas que não abdicam de seus fortes sentimentos de pertencimento a culturas locais bem caracterizadas. Como outras partes do mundo, também a América Latina é multicultural e plurinacional. É de fato impossível pretender a homogneização cultural latino-americana. Os processos de integração que estão em curso na América Latina precisarão contemplar o multiculturalismo e a plurinacionalidade da região. Os processos de mediação simbólica, cultural, na América Latina se desenvolvem desde tempos ancestrais. Continuarão a ocorrer na contemporaneidade, obviamente com maior complexidade e velocidades. No entanto, as as culturas locais dispõem de mecanismos internos mais ou menos eficientes para que não se desintegrem totalmente. Isto faz parte do processo dialético de autoafirmação cultural quando ocorrem os choques entre culturas locais e cultura global. O processo global de integração cultural, que tende a homogeneizar culturas, é o mesmo que, paradoxalmente, acentua as diferenças culturais. Trata-se de processo dialético que envolve a alteridade global-local para construir, reconstruir, transformar, diluir ou miscigenar a identidade cultural do indivíduo e da própria sociedade, hoje de escala planetária (Seixas, 2008).

Mesmo que esteja em curso um amplo e profundo processo de choques culturais provocados pela globalização (Huntington, 1997), esses sedimentos culturais irão se acomodar numa nova camada da grande rocha cultural. Alguns elementos da cultura dominante ou hegemônica vão prevalecer e ficar em sedimentos mais aparentes; alguns elementos das culturas não hegemônicas também vão prevalecer e ocupar o seu lugar na nova camada sedimentar da rocha cultural; finalmente, noutros casos, os materiais orgânicos de que são formadas as culturas dominantes ou hegemônicas e as não hegemônicas vão se misturar e, assim, formarão uma nova substância que se acomodará no seu espaço para formar a atual camada da rocha sedimentar cultural. E, tendo eu aprendido com os maias, com os astecas, com os incas e com os índios brasileiros, estou consciente de que o nosso ciclo também vai terminar. Depois dele, uma nova camada cultural será depositada na rocha que sustenta todas as civilizações …

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Resumo: Não é possível forjar identidade cultural única para a América Latina. Desde tempos ancestrais a região experimenta o multiculturalismo. As civilizações pré-colombianas, que realizaram impressionantes projetos de integração regional, precisaram criar sistemas para harmonizar culturas dominantes e culturas locais. Processos semelhantes de mediação simbólica estão em andamento na contemporaneidade.

Abstract: It is not possible to create a unique cultural identity for Latin America. Since ancient times the region has been experiencing multiculturalism. The pre-colombian civilizations, which implemented highly impressive projects of regional integration, needed to create systems to harmonize dominant cultures and local cultures. Similar processes of symbolic mediation are presently in development.

Sumário: Introdução. 1- Desenvolvimento cultural autônomo na América Latina. 2- As primeiras culturas na fase de povoamento das Américas. 3- Identidade cultural nas altas civilizações da América Latina pré-colonial. 4- Geografia e identidade cultural na América Latina. 5- Eliminação da memória coletiva e cultural na América Latina pré-colonial. 6- Aspectos da cosmologia e da cultural das altas civilizações pré-colombianas. Considerações finais.

Introdução

Na literatura de várias áreas de conhecimento tem sido comum encontrar afirmações de que estaria em desenvolvimento processo de homogeneização cultural mundial. Os poderes dominantes ou hegemônicos que controlam a dinâmica das relações globais, especialmente por meio da grande mídia, estariam cada vez mais desintegrando culturas locais e substituindo-as por quadros culturais gerais, homogêneos, baseados em critérios definidos por aqueles poderes e conforme seus interesses. Todavia, muitas e muitas vezes tais afirmações contidas na literatura não correspondem aos fatos do mundo real.

No final da década de 1980 e começo da década de 1990 diversos fatos contribuíram para alterar a ordem internacional estabelecida desde o término da Segunda Guerra Mundial. Houve a queda do muro de Berlim e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas se dissolveu. Terminava a Guerra Fria e o mundo perdia sua configuração bipolar de equilíbrio de poder, que vigorara desde o fim da década de 1940. Como única superpotência mundial remanesciam os Estados Unidos da América, que, embora sem poder suficiente para imporem seus interesses ao resto do mundo, não deixam de ser ouvidos em qualquer assunto de relevância internacional (Kennedy, 1989 ). A partir de então, proliferam lutas regionais com caráter de autoafirmação cultural local,  nacionalista ou religiosa (Huntington, 1997). De fato, em diversos casos a identidade nacional se mistura e se confunde com a identidade religiosa e, para se autoafirmar, desencadeia lutas caracterizadas pela polarização de uma religião contra outra. É interessante esse fenômeno porque é muito semelhante ao que ocorreu por ocasião do surgimento e consolidação dos Estados nacionais europeus entre os séculos XV e XVII. Na época em que começaram a se formar os Estados nacionais europeus ainda não havia um poder ideológico organizado, minimamente dominante ou hegemônico para mobilizar para a guerra as diversas facções conflitantes. Por isto, as guerras assumiam características de conflitos religiosos, os quais, naquele contexto, simbolizavam as disputas de um poder ideológico contra outro (Chaunu, 1993). Apenas entre o último quarto do século XVII e as duas primeiras décadas do século XIX é que a ideologia Liberalista logrou se impor no ocidente e, então, parte das tradicionais guerras religiosas foi substituída por guerras ideológicas e nacionalistas (Morgenthau, 2003). Marcos importantes dessa fase histórica ocidental foram a independência dos Estados Unidos da América, a Revolução Industrial inglesa, a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas.

Ora, o mundo está se reorganizando em busca de um novo equilíbrio de poder multipolar; proliferam atualmente conflitos e guerras de autoafirmação cultural local, nacional ou religiosa; países estão sendo formados ou dilacerados em decorrência desses conflitos; blocos e coalizões regionais, continentais e mesmo globais estão sendo formados ou consolidados na sociedade internacional com base nas afinidades culturais de seus membros (Huntington, 1997). É evidente, portanto, a importância da identidade cultural (ou da falta dela) implicada nesses fenômenos. Entretanto, mesmo considerada a relevância da identidade cultural, não há na história da humanidade nenhum exemplo de homogeneização identitária. Mesmo com o advento de grandes impérios, como foram o Império Romano e o Império Han, nunca foi possível forjar uma única identidade para todos os povos por eles abrangidos. A identidade cultural imposta por poderes dominantes sempre teve que coexistir com múltiplas identidades locais dos povos submetidos.

Nessas circunstâncias, não podem ser aceitas sem reservas, por exemplo, afirmações correntes no sentido de que a cultura latino-americana estaria sendo substituída pela cultura de Hollywood ou de que, através da grande mídia, haveria imposição irresistível de elementos culturais de países dominantes em face dos povos da América Latina. Efetivamente ocorrem tais fenômenos de manipulação e de imposição cultural, porém todos eles são em grande parte submetidos a complexos processos de mediação simbólica, por meio dos quais cada indivíduo e cada grupo filtram e metabolizam elementos culturais alienígenas, incorporando-os ou não ao quadro geral de referências culturais aquela específica comunidade (Martín-Barbero, 2006).

Diante dessas considerações iniciais e com base em estudos precedentes (Seixas, 2006), este trabalho parte das seguintes hipóteses: 1ª) é impossível efetivar homogeneização cultural plena em qualquer lugar do mundo e, portanto, também na América Latina. Poderosas forças de autoafirmação cultural e identitária são mobilizadas para resistir à tendência de homogeneização cultural desejada por potências dominantes da sociedade internacional. Nos limites deste trabalho não há possibilidade de explorar como essas forças de resistência operam. Essa tarefa foi realizada noutro estudo ao qual se remete o leitor (Seixas, 2008). 2ª) qualquer projeto de integração dos países da América Latina só terá possibilidade de êxito duradouro se contemplar o multiculturalismo e a plurinacionalidade existentes na região. Processos latino-americanos de integração econômica, social ou mesmo política precisam estabelecer de modo claro, democrático e flexível políticas abrangentes do multiculturalismo e da plurinacionalidade acima referidos. Tendo em vista os limites editoriais a que este trabalho tem que se adequar, para testar as hipóteses de pesquisa é imperativo fazer recortes, adiante especificados.

O objeto central deste estudo é investigar se há e como está configurada uma identidade latino-americana, uniforme e compartilhada por todos os povos habitantes da região, ou se, ao contrário, há múltiplas identidades latino-americanas, as quais se transformam continuamente e formam um mosaico cultural na região. As questões fundamentais que este estudo quer examinar são as seguintes:

Existe uma identidade cultural genuinamente latino-americana? Se essa identidade cultural existir, quais seriam os elementos gerais ou particulares de identificação cultural que a caracterizariam? Como os elementos gerais de identificação da cultura ocidental dominante ou hegemônica (européia e norte-americana) coexistiriam com os elementos de identidade cultural da América Latina?

Como primeiro recorte desta pesquisa optou-se por isolar os povos da América Latina de seus contatos com outros povos, especialmente os europeus e os norte-americanos. Por isto, escolheu-se um período da história dos povos pré-colombianos anterior aos descobrimentos europeus. Nesse contexto, os habitantes da hoje chamada América Latina não estavam sob as imposições ou influências culturais de povos alienígenas conquistadores, colonizadores ou imperialistas. O segundo recorte da pesquisa põe foco nas chamadas “altas civilizações pré-colombianas”. Em decorrência da amplitude territorial, do poder, do desenvolvimento cultural, tecnológico e político dessas civilizações, puderam exercer imensa influência sobre os povos que vieram a dominar antes da chegada dos descobridores europeus. Todavia, como se verá no decorrer deste trabalho, nenhuma das altas civilizações pré-colombianas conseguiu forjar uma única cultura, dominante, homogênea. Ao contrário, todas elas precisaram formar alianças com os povos dominados e, em maior ou menor grau, aceitar as especificidades culturais locais de cada um deles. O terceiro recorte da pesquisa limita o estudo às três civilizações pré-colombianas mais desenvolvidas: maia, asteca e inca. Mais uma vez, os limites editoriais definidos para este trabalho não permitem exposição das características de cada uma das três civilizações selecionadas. Tal análise foi realizada noutro trabalho (Seixas, 2006).  Aqui serão examinados aspectos gerais comuns às três civilizações estudadas. Por fim, o quarto recorte do estudo diz respeito ao grau de generalização ou de especificidade a ser adotado para examinar o fenômeno da identidade cultural. Para examinar as questões fundamentais apresentadas acima, foi necessário estabelecer certo grau de generalização a respeito da identidade cultural. Optou-se por partir de critérios mais amplos, generalizantes, universalizantes, suficientes para poder abranger o maior número possível de grupos sociais latino-americanos. Somente assim se poderá falar de identidade cultural da ou na América Latina. Portanto, não são objetivos deste trabalho estudar: (i) as especificidades de culturas locais latino-americanas comparadas umas com as outras; e (ii) as especificidades culturais de certas classes sociais em contraste com outras classes dentro do mesmo grupamento social. Noutras palavras, não é objetivo desta pesquisa estudar a identidade cultural da América Latina considerando, por exemplo, se os elementos culturais preponderantes no sertão nordestino brasileiro teriam penetrado na cultura dos povos andinos, ou vice-versa.

Desde logo é bom esclarecer aqui que as expressões “culturas hegemônicas” ou “culturas não hegemônicas” não terão, neste trabalho, a significação específica que Gramsci atribuiu à hegemonia(Bobbio, Mateucci et Pasquino, 2004). Para Gramsci, a hegemonia pressupõe que um certo poder é imposto por um grupo social a outro e, por meio de mecanismos ideológicos, tal imposição aparece como natural e legitimada perante o grupo sujeito àquele poder, que o aceita de modo mais pacífico. Neste trabalho usa-se a palavra “hegemonia” num sentido mais amplo que, em certa medida, contém a significação que lhe foi dada por Gramsci, porém abrange também a situação em que, em certo lugar, momento histórico e contexto, um poder ou elemento cultural prepondera sobre outros poderes ou elementos culturais concorrentes, quer sejam ou não aceitos pelos grupos sociais sujeitos ao poder ou elemento cultural preponderante.

1. Desenvolvimento cultural autônomo na América Latina

Não considerada a fase contemporânea da globalização, a identidade cultural na América Latina apresenta três fases importantes. A primeira diz respeito ao povoamento das Américas, em que grupos diferentes se instalaram na região e desenvolveram suas próprias culturas. Depois, como conseqüência do processo evolutivo da fase anterior, vem a fase das altas civilizações americanas pré-coloniais. Essas duas primeiras fases são importantes porque refletem o desenvolvimento cultural autônomo das Américas, em particular do que viria a ser a América Latina. A literatura adiante referida costuma dizer que as Américas tiveram desenvolvimento cultural autóctone depois que a passagem pelo estreito de Bering foi interrompida, impedindo assim que influências culturais exteriores continuassem a ser transmitidas para o Novo Continente. Isto significa que durante muito tempo os povos americanos desenvolveram sua cultura particular, refletida nas estruturas econômicas, sociais e políticas que cada povo adotava. A terceira fase importante foi a da colonização dos povos americanos pelos europeus. A partir dessa última fase, diversos elementos culturais das civilizações dominantes ou hegemônicas da Europa foram transplantados para a América Latina e Caribe. Ocorreram choques culturais amplos e profundos. A predominância da cultura dos colonizadores é marcante desde então, mas não foi suficiente para eliminar muitos dos elementos culturais indígenas. Por essas razões, sem nenhuma pretensão de narrar a história dos povos americanos em algumas páginas, o desenvolvimento deste estudo procurou acompanhar as três principais fases evolutivas da cultura latino-americana, acima indicadas.

A intenção é destacar alguns elementos culturais de cada uma das fases, na medida em que pareceram pertinentes para os fins deste trabalho. Durante a pesquisa foram examinadas as estruturas culturais, sociais, econômicas e políticas dos povos estudados. Constatou-se que muitos dos elementos culturais da América Latina pré-colonial têm paralelo com outras culturas, especialmente a cultura européia: princípios de organização política do Estado; estrutura social classista; separação entre trabalho intelectual e braçal; sistema produtivo; cobrança de tributos; instrumentos de dominação ideológica, especialmente o uso da religião para esse fim. Na verdade, com base em conhecimentos gerais de História, foi possível constatar que alguns desses elementos culturais são arquetípicos e estão presentes em muitas outras civilizações. Todavia, no caso específico dos povos americanos pré-coloniais, a combinação desses elementos culturais teve a marca local. Mesmo invocando arquétipos, cada um desses povos fez suas próprias narrativas míticas que possibilitaram a coesão interna de sua cultura. Assim, sobre o modelo arquetípico geral, os pré-colombianos imprimiram seus elementos culturais particulares. É óbvio que os limites definidos para a realização deste trabalho não permitem que se faça um rastreamento de todas as culturas e um exame particular e profundo de cada uma delas. Na verdade, o que se quer é apresentar algo como uma fotografia, ou no máximo um “curta metragem” das culturas selecionadas. O fundamental é encontrar elementos culturais com base nos quais se possa reconhecer uma ou mais identidades da América Latina, sempre a partir de graus de generalização.


2. As primeiras culturas na fase de povoamento das Américas

Muitas culturas ancestrais latino-americanas desapareceram ou, no máximo, deixaram alguns traços incorporados em culturas posteriores. Com base em documentação arqueológica, estudiosos estimam que a presença humana nas Américas começou por volta de 50.000 anos atrás. Contingentes humanos teriam migrado da Ásia, atravessado o estreito de Bering, que naquela época estaria congelado e formava uma ponte entre a Ásia e a América do Norte. Essas correntes migratórias chegaram à América do Norte, de onde foram se reproduzindo e se deslocando para a América Central e depois para a América do Sul. Se essa suposição estiver correta, sua conseqüência mais importante seria que, terminada a glaciação e interrompida a passagem pelo estreito de Bering, os povos americanos teriam ficado ilhados e, por isto, teriam desenvolvido culturas autóctones. Por outro lado, há indícios arqueológicos de que contingentes migratórios da Polinésia também teriam chegado por mar em embarcações primitivas. Seja como for, o fato é que esses primeiros povoadores das Américas desenvolveram culturas próprias, vez por outra revelando alguma semelhança com culturas asiáticas e polinésias. Eram inicialmente povos nômades, dedicados à caça e à coleta, eventualmente à pesca. Teriam uma organização de bandos, com lideranças circunstanciais. Muito lentamente iniciaram um processo de fixação de povoamentos e de sedentarização, que passou a ser mais evidente há aproximadamente 10.000 anos atrás, conforme dados arqueológicos disponíveis (Cardoso, 1981).

Em função da característica nômade ou seminômade desses primeiros povoadores americanos, seus constantes deslocamentos em busca de melhores condições de sobrevivência provocaram constantes choques entre os diferentes grupos. Em conseqüência, desde muito cedo os povos americanos convivem com a profunda questão de identidade cultural. Grupos dominantes ou hegemônicos certamente desejavam impor não só o seu poder, mas também a sua cultura aos grupos subjugados. Portanto, o conflito entre culturas dominantes ou hegemônicas e não hegemônicas não é um fenômeno atual na América Latina. Começou há milhares de anos atrás e apresenta a mesma questão central: a luta simbólica de vida ou morte entre culturas que querem se autoafirmar e ter reconhecido o seu valor diante de outra diferente. É claro que os conflitos culturais contemporâneos são muitíssimo mais complexos, profundos e abrangentes do que os conflitos culturais entre alguns povos nômades ancestrais. Porém isto não altera a questão essencial acima indicada. Nesse contexto, é fácil admitir que centenas de culturas surgiram nas Américas. Algumas desapareceram completamente; outras se miscigenaram; e outras mais tiveram seus períodos de dominância ou hegemonia. Quais dessas culturas resgatar para construir uma identidade cultural americana? No caso específico da América Latina, haveria um conjunto de elementos culturais que, reunidos, seriam suficientes para que se possa afirmar: esse é o rosto da América Latina?!

3. Identidade cultural nas altas civilizações da América Latina pré-colonial

A identidade cultural de qualquer grupo social é construída com elementos culturais arquetípicos, híbridos ou dominantes.[1] Todos esses elementos se combinam e se complementam para juntos comporem uma identidade cultural. Por isto, a identidade cultural latino-americana será construída com elementos culturais daquelas três espécies. Terá elementos ancestrais de identificação cultural; terá outros elementos de diversas culturas que precisam coexistir sob certas circunstâncias; terá elementos culturais subjugados por outras culturas em certos momentos; e terá elementos culturais que simbolizarão a auto-afirmação da identidade latino-americana perante culturas rivais.

Atualmente está em pauta a necessidade de afirmação da cultura da América Latina em face de culturas dominantes ou hegemônicas. Então, quais são os elementos de identificação cultural da América Latina que lhe permitirão se autoafirmar em face das culturas concorrentes? É muito simplista tratar essa questão reduzindo-a exclusivamente, ou preponderantemente, a uma oposição ideológica entre capitalismo versus comunismo/socialismo. Tem sido comum na literatura(por exemplo, Peregalli, 1994) afirmar que o passado das civilizações latino-americanas está associado à posse comum dos meios de produção, a um sistema de reciprocidade tributária entre os Estados e as comunidades, etc. A partir do modelo marxista, muitos autores têm pretendido “reconhecer” na América Latina uma vocação inata, intrínseca, para o comunismo e socialismo (Ferreira, 1991). Tal oposição ideológica, tomada isoladamente, não pode ser suficiente para definir a identidade cultural de nenhum povo. Em primeiro lugar, porque os modelos marxistas (como qualquer construção teórica) são ideais e nem sempre encontram exata correspondência na realidade. Apresentam anomalias, portanto. Em segundo lugar, porque as duas ideologias postas em confronto pressupõem elementos de identificação que não são específicos nem para a América Latina nem para qualquer outro povo. Uma sociedade dizer-se capitalista, comunista, socialista não define sua identidade. Chineses, russos, coreanos do norte e alemães orientais eram todos povos que adotaram ideologia e regime produtivo comunista e, no entanto, ninguém se atreveria a dizer que esses povos têm a mesma identidade cultural. Inglaterra e Índia adotam o capitalismo e têm identidades culturais profundamente distintas. Em terceiro lugar, porque no caso específico da América Latina, as civilizações mais adiantadas (maia, asteca e inca) apresentavam traços extremamente contraditórios no que concerne à sua suposta vocação para o comunismo ou para o socialismo. Havia indicações muito fortes da criação de formas diferenciadas de uso dos meios de produção, tendentes à configuração de propriedade privada, ou algo parecido com esta; havia inequívoca organização social em classes, algumas vezes sendo impossível a ascensão social; havia evidências irrefutáveis de exploração de uma classe por outras. Em quarto lugar, porque as estruturas sociais e produtivas das civilizações latino-americanas ancestrais estavam intimamente relacionadas com o fenômeno religioso, que na verdade moldava e justificava aquelas estruturas. Querer interpretar tais estruturas a partir e exclusivamente do materialismo histórico marxista não é suficiente para compreender a complexidade cultural daqueles povos. Assim como não se pode entender e compreender a civilização egípcia[2] ou a muçulmana[3] sem recorrer ao elemento religioso e mítico, também no caso das civilizações latino-americanas pré-coloniais não se pode estudar seu sistema produtivo e sua estrutura social sem relacioná-los com o profundo sentimento religioso daqueles povos. Era a religião que dava coesão às estruturas sociais e produtivas das civilizações latino-americanas pré-coloniais. Tanto isto é verdade que, após a conquista da região pelos colonizadores europeus, bastou desarticular o sistema religioso para esfacelar os sistemas social e produtivo dos povos dominados (Romano, 1989). Em quinto lugar, se fosse verdade que a América Latina inteira teria uma vocação inata para adotar o modelo produtivo comunista ou socialista e ter estruturas sociais correspondentes àquele modelo, teria sido possível para Bolívar realizar a unificação latino-americana no início do século XIX, na medida em que se dispusesse a adotar aquelas estruturas. Bem ao contrário, estão em curso na América Latina diversos processos de integração. Todos esses processos integracionistas avançam com extrema lentidão e muita dificuldade. Isto revela que os elementos de identificação econômica e ideológica não são suficientes para configurar uma identidade cultural universal entre dois ou mais povos e, obviamente, não dão nenhuma identidade própria para a América Latina. Finalmente, em sexto lugar, não se pode desconsiderar que a história da América Latina pré-colonial é a história de lutas incessantes entre seus povos, em disputa por terras e por mão-de-obra obrigada a trabalhar em troca de subsistência e de vida muito humilde. Não se pode dizer que as estruturas sócio-econômicas adotadas, por exemplo, pelos Estados maia, asteca e inca eram boas e justas apenas porque tais estados, muitas vezes apenas em retórica, garantiam aos seus súditos alimentação, vestuário, aposentadoria, educação. O sistema tributário adotado nessas civilizações só poderia ser justificado ideologicamente mediante essas retribuições. Os camponeses, artesãos e soldados comuns viviam apenas com os recursos imprescindíveis para sua subsistência. Dentro do sistema não havia possibilidade alguma de acumularem excedentes para si mesmos. Não podiam enriquecer. Todo o excedente da produção era destinado ao Estado, cujas despesas eram crescentes e obrigavam-no a exigir cada vez mais tributos das classes inferiores. Além disso, a super expansão dos impérios (imperial overstretching) criava a necessidade contínua de obter mais terras a serem cultivadas, para que houvesse maior arrecadação tributária. Esse círculo vicioso provocava infindáveis lutas entre os povos latino-americanos pré-coloniais. Cada um desses povos queria, por um lado, expandir sua dominação ou hegemonia ou, por outro lado, livrar-se da dominação imposta por povo rival. Em qualquer dessas duas situações, não se alteravam as condições de vida dos camponeses e outras classes sociais baixas: continuavam a trabalhar em troca de subsistência; não tinham direito de reter qualquer riqueza material para si mesmos; pagavam tributos cada vez maiores ora a um senhor, ora a outro; eram mantidos afastados da alfabetização e de qualquer forma de educação que pudesse levá-los a questionar o sistema vigente.

Como se vê, não é razoável querer definir a identidade da América Latina recorrendo apenas à oposição ideológica entre capitalismo, comunismo ou socialismo. É claro que em alguma medida esses elementos também são importantes para, em conjunto com outros, compor a identidade cultural de um povo. É preciso, então, procurar identificar quais seriam os outros elementos culturais com base nos quais, adotado certo grau de generalização, seria possível configurar de modo mais estável uma identidade cultural da América Latina.

4. Geografia e identidade cultural na América Latina

A geografia pode não ser absolutamente determinante para a construção de identidades culturais, mas é certo que as influencia significativamente. No caso específico da América Latina, o meio geográfico influenciou de modo evidente a formação e a afirmação de culturas locais, que não foram totalmente eliminadas nem mesmo pelo poderio das altas civilizações maia, asteca e inca.

Na América Latina há quatro grandes regiões, ou subsistemas geográficos (Mello, 1996) que tiveram grande importância no desenvolvimento cultural: a) a América Central e Caribe; b) o subsistema amazônico; c) o subsistema andino; e d) o subsistema platino. Cada um desses subsistemas apresenta subdivisões, como é o caso do subsistema andino, que tem faixas paralelas à Cordilheira dos Andes formando costa litorânea, faixas desérticas ou semi-áridas, escarpas montanhosas e platôs andinos. Nesse subsistema desenvolveram-se as culturas dos povos andinos. Embora esses diferentes povos apresentes traços identitários comuns, cada um deles tem ainda hoje forte sentimento de sua cultura local e específica. Por exemplo, o trançados dos tecidos, suas cores e ocasiões de uso indicam a posição do indivíduo na hierarquia social, seu estado civil, etc. O subsistema amazônico domina grande parte da América Latina. Não se pode atribuir ao meio geográfico caráter determinante de uma cultura específica, porém é impossível negar que a floresta amazônica influencia em grande parte as formas de ocupação humana do território, os sistemas de produção e mesmo a organização social dos povos que nela habitam. No subsistema platino há desertos e geleiras e ali também se desenvolveram culturas específicas que resistem até os dias atuais.

O fato de o ser humano ter notável aptidão para se adaptar a ambientes geográficos variados evidencia que estes interferem na formação da identidade cultural de um povo. Esta diversidade de meios geográficos explica em parte a grande dificuldade com que avançam os processos de integração econômica, política e cultural na América Latina.

5. Eliminação da memória coletiva e cultural na América Latina pré-colonial

A reconstrução da memória coletiva e cultural na América Latina é especialmente difícil por causa da escassez de documentos históricos que revelem elementos culturais dos povos americanos antes da conquista da região pelos colonizadores europeus. Os espanhóis, em especial, ao conquistarem os povos maia, asteca e inca, destruíram templos, palácios, cidades, objetos rituais e de arte, documentos, registros administrativos e contábeis, desenhos, pinturas, painéis narrativos. A destruição desse acervo de documentos e cidades prejudica demais a tentativa de reconstruir de maneira fiel a cultura daquelas civilizações. No caso das culturas dos povos indígenas brasileiros, a situação foi um pouco diferente (Castro, 1992). O colonizador português encontrou indígenas que ainda estavam em fase cultural do período neolítico bem anterior às fases em que estavam os maias, astecas ou incas. Por isto, o índio brasileiro não chegou a construir cidades, palácios, templos e não tinha escrita nem administração de um Estado. Desse modo, a reconstituição do universo cultural do indígena brasileiro é mais fácil, porque muitas comunidades ainda hoje vivem como viviam seus antepassados antes da conlonização lusitana. Isto tem permitido aos antropólogos e sociólogos estudar e compreender o indígena brasileiro com relativa precisão (Lévy-Strauss, 1993).  Em qualquer desses casos, a reconstituição do universo cultural dos povos latino-americanos depende, em primeiro lugar, da documentação arqueológica disponível, dos relatos orais colhidos junto aos seus descendentes, em comunidades mais ou menos preservadas, e em documentos históricos posteriores à colonização européia. Entre estes últimos, têm especial importância os documentos denominados “visitações”[4] que, com todas as ressalvas necessárias, dão uma idéia a respeito de vários aspectos culturais dos povos submetidos ao domínio europeu, tais como estrutura social, estrutura econômica, vestuário, hábitos alimentares, festividades, divindades adoradas, rituais religiosos, sistema administrativo, organização política, estado geral de saúde dos povos, tipo de habitação, organização familiar, relação entre população rural e urbana, etc.

6. Aspectos da cosmologia e da cultural das altas civilizações pré-colombianas

Toda e qualquer cultura dotada de um mínimo de organização interna constrói sistemas explicativos do mundo, criando modelos de conduta que devem ser seguidos e obedecidos pelos indivíduos e pelo grupo social. São esses sistemas e estruturas que dão sentido e coesão à sociedade. Em síntese, a produção e sistematização de uma cosmologia social é imprescindível para o funcionamento e para a reprodução mental e material de qualquer sociedade. No caso específico das chamadas “altas culturas” pré-coloniais centro e sul-americanas, e mesmo naquelas culturas americanas que não chegaram a alcançar esse estágio de organização cultural, as narrativas do imaginário social assumiram enorme importância. A sistematização cultural não era apenas uma forma de conhecimento abstrato. Ao contrário, as narrativas míticas e simbólicas faziam parte do cotidiano desses povos porque estavam intimamente associadas a todo o sistema produtivo e às estruturas e instituições sociais. Todos esses povos americanos viviam fundamentalmente da produção agrícola. Conhecer e prever os fenômenos da natureza era, portanto, absolutamente essencial para sua sobrevivência e reprodução. Tal necessidade os levou – pela prática e pela observação cuidadosa dos fatos da natureza – a constatar a correlação muito estreita entre os movimentos dos corpos celestes e a ordem e o ritmo dos fatos da natureza, em especial a sucessão das estações do ano, os períodos de chuva, o movimento das marés, etc. Com base nesses conhecimentos, foi possível ao homem americano adaptar suas forças produtivas às exigências da natureza. Nesse contexto, o trabalho de identificação, compreensão e organização dos movimentos dos corpos celestes e de sua relação com a produção agrícola tornou-se cada vez mais complexo e especializado. Essa atividade deu origem a uma classe sacerdotal, cada vez mais especializada em identificar e interpretar a vontade divina comunicada aos humanos por meio das estrelas, do Sol e da Lua. Para que essa missão dos sacerdotes fosse adequadamente realizada, centros cerimoniais foram construídos tanto para o culto às divindades como para permitir melhor observação do céu. Conseqüentemente, também se tornou necessário criar uma burocracia a serviço desses centros cerimoniais e, logo depois, com o crescimento dos centros urbanos, teve que surgir uma burocracia administrativa. Os movimentos migratórios dos povos americanos geraram conflitos: primeiro, entre grupos nômades e sedentários; depois, entre grupos sedentários que disputavam entre si terras férteis. Daí a necessidade da criação e manutenção de uma classe de guerreiros em cada sociedade. Os favores e a proteção das divindades eram, pois, preocupação constante na vida cotidiana dos povos americanos. Por isto, a força das narrativas simbólicas entre eles era muito significativa (Soustelle, 1997). A concepção cosmogênica de cada um desses povos era expressa e traduzida por meio não só das narrativas, mas da prática ritual observada em diversos momentos do dia. Em todas as civilizações americanas pré-coloniais havia estruturas sociais de classes bem nítidas. A base social era composta por grande número de camponeses que, com seu trabalho e por meio do pagamento dos tributos, sustentavam todas as demais classes improdutivas. Essas estruturas sociais eram profundamente justificadas e legitimadas por meio da religião e, sobretudo, por mecanismos que impediam os camponeses e as classes inferiores de acumularem qualquer tipo de poder: não recebiam educação que lhes permitisse criticar os fundamentos do sistema; não podiam acumular qualquer riqueza material; não tinham outras formas de se fazerem representar perante os poderes dominantes ou hegemônicos a não ser através das pessoas que as classes dominantes indicavam, as quais, por sua vez, tinham inequívoco interesse na manutenção do sistema. Cabe aqui observar que todas as civilizações americanas pré-coloniais baseavam-se preponderantemente na cultura do milho, que foi iniciada provavelmente pelos maias e depois se espalhou por toda a América Central e a América do Sul. Por isto, para tais civilizações, o milho tinha o mesmo significado simbólico e sagrado que têm o trigo e o pão para as civilizações cristãs, por exemplo.

Enfim, de modo geral, as altas civilizações pré-colombianas compartilhavam as mesmas concepções cosmogênicas; cultuavam mais ou menos as mesmas divindades (apesar das designações diferentes com que se referiam a estas); seguiam os mesmos princípios religiosos, adotavam o mesmo sistema produtivo e econômico; tinham estruturas sociais praticamente idênticas; com algumas especificidades, administravam seus territórios com base nos mesmos princípios e técnicas; apresentavam graus de desenvolvimento tecnológico muitíssimo semelhantes; cada uma delas acreditava-se escolhida pelos deuses para cumprir uma missão civilizatória dos povos que subjugavam. Mesmo com tantos traços identitários em comum, nenhuma dessas civilizações pré-colombianas consegui impor às demais uma única cultura homogênea e aceita por todos sua própria identidade cultural. O Império Inca, única civilização pré-colombiana que de modo apropriado merece a designação de império, jamais logrou impor totalmente sua cultura aos povos que dominou.

De fato, os incas conseguiram formar um Estado fortemente centralizado e bem administrado, dotado de aparelhamento político, militar, religioso e cultural organizado de modo a manter sob sua autoridade os povos submetidos. Além disto, foi também a única civilização americana que expandiu seu território a ponto de abranger, pelo menos em parte, os três subsistemas geopolíticos que caracterizam a América do Sul: o subsistema amazônico, o subsistema andino e o subsistema platino. O Império inca abrangeu grande parte da zona costeira do Oceano Pacífico, da Cordilheira dos Andes e da floresta amazônica (na porção não brasileira), absorvendo significativas porções dos territórios hoje ocupados pela Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Argentina e Chile. Em cada um desses subsistemas geopolíticos há subdivisões internas, decorrentes de alterações no meio geográfico, às vezes drásticas. Por exemplo, na parte peruana do Império inca, a civilização se espalhou pelo litoral costeiro do Oceano Pacífico, escalou a Cordilheira dos Andes e penetrou em parte da floresta amazônica. Mas a tendência do Império inca foi a de acompanhar o trajeto da Cordilheira dos Andes, ao longo da qual a geografia dispõe o ambiente em faixas litorânea (às vezes entremeada de desertos ou zonas áridas), montanhosa e de floresta tropical. Essas faixas são freqüentemente cortadas por vales transversais. As características geográficas encontradas influenciaram a formação de povoados relativamente isolados uns dos outros e, mais tarde, comunidades com traços nítidos de cidades-estado, dotadas de forte sentimento de identidade local. Por isso, é realmente admirável o projeto de unificação imperial levado a cabo pelos incas, que conseguiram ser criativos para, por um lado, impor sua dominação a essas comunidades locais e, por outro lado, assegurar que tais comunidades não perdessem seu próprio senso de identidade e, assim, aceitassem de modo relativamente pacífico e duradouro o domínio inca. A herança cultural e administrativa que os incas receberam dos huaris, tihuanacos e mochicas certamente lhes facilitou o projeto imperial. Esse fenômeno não foi possível nas civilizações maia e asteca.

A célula fundamental do Império Inca era formada pelas comunidades camponesas, denominadas ayllus (Favre, 1985). Nessas comunidades a coesão social era determinada por vínculos sanguíneos, dos quais resultavam diferentes graus de parentesco, e também pela crença dos camponeses de que todos eles descendiam dos mesmos ancestrais míticos. Assim, a justificativa ideológica para a dominação inca se baseava exatamente no parentesco de antepassados míticos divinos, cuja vontade ancestral se materializou na formação de um grande império. Nessas condições, os incas criaram e mantiveram um império centralizado que absorvia milhões de pessoas, impuseram uma língua e uma religião comuns a esses povos (mas tolerando os línguas maternas e os cultos locais). Os métodos dos incas para realizar esse grandioso projeto foram variados, mas envolveram formas generalizadas de violência. Uma das formas mais freqüentes de imposição da dominação, chamada mitamáes, consistia em dividir os povos indóceis e deslocá-los de suas regiões de origem para fixá-los em locais distantes. Com esse procedimento, os incas, rompiam os laços de parentesco, de religião e de identidade local que uniam os rebeldes, tornando muito mais eficaz o sistema de dominação. Outra técnica freqüente de dominação usada pelos incas era a manutenção de reféns, inclusive múmias dos nobres e sacerdotes dos povos dominados. Capturavam as múmias, os líderes e seus familiares de uma comunidade e os mantinham como reféns na capital do Império. Isto assegurava a colaboração da comunidade dominada, temerosa de que seus antepassados mumificados, líderes e sacerdotes não mais retornassem, o que significava, na prática, interromper o diálogo entre os homens comuns e os deuses, pois esse diálogo era intermediado pelos entes mumificados, pelos líderes e sacerdotes de cada comunidade. Uma variação dessa técnica era manter como reféns dos incas apenas os filhos dos nobres da comunidade dominada. Esses reféns seriam educados em escolas incas, a fim assimilarem a cultura inca e reproduzi-la posteriormente nas suas comunidades de origem, para as quais retornavam como novos líderes ou novos sacerdotes (Peragalli, 1994). Acrescente-se a tudo isto o fato de que os incas criaram inúmeras vias de comunicação e estradas que ligavam todas as regiões do Império. Essas vias e estradas eram percorridas rapidamente por mensageiros (chasquis), que tornavam muito eficiente o sistema de comunicação e de troca de informações entre o governo central e as demais regiões dominadas pelos incas.

Para obter a máxima eficiência da estrutura produtiva de seu Império, os incas adotaram duas medidas muito importantes: em primeiro lugar, permitiram que as comunidades locais mantivessem seus cultos religiosos e suas próprias divindades, mas incorporaram naquelas comunidades o culto às divindades incas; em segundo lugar, os incas mantiveram a autoridade e o prestígio do chefe de cada ayllu, o qual, por sua vez, em troca da preservação de seu status, devia fidelidade ao Estado Inca. Formou-se, portanto, uma complexa e delicada rede de alianças entre os líderes de cada ayllu e o Estado Inca: este, em geral, não abolia os privilégios desses líderes locais, mas exigia deles que trabalhassem em favor da difusão e realização dos interesses incas perante a comunidade local. Por conseguinte, no plano ideológico, o pagamento de tributos pela comunidade ao Estado Inca aparecia como legítimo, porque intermediado pelo chefe do ayllu e porque associado a um sistema de reciprocidade garantido pelos incas.

Assim como no Império Inca, também nas civilizações maia e asteca a expansão baseou-se, num primeiro momento, no poderio militar. Mas a manutenção e expansão dessas civilizações realmente dependeu dos mecanismos ideológicos e culturais de controle dos povos submetidos.  O sistema de dominação envolvia mecanismos de cooptação dos líderes locais, bem como mecanismos de persuasão da comunidade para aceitar consensualmente a hegemonia dos dominadores e pagar os tributos devidos sem grande resistência. Portanto, o hard power era substituído ou apoiado pelo soft power, no sentido que Joseph Nye usa esses termos atualmente (Nye, 2002).

Um último aspecto cultural comum entre os incas, astecas e maias e que merece registro é o caráter autárquico de suas economias. Todas essas civilizações apoiavam-se num sistema econômico fechado ao comércio exterior. Eram civilizações com economia predominantemente agrícola. Havia pouca atividade comercial entre os diferentes povos. Cada comunidade tendia a produzir tudo o que precisava, de tal modo que não havia condições favoráveis ao comércio em larga escala. Além disso, como foi comentado, os camponeses não acumulavam excedentes econômicos para si, razão pela qual os lucros comerciais tendiam a ser pequenos. Apenas os maias superaram em parte essas deficiências e constituíram uma verdadeira classe de comerciantes.

Considerações finais

Não têm fundamento razoável os discursos acadêmicos e políticos atualmente correntes, no sentido de que a América Latina estaria sendo vítima da supressão de sua identidade cultural em razão da imposição da cultura de outros povos dominantes da sociedade internacional. Esse tipo de homogeneização cultural jamais aconteceu na história da humanidade e nem tem possibilidade de acontecer especificamente na América Latina. É oportuno retomar as indagações fundamentais que motivaram este estudo:

Existe uma identidade cultural genuinamente latino-americana? Se essa identidade cultural existir, quais seriam os elementos gerais ou particulares de identificação cultural que a caracterizariam? Como os elementos gerais de identificação da cultura ocidental dominante ou hegemônica (européia e norte-americana) coexistiriam com os elementos de identidade cultural da América Latina?

Neste trabalho foi dito que o desenvolvimento cultural da América Latina ocorreu em três principais fases: a do povoamento das Américas; a de formação e apogeu das altas culturas pré-colombianas; e a fase de formação da cultura colonial na região e de seus principais desdobramentos. As duas primeiras fases apresentaram elementos culturais desenvolvidos pelos povos americanos de modo autóctone, pois estavam em estado de isolamento em relação a outras civilizações. No entanto, as estruturas econômicas, sociais, políticas desses povos revelam elementos culturais comuns a outras civilizações e povos não americanos, indicando importante influência de arquétipos culturais também na América Latina. Apesar disto, os povos e civilizações pré-coloniais imprimiram suas marcas nessas estruturas, conciliando ao longo de muitos séculos os elementos culturais arquetípicos com os elementos das culturas locais. Na terceira fase, isto é, quando elementos da cultura européia foram introduzidos rapidamente no universo cultural dos povos indígenas latino-americanos, ocorreram drásticos choques culturais, em que a dominação ou hegemonia cultural da Europa prevaleceu. Todavia, subsistiram alguns fortes elementos culturais indígenas das fases anteriores à colonização.

A análise desenvolvida evidenciou que o problema de choques culturais na América Latina é verdadeiramente ancestral. Desde que as Américas começaram a ser povoadas, grupos humanos persistentemente entram em confrontos uns com os outros. Quaisquer que sejam os motivos desses infindáveis confrontos, em todos eles há uma constante: uma cultura pretende ter hegemonia sobre a cultura rival e ambas lutam buscando o reconhecimento de seu valor e querem se autoafirmar perante culturas rivais. Portanto, falar em identidade cultural latino-americana obriga o pesquisador, em maior ou menor grau, a revolver esse gigantesco mosaico cultural. Minha percepção é de que a cultura na América Latina (claro que noutras partes do mundo também) se assemelha a uma rocha sedimentar. Há camadas culturais muito antigas, às quais se sobrepõem camadas culturais mais recentes, de modo que as vejo “empilhadas” conforme sua ordem de antiguidade e da dominação ou hegemonia que cada qual conseguiu ter em certo momento histórico. Mas em alguns pontos essa rocha sedimentar está partida e, então, é possível enxergar perfeitamente os restos ou “cacos” de culturas antigas que afloram e põem-se em contato com as camadas culturais mais atuais. Ao revolver esse “entulho”, ficamos procurando onde encaixar o “caco” perdido, conforme o colorido dos seus traços sedimentares. Ao realizar essa tentativa de encaixar a peça cultural perdida, é possível observar que há muitos pedaços da rocha sedimentar cultural em que o caco poderia encontrar seu lugar. A rocha cultural, enfim, tem uma composição mais ou menos uniforme, ainda que suas diferentes camadas tenham sido formadas com materiais distintos. Mas é exatamente a combinação de todos esses materiais que dá coesão, consistência, solidez a essa rocha cultural. Mesmo com uma fratura aqui ou ali, o caco cultural pode ser reintegrado à rocha sedimentar cultural, porque é parte dela.

Por esses motivos, não se pode falar de uma identidade da ou na América Latina. A região é um mosaico multidimensional e multicolorido de culturas que se articulam, que têm muitos traços identitários comuns, mas que não abdicam de seus fortes sentimentos de pertencimento a culturas locais bem caracterizadas. Como outras partes do mundo, também a América Latina é multicultural e plurinacional. É de fato impossível pretender a homogneização cultural latino-americana. Os processos de integração que estão em curso na América Latina precisarão contemplar o multiculturalismo e a plurinacionalidade da região. Os processos de mediação simbólica, cultural, na América Latina se desenvolvem desde tempos ancestrais. Continuarão a ocorrer na contemporaneidade, obviamente com maior complexidade e velocidades. No entanto, as as culturas locais dispõem de mecanismos internos mais ou menos eficientes para que não se desintegrem totalmente. Isto faz parte do processo dialético de autoafirmação cultural quando ocorrem os choques entre culturas locais e cultura global. O processo global de integração cultural, que tende a homogeneizar culturas, é o mesmo que, paradoxalmente, acentua as diferenças culturais. Trata-se de processo dialético que envolve a alteridade global-local para construir, reconstruir, transformar, diluir ou miscigenar a identidade cultural do indivíduo e da própria sociedade, hoje de escala planetária (Seixas, 2008).

Mesmo que esteja em curso um amplo e profundo processo de choques culturais provocados pela globalização (Huntington, 1997), esses sedimentos culturais irão se acomodar numa nova camada da grande rocha cultural. Alguns elementos da cultura dominante ou hegemônica vão prevalecer e ficar em sedimentos mais aparentes; alguns elementos das culturas não hegemônicas também vão prevalecer e ocupar o seu lugar na nova camada sedimentar da rocha cultural; finalmente, noutros casos, os materiais orgânicos de que são formadas as culturas dominantes ou hegemônicas e as não hegemônicas vão se misturar e, assim, formarão uma nova substância que se acomodará no seu espaço para formar a atual camada da rocha sedimentar cultural. E, tendo eu aprendido com os maias, com os astecas, com os incas e com os índios brasileiros, estou consciente de que o nosso ciclo também vai terminar. Depois dele, uma nova camada cultural será depositada na rocha que sustenta todas as civilizações …

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[1] É conveniente registrar aqui a conceituação desses elementos. Os elementos arquetípicos são compostos por fatores biogenéticos, pelos mitos e pelas narrativas que fixam a origem de uma certa sociedade. Esses fatores, por serem universais, estão presentes no inconsciente coletivo e freqüentemente emergem nas diversas manifestações da vida cotidiana. Os elementos culturais híbridos se originam das relações culturais intertextuais, dos contatos entre culturas diferentes, dos processos sincréticos de elementos culturais de povos distintos, de valores, ritos, símbolos que provêm de universos culturais diferentes e que são reorganizados num cosmos no âmbito de uma cultura específica. Finalmente, os elementos dominantes, que são os elementos selecionados pelos poderes hegemônicos no contexto de certa cultura, a partir de critérios que correspondam aos interesses daqueles poderes, e, a seguir, são disseminados para serem reabsorvidos pela sociedade com significados simbólicos também hegemônicos. É nesses sentidos, portanto, que neste trabalho serão feitas referências aos elementos culturais arquetípicos, híbridos e dominantes.

[2] MELLA, Federico A. Arborio. O Egito dos faraós: história, civilização, cultura. São Paulo: Hemus, 1994.

[3] DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004.

[4] As “visitações” consistiam em relatórios que os colonizadores faziam a respeito das informações que colhiam nas comunidades dos povos dominados.

Identidade cultural, comunicação e mediação simbólica nas sociedades de consumo do Mercosul: subsídios para aplicação do Direito do Consumidor

Prof. Dr. Renato Seixas, Prof. Alexandre Giorgio, Maria Elisabete Rabello, Juliane Cavalcante e Madai Mello

Resumo: as normas de proteção ao consumidor editadas pelo Mercosul para regular a comunicação no mercado de consumo adotam critérios utilitaristas e tecnicistas e, também, modelo comunicacional em que os consumidores são vistos como sujeitos receptores passivos. Tais normas não captam os aspectos dialéticos da comunicação e da mediação simbólica no mercado de consumo, que o tornam importante espaço para exercício da cidadania e para a reconstrução de identidades culturais.

Abstract: the consumers protection laws issued by Mercosul to regulate the communication within the consumer market adopt utilitary and technicist criteria and, also, a communication standard in which the consumers are seen as passive receivers. Such laws are not able to grasp the dialectical aspects of the communications and symbolic mediations in the consumer market that make it an important place to exercise the citizenship and to reconstruct cultural identities.

Sumário: Introdução. 1- Legislação do Mercosul sobre informação no mercado de consumo. 2- Liberdade de informação, identidade cultural e mediação simbólica nas sociedades de consumo. 3- Identidade cultural e comunicação nas sociedades tradicionais. 4- Identidade cultural e comunicação nas sociedades modernas. 5- Cultura, poder, informação e mediação simbólica no mercado de consumo. 6- Reformulação de identidade cultural no mercado de consumo. Considerações finais.

Introdução

A globalização contemporânea é multidimensional e desencadeia processos cada vez mais amplos, profundos e complexos de interdependência entre os diferentes atores das sociedades nacionais e internacionais. A produção de bens está estruturada em sofisticadas redes empresariais articuladas em escala mundial (Seixas, 2004). Os mercados de consumo estão integrados como nunca antes estiveram. Variedades infinitas de produtos e serviços são colocadas nesses mercados diariamente. Os consumidores são profundamente estudados em diversas áreas de conhecimento. Os mercados de produção e de consumo apresentam segmentação crescente. Fornecedores do mundo inteiro disputam a preferência dos consumidores por produtos e serviços. A competição acirrada obriga os fornecedores a buscarem estratégias eficientes de comunicação com os consumidores, de modo que estes últimos se identifiquem rapidamente com os produtos e serviços que lhes são oferecidos. O mercado de consumo torna-se um lugar imaginário para o exercício da cidadania (Canclini, 2005). Nesse lugar as relações multidimensionais de diferentes atores se entrelaçam e se transformam. Fornecedores não disputam apenas as preferências dos consumidores. Por outro lado, os consumidores não disputam somente os bens que lhes são oferecidos. No mercado de consumo são oferecidos e disputados valores simbólicos que refletem a cultura, a organização da sociedade e a distribuição de poderes entre seus atores. Processos dialéticos extremamente complexos se desenvolvem nesse ambiente, provocando transformações multidimensionais. Nesse contexto, merece atenção especial o estudo dos processos de afirmação ou de transformação da identidade cultural de certos grupos sociais e, de modo ainda mais específico, dos processos de comunicação social relacionados a tais aspectos culturais. O mercado de consumo não é, portanto, apenas um ambiente de disputas econômicas. Muito mais que isto, esse mercado é ambiente de disputas culturais (Seixas, 2006).  Nele, são disputados valores e ideias, que podem ou não ser representados por bens econômicos. Por isto, o desenvolvimento do mercado de consumo tende a corresponder ao amadurecimento da democracia em certa sociedade. A democracia pressupõe a livre manifestação e debate de ideias e valores que permeiam a vida social. Pressupõe, pois, a liberdade de informar, o direito de informar e o direito à informação. Daí decorre a importância de apresentar e compreender alguns aspectos do processo dialético de comunicação social nas modernas sociedades de consumo. Em particular, é preciso compreender como se comportam e que funções têm os atores envolvidos nesse processo, e também como provocam as transformações culturais que, por sua vez, realimentarão o ciclo.

Nesse ponto torna-se necessário verificar como, com que amplitude e com que profundidade as normas do Direito do Consumidor tentam captar a dinâmica e a complexidade dos processos de comunicação social nas sociedades de consumo modernas. Este trabalho pretende demonstrar que tais normas do Direito do Consumidor são essencialmente utilitárias, tecnicistas e, sobretudo, que são unidimensionais, pois não apreendem nem compreendem os complexos processos dialéticos de transformações culturais e de disputa de valores simbólicos que ocorrem no mercado de consumo. Referidas normas jurídicas são utilitárias e tecnicistas porque colocam em foco, de modo pobre e reducionista, a obrigação do fornecedor de prestar informações ao consumidor, e o direito do consumidor de receber aquelas informações, para que as práticas de consumo se realizem de modo seguro, consciente e equilibrado. As mesmas normas são unidimensionais porque se enclausuram numa torre de observação estritamente jurídica. Não captam, não compreendem e não conseguem regular os fenômenos multidimensionais relacionados ao processo de comunicação que se desenvolve no mercado de consumo de uma sociedade moderna, democrática, complexa, multicultural e provavelmente plurinacional.

Basta acentuar, por enquanto, alguns aspectos imediatamente relevantes, que serão aprofundados no decorrer deste trabalho. As normas jurídicas que regulam a obrigação do fornecedor de informar o consumidor baseiam-se em teorias da comunicação largamente ultrapassadas. Imaginam um emissor ativo (o fornecedor), que elabora uma mensagem comunicacional pronta e acabada (sobre o próprio fornecedor e sobre o bem de consumo), com significados pré-determinados, a ser transmitida a um receptor passivo (o consumidor), que simplesmente decodifica o conteúdo e o significado da mensagem comunicacional e a ela reage, praticando ou não o ato de consumo. Tal perspectiva unidimensional põe em evidência a dificuldade e a resistência que o Direito, como um todo, tem de estabelecer dialogia com outras áreas de conhecimento. Neste estudo ficará evidenciado que nem o emissor da mensagem (aqui, o fornecedor) pode controlar seu conteúdo e significado, nem o receptor dela (no caso, o consumidor) é passivo, na medida em que transforma o conteúdo e o significado da mensagem conforme o contexto cultural em que o processo comunicacional se desenvolve (Cruz, 1986). Além disso, o Direito do Consumidor contempla aspectos individuais, coletivos e difusos das relações de consumo. Sendo assim, qualquer mensagem comunicacional nas sociedades modernas está sujeita à mediação de seu conteúdo por parte dos atores receptores que, por conseguinte, não são passivos (Martín-Barbero, 2006). Ao contrário, são agentes transformadores dos possíveis significados do conteúdo da mensagem comunicacional. Enfim, as mensagens comunicacionais que circulam no mercado de consumo correspondem à polifonia e à polissemia inerentes ao debate democrático e a disputa cultural e simbólica em desenvolvimento em certa sociedade (Medina, 1988).

Não é objetivo deste trabalho cotejar, comparativamente, o teor de cada dispositivo legal. O que se quer evidenciar, em essência, é que a disciplina legal constitui um quadro muito geral, meramente informativo, do funcionamento do sistema de proteção ao consumidor. Os dispositivos legais precisam ser preenchidos com elementos culturais de cada grupo de consumidores. Tal atividade de integração normativa necessariamente precisa ser inter e transdisciplinar, pois as atuais sociedades de consumo são plurinacionais, multiculturais, complexas e sujeitas a mutações rápidas e muitas vezes radicais de seus elementos culturais. Se os operadores do Direito não estiverem atentos a estes aspectos, será pouco eficiente qualquer projeto de harmonização ou de unificação das normas de proteção ao consumidor, quer no âmbito nacional quer no internacional.

Em resumo, este estudo tem por objetivos apresentar, discutir e compreender: a) alguns aspectos da dialética dos processos de comunicação social inerentes às sociedades de consumo; b) o processo de mediação simbólica e de reconstrução de significados culturais intertextuais dos bens e das mensagens de comunicação que circulam nas sociedades de consumo contemporâneas; c) como se desenvolve a reformulação da identidade cultural das modernas sociedades de consumo; d) a necessidade de interpretação inter e transdisciplinar das normas jurídicas que tentam regular o dever de informação que o fornecedor tem em face do consumidor e, por outro lado, o direito à informação que o consumidor tem em face do fornecedor.

1. Legislação do Mercosul sobre informação no mercado de consumo

Na América Latina têm sido editadas diversas normas para regular as relações de consumo. Dados os limites editoriais estabelecidos para a publicação deste trabalho, não há possibilidade de examinar a evolução histórica nem o conteúdo dessas normas. Por essa razão, a análise será genérica, não se fixando em normas jurídicas específicas de certa legislação nacional. Mesmo assim, é fato que todas as leis consumeristas editadas na América Latina contemplam a obrigação do fornecedor de prestar ao consumidor informações verdadeiras, claras, completas e suficientes para que o consumidor possa decidir de modo consciente se praticará ou não o ato de consumo. Nesse sentido, há dispositivos nas leis brasileira nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor); argentinas nºs 24.240/93 (lei de defesa do consumidor), 19.724 (contraos por adesão) e 22.802 (lei de lealdade comercial); paraguaia nº 1.334/98 (lei de defesa do consumidor); uruguaia nº 17.189/99; mexicana de 1992 (lei de defesa do consumidor); chilena 19.496/97 (lei de proteção ao consumidor); e no projeto de lei boliviana de 1999. No âmbito do Mercosul, têm ocorrido várias tentativas de harmonização das normas de proteção ao consumidor, entre as quais destacam-se o Protocolo de Defesa do Consumidor (1997), as Resoluções nºs Resolução 124/96 (lista de direitos mínimos do consumidor) e 126/96 (disciplina de publicidade no mercado de consumo), a Declaração dos princípios gerais sobre defesa do consumidor no Mercosul (1999) e a Declaração dos Direitos Fundamentais dos Consumidores do Mercosul (2000).

Tendo em vista as tentativas do Mercosul de harmonizar as legislações dos Estados-membros, será aqui considerada apenas a Declaração dos Direitos Fundamentais dos Consumidores do Mercosul sobre a comunicação entre fornecedores e consumidores no mercado de consumo. Essa Declaração sintetiza princípios contidos nas demais leis consumeristas sobre a matéria objeto deste estudo e que tendem a adotar critérios meramente utilitários, tecnicistas e insuficientes para que se possa apreender e compreender os complexos processos dialéticos de transformações culturais e de disputa de valores simbólicos que ocorrem no mercado de consumo. Os países latino-americanos como um todo, e os do Mercosul em particular, estão em diferentes estágios de desenvolvimento. Alguns têm economia preponderantemente primária, ao passo que outros já avançaram consideravelmente como sociedades industrializadas. Nos países em que predomina a economia primária, há incontáveis grupos sociais que ainda se caracterizam como sociedades tradicionais, ou seja, que não adentraram o universo cultural das sociedades industrializadas. Nessas sociedades mais tradicionais, as relações de consumo ainda não atingiram grau de maturidade comparável ao das sociedades industrializadas. Como se verá mais adiante, os processos de comunicação social e de reformulação da identidade cultural nas sociedades tradicionais são bastante diferentes daqueles que ocorrem em sociedades industrializadas. Por conseguinte, as disputas por bens de consumo nas sociedades tradicionais e nas modernas refletem, como não poderia deixar de ser, as distintas disputas culturais e os valores simbólicos que permeiam tais sociedades. Logicamente, os processos de comunicação entre fornecedores e consumidores em cada um desses mercados de consumo expressam a polifonia e a polissemia que emergem dessas relações de consumo.

Há, portanto, muitas assimetrias entre os países latino-americanos preocupados com a proteção do consumidor. Aliás, vários dos países da América Latina sequer atingiram o estágio em que a proteção legislativa do consumidor tenha se tornado indispensável. Tantas assimetrias, naturalmente, dificultam a circulação de bens de consumo e a implementação de estratégias comerciais mais amplas, distorcem a livre concorrência, não asseguram segurança e qualidade aceitáveis de certos bens de consumo em mercados outros que não o local. Nessas circunstâncias, cada um dos distintos mercados de consumo se organiza com base num quadro próprio de referências culturais, a partir do qual os bens de consumo passam a ter significações específicas para aquele determinado grupo social. É este fenômeno que este trabalho procurará evidenciar.

2. Liberdade de informação, identidade cultural e mediação simbólica nas sociedades de consumo

Os indivíduos integrantes de uma sociedade são diferentes entre si e, por conseguinte, a identidade cultural dessa sociedade incorpora e expressa essa diversidade essencial do ser humano. Os elementos de identificação cultural são sempre valorados pelos indivíduos que compõem o grupo social e pelo próprio grupo. Tais elementos têm específicos significados válidos para aquele grupo social, naquele lugar e momento histórico. Conforme seja maior ou menor o valor atribuído a esses elementos de identificação cultural, será possível dizer se são essenciais ou secundários para a definição da identidade daquela sociedade (Merton,1968). A vida social apresenta aspectos multidimensionais. Esses aspectos referem-se a bens de todos os tipos, dos quais o ser humano precisa se apoderar para existir e sobreviver. Cada um desses aspectos e bens pode ser mais valorizado ou menos valorizado pela sociedade de época para época e de lugar para lugar. A sociedade tende a se manter mais coesa conforme os elementos de identificação cultural que mais valorizar sejam suficientes para possibilitar que o maior número possível de indivíduos se identifique com o universo cultural assim composto. Esse efeito exige, portanto, que o universo cultural de tal sociedade seja o mais representativo e o mais amplo possível, de tal maneira que todos os indivíduos, coletividades e subgrupos que compõem aquela mesma sociedade tenham possibilidade de reconhecer sua identidade cultural (Merle, 2003). O mesmo processo ocorre no relacionamento de diferentes povos. Se povos distintos apresentarem alguns elementos comuns de identificação cultural, aos quais atribuam significados e valores correspondentes, tenderão a formar alianças e blocos entre si (Harrison et Huntington, 2002). Os elementos de identificação cultural que integram o universo cultural de uma sociedade, de um povo, ou de um conjunto de povos, envolvem – sempre – alguma forma de linguagem e de comunicação. Essa linguagem pode ser a fala, a escrita, o conjunto dos sinais gráficos, os símbolos de qualquer espécie, a arte em geral, os mitos presentes no inconsciente coletivo do grupo social e, enfim, qualquer meio pelo qual o ser humano comunique a outrem suas idéias, crenças, mitos, temores e sentimentos de qualquer espécie. Daí porque a identidade cultural se manifesta por meio da comunicação, no sentido mais amplo possível do vocábulo (Chomsky, 1998). A linguagem está implícita em todos os fatos e bens que fazem parte da vida do ser humano e é preciso que seja lida e compreendida culturalmente. Em síntese, é preciso compreender os significados intertextuais dos elementos culturais com base nos quais se forma, se transforma ou se afirma a identidade cultural de um grupo social (Seixas, 2006).

É preciso, pois, compreender a liberdade de informação, os processos de comunicação e o próprio mercado de consumo a partir de abordagem inter e transdiciplinar. Além disto, a liberdade de informação, o direito de informar e o direito à informação pressupõem uma sociedade livre, democrática e razoavelmente amadurecida. As diversas classes e os diferentes setores que compõem uma sociedade têm seus respectivos sistemas de valores e de significados culturais. Esse acervo cultural se entrelaça no mercado de consumo – lugar imaginário em que as intersecções de valores simbólicos ocorrem – que é também uma arena em que atuam os agentes mediadores dos referidos significados culturais intertextuais daquela sociedade. São estes mediadores que captam, processam, reinterpretam e devolvem ao meio social os valores e signos das relações sociais multidimencionais (Medina, 1988). Os elementos culturais arquetípicos, híbridos e dominantes, cada qual composto de fragmentos culturais gerados pela globalização, ingressam desordenadamente no mercado de consumo e, neste, através da ação dos agentes mediadores de significados culturais intertextuais, os aludidos elementos são reorganizados num cosmos apreensível e compreensível pelos agentes socioeconômicos. Portanto, a lógica do mercado de consumo não é estritamente econômica e não pode ser definida apenas a partir da vontade dos poderes dominantes ou hegemônicos, nem das mensagens autoritárias difundidas nos meios de comunicação social. Os diferentes grupos componentes da sociedade estabelecem os significados culturais intertextuais com base nos quais a vida social é regulada. São acordos simbólicos e rituais por meio dos quais tais atores definem quais são os valores culturais daquela sociedade. Nesses rituais, os grupos sociais usam os bens materiais introduzidos no mercado de consumo como ícones ou símbolos dos valores sociais definidos pelo consenso geral e, assim, reorganizam o caos do mercado, transformando-o em cosmos. É oportuna a observação de Canclini (2005:65):

(…). Mas em um sentido mais radical, o consumo se liga, de outro modo, com a insatisfação que o fluxo errático dos significados engendra. Comprar objetos, pendurá-los ou distribui-los pela casa, assinalar-lhes um lugar em uma ordem, atribuir-lhes funções na comunicação com os outros, são os recursos para se pensar o próprio corpo, a instável ordem social e as interações incertas com os demais. Consumir é tornar inteligível um mundo onde o sólido se evapora. Por isso, além de serem úteis para a expansão do mercado e a reprodução da força de trabalho, para nos distinguirmos dos demais e nos comunicarmos com eles, como afirmam Douglas e Isherwood, “as mercadorias servem para pensar”.

É nesse jogo entre desejos e estruturas que as mercadorias e o consumo servem também para ordenar politicamente cada sociedade. O consumo é um processo em que os desejos se transformam em demandas e em atos socialmente regulados. (…).

Os processos de comunicação social e de atribuição de significados culturais intertextuais relacionados com o mercado de consumo das sociedades modernas são distintos, em importantes aspectos, dos que ocorrem nas sociedades tradicionais.

3. Identidade cultural e comunicação nas sociedades tradicionais

Sociedades tradicionais são as que ainda não atingiram certo grau de complexidade e de industrialização. Apresentam algumas características constantes, não necessariamente cumulativas. Sua economia tende a ser preponderantemente rural ou extrativista, ou artesanal, baseada no sistema mercantil-simples, com pequenas unidades produtoras e trocas econômicas mais ou menos limitadas ao seu próprio território e população. As relações humanas, por isto, desenvolvem-se em espaço geográfico que pode ser delimitado com precisão e abrangem pequenos grupos sociais facilmente identificáveis. Claro, há graus diferenciados de cada um desses aspectos e as correlações entre eles dão a cada sociedade tradicional traços próprios de identidade local.

Em sociedades tradicionais os elementos de identidade cultural local tendem a ser muito estáveis. As noções de tempo e de espaço têm grande importância na dinâmica da vida social e dos processos de comunicação que nela ocorrem. A vida social envolve poucas pessoas e acontece em espaços geográficos mais restritos, em comparação com sociedades complexas. Os diferentes grupos sociais que compõem certa sociedade tradicional desenvolvem processos e estratégias próprias para estabelecerem relações e comunicações uns com os outros (Certeau, 1994). Há espaços, urbanos ou rurais, mais ou menos reservados para certos grupos. Há lugares de passagem com diferentes significados para cada grupo social. Há pontos de referência social e cultural em que se apóiam as memórias coletiva e individual (Halbwacz, 2006). Mais do que os meios de comunicação social, antes chamados “meios de comunicação de massa”, há outras instituições que promovem ou facilitam os relacionamentos sociais, econômicos e identitários: o mercado local, a igreja, a praça, o clube, a avenida, a escola, a padaria, o posto de saúde, a procissão, o bar, a farmácia, as festas locais, as demoradas conversas entre vizinhos. Os processos de comunicação social tendem a ser mais espontâneos e, em geral, baseados em aspectos personalíssimos dos diferentes atores que dele participam. Tais processos abrangem poucos indivíduos ou pequenos grupos e acontecem em lugares específicos e em ocasiões determinadas. Os assuntos mais relevantes objeto da comunicação tendem a ser os de interesse local, muitas vezes restritos a certos grupos sociais. Por isto, os meios de comunicação social mais abrangentes, como a televisão, o rádio e as novas mídias eletrônicas, não têm o mesmo poder de persuasão e de convencimento que costumam ter nas sociedades modernas, industrializadas. Esses meios de comunicação social, em alguma medida, precisam oferecer conteúdos que se aproximem dos interesses das sociedades tradicionais, que tenham significação mais específica para elas. As sociedades tradicionais tendem a ser mais impermeáveis e resistentes a elementos culturais exógenos. As transformações culturais nessas sociedades tendem a ser mais lentas e graduais. Os indivíduos e pequenos grupos que as compõem têm mais tempo para metabolizar elementos culturais exógenos com os elementos culturais locais. Em termos comparativos com as sociedades complexas, a identidade cultural nas sociedades tradicionais é mais estável, homogênea, bem localizada, apoiada em referências com forte significação coletiva, menos fragmentada e menos pré-disposta a incorporar com rapidez elementos culturais alienígenas (Giddens, 2000).

4. Identidade cultural e comunicação nas sociedades modernas

Sociedades modernas são as que alcançaram alto grau de complexidade e de industrialização. Estão envolvidas com os processos cada vez mais amplos e profundos de inter-relações que caracterizam a globalização contemporânea. As sociedades modernas são multiculturais. Os Estados em que elas se desenvolvem geralmente abrangem muitas nações. Tais sociedades vivenciam intensos processos de descentralização, deslocalização e fragmentação cultural, econômica e política. Em decorrência disso, surgem novas identidades culturais. A denominada “crise de identidade”, em qualquer dessas esferas, é parte de um amplo e profundo movimento de transformação que desloca as estruturas de identidade cultural das sociedades modernas dos seus centros tradicionais referência cultural (Giddens, 2000). Tudo isso torna instáveis os critérios com base nos quais os indivíduos e grupos sociais costumavam construir sua identidade. As múltiplas dimensões da globalização, especialmente no que diz respeito aos meios de telecomunicação, tornou muito relativas, imprecisas e mutantes as tradicionais noções de tempo e de espaço. O progresso tecnológico nas áreas de telecomunicações e transportes praticamente eliminou a importância relativa do espaço e do tempo na dinâmica dos fenômenos globais. Ora, o espaço e o tempo sempre foram importantes coordenadas para validar e dar sentido aos sistemas de representações culturais. Conforme essas coordenadas vão se tornando cada vez mais fluídas, os próprios sistemas de representação nelas baseados ficam mais permeáveis a novas influências culturais: questões culturais suscitadas em lugares distantes ou em tempos diferentes tornam-se questões atuais e locais para indivíduos e sociedades que, em princípio, estariam temporal e fisicamente apartados daquelas questões. A noção ou a impressão de que tudo acontece aqui e agora faz com que fenômenos culturais globais passem a ter uma significação simbólica local, transformando os paradigmas de identificação cultural até então vigentes. Em razão dos meios de telecomunicação existentes, núcleos culturais muito diferentes entre si, localizados em pontos do planeta distantes uns dos outros, hoje podem interagir de modo instantâneo. No passado esses contatos entre povos diferentes progrediam lentamente, ao longo de séculos, de modo que tais povos tiveram tempo razoável para incorporar novos elementos à sua própria cultura, conforme se fazia necessário ou conveniente. Esse processo atualmente é muito mais intenso e, em termos relativos de tempo, é também instantâneo. Disto resultam os fenômenos da descentralização, deslocamento e fragmentação cultural a que todos se submetem na fase contemporânea da globalização. Tornou-se comum o uso do neologismo glocalização para expressar o contraste, a interação, a assimilação e o hibridismo do conjunto de fenômenos multidimensionais da globalização correlacionados com os fenômenos igualmente multifacetados de uma localidade e de um povo em particular. Stuart Hall apreendeu muito bem essa dinâmica no que atine aos aspectos culturais (Hall, 2005:9-10):

Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo.(…).

Hall aponta três concepções de identidade do sujeito: o sujeito do Iluminismo; o sujeito sociológico; e o sujeito pós-moderno. O sujeito do Iluminismo era concebido a partir da forte expressão de seu individualismo. Era indivíduo totalmente centrado, unificado e dotado de racionalidade para conduzir suas ações no ambiente social. A identidade desse sujeito se concentrava em seu interior e o acompanhava em toda a sua trajetória de vida. Por outro lado, o sujeito sociológico foi concebido em decorrência da crescente complexidade do mundo moderno. A construção da identidade do sujeito não podia mais ser feita exclusivamente a partir dos critérios de identidade pessoal e subjetiva. Percebeu-se que o núcleo interior desse sujeito não era e nem podia ser autônomo e autosuficiente. Ao contrário, sua identidade estava correlacionada com a identidade de outros indivíduos do corpo social, os quais atuavam como mediadores de signos para a construção da identidade cultural subjetiva. Hall ressalta que, de acordo com essa concepção sociológica, a identidade do sujeito é formada por sua interação com o meio social. Embora o sujeito ainda mantenha um núcleo individual de identidade, tal núcleo sofre diversas influências oriundas de seu diálogo com os mundos culturais exteriores a ele, os quais desencadeiam um movimento de transformação da identidade subjetiva, integrando-a à identidade social em constante mutação. O sujeito de algum modo organiza essas identidades culturais internas e externas e constrói um novo quadro de referências a respeito de seu lugar no mundo social e cultural. Usando uma feliz figura de linguagem, Hall diz que a identidade “costura” o sujeito à estrutura, dando-lhe estabilidade e possibilidade de predizer alguns dos movimentos culturais nos quais se integra. Todavia, na fase atual da globalização, a construção dessa identidade do sujeito sociológico também está atravessando uma crise sem precedentes, fato que levou Hall a investigar a terceira forma de identidade cultural: a do sujeito pós-moderno. Explica que a identidade do sujeito sociológico está em crise porque, atualmente, o que está em processo de transformação é a própria estrutura exterior à qual a identidade interior do sujeito se ligava para construir seus quadros de referência. O sujeito antes tinha uma identidade unificada e estável. Agora tem identidade fragmentada, muitas vezes contraditória e ainda não reorganizada. Alguns elementos de identificação cultural, externos ao sujeito, estão transformando as estruturas e instituições que serviam de referências para que ele formasse sua própria identidade no meio social. Tudo passou a ser provisório, problemático e variável. Nessas circunstâncias tão instáveis, tem início a construção da identidade cultural do sujeito pós-moderno, a que se refere Hall nestes termos (Hall, 2005:11-12):

Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (…). É definida historicamente e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”(…). A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.

A crise de identidade provocada pela dinâmica da globalização gera profundo processo dialético e provoca o fenômeno da glocalização. O indivíduo vivencia simultaneamente a influência de diferentes culturas que abalam a noção de identidade cultural “estável” com que ele estava habituado no contexto local em que se insere. Desses choques culturais, ora decorre a hibridização das culturas global e local; ora resulta uma situação circunstancial, transitória ou permanente, de hegemonia de uma cultura sobre a outra (ou seja, da cultura global sobre a local, ou vice-versa); ora advêm fraturas em que se confrontam a cultura global e a local (Huntington, 1997). Tudo isto faz com que o indivíduo tenha que revisar os critérios que servem de base para sua própria identidade cultural como da sociedade em que vive.

Diversos movimentos filosóficos e sociais importantes conduziram a esse processo de glocalização, relativizando a importância do indivíduo no contexto social e global. Surge assim concepção mais nítida do papel social do indivíduo, que passou a ser profundamente relacionado com o interior das grandes estruturas e instituições em que se fundamentam as sociedades modernas. Referidos movimentos filosóficos demonstraram as múltiplas interações e condicionamentos em que esse indivíduo está envolvido na dinâmica social. Desenvolveram-se explicações alternativas sobre como os indivíduos formam internamente suas identidades através de sua participação em relações sociais mais amplas e, por outro lado, a respeito do modo como os processos e estruturas sociais são sustentados pelos papéis que os indivíduos desempenham neles.

Por outro lado, as culturas locais dispõem de mecanismos internos mais ou menos eficientes para que não se desintegrem totalmente. Isto faz parte do processo dialético de autoafirmação cultural comentado anteriormente neste trabalho. É curioso – e é mesmo paradoxal – observar que o processo global de integração cultural, que tende a fazer (parafraseando Marx) uma gelatina cultural, é o mesmo que acentua as diferenças culturais. Ao lado da tendência de homogeneização cultural global, há a tendência de acentuar a diferença cultural local. Trata-se de processo que envolve a alteridade global-local para construir, reconstruir, transformar, diluir ou miscigenar a identidade cultural do indivíduo e da própria sociedade, hoje de escala planetária. Tais fenômenos são bem visíveis nas complexas e multidimensionais relações que se estabelecem nos mercados de consumo das sociedades modernas.

Contudo, o processo de globalização é assimétrico. Nem todas as partes do mundo se envolvem nesse processo de modo uniforme e simultâneo. A globalização é desequilibrada, heterogênea e assincrônica (Dupas, 2005). Embora de modo não homogêneo, é certo que atualmente observa-se um movimento generalizado no sentido de redefinição das identidades nacionais que buscam sua auto-afirmação perante as demais culturas com as quais interagem na arena global. Esse é um dos efeitos multidimensionais da globalização. Isto ocorre porque a globalização torna cada vez mais relativa a ideia clássica de sociedade como um corpo bem definido e delimitado, dotado de mecanismos internos e externos muito claros para permitir que seus integrantes se identifiquem com uma certa cultura. O processo dialético de autoafirmação entre culturas conflitantes apresenta três efeitos importantes, de certo modo contraditórios (Canclini, 1991): 1º) as identidades culturais atravessam grave processo de desintegração provocado pelo crescimento da homogeneização cultural globalizada; 2º) as identidades nacionais e locais, ou particularistas, realizam importante esforço de resistência à globalização cultural, buscando sua autoafirmação; e 3º) é fato que as identidades nacionais, locais e particularistas estão absorvendo novos elementos culturais e estão se tornando culturas híbridas.

Como destacado anteriormente, os países da América Latina apresentam profundas assimetrias internas e externas. Há muitos grupos organizados como sociedades tradicionais e com forte sentimento de identidade cultural local. Há também numerosos grupos já organizados em sociedades industrializadas, ou em vias de industrialização, que, por sua vez, adotam outros quadros gerais de identidade cultural. Por essas razões, os mercados de consumo de cada um desses grupos apresentam diferentes graus de amadurecimento e de complexidade. Em conseqüência, tanto os bens como as informações que circulam nesses mercados passam por processos de mediação simbólica (cultural, portanto) que as normas consumeristas consideradas não conseguem nem apreender nem compreender.

5. Cultura, poder, informação e mediação simbólica no mercado de consumo

Canclini (2005:28-30) ressalta que a cultura é indissociável do sistema econômico adotado por certa sociedade. Esse autor vê a cultura como um produto do sistema com função de produzir e de reproduzir os significados abrangidos no processo produtivo:

(…), preferimos restringir o uso do termo cultura para a produção de fenômenos que contribuem, mediante a representação ou reelaboração simbólica das estruturas materiais, para a compreensão, reprodução ou transformação do sistema social, ou seja, a cultura diz respeito a todas as práticas e instituições dedicadas à administração, renovação e reestruturação do sentido.

(…). Toda produção de significado (filosofia, arte, a própria ciência) é passível de ser explicada em termos de relação com suas determinantes sociais. Mas essa explicação não esgota o fenômeno. A cultura não apenas representa a sociedade; cumpre também, dentro das necessidades de produção do sentido, a função de reelaborar as estruturas sociais e imaginar outras novas. Além de representar as relações de produção, contribui  para a sua reprodução, transformação e para a criação de outras relações.

De fato, toda manifestação cultural há de ser estudada em conexão com os demais elementos produtivos do sistema social. Qualquer prática cultural é simultaneamente econômica e simbólica, pois é assim que se reproduz o conjunto de representações de uma sociedade. A cultura está inserida no processo produtivo e, para que se possa estudá-la, é preciso percorrer todas as etapas de tal processo, a saber, a produção cultural, sua circulação, recepção e reprodução. Não é possível compreender o processo cultural fora de seu contexto. Por isto, a cultura é um dos instrumentos de dominação usados por certos grupos sociais, ao lado do poder político e do poder econômico. Esses grupos não podem indefinidamente basear seu domínio na força econômica ou política. O domínio cultural passa a ser imprescindível para assegurar poder a tais grupos. A cultura se presta a convencer os demais indivíduos a aceitarem a estrutura de dominação econômica e política como se fosse legítima e natural. Desse modo, oculta-se a violência inerente ao processo de adaptação do indivíduo a uma estrutura em cuja construção não interveio, bem como a fazer com que a imposição desta estrutura seja sentida como socialização ou adequação necessária para a vida em sociedade. A configuração exposta por Canclini constitui o que neste trabalho se denomina estrutura cultural dominante, em que os elementos de identificação cultural são apropriados, manipulados e difundidos pelos setores dominantes ou hegemônicos de um dado sistema social, de modo autoritário e hierarquizado, para que, com base naqueles elementos, os demais integrantes da sociedade construam sua identidade cultural.

Milhares de bens são introduzidos de modo caótico nos mercados de consumo. Os consumidores, então, individualmente ou em grupos, desenvolvem processos democráticos de mediação simbólica por meio dos quais segregam, classificam e hierarquizam esses bens que lhes são oferecidos. Essa mediação simbólica é feita com base nos elementos culturais de identificação adotados pelos indivíduos e grupos envolvidos. O resultado do processo configura uma ordem geral que tende a refletir a distribuição de poder na sociedade, a polifonia e a polissemia existentes nos mercados de consumo. Assim, as decisões dos consumidores não são baseadas, apenas, em critérios tecnicistas ou utilitaristas atinentes aos bens de consumo. Ao contrário, os processos de comunicação no mercado de consumo e a disputa pelos bens de consumo refletem práticas democráticas, disputas simbólicas e culturais entre os atores envolvidos. Os bens de consumo funcionam, portanto, como signos desses conflitos e práticas. Na medida em que as normas jurídicas consumeristas põem foco na função utilitarista ou tecnicista da informação no mercado de consumo, deixam escapar os aspectos muito mais relevantes acima referidos.

Daí decorre que as tentativas de harmonização da legislação consumerista na América Latina como um todo, e no Mercosul em especial, não poderão progredir de modo efetivo se deixarem de considerar os aspectos multidimensionais mencionados até aqui. Não se trata, então, de buscar apenas harmonização e equilíbrio econômico nos mercados consumidores latino-americanos. Trata-se, na verdade, de regular as disputas culturais, simbólicas e políticas em que estão envolvidos os diferentes grupos sociais e países da América Latina e do Mercosul. É nesse contexto que a informação no mercado de consumo precisa ser examinada.

A partir do surgimento dos Estados nacionais, acentuou-se a tendência de confinar a identidade cultural no território nacional. A identidade cultural passou cada vez mais a ser narrada na história nacional, a ser simbolizada pelos heróis nacionais, a compor sua forma na etnia nacional. O Estado-nação, fechado em suas fronteiras, era o reduto seguro em que se podia encontrar uma cultura nacional homogênea que funcionava como um grande quadro de referência para um povo, permitindo-lhe ter um sentimento de identidade comum e, ao mesmo tempo, dando ao indivíduo o conforto de pertencer a uma comunidade com quem podia compartilhar sua vida (Eagleton, 2005). Era possível distinguir o nacional daquilo que era estrangeiro. Cultura nacional e cultura estrangeira se articulavam e se complementavam, mas não se confundiam. Os bens oferecidos ao consumo traziam a marca e significação simbólica de uma certa sociedade nacional. Cada país podia, ou não, abrir suas fronteiras para receber bens e significados culturais de outros países, porém tinha critérios mais ou menos estáveis para reconhecer o que era nacional e o que era estrangeiro. Na medida em que o processo de globalização multidimensional se tornou mais amplo, intenso e profundo, especialmente em decorrência da expansão do comércio industrial mundial, o reducionismo dualista nacional–estrangeiro expôs cada vez mais sua fragilidade conceitual e pragmática. Os bens assim produzidos e comercializados circulam em territórios transnacionais e não têm mais tanta ligação com um determinado local ou país. Seu significado cultural incorpora fragmentos das diversas culturas dos lugares por onde circula. Na fase atual da globalização é difícil saber quais bens são nacionais e quais são estrangeiros. A globalização produz constantes interações entre sistemas de produção e entre culturas diferentes que estão em centros distintos, mas que são integrados funcionalmente. Cada indivíduo, ao selecionar os bens que deseja consumir, atribui significados a tais objetos. Com base nesses significados, o indivíduo define em que aspectos se identifica e se integra a uma certa sociedade, e em quais outros aspectos se considera diferente dela. Assim, os comportamentos de consumo num ambiente globalizado implicam em processos de identificação cultural multicentrados, transnacionais e que reúnem fragmentos culturais de diferentes origens. A identidade cultural não pode mais ser definida de modo seguro com base no simbolismo inerente ao Estado-nação. A identidade cultural nessas sociedades é construída por meio dos hábitos de consumo locais e transnacionais.

6. Reformulação de identidade cultural no mercado de consumo

O mercado de consumo nas sociedades modernas, industrializadas e democráticas transformou-se em lugar para exercício da cidadania. É uma das instituições por meio das quais os indivíduos podem exercer sua cidadania e provocar transformações sociais para tornar a sociedade mais justa e solidária. De fato, para que os produtores do mundo inteiro conquistem novos mercados, precisam simultaneamente construir e atribuir a seus produtos significados universais, homogêneos. Para isso, dependem dos meios de comunicação social, especialmente da publicidade. O discurso corrente de que a globalização gera homogeneidade cultural, padronização de valores, hábitos e instituições, pressupõe que os indivíduos e grupos sociais são seres passivos, manipuláveis e incapazes de tomar decisões por si mesmos. Estariam condenados aos ditames dos poderes hegemônicos e da mídia global a serviço destes. Essas pressuposições nem sempre correspondem à realidade. A concepção de que haveria irresistível direcionismo do comunicador e passividade total do receptor da mensagem comunicada, por meio da qual seria possível aos poderes dominantes ou hegemônicos impor “às massas” elementos culturais específicos, não levava em conta a dialética intrínseca do processo comunicacional. Medina (1988) chama a atenção para o fato de que, a partir de certo ponto, uma rede de comunicação e de disseminação de conteúdos de interesse dos poderes hegemônicos escapa ao seu poder de controle porque apresenta dinâmica dialética que altera o significado desses conteúdos. Pondera que as sociedades avançadas dependem do livre intercâmbio de informações orientadas para a ação e para a renovação, e não para a passividade contemplativa. A comunicação é organizada para interferir no presente e não para manter a tradição. Sublinha que houve época em que se considerava que os meios de comunicação social reproduziam uma cultura industrializada, em que a importância dos criadores dessa cultura era eliminada ou minimizada, pois esses meios de comunicação eram governados pelos princípios da rentabilidade e da homogeneização cultural impessoal. Todavia, exatamente porque a mensagem comunicacional é produto cultural, não é possível homogeneizá-la de modo absoluto. Qualquer manifestação cultural tem o elemento criativo. Por esse motivo, surge uma relação dialética entre o sistema de produção ou reprodução cultural e o criador dos elementos culturais absorvidos no sistema. Mesmo no bojo da “cultura de massa”, o criador de um produto cultural o assina: imprime nesse produto sua marca com que se distingue dos demais.

Medina faz referência à divisão cultural em antiga e nova, proposta por Moles. A cultura antiga corresponderia à forma de pirâmide e seria construída essencialmente por meio do sistema educacional. A nova cultura seria um mosaico, em oposição à imagem da pirâmide, e teria duas camadas: a de “cultura de massa”, alimentada pelos meios de comunicação social; e outra camada composta por criadores integrantes da sociedade intelectual. A primeira camada – de “cultura de massa” – gera um fluxo contínuo de mensagens de todos os tipos, com múltiplos sentidos, mas consubstanciado em fragmentos culturais dispersos num sistema de comunicação que não lhes dá suporte duradouro. A segunda camada – a dos criadores – absorve os fragmentos dispersos no sistema de comunicação, reorganiza esses fragmentos e os transforma em novas mensagens que serão, então, reabsorvidas pelos meios de comunicação social. Realiza-se, assim, um processo dinâmico e dialético entre as duas camadas. De fato, os meios de comunicação social difundem informações provenientes de todos os lugares do mundo. Os poderes hegemônicos selecionam, organizam e editam as informações e os elementos simbólicos dominantes que têm interesse de difundir. Todavia, todas essas mensagens e os bens a que se referem são mediados por agentes sociais, formais ou informais, que podem lhes atribuir diferentes significações culturais intertextuais, expressando assim valores locais ou regionais, que podem ou não conflitar com a pretensão de homogeneidade cultural desejada pelos poderes dominantes ou hegemônicos (Martín-Barbero, 2006). Por fim, os próprios destinatários das mensagens e dos bens (os consumidores, em última análise) também lhes atribuem significados, que podem ou não coincidir com os desejados pelos poderes dominantes ou hegemônicos. Por isto, ao mesmo tempo em que essas informações difundidas pelos referidos poderes combinam diversos elementos culturais, também podem acentuar identidades culturais locais, pois os seus significados intertextuais são mediados por diferentes agentes sociais.

Em razão dos processos dialéticos até aqui examinados, as intervenções dos indivíduos como mediadores sociais de significados culturais intertextuais são particularmente relevantes nos comportamentos de consumo. O consumidor exercita sua cidadania no exato instante em que toma sua decisão de consumir ou não o que lhe é oferecido. É o indivíduo quem decide o que realmente tem valor simbólico para ele, em relação, em conexão com os significados culturais intertextuais do grupo social a que pertence. O mesmo raciocínio é válido para um grupo social local ou regional. Por isto, por mais que se tente homogeneizar a cultura, há elementos culturais que são assimilados pelo indivíduo, outros que são rejeitados por ele, e outros que são hibridizados com elementos culturais locais ou individuais. Desse modo, o indivíduo interfere nas relações sociais e pode provocar nelas mudanças importantes. Após ressaltar que há grande assimetria na produção e difusão de informações pela mídia a serviço dos poderes hegemônicos globais, Canclini (2005:42-45) observa:

No entanto, quando se reconhece que ao consumir também se pensa, se escolhe e reelabora o sentido social, é preciso se analisar como esta área de apropriação de bens e signos intervém em formas mais ativas de participação do que aquelas que habitualmente recebem o rótulo de consumo. Em outros termos, devemos nos perguntar se ao consumir não estamos fazendo algo que sustenta, nutre e, até certo ponto, constitui uma nova maneira de ser cidadãos.
(…).
A aproximação à cidadania, à comunicação de massa e ao consumo, entre outros fins, tem de reconhecer estes novos cenários de constituição do público [o autor refere-se às instituições por meio das quais se expressa o interesse público] e mostrar que, para se viver em sociedades democráticas, é indispensável admitir que o mercado de opiniões cidadãs inclui tanta variedade e dissonância quanto o mercado da moda e o do entretenimento. Lembrar que nós cidadãos também somos consumidores leva a descobrir na diversificação dos gostos uma das bases estéticas que justificam a concepção democrática da cidadania.

Diante dessas considerações, fica claro que os países da América Latina já mobilizados para regular as relações de consumo não podem se preocupar, apenas, com os aspectos econômicos e de política transnacional inerentes aos processos de integração regional ou sub-regional, como o Mercosul. Nos mercados de consumo de cada um desses países, e nos mercados em vias de integração em que participam, ocorrem disputas simbólicas que refletem, direta ou indiretamente, a distribuição de poderes entre tais Estados e, também, a distribuição de poderes entre os diferentes grupos sociais que compõem aqueles estados. Tanto as mensagens comunicacionais como os bens que circulam nesses mercados de consumo captam e expressam a polifonia e a polissemia das práticas dos consumidores cidadãos. Daí resulta clara a insuficiência das normas consumeristas apegadas a critérios utilitários ou tecnicistas para regular a comunicação no mercado de consumo. A compreensão do fenômeno do consumo requer abordagem inter e transdiciplinar, por meio da qual possam ser estudados com maior abrangência e profundidade os processos simbólicos de comunicação e de recepção entre os poderes hegemônicos e os consumidores, sempre no contexto social em que tais processos ocorrem.

Eis porque Canclini (205:60) propõe um conceito amplo de consumo: “(…) o consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e o uso dos produtos. (…).”Esclarece que não se pode compreender os hábitos de consumo apenas com base numa suposta racionalidade econômica, nem como manifestações determinadas por manipulação dos meios de comunicação. O consumo também não pode ser analisado como simplesmente mais uma fase do ciclo de produção e reprodução social, ou seja, como o momento em que se completaria o processo de criação, produção e circulação de bens no mercado de consumo massificado. A esse respeito, o autor diz (2005:61):

(…). Uma teoria mais complexa sobre a interação entre produtores e consumidores, entre emissores e receptores, tal como a desenvolvem algumas correntes da antropologia e da sociologia urbana, revela que no consumo se manifesta também uma racionalidade sociopolítica interativa. Quando vemos a proliferação de objetos e de marcas, de redes de comunicação e de acesso ao consumo da perspectiva dos movimentos de consumidores e de suas demandas, percebemos que as regras – móveis – da distinção entre grupos, da expansão educacional e das inovações tecnológicas e da moda também intervêm nestes processos. (…). Consumir é participar de um cenário de disputas por aquilo que a sociedade produz e pelos modos de usá-lo. A importância que as demandas pelo aumento do consumo e pelo salário indireto adquirem nos conflitos sindicais, e a reflexão crítica desenvolvida pelas associações de consumidores são evidências de como o consumo é pensado pelos setores populares. Se alguma vez esta questão foi território de decisões mais ou menos unilaterais, hoje é um espaço de interação no qual os produtores e emissores não só devem seduzir os destinatários, mas também justificar-se racionalmente. (…).

Uma terceira linha de trabalhos, os que estudam o consumo como um lugar de diferenciação e distinção entre as classes e grupos, tem chamado a atenção para os aspectos simbólicos e estéticos da racionalidade consumidora. Existe uma lógica na construção dos signos de status e nas maneiras de comunicá-los. (…) nas sociedades contemporâneas boa parte da racionalidade das relações sociais se constrói, mais do que na luta pelos meios de produção, pela disputa em relação à apropriação dos meios de distinção simbólica. (…). A lógica que rege a apropriação dos bens como objetos de distinção não é a da satisfação de necessidades, mas sim a da escassez desses bens e da impossibilidade de que outros os possuam.

Contudo, nessas pesquisas costuma-se ver os comportamentos de consumo como se só servissem para dividir. Porém, se os membros de uma sociedade não compartilhassem os sentidos dos bens, se estes só fossem compreensíveis à elite ou à maioria que os utiliza, não serviriam como instrumentos de diferenciação. (…).

Assim, novos objetos introduzidos no mercado de consumo devem corresponder à lógica simbólica e cultural dos diferentes consumidores. O desejo de adquirir novos bens não é irracional, mas sim estreitamente vinculado aos elementos que definem as culturas individual e coletiva dos consumidores.

Considerações finais

Pretendeu-se evidenciar neste trabalho que as normas consumeristas do Mercosul que regulam as mensagens de comunicação entre fornecedores e consumidores são gerais e abstratas, no sentido de que, em essência, limitam-se a fixar muito amplamente alguns critérios utilitaristas ou tecnicistas atinentes aos bens de consumo. Essas normas concebem o processo de comunicação a partir do modelo, muito ultrapassado, de emissor ativo (fornecedor) comunicando mensagem com conteúdo pronto e acabado para um receptor passivo (o consumidor). Todavia, não é mais sustentável a argumentação tradicional de que os meios de comunicação social são inexoravelmente manipuladores de massas de consumidores passivos (o que não significa dizer que nunca sejam manipuladores ou que não haja consumidores passivos prontos a consumir qualquer coisa que lhes seja oferecida). Os significados culturais das mensagens de comunicação difundidas pelos meios de comunicação social, e também dos bens introduzidos no mercado de consumo, são mediados pelos agentes do próprio mercado, os quais, como já foi dito, captam, processam, reinterpretam e devolvem ao meio social os valores e signos desses bens no contexto das relações sociais multidimencionais. Esses mediadores atuam em seus respectivos grupos familiares, nos seus bairros, nas suas associações religiosas, sociais e políticas, nas suas cidades e, numa escala mais ampla, no país. Nesses espaços multicentrados ocorrem as intersecções culturais e os processos de reelaboração de significados culturais disseminados na sociedade. Os indivíduos e grupos sociais selecionam os bens que desejam consumir atribuindo a cada um desses bens significados que, no contexto social, indiquem uma posição, uma ordem numa escala de valores mais ampla, estabelecida por meio do consenso simbólico de tal sociedade. Esse consenso, por sua vez, resulta do exercício da cidadania também no mercado de consumo, onde, além da disputa pelos bens de consumo, também ocorrem práticas democráticas, intercâmbio de idéias e de complexas mediações simbólicas. Os elementos culturais contidos nesse quadro geral representam os valores e significados culturais intertextuais que aquela específica sociedade considera importantes num dado momento histórico. Cada um dos integrantes dessa sociedade, no entanto, pode propor outros significados e, desse modo, pode interferir no conjunto de valores simbólicos contidos no quadro geral de referência cultural. Em decorrência desses processos de mediação, é possível transformar, mesmo radicalmente, os significados culturais intertextuais das mensagens difundidas pelos meios de comunicação social e os dos bens introduzidos no mercado de consumo. Assim, mesmo admitindo a existência de poderes dominantes ou hegemônicos na sociedade, bem como a existência de meios de comunicação social a serviço desses poderes, não se pode absolutamente desprezar o poder dos mediadores de significados culturais intertextuais, pois é nesse contexto que ocorrem as intersecções culturais com base nas quais os indivíduos e os grupos constroem suas identidades culturais na fase contemporânea da globalização.

Se os operadores do Direito não estiverem atentos a estes aspectos, será pouco eficiente qualquer projeto de harmonização ou de unificação das normas de proteção ao consumidor, quer no âmbito nacional quer no internacional. No caso específico da América Latina, é incontestável a existência do multiculturalismo e dos Estados plurinacionais. A aplicação das normas de proteção aos consumidores há de ser feita com atenção a tais especificidades e, sobretudo, considerando os processos de reformulação ou de afirmação cultural de cada povo.

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IDENTIDADE CULTURAL PÓS-MODERNA: uma abordagem por meio de mensagens publicitárias

Prof. Dr. Renato Seixas

O estudo dos processos de integração cultural inerentes à globalização contemporânea exige a adoção de novos paradigmas de pesquisa científica. O tradicional modelo de produção científica baseado no distanciamento e na neutralidade do sujeito pesquisador em relação ao objeto pesquisado, embora tenha muitos méritos, tem conduzido os estudiosos a conclusões insuficientes para a compreensão de incontáveis anomalias. Nesse contexto, novas vertentes de pesquisa científica têm sido propostas e exploradas. Em primeiro lugar, as modernas pesquisas, em todas as searas de saber, têm sido desenvolvidas de modo interdisciplinar e transdisciplinar. Em segundo lugar, o tradicional modelo que pressupõe a separação entre sujeito pesquisador e objeto pesquisado tem sido substituído pelo modelo sujeito pesquisador – sujeito pesquisado, na medida em que o sujeito pesquisador reconhece que está implicado no fenômeno que deseja estudar, está sujeito às influências do meio em que o fenômeno ocorre e projeta na sua pesquisa muitos elementos subjetivos, mesmo que inconscientemente. Por essas razões, a abordagem do tema objeto desta exposição será feita com fundamento nos novos paradigmas de pesquisa científica, em que o binômio sujeito pesquisador – sujeito pesquisado predomina. O objetivo principal da exposição é fazer uma leitura cultural inter e transdisciplinar da identidade cultural de um povo ou região a partir de elementos culturais encontrados em mensagens publicitárias.
O fenômeno denominado “globalização” apresenta muitas vertentes, algumas das quais têm sido mais ampla e profundamente estudadas, como acontece com os processos de integração econômica, política, militar, ideológica. É importante, pois, compreender o contexto geral em que ocorrem os processos de integração entre países, regiões e continentes. O discurso idealista no âmbito das Relações Internacionais (ou neoliberalista, como muitos preferem denominar no âmbito da Economia) é muito usado para justificar (ideológica e economicamente) a necessidade da crescente divisão internacional do trabalho e da produção, a expansão do livre mercado mundial, a ordenação de fluxos migratórios humanos e a formação de “blocos” entre países ou mesmo entre regiões e até entre continentes. Todavia, os fundamentos da teoria idealista, ou neoliberalista, conduzem a inúmeras anomalias e não permitem a compreensão de muitos fenômenos envolvidos nos processos de integração. Por isto, têm proliferado teorias alternativas em Relações Internacionais com o propósito de abranger o maior número possível de fenômenos (reduzindo-se, assim, as anomalias) e permitir que sejam melhor compreendidos os diferentes processos de integração antes mencionados. Muitas dessas teorias alternativas enfatizam os aspectos da integração econômica e a atuação dos diferentes atores envolvidos na rede mundial de produção. Isto acontece por causa da necessidade de fragmentação dos processos produtivos inerentes à economia mundial moderna, os quais, por sua vez, influenciam as novas configurações geopolíticas, ideológicas e militares da Nova Ordem Mundial. No entanto, os importantíssimos aspectos da integração cultural, quer esta se processe entre países, regiões ou continentes, freqüentemente aparecem “diluídos” nas análises teóricas a respeito dos processos de integração econômica, ideológica e militar. Apesar de existirem obras provocadoras de profunda reflexão a respeito da integração cultural, a verdade é que ainda há muita carência de estudos específicos sobre integração cultural. Mais particularmente, são poucas as pesquisas a respeito de como os elementos de identificação cultural de um povo, região ou continente sustentam, facilitam ou obstam os demais processos de integração inerentes à globalização. A dinâmica atual dos processos produtivos, bem como a viabilidade de ampla e livre circulação de bens e de capitais no mundo depende da diversidade. É preciso que haja diversidade produtiva entre os países e demais atores econômicos para que haja maior eficiência econômica; é preciso que haja diversidade de culturas para que sejam absorvidos diferentes produtos introduzidos no mercado mundial; é preciso que haja distintas necessidades entre os diferentes grupos sociais para tornar possível a produção de certos bens e o melhor aproveitamento de capitais. Acentua-se a necessidade de serem realizadas pesquisas específicas sobre identidade cultural e sobre os processos de integração cultural. Esta afirmação exige que se reflita sobre o que se pode entender por “identidade cultural”.
Talvez a primeira e mais profunda indagação que o pesquisador precise fazer a si próprio seja esta: “O que determina que nos identifiquemos com certos fenômenos, pessoas, grupos, ou costumes e, por outro lado, que não nos identifiquemos com outros?” Em síntese bastante audaciosa, a resposta pode estar numa única palavra: diferença. Em geral, construímos nossa identidade (no sentido amplo do vocábulo) estabelecendo o que não somos (ou, pelo menos, o que imaginamos que não somos). Sabemos o que somos porque reconhecemos mais facilmente o que não somos. A construção de nossa identidade subjetiva pressupõe nossa capacidade e habilidade de reconhecer diferenças e de estabelecer relações entre o que comparamos. Sabemos distinguir um ser humano de um macaco dizendo, por exemplo, que o primeiro tem mais consciência de si próprio e o segundo a tem de modo muito restrito. Se adotarmos outro critério de comparação, como por exemplo a estrutura genética, teríamos maior dificuldade de nos distinguirmos do macaco. Tal como a identidade subjetiva, também a identidade cultural é construída a partir de processos de comparação e de reconhecimento de diferenças relativas entre o que comparamos. Em conseqüência, surge uma segunda e igualmente profunda indagação que o pesquisador deve fazer a si próprio: “Existe uma identidade cultural?” A resposta a esta indagação requer mais que uma palavra.
A identidade subjetiva e a identidade cultural interagem de modo incessante, influenciando-se reciprocamente tanto em sua formação como em sua transformação. Em certas circunstâncias, predominam certos elementos de identificação os quais, posteriormente, podem ser superados por novos elementos. Assim, pode-se dizer que há identidade cultural quando vários indivíduos reconhecem e aceitam como seus certos elementos predominantes em dado contexto e em determinado momento. Podemos denominar esses elementos de elementos de identificação cultural. Eles são mutáveis no espaço e no tempo em função de inúmeros fatores. Conseqüentemente, a identidade cultural de um grupo (tal como ocorre com a identidade subjetiva) apresenta camadas e gradações. Alguns elementos de identificação cultural predominantes em certo contexto formam uma camada de identidade cultural. Na medida em que alguns desses elementos deixem de predominar e sejam substituídos por outros, forma-se nova camada de identidade cultural. E assim sucessivamente. Apenas para reforçar essas idéias, podemos imaginar a identidade cultural de um grupo social como uma rocha sedimentar: cada uma de suas camadas representa um conjunto de elementos de identificação cultural que predominaram em certo momento e lugar, até que novos elementos os substituíssem, embora nem sempre os eliminassem. Essa afirmação é importante porque elementos culturais que deixaram de predominar podem continuar (e geralmente continuam) presentes nas “camadas culturais” que vão se formando. Esse processo é intrínseco à formação da identidade subjetiva e da identidade cultural de certo grupo social. Por outro lado, há graus de identificação cultural para indivíduos e grupos sociais. Um indivíduo ou grupo identifica-se com certos elementos e não com outros. Quanto mais restritos forem os elementos de identificação cultural, menor será o número de indivíduos ou grupos que os acolherão como elementos de identidade e, na hipótese inversa, quanto mais amplos forem os elementos de identificação cultural, maior será o número de indivíduos ou grupos que os assumirão como critérios de identidade. Vejamos um exemplo. Se adotarmos como elemento de identificação cultural países cujo idioma oficial seja uma língua de origem latina, teremos algumas dezenas de países que se identificarão com esse elemento, entre os quais todos os países da América Latina. Se acrescentarmos o elemento de identificação cultural “língua portuguesa”, o número de países identificados será significativamente menor. Se adicionarmos o elemento de identificação cultural “América Latina”, apenas o Brasil formará sua identidade, pois seria o único país da região que reuniria os três elementos de identificação cultural propostos. Há, pois, gradações de identificação cultural conforme os critérios adotados para construí-la.
As camadas e os graus de identificação cultural podem ser combinados para a formação de distintas identidades culturais. Por isto, dentro de um mesmo grupo social existem indivíduos e sub-grupos com múltiplas identidades culturais, de acordo com os elementos de identificação adotados como critérios de identidade ou de diversidade pelos indivíduos componentes do grupo. Esses indivíduos e sub-grupos, com suas respectivas identidades culturais, podem ser abrangidos por um Estado. Nesse caso, a entidade estatal adota um conjunto de elementos de identificação cultural suficientemente amplos e gerais para que, assim, o maior número possível de indivíduos e sub-grupos passe a ter o sentimento de pertencer àquele específico Estado e não a outro. Com tais critérios de identificação cultural, o Estado consegue criar uma identidade cultural homogênea para seu povo, embora isto não signifique necessariamente a negação das demais identidades culturais existentes para os indivíduos e sub-grupos dentro do mesmo Estado. Nessas circunstâncias, sob a existência de um Estado, a construção da identidade cultural de um povo partia um referencial seguro, a saber, a distinção entre o nacional e o estrangeiro. O Estado passou a ser o principal centro de referência para a construção da identidade cultural. Isto possibilitava a identificação cultural com o nacional e, quando necessário ou possível, podia-se complementar essa identidade cultural com elementos estrangeiros, mas sem que se perdesse a clareza de que estes últimos eram elementos estrangeiros. No entanto, a globalização que caracteriza a vida moderna é cada vez mais ampla, intensa e profunda. Atualmente é muito difícil distinguir o que é nacional e o que é estrangeiro. A identidade cultural desloca-se do centro fundamental consubstanciado no Estado e passa a ser multicentrada e também multidimensional. A identidade cultural de que se fala hoje é fragmentada e, portanto, exige a combinação e harmonização incessante de incontáveis elementos de identificação cultural oriundos de todas as partes do mundo. Por causa dessas características, fala-se em geral em identidade cultural pós-moderna, a fim de distingui-la daquela identidade cultural da era moderna centrada no Estado.
Quando duas ou mais culturas diferentes precisam interagir é comum que constatem ter elementos de identificação cultural muito diversos. Este fenômenos não é novo, absolutamente. Desde tempos imemoriais dois ou mais grupos sociais interagem mesmo tendo religiões diferentes, modos de produção distintos, regimes políticos diversos, línguas e costumes sociais diferentes, apenas para termos alguns exemplos. Os distintos elementos culturais desses grupos se organizam de maneira a viabilizar o relacionamento pretendido. Nesse contexto, alguns dos elementos de identificação cultural de um dos grupos predomina sobre os demais, ao mesmo tempo em que aquele primeiro grupo aceita a predominância de outros elementos de identificação cultural dos demais grupos. Sem embutir aqui qualquer significação de exercício de poder de um dos grupos sociais sobre os outros, pode-se falar em culturas dominantes (no sentido de predominância) e culturas dominadas em certo e específico contexto e momento. Por conseguinte, ao longo do processo de evolução de um dado grupo social que interage com outros, formam-se camadas sucessivas de identidade cultural, com distintas gradações, nas quais é possível reconhecer culturas dominantes e culturas dominadas, em contínuo processo de integração e transformação. Todavia, parecem ser duas as características fundamentais da identidade cultural pós-moderna: primeira, o acentuado processo de fragmentação de elementos culturais multidimensionais provenientes de todas as partes do mundo, e, segunda, a velocidade com que esses fragmentos multidimensionais circulam e se integram no ambiente do mundo globalizado, desencadeando incessante ciclo de construção ou reconstrução de significados simbólicos dos elementos culturais em cada grupos social. Nesse contexto da dinâmica da globalização, o Estado não consegue mais sintetizar os elementos de identificação cultural em nacionais e estrangeiros. Cada indivíduo ou grupo social precisa, assim, selecionar e recolher os elementos de identificação cultural dispersos no mundo e reformular sua própria identidade, que será necessariamente fragmentada e multicentrada.
A identidade cultural pós-moderna, mais do que as outras espécies de identidade cultural, requer análise a partir de elementos culturais arquetípicos, osmotípicos e lidertípicos. Para desenvolver esta abordagem é muito rica a contribuição de Cremilda Medina[1] que analisou as estruturas culturais arquetípicas, lidertípicas e osmotípicas a partir de estudos prévios realizados por Jean Lohisse sobre o mesmo tema[2].  Os elementos culturais arquetípicos são compostos por fatores biogenéticos, pelos mitos, símbolos, imagens e pelas narrativas que fixam a origem de uma certa sociedade. Referem-se a elementos presentes no inconsciente individual ou coletivo e que são reproduzidos em rituais sociais ou individuais. Esses fatores, por serem universais, estão presentes no inconsciente coletivo e freqüentemente emergem nas diversas formas de narrativa do cotidiano, entre as quais a comunicação social e a publicidade. Também é possível analisar a identidade cultural de indivíduos e povos a partir de elementos definidos pelos poderes hegemônicos de um dado sistema social, de modo autoritário e hierarquizado. A isto se denomina nesta exposição estrutura cultural lídertípica. Os elementos culturais lidertípicos são selecionados pelos poderes hegemônicos no contexto de certa cultura, a partir de critérios que correspondam aos interesses daqueles poderes, e, a seguir, são disseminados pelos meios de comunicação social para serem reabsorvidos pela sociedade com significados simbólicos também hegemônicos. Por fim, como resultado do processo de globalização cada vez mais amplo, intenso e profundo que está em curso no mundo contemporâneo, é possível analisar a identidade cultural de indivíduos e povos por meio da miscigenação e interação multidimensional de elementos culturais de grupos diferentes. Esse fenômeno é referido neste trabalho como estrutura cultural osmotípica. Os elementos culturais osmotípicos se originam das relações culturais intertextuais, dos contatos entre culturas diferentes, dos processos sincréticos de elementos culturais de povos distintos, de valores, ritos, símbolos que provêm de universos culturais diferentes e que são reorganizados num cosmos no âmbito de uma cultura específica. É nesses sentidos, portanto, que serão feitas referências aos elementos culturais arquetípicos, osmotípicos e lidertípicos.
Em razão dos aspectos dialéticos inerentes aos sistemas culturais correlacionados ao processo de globalização, as intervenções dos indivíduos como mediadores de significados simbólicos da sociedade são particularmente relevantes nos comportamentos de consumo. Independentemente das instituições sociais por meio das quais o indivíduo também possa expressar sua cidadania e seus anseios políticos, o fato é que o mercado de consumo é uma grande arena em que os indivíduos podem interferir nos processos sociais em que tenham interesse. No exato instante em que o consumidor toma sua decisão de consumir ou não o que lhe é oferecido, exercita sua cidadania. Nem o indivíduo nem os grupos sociais de que participa são desprovidos de poderes de reflexão e de decisão. É o indivíduo quem decide o que realmente tem valor simbólico para ele, em conexão com os significados simbólicos do grupo social a que pertence. O mesmo raciocínio é válido para um grupo social local ou regional. Por isto, por mais que se tente homogeneizar a cultura, há elementos de identificação cultural que são assimilados pelo indivíduo, outros que são rejeitados por ele, e outros que são fundidos com elementos culturais locais ou individuais. Desse modo, o indivíduo interfere nas relações sociais e pode provocar nelas mudanças importantes. A identidade cultural pós-moderna combina múltiplos significados simbólicos disseminados nos meios de comunicação social, os quais são fragmentados e geralmente estão associados à lógica dos processos produtivos globalizados.
É bastante comum a concepção de que os hábitos de consumo refletem verdadeira compulsão para realizar gastos inúteis, bem como que os meios de comunicação social incitam o consumo massificado e irracional. Essa concepção tem mudado, na medida em que estudos têm demonstrado que os processos de consumo são muito mais complexos. A hegemonia cultural não pode ser efetiva apenas com ações em que os poderes hegemônicos ditam comportamentos de consumo para massas populacionais apáticas e dóceis. Entre esses poderes hegemônicos e cada indivíduo estão diferentes mediadores de significados simbólicos sociais: a família, os amigos, as comunidades religiosas, as de bairro, etc. Por isto, a compreensão do fenômeno do consumo requer abordagem inter e transdiciplinar, por meio da qual possam ser estudados com maior abrangência e profundidade os processos simbólicos de comunicação e de recepção entre os poderes hegemônicos e os consumidores, sempre no contexto social em que tais processos ocorrem. Não se pode compreender os hábitos de consumo apenas com base numa suposta racionalidade econômica, nem como manifestações determinadas por manipulação dos meios de comunicação. O consumo também não pode ser analisado como simplesmente mais uma fase do ciclo de produção e reprodução social, ou seja, como o momento em que se completaria o processo de criação, produção e circulação de bens no mercado de consumo massificado. Não são as necessidades ou os gostos individuais ou coletivos que determinam o que, como, quando e em que quantidade será consumido. Bem ao contrário, como Galbraith já havia ressaltado, muito antes de o mercado consumidor poder esboçar qualquer tentativa de interferência nos processos produtivos e de consumo, os poderes hegemônicos articulam-se de tal modo que definem as condições da produção e do mercado consumidor, estabelecendo o que produzir, quando produzir, para quem produzir e por quanto vender esses bens. Entretanto, a racionalidade macroeconômica e social definida pelos poderes hegemônicos não é a única que rege a dinâmica do consumo. Os hábitos de consumo são também influenciados por intersecções sociais e políticas decorrentes da interação de diversos agentes sociais. As diversas classes e os diferentes setores que compõem uma sociedade têm seus respectivos sistemas de valores e de significados simbólicos. Esse acervo cultural se entrelaça no mercado de consumo – lugar imaginário em que as intersecções de valores simbólicos ocorrem – que é também uma arena em que atuam os mediadores dos referidos significados simbólicos daquela sociedade. São estes mediadores que captam, processam, reinterpretam e devolvem ao meio social os valores e signos das relações sociais multidimencionais. Os elementos culturais arquetípicos, osmotípicos e lidertípicos, cada qual composto de fragmentos culturais gerados pela globalização, ingressam desordenadamente no mercado de consumo e, neste, através da ação dos mediadores de significados simbólicos, os aludidos elementos são reorganizados num cosmos apreensível e compreensível pelos agentes sócio-econômicos. Portanto, a lógica do mercado de consumo não é estritamente econômica e não pode ser definida apenas a partir da vontade dos poderes hegemônicos, nem das mensagens lidertípicas difundidas nos meios de comunicação social. Os diferentes grupos componentes da sociedade estabelecem entre si acordos simbólicos e rituais por meio dos quais definem quais são os valores culturais daquela sociedade. Nesses rituais, os grupos sociais usam os bens materiais, introduzidos no mercado de consumo como ícones ou símbolos dos valores sociais definidos pelo consenso geral e, assim, reorganizam o caos do mercado, transformando-o em cosmos.
A introdução de novos objetos no mercado de consumo deve ser precedida de análise cuidadosa do sistema de valores e signos sociais vigentes em certa comunidade de consumidores. Os significados simbólicos desses novos bens precisam ser aceitos dentro da lógica simbólica e cultural da comunidade. O desejo de adquirir novos bens não é irracional, mas sim estreitamente vinculado aos elementos que definem as culturas individual e coletiva dos consumidores. Os significados simbólicos dos bens introduzidos no mercado de consumo são mediados pelos agentes do próprio mercado, que captam, processam, reinterpretam e devolvem ao meio social os valores e signos desses bens no contexto das relações sociais multidimencionais. Esses mediadores atuam em seus respectivos grupos familiares, nos seus bairros, nas suas associações religiosas, sociais e políticas, nas suas cidades e, numa escala mais ampla, no país. Nesses espaços multicentrados ocorrem as intersecções culturais e os processos de reelaboração de significados simbólicos disseminados na sociedade. Os indivíduos e grupos sociais selecionam os bens que desejam consumir atribuindo a cada um desses bens significados simbólicos que, no contexto social, indiquem uma posição, uma ordem numa escala de valores mais ampla, estabelecida por meio do consenso simbólico de tal sociedade. Ora, tendo em vista a integração globalizada dos mercados mundiais, bens provenientes de diversos lugares do mundo são introduzidos nos mercados locais, regionais, nacionais e continentais. Em cada um desses bens é possível encontrar fragmentos de elementos culturais de muitos povos e civilizações do planeta. O mercado de consumo de escala global é, por conseguinte, a arena mais ampla em que ocorrem as intersecções culturais antes mencionadas. Os diferentes grupos e setores de uma certa sociedade encontram no seu mercado de consumo todos esses bens. Os mediadores de significados sociais passam a desenvolver, então, sua função. Para isto, levam em consideração os critérios contidos num quadro geral de referência cultural válido para aquela sociedade. Conhecendo esses paradigmas, o mediador social é capaz de aceitar, recusar ou transformar os significados simbólicos dos bens disponíveis no mercado de consumo em que se insere. Nesse contexto, a fragmentação cultural, ao invés de ser considerada uma profunda desvantagem decorrente da globalização da fase pós-moderna, é compreendida nesta exposição como poderoso instrumento de reformulação cultural que se processa e se reorganiza num cosmos dentro do mercado de consumo, seja este o local, o regional, o nacional ou o mundial.
Resulta dessa análise que a identidade cultural de um povo é hoje construída com fragmentos culturais de diferentes povos e civilizações, fragmentos esses disseminados e postos em circulação no mercado de consumo global. A inserção de bens de consumo no mercado global atende, num primeiro momento, aos interesses de poderes hegemônicos (ocidentais ou não), que têm a seu serviço meios de comunicação social de alcance local, regional, nacional ou mundial, incumbidos de difundir mensagens culturais lidertípicas. Todavia, os bens de consumo e as mensagens culturais lidertípicas estão sujeitos aos processos de mediação de significados simbólicos existentes em cada grupo social, pois é nesses contextos sociais que ocorrem as intersecções culturais com base nas quais os indivíduos e os grupos constroem suas identidades culturais na fase pós-moderna da globalização. Não é mais possível a definição da identidade cultural exclusivamente a partir dos elementos culturais tradicionais homogeneizados pelo Estado-nação. Esses critérios de afirmação de identidade cultural agora têm que ser complementados por outros inerentes ao contexto da globalização multidimensional.
Os aspectos até aqui analisados a respeito da identidade cultural na fase pós-moderna da globalização evidenciam que também é preciso transformar as estratégias de narrativa cultural, de modo a adaptá-las a essa nova realidade. Noutras palavras, é preciso narrar o multiculturalismo e não apenas a cultura local, embora a narrativa desta continue sendo importante. A narrativa cultural tradicional reflete a fragmentação científica geral, avessa às abordagens inter e transdisciplinares. As ciências, cada qual no seu âmbito, narram a identidade cultural como algo historicamente constituído. Há abordagens que insistem em caracterizar a identidade cultural a partir do território, da língua, da etnia, da nação, do sistema político, como se a identidade fosse um núcleo sólido e estável, impermeável às influências do mundo globalizado pós-moderno. Essas abordagens fragmentárias não permitem compreender o desenvolvimento dinâmico da construção das identidades culturais no mundo contemporâneo. É necessário analisar como as indústrias culturais, os meios de comunicação social e o consumo massificado se articulam para impor elementos culturais lidertípicos e, ao mesmo tempo, criam mecanismos para preservar as culturas locais não hegemônicas. Juntamente com esses elementos de identificação cultural, ou além deles, as narrativas culturais atualmente precisam recorrer aos intertextos gerados pela globalização. Na sociedade internacional pós-moderna, os fragmentos culturais de todas as partes do mundo são apresentados nas mensagens veiculadas nos meios de comunicação social e nos bens lançados no mercado de consumo. Esse conjunto de fragmentos culturais demanda, de um lado, seu reconhecimento e compreensão por parte de quem os recebe e, de outro lado, a realização da difícil tarefa de estabelecer significados simbólicos intertextuais entre eles e os valores da sociedade específica em que foram disseminados. A construção dessas pontes de significados intertextuais depende da ação dos mediadores sociais que, através das narrativas de seu cotidiano, organizam todos esses elementos num cosmos. A coesão cultural de tais elementos é realizada, portanto, por meio da narrativa intertextual apta a lhes atribuir significação simbólica numa determinada sociedade. Em decorrência dessas narrativas é que os elementos culturais exógenos são realmente introduzidos e assimilados por certo grupo social. Essas narrativas, orais ou literárias, feitas por meio dos jornais, das revistas, das telenovelas, do cinema, da fotografia, das mensagens publicitárias, dos gritos nas feiras livres, das conversas entre amigos, da música, etc. ocupam-se de dois objetos: a realidade que provocou a narração; e a realidade criada, ou recriada, por meio da narração. Embora essas duas realidades possam coincidir, não se confundem, pois a realidade narrada resulta de um processo de mediação simbólica que o narrador fez a respeito da realidade que motivou a narração. Assim sendo, o narrador é simultaneamente autor e personagem da narração, na medida em que incorpora nela seu próprio sistema de valores simbólicos. Entretanto, o narrador não pode agir de modo arbitrário, pois precisa que o sentido de sua narração e o significado simbólico dela sejam compreendidos e assimilados pelo grupo social do qual participa. Desse modo, o narrador precisa recorrer também ao sistema geral de valores simbólicos adotados pela sociedade, mesmo que seja para contraditar tais valores. É assim, então, através das narrativas dos mediadores sociais, que os elementos culturais lidertípicos, osmotípicos e arquetípicos, compostos por fragmentos multiculturais disseminados na sociedade global, são correlacionados e passam a ter coesão orgânica. Esse sentido de “co-produção” , como é óbvio, pressupõe a interação dialógica e polifônica entre os emissores de mensagens com significados simbólicos e os receptores dessas mensagens. A comunicação humana é feita não só por meio de signos lingüísticos, criados por convenção dentro de certo grupo social, mas também por meio valores simbólicos atribuídos por uma sociedade a qualquer tipo de bem importante para as relações sociais multidimensionais. A evolução e a crescente complexidade desse universo de referências exige a correspondente ampliação, sofisticação e diferenciação  formas de linguagem. De modo semelhante, o sistema de valores simbólicos também se torna muito mais complexo e passa a exigir constantes mediações de significados simbólicos intertextuais, sem as quais não seria possível existir um mínimo de coesão e lógica nos processos de comunicação.   Na medida em que as relações individuais, coletivas e sociais do ser humano tornam-se mais complexas e amplas, sua linguagem e o seu sistema de significados simbólicos precisam ser revisados pelos mediadores sociais, os quais, através das narrativas intertextuais que fazem a respeito da realidade, recriam-na e dão estabilidade, mesmo que transitória, ao quadro geral de referências culturais vigentes naquela sociedade, naquele momento e lugar. Em decorrência desses aspectos, num processo dialógico e polifônico de comunicação, cada interlocutor interage não só com o outro mas, também, relaciona o conteúdo de cada discurso com todo o contexto cultural dentro do qual o mesmo processo se desenvolve. Cada interlocutor conecta os conteúdos simbólicos da narrativa com fatos do seu meio ambiente presente, com momentos anteriores de sua vida, com as expectativas que tem para o futuro, com seus sentimentos gerais ou específicos, com as imagens e símbolos míticos que trafegam no seu inconsciente. Procedendo assim, cada interlocutor deixa de ser um receptor passivo das mensagens que lhe são dirigidas pelo outro interlocutor. Ao contrário, ao receber cada mensagem, o interlocutor-receptor a amplia, porque nela incorpora o seu sistema de significados e de valores simbólicos. Reorganiza a narrativa que lhe foi dirigida e cria outra, mais complexa porque inclui a mensagem original e também a narrativa do interlocutor-receptor. Desse modo, este último recria a realidade contida no discurso original e, então, apresenta essa nova realidade ao seu interlocutor, que agora passa a ser receptor e reproduzirá todo o processo. Trata-se, por conseguinte, de um processo de comunicação dialógico, porque envolve participação ativa e transformadora de cada interlocutor; polifônico, porque abrange não somente os signos contidos em determinada mensagem, mas sim todos os signos culturais que o receptor utilizar para receber, decodificar, compreender, reorganizar e reeditar a mensagem original; e cíclico, porque tal processo continua a se reproduzir até o momento em que a comunicação é interrompida. Por isto, não se pode mais aceitar que o processo comunicação seja reduzido ao modelo singelo do emissor ativo e do receptor passivo. Atualmente, a comunicação é concebida como um processo multidimensional que abrange não só os sistemas simbólicos da lingüística, mas também o universo cultural em que estão inseridos os participantes de tal processo.
Nesse contexto, é possível incorporar a essa linha de raciocínio a contribuição de Maria Tereza Cruz a respeito de uma estética da recepção[3], na medida em que ela sustenta que um texto qualquer (não necessariamente o texto literário) contém um conjunto de significados simbólicos propostos pelo autor do texto e, ao ser recepcionado pelo destinatário, pelo leitor do texto, este último agrega ao texto original outros significados simbólicos, associados à sua própria realidade. Nesse sentido, o texto original simboliza uma certa realidade, e a leitura desse texto pelo destinatário simboliza uma outra realidade, que pode ou não coincidir com aquela imaginada, narrada, pelo autor do texto. Por conseguinte, a leitura ou recepção do texto original dá origem a uma outra narrativa, agora feita pelo leitor. Cruz ressalta que o sujeito leitor é uma realidade exterior ao texto e que interage com o texto, constituindo ele também – leitor – o sentido desse texto conforme o contexto em que ambos se ligam para o acontecimento interativo. Portanto, o texto em si mesmo não carrega um significado definitivo, pronto e acabado, construído pelo seu autor. Ao contrário, produzido o texto, o autor perde em grande parte o controle do seu conteúdo, pois este conteúdo será fixado também pelo leitor, com o significado que tal leitor vier a atribuir ao texto dentro do contexto assinalado. A alteridade entre leitor e obra marca, portanto, a construção do significado do texto segundo o paradigma da estética da recepção.
Tendo-se em vista o que foi exposto, é possível estudar a identidade cultural de indivíduos, grupos, países, regiões e continentes a partir dos elementos simbólicos de identidade cultural contidos nas mensagens publicitárias. O objetivo essencial da mensagem publicitária – qualquer que seja sua modalidade – é o de estimular o comércio de bens e serviços e convencer os consumidores a adquirirem esses bens de certos fornecedores e não de outros. Por isto, a mensagem publicitária precisa ser rápida, objetiva, eficiente. Os consumidores estão expostos diariamente a milhões de mensagens publicitárias. Cada uma dessas mensagens precisa captar a atenção dos possíveis consumidores e rapidamente fazer com que se identifiquem com o produto ou serviço oferecido. Nessas circunstâncias, a decisão do consumidor de consumir ou não e, se for consumir, a sua decisão de consumir deste ou daquele fornecedor, depende em grande parte do poder de persuasão contido nas mensagens publicitárias a que estiver exposto. A competição dos fornecedores nos mercados locais, regionais, nacionais e transnacionais é acirradíssima, todos sabem. A globalização econômica e tecnológica impõe a todos os fornecedores a busca incessante por novos mercados. Cada fornecedor precisa perseguir padrões de qualidade e de eficiência que estão sempre num horizonte móvel quase nunca atingível. Num contexto assim, influenciar a decisão de consumo dos consumidores pode significar a sobrevivência ou a morte de um fornecedor. Ocorre que os consumidores são diferentes em múltiplos aspectos. É preciso que a publicidade se adapte a essas diferenças. As mensagens publicitárias são concebidas tendo em vista o nível sócio-econômico dos consumidores, seu grau de instrução, preferências de consumo, disponibilidade de crédito, etc. Os mercados consumidores estão cada vez mais segmentados e exigem especialização crescente dos fornecedores que pretendem atuar nos diferentes segmentos. Conhecer profundamente os diversos segmentos de consumidores é absolutamente essencial para que o fornecedor mantenha-se no mercado em que quer atuar. Conseqüentemente, cada mensagem publicitária incorpora em maior ou menor grau elementos culturais arquetípicos, osmotípicos e lidertípicos, consubstanciados em fragmentos de culturas dispersas no mundo globalizado, com os quais procura cumprir suas funções: atrair o consumidor e fazer com que ele se identifique com os bens oferecidos na peça publicitária. A mensagem publicitária precisa conter elementos simbólicos que correspondam aos valores que o consumidor tem e que sejam suficientes para provocar uma resposta positiva desse consumidor em relação ao bem ofertado. Portanto, a mensagem publicitária é um instrumento em que estão incorporados significados simbólicos tanto de abrangência social como individual. O consumidor potencial irá adquirir ou não o bem ofertado na mensagem publicitária não tanto pelo valor simbólico que esse bem possa ter para ele, consumidor – subjetivamente – mas sobretudo porque tal bem tem um valor simbólico na sociedade, o qual faz com que o consumidor queira ter o bem para, por seu turno, sentir-se integrado àquela sociedade e ser reconhecido dentro dela como alguém identificado com os significados simbólicos sociais. Além disso, há outro motivo pelo qual as mensagens publicitárias são um bom paradigma para analisar a identidade cultural de um grupo social. Pelas razões acima expostas, a publicidade precisa ser adaptada aos diferentes tipos de consumidor. Disto decorre que a publicidade pode combinar diferentes formas de expressão artística e distintas formas de narrativas sociais. A publicidade pode combinar a fotografia, o cinema, a pintura, o desenho, a literatura e a oratura, a música e os sons, a escultura, a dança, etc. Dessa maneira, elementos culturais que são encontrados em todas essas outras mídias e formas de expressão cultural podem ser concentrados na obra publicitária. No universo da publicidade, pois, estão presentes as etnias, a cinematografia, a música, as ilustrações, a literatura, a oratura, a língua do povo, as gírias, os desenhos, as religiões, os padrões estéticos, o vestuário, a gastronomia e, enfim, todos os elementos de identificação cultural aos quais uma determinada sociedade atribua ou possa atribuir significados simbólicos. Ao estudar a identidade cultural por meio das mensagens publicitárias, é possível em alguma medida estender os resultados desses estudos para todas as referidas formas de expressão e de narrativa da vida social.
De fato, enorme quantidade de bens de consumo é introduzida no mercado a cada dia em função da potencial capacidade aquisitiva de centenas de milhares de consumidores. A oferta de bens de consumo tende a ser compatível com a demanda desses mesmos bens por parte dos consumidores. Entretanto, são limitados os recursos de que cada consumidor dispõe para adquirir bens de consumo. Inexoravelmente, o consumidor precisa ponderar sobre todas as suas necessidades econômicas e priorizá-las. O consumidor adquirirá apenas alguns dos muitos bens de consumo que lhe são necessários. Por isto, cada fornecedor precisa utilizar instrumentos e adotar estratégias peculiares para atrair a atenção dos consumidores em relação aos produtos ou serviços que quer vender a estes últimos. A publicidade está entre os variados instrumentos e estratégias de que o fornecedor poderá se valer para alcançar seus objetivos comerciais. O consumidor, por sua vez, sendo destinatário de tantas mensagens publicitárias, passa a ter um acervo de informações importantes que irão ajudá-lo a selecionar, avaliar, ponderar e, enfim, a decidir-se por quais bens de consumo irá adquirir. Nesse contexto, a mensagem publicitária tem por finalidade estimular o consumo de produtos e serviços existentes e disponíveis no mercado. A publicidade explora as qualidades e vantagens dos bens de consumo a que se refere e tenta persuadir os destinatários da mensagem a adquirir tais bens. Mesmo que o consumidor já tenha adquirido os referidos bens, a mensagem publicitária o estimula a repetir o ato de aquisição periódica e continuamente. Logo, a publicidade não tem apenas conteúdo informativo, mas preponderantemente comercial. A publicidade informa para vender os bens de consumo a que se refere. A publicidade sempre apresenta o produto ou serviço como sendo o melhor, o mais eficiente, o de menor preço, o mais seguro e, enfim, refere-se ao bem como sendo exatamente aquele que corresponde a todas as necessidades do consumidor. Daí porque é essencial que a mensagem publicitária introduza para o público consumidor o novo, o moderno, o avanço tecnológico, a evolução em contraste com o antigo, o obsoleto, o velho. A publicidade corre o risco de ser ineficiente se deixar de introduzir no ambiente social elementos culturais novos, aos quais devem ser atribuídos novos significados simbólicos que procura disseminar naquela sociedade. Por esses motivos, enquanto meio de comunicação social dirigido ao grande público, a publicidade sintetiza de maneira muito clara o processo dialético de reformulação cultural antes comentado.

[1] MEDINA, Cremilda. Notícia: um produto à venda – jornalismo na sociedade urbana e industrial. São Paulo: Summus, 1988. 5 ed.
[2] LOHISSE, Jean. Communication Anonyme. Paris, Éditions Universitaires, 1969. Apud MEDINA, Cremilda. Notícia: um produto à venda – jornalismo na sociedade urbana e industrial. São Paulo: Summus, 1998. 5 ed.
[3] CRUZ, Maria Tereza. A estética da recepção e a crítica da razão impura. In: Revista de Comunicação e Linguagens. Lisboa: Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens, junho,  n. 3, 1986.

TEORIA GERAL DOS CONTRATOS – V.1

INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DOS CONTRATOS

1. FONTES OBRIGACIONAIS E ELEMENTOS ESSENCIAIS DA RELAÇÃO JURÍDICA OBRIGACIONAL

Modernamente, as obrigações podem nascer de quatro fontes, a saber:

(a) da disposição legal em geral;
(b) da ocorrência de uma conduta ilícita;
(c) da declaração unilateral de vontade; e
(d) do contrato.

Em plano genérico, todas as obrigações nascem da lei, pois é a lei quem atribui eficácia jurídica aos atos ilícitos, às declarações unilaterais de vontade ou aos contratos. A vida social é repleta de fatos, mas nem todos eles são aptos a produzir efeitos jurídicos. As normas jurídicas referem-se a certos fatos da vida social e lhes atribuem efeitos jurídicos. Esses fatos previstos nas normas jurídicas chamam-se fatos jurídicos. Sendo assim, toda relação jurídica obrigacional nasce da combinação de dois elementos: (1º) a existência de uma norma jurídica que se refere a um fato hipotético, genérico e abstrato, ao qual atribui determinados efeitos jurídicos; e (2º) a ocorrência, no mundo real, daquele fato referido na norma, ou seja, do fato jurídico.

As normas jurídicas estabelecem padrões de comportamento social humano, tornando possível o convívio das pessoas na sociedade. Essas normas, em síntese, impõem, proíbem ou toleram condutas dos seres humanos de determinado grupo social. Em consequência disto, as normas jurídicas, na sua estrutura mais simples, têm em vista dois destinatários. A norma destina-se a um sujeito (ativo) que é por ela beneficiado, pois tal sujeito pode exigir que em seu favor outro sujeito (passivo) adote exatamente o comportamento social prescrito pela norma. De outro lado, a norma destina-se também a um sujeito (passivo) que é por ela constrangido a adotar o comportamento social especificado em favor do sujeito ativo. Se o sujeito passivo desobedecer a norma jurídica, estará exposto a uma sanção negativa.

A sanção é um instrumento contido na própria norma jurídica com a finalidade de induzir o sujeito passivo a obedecer o comando normativo. A norma, em si mesma, é obrigatória. Todavia, existe a possibilidade de ser desobedecida pelo sujeito passivo. Para reforçar o comando normativo, existe a sanção, que pode ser positiva ou negativa.

A sanção será positiva se atribuir uma vantagem, uma premiação, ao sujeito passivo que obedeceu a norma. Por exemplo, uma disposição contratual pode estabelecer que o dia de pagamento de uma obrigação pecuniária é o dia 10. Tal norma contratual, por si mesma, impõe ao devedor que pague a dívida no dia 10. Mas, a mesma disposição contratual pode prever uma sanção positiva, a saber: se o devedor efetivamente pagar sua dívida no dia 10, terá um desconto de 10% sobre o valor da dívida original.

A sanção será negativa se atribuir ao sujeito passivo uma penalidade, uma situação desvantajosa, porque ele desobedeceu a norma jurídica. Por exemplo, tomando-se o mesmo caso da obrigação pecuniária que se vence no dia 10, a disposição contratual estará prevendo uma sanção negativa se, não pagando a dívida no dia 10, o devedor ficar exposto: (a) a uma multa pecuniária de 10% sobre o valor da dívida original; ou (b) à rescisão do contrato; ou (c) ao protesto do título representativo da obrigação.

Quando o fato jurídico previsto na norma jurídica acontece no mundo real, forma-se uma relação jurídica, que necessariamente terá ao menos estes elementos:

(1º) um sujeito ativo, que é o ser humano ao qual a norma jurídica atribui o poder de exigir em face de outro sujeito (passivo) um comportamento especificado na norma jurídica;

(2º) um sujeito passivo, que é o ser humano a quem a norma impõe o dever de adotar certo comportamento social em favor do sujeito ativo;

(3º) um vínculo jurídico, que é a ligação estabelecida, por força da norma jurídica, entre o sujeito ativo e o passivo e em razão da qual o sujeito ativo pode exigir do sujeito passivo o comportamento prescrito pela norma;

(4º) uma prestação, ou seja, o comportamento que o sujeito passivo tem que adotar em face do sujeito ativo, porque assim a norma determinou;

(5º) uma sanção, que poderá ser positiva, negativa, ou mista;

(6º) a coerção, que é o poder que o sujeito ativo tem de, nos termos previstos no ordenamento jurídico, exigir que o sujeito passivo, independentemente de sua vontade, cumpra o comportamento prescrito pela norma jurídica, ou o comportamento substitutivo estabelecido no ordenamento jurídico.

Nesse contexto, as normas jurídicas, por mais complexas que sejam, estabelecem basicamente três tipos de condutas padronizadas: conduta obrigatória; conduta proibida; ou conduta livre. Cada um desses tipos poderá referir-se a prestações de dar, fazer ou não fazer.

Nem toda relação jurídica é uma obrigação. A obrigação situa-se apenas no âmbito patrimonial. O patrimônio é o complexo de relações jurídicas economicamente apreciáveis de um determinado sujeito. Esse patrimônio é composto tanto pelos direitos como pelas obrigações da pessoa considerada. Essas relações jurídicas patrimoniais necessariamente têm conteúdo econômico; caso contrário, não serão relações jurídicas obrigacionais.

Portanto, quando se diz que as fontes obrigacionais são aquelas indicadas logo no princípio deste item, o que se quer dizer, na verdade, é que:

(1º) a obrigação pode nascer em decorrência de disposição legal que, independentemente da vontade dos sujeitos ativo e passivo, estabeleça a relação jurídica obrigacional sempre que determinado fato jurídico se verificar; é o que ocorre, por exemplo, quando uma pessoa tem filho: independentemente da vontade do pai (sujeito passivo da obrigação) ou do filho (sujeito ativo da obrigação), o genitor tem a obrigação de prestar alimentos ao filho;

(2º) a obrigação pode nascer em razão da verificação de um ato ilícito, ou seja, em decorrência do fato de alguém (sujeito passivo da obrigação) ter desobedecido um comportamento estabelecido pela norma jurídica e, por causa disto, ter causado prejuízo jurídico a outra pessoa (sujeito ativo), caso em que o sujeito passivo estará exposto a diversas sanções, sendo uma delas a obrigação de indenizar o prejuízo causado ao sujeito ativo; é o caso, por exemplo, da pessoa que, acidentalmente, abalroa veículo de outra pessoa, por ter ultrapassado sinal vermelho; o causador do acidente desobedeceu norma de tráfego e prejudicou o patrimônio alheio, ficando obrigado a indenizar o lesado;

(3º) alguém poderá tornar-se sujeito passivo de uma relação obrigacional por sua declaração unilateral de vontade, na medida em que a norma jurídica autorize este comportamento; quem promete a outra pessoa uma recompensa, por exemplo, para que se encontre um cachorro perdido, está dando origem a uma obrigação por declaração unilateral de vontade, já que tal obrigação não depende, para se formar, da declaração de vontade daquele a quem a recompensa é prometida;

(4º) a obrigação, finalmente, pode se originar de um contrato, em que pelo menos duas vontades se coordenam para, de acordo com a lei, produzirem determinados efeitos jurídicos.

2. OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS E EXTRACONTRATUAIS

Em função do que foi exposto até agora, pode-se dizer que:

(a) todas as relações jurídicas obrigacionais, no seu aspecto mais genérico, nascem da norma jurídica, pois é esta norma jurídica que prevê os fatos – hipoteticamente – e atribui a esses fatos certos efeitos jurídicos;

(b) de modo mais específico, as obrigações se originam da combinação da norma jurídica com o fato jurídico concreto que se verifica no mundo real, desencadeando os efeitos jurídicos previstos pela norma;

(c) o nascimento das relações jurídicas obrigacionais pode ou não depender da manifestação de vontade dos sujeitos ativo e passivo;

(d) quando o nascimento da obrigação é independente da vontade dos sujeitos ativo e passivo, diz que a obrigação (em sentido estrito) tem origem legal; ao contrário, quando a constituição da obrigação depende da manifestação de vontade dos sujeitos ativo e/ou passivo, diz-se que a origem da obrigação é voluntária;

(e) a obrigação com origem legal abrange qualquer obrigação estabelecida por lei, independentemente da vontade dos interessados e, por isto, inclui a obrigação nascida de ato ilícito;

(f) a obrigação convencional abrange as obrigações nascidas por declaração unilateral de vontade e as obrigações contratuais.

Por conseguinte, há obrigações contratuais e obrigações extracontratuais. As primeiras são as obrigações que resultam da celebração de um contrato. As obrigações extracontratuais, ao contrário, são as que se situam fora do contrato. Para que se possa compreender essa distinção, é necessário adentrar na teoria geral do contrato, especialmente é preciso conhecer a noção mais abrangente de contrato.

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TEORIA GERAL DO CONTRATO

1. NOÇÃO GERAL DE CONTRATO

A partir de uma perspectiva genérica, pode-se conceituar o contrato como sendo qualquer ato jurídico em sentido amplo em que a coordenação de vontades dos contraentes é apta a produzir efeitos jurídicos.

Por meio do contrato, as partes declaram suas vontades que se integram de tal maneira que possibilitam aos contratantes a aquisição, a conservação, a transferência, a modificação ou a extinção de direitos e obrigações.

2. CONTRATO E NEGÓCIO JURÍDICO

Foi visto as relações jurídicas, obrigacionais ou não, nascem da combinação da norma jurídica e da verificação real do fato jurídico previsto pela norma. A ocorrência desse fato jurídico, em muitos casos, independe da vontade dos sujeitos destinatários da norma jurídica e, assim, verificado o fato no mundo real, forma-se a relação jurídica. É possível, no entanto, que a verificação do fato jurídico previsto pela norma dependa da manifestação de vontade do sujeito destinatário da regra jurídica. Sem que tal vontade seja declarada de acordo com a lei, o fato jurídico previsto pela norma não ocorrerá e, como consequência, a relação jurídica não se formará.

Por exemplo, se alguém desejar vender determinado bem, terá que declarar a vontade de vender, sem a qual a venda não ocorrerá.

Nos casos em que a relação jurídica somente se estabelece mediante uma declaração de vontade, tem-se o que se chama de ato jurídico em sentido lato, ou amplo, que, por sua vez, divide-se em duas categorias: (a) o ato jurídico em sentido estrito;  e (b) o que se denomina negócio jurídico.

O ato jurídico em sentido amplo é uma declaração de vontade, feita de acordo com a lei, apta a produzir efeitos jurídicos. A norma jurídica identifica um fato jurídico que, para ocorrer no mundo real, depende da manifestação de vontade do sujeito interessado. Uma vez manifestada essa vontade, o fato jurídico se realiza e a combinação dele com a norma jurídica dá origem a uma relação jurídica que, por sua vez, produz efeitos jurídicos previstos pela norma.

No caso do ato jurídico em sentido estrito, diversos efeitos se desencadeiam e não só o efeito que o declarante da vontade imaginou. Esses múltiplos efeitos decorrem – todos – da declaração de vontade feita pelo sujeito, mesmo que ele sequer tenha imaginado que tais efeitos haveriam de se verificar. Trata-se de efeitos que o sujeito sabe ou deveria saber conseqüentes de seu ato jurídico. Por exemplo, se o pai comparece a um Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais para realizar o registro de uma criança como seu próprio filho, será estabelecida uma relação jurídica de parentesco entre pai e filho. Este efeito jurídico específico é o desejado pelo pai que assim procede (é um negócio jurídico, como se verá mais adiante). Todavia, além desse efeito específico, muitos outros ocorrerão em razão do que foi dito. A criança terá nacionalidade correspondente ao seu lugar de nascimento; o domicílio da criança será o de seu pai; a criança torna-se herdeira necessária do pai, que não mais poderá dispor livremente da metade de seu patrimônio que constitui a legítima; etc. O pai, talvez, sequer tenha pensado em todos esses efeitos – ou muitos outros – que decorrem de sua declaração de vontade. Não poderá, por exemplo, anular o assento do nascimento do filho sob a alegação de que não queria ou não sabia que teria que teria que prestar alimentos ao filho. Se o sujeito quis declarar a vontade de ser pai da criança, dessa vontade resulta o parentesco e todos os demais efeitos previstos no ordenamento jurídico. Daí porque se diferencia o ato jurídico do negócio jurídico.

O negócio jurídico é uma declaração de vontade, feita de acordo com a lei, apta a produzir certo e determinado efeito jurídico especialmente desejado pelo sujeito que declarou tal vontade. Tal como acontece no caso do ato jurídico, também no negócio jurídico a norma jurídica identifica um fato jurídico que, para ocorrer no mundo real, depende da manifestação de vontade do sujeito interessado. Uma vez manifestada essa vontade, o fato jurídico se realiza e a combinação dele com a norma jurídica dá origem a uma relação jurídica que, por sua vez, produz efeitos jurídicos previstos pela norma e, notadamente, tem que produzir o efeito jurídico que motivou o sujeito a declarar a vontade que declarou. Se este efeito jurídico especificamente desejado pelo agente não vier a se produzir, o sujeito poderá desconstituir o negócio jurídico.

Um exemplo esclarecerá bem a situação. Um sujeito comparece a um Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais para registrar uma criança como seu próprio filho. Este é o efeito jurídico especificamente desejado pelo pai ao declarar sua vontade. Trata-se de um negócio jurídico: o pai quer estabelecer a relação jurídica de parentesco entre ele e a criança que imagina seja seu filho. Mais tarde, esse pai descobre que a criança não era verdadeiramente um filho seu. Por conseguinte, aquele efeito jurídico que o pai desejou especificamente alcançar está frustrado. O pai não quis estabelecer uma relação jurídica de parentesco entre ele e uma criança que não era seu filho. Por isto, o pai poderá pleitear a nulidade do assento de nascimento da criança, demonstrando inexistir relação biológica de parentesco entre ele (pai) e a criança que pensava ser seu filho. Anulado o assento de nascimento, todos os demais efeitos jurídicos que decorriam da declaração de paternidade mencionada (enquanto um ato jurídico) também desaparecerão.

Conclui-se, assim, que a distinção técnica entre ato jurídico e negócio jurídico está em que neste (negócio jurídico) tem-se em vista um efeito jurídico muito específico desejado por quem fez a declaração de vontade de acordo com a lei, efeito este que, frustrado, permite a desconstituição do negócio jurídico. No caso do ato jurídico essa desconstituição não é possível no que concerne aos efeitos genéricos que a declaração de vontade deve produzir.

Logo se vê, então, que a mesma declaração de vontade poderá dar origem, simultaneamente, a um ato jurídico e a um negócio jurídico. A diferença de tratamento está apenas nos efeitos que a vontade produz em cada caso (ato ou negócio) e nas hipóteses em que se admite a desconstituição do ato ou do negócio jurídico.

Daí porque se pode esquematizar o que foi dito do seguinte modo:

fatos da vida social em geral

fatos jurídicos (os que a norma jurídica disciplina)

fatos jurídicos não humanos

fatos jurídicos ilícitos

fatos jurídicos humanos          fatos jurídicos humanos involuntários

fatos jurídicos humanos voluntários

atos ilícitos    atos jurídicos em sentido amplo   atos jurídicos em sentido estrito –    negócio jurídico

Decorre de todo o exposto que no negócio jurídico existe um pressuposto de fato, que é o efeito especificamente desejado pelo sujeito que declara a vontade de acordo com a lei. O fundamento ético do negócio jurídico é, assim, a vontade do agente declarante. O fundamento jurídico do negócio jurídico é a perfeita correspondência da vontade do agente com a vontade da lei para que se produza o efeito jurídico objetivamente desejado pelo sujeito.

Os efeitos decorrentes do negócio jurídico podem ser:

(a) unilaterais, quando se produzem em relação à situação jurídica de um sujeito específico;

(b)  bilaterais, quando se verificam em relação às situações jurídicas de dois sujeitos reciprocamente considerados; e

(c) multilaterais, quando alcançam as situações jurídicas de mais de dois sujeitos considerados uns em relação aos outros.

Essas considerações todas foram necessárias para fixar a conclusão de que o contrato, sendo um ato jurídico em sentido amplo, abrange tanto o negócio jurídico como o ato jurídico em sentido estrito. O contrato contém diversas relações jurídicas que produzem variados efeitos jurídicos em relação aos contratantes.

3. CONCEITOS DE CONTRATO

A figura jurídica do contrato pode ter mais de um conceito, amplo ou restrito, conforme a necessidade que se tenha para integrá-la ao ordenamento jurídico numa categoria adequada.

A conceituação ampla ou restrita decorre da distinção de tratamento dos efeitos jurídicos do ato jurídico em sentido estrito e do negócio jurídico. A desconstituição de um contrato, por exemplo, será ou não possível conforme seja ele encarado como ato jurídico ou negócio jurídico. Também no que atine aos efeitos do contrato em relação às partes contratantes é importante distinguir o contrato como ato ou como negócio jurídico. Por exemplo, o vendedor de um bem, em geral, responde perante o comprador pelos vícios redibitórios (art. 1.101, do CC). O vendedor de bem com vício redibitório não poderá pretender a desconstituição do contrato sob a alegação de que não quer ser responsável pelo defeito constatado. Tem-se aí essa responsabilidade contratual como um dos efeitos decorrentes do contrato concebido como ato jurídico em sentido estrito. Por outro lado, o comprador do bem com vício redibitório tem o direito de pretender desconstituir o contrato se o bem adquirido lhe for inútil por causa do defeito oculto. Neste caso, sob a perspectiva do comprador, o contrato é considerado um negócio jurídico, pois o comprador quis comprar um bem sem defeito e útil para certa finalidade, coisa que inocorreu, frustrando sua vontade negocial.

3.1. CONCEITO AMPLO DE CONTRATO

Como já foi esclarecido, a partir de uma perspectiva genérica, pode-se conceituar o contrato como sendo qualquer ato jurídico em sentido amplo em que a coordenação de vontades dos contraentes é apta a produzir efeitos jurídicos.

Esta conceituação ampla tem em vista o contrato tanto como ato jurídico em sentido estrito; como o contrato visto como um negócio jurídico.

3.2. CONCEITO RESTRITO DE CONTRATO

Partindo-se de uma perspectiva mais restrita, pode-se conceituar contrato como um complexo obrigacional decorrente das declarações de vontades dos contratantes, coordenadas entre si para, de acordo com a lei, produzirem determinados efeitos jurídicos em relação a esses contratantes.

O conceito estrito acima apresentado aproxima o contrato do conceito do negócio jurídico.

4. BREVES CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE O CONTRATO

Em linhas muito gerais, o contrato tinha estas características no Direito Romano:

(a) o contrato era um acordo de vontades das partes sobre um mesmo ponto negocial;

(b) as obrigações, em Direito Romano mais antigo, não se constituíam apenas pelo acordo de vontades (elemento subjetivo); exigia-se que as vontades estivessem revestidas por uma forma especial, muitas vezes solene (elemento objetivo ou material);

(c) mais tarde, no processo de fusão do ius civile com o ius gentium, passou-se admitir a formação consensual de alguns contratos (venda, locação, mandato, sociedade);

(d) nos demais contratos, a forma (litteris, re, verbis) era obrigatória para a formação do contrato e a obrigação contratual assim formada tinha caráter personalíssimo;

(e) formado o contrato, nascia para o credor o direito de ação para garantir o seu direito, evidenciando a simbiose entre ação e direito que sempre caracterizou a vida jurídica no Direito romano;

(f) além do contrato, os romanos conheciam o pacto (pacta), que se caracterizavam por não ter nomes especiais nem forma predeterminada e que se distinguiam dos contratos, sobretudo, porque os pactos, em épocas mais pretéritas do Direito Romano, não estavam protegidos por ações;

(g) a denominação genérica de “convenção” (conventio) podia referir-se tanto ao contrato como ao pacto.

Vários dos traços acima apontados não prevalecem no Direito contratual contemporâneo, a saber:

(a) não há, atualmente, distinção entre pacto e contrato, já que qualquer desses tipos de convenção é absolutamente independente do direito subjetivo público de ação, que qualquer contraente pode ajuizar para discutir seu eventual direito contratual;

(b) o caráter personalíssimo dos contratos está marcantemente enfraquecido, tendo em vista que não prevalece, modernamente, o nexum entre os contratantes, ou seja, o direito do credor de aprisionar e escravizar o devedor inadimplente que garantia a dívida com seu próprio corpo; atualmente a responsabilidade do devedor é patrimonial e não mais corporal, mesmo que a obrigação seja personalíssima.

5. VISÃO GERAL DO DIREITO CONTRATUAL NA ATUALIDADE

As características do Direito Contratual transformaram-se profundamente já no Direito Romano mesmo e, modernamente, os princípios gerais em matéria contratual atravessam verdadeira revolução.

A estruturação legal das relações contratuais nos países latinos proveio do Direito romano. Os princípios que informam essas relações contratuais, tanto no Direito brasileiro como no Direito dos demais países que estiveram um dia integrados ao Estado romano, foram assimilados por força do Direito romano.

Como ensina José Carlos Moreira Alves, em sua obra “Direito Romano”, volume II, 4ª edição, Ed. Forense, por motivos históricos o sistema de Direito romano, como dito, foi assimilado pelos povos latinos. É sabido que no ano 476 d. C. o Império Romano ocidental caiu sob domínio de povos bárbaros que, aliás, naquele mesmo século já haviam tomado dos romanos diversas colônias. No entanto, o Império Romano do Oriente conseguiu subsistir sob o comando do imperador Justiniano, chegou mesmo a recuperar as regiões ocidentais dominadas pelos bárbaros. Todavia, Justiniano veio a falecer no ano 565 d. C. e, três anos após sua morte, iniciou-se novamente o processo de desagregação do Império e no século IX já havia desaparecido o Império bizantino.

Por essa razão, tradicionalmente tem-se adotado o ano 565 d. C. como o momento final do Direito Romano. A partir de então, embora subsistisse o Império Romano no oriente, a estrutura jurídica romana passou a sofrer fortes influências bizantinas. A própria aplicação do Direito Romano no oriente mostrou-se bastante difícil por motivos variados. José Carlos Moreira Alves (op. cit. p. 67) aponta como principais razões do desprestígio do Direito Romano as seguintes:

Depois da morte de Justiniano, a aplicação de sua obra legislativa se torna cada vez mais difícil, por três motivos: 1º) a língua latina, usada na codificação, vai, a pouco e pouco, deixando de ser falada no Oriente, onde o idioma utilizado era o grego; 2º) no Corpus Iuris Civilis havia normas de direito romano clássico em desuso ao lado de preceitos jurídicos vigentes; e 3º) sendo cada uma de suas partes (Institutas, Digesto, Código e Novelas) um todo orgânico, onde se tratava, de maneira independente, dos diversos institutos jurídicos, havia dificuldade em coordenarem-se as normas, sobre cada um deles, existentes naquelas quatro partes.

A historiografia jurídica não dispõe de elementos seguros para esclarecer o que aconteceu com o Direito Romano após a queda do Império ocidental, em 476 d. C. Somente no século XI é que aparecem mais informações a respeito do estudo e aplicação do Direito Romano. E isto deveu-se a razões preponderantemente políticas e econômicas. Naquela época, havia sério conflito entre o imperador alemão e o Papa. Na Itália o Papa tinha como aliada uma tal Condessa Matilde de Tuszien que, por sua vez, atribuiu a Irnério o encargo de aprofundar o estudo do Direito Romano. Isto porque, sendo o Direito Romano um direito nacional, haveria de servir ideologicamente como elemento contrário ao direito estrangeiro. Por outro lado, na mesma época, as regiões italianas tornaram-se importantes rotas comerciais estratégicas, fato que lhes possibilitou o acúmulo de imensas riquezas. No entanto, este fabuloso desenvolvimento econômico era muito mal regulado por normas jurídicas esparsas e desarticuladas entre si, o que prejudicava sobremaneira os interesses econômicos italianos. Para eliminar esse contraste, entendeu-se ser suficiente voltar a aplicar o Direito Romano como direito nacional oficial.

Assim é que, ainda no século XI, Irnério, responsável pelo ensino jurídico em Bologna, veio a formar a chamada Escola dos Glosadores, intensificando a partir de então o estudo do Direito Romano e trazendo-o de novo à vida como direito nacional vigente. Os glosadores dirigiram o estudo do Direito Romano desde o ano 1.100 até o ano 1.300, mais ou menos. Comentaram eles praticamente todo o Corpus Iuris Civilis e foi esse trabalho que permitiu que os juristas medievais pudessem conhecer e estudar o Direito Romano. Também por decorrência do trabalho dos Glosadores é que o Direito Romano tornou-se a base do direito privado vigente em diversos países latinos modernos.

Os Glosadores foram sucedidos pelos pós-glosadores, que estudaram sistematicamente o Direito Romano nos séculos XIV e XV. É bom esclarecer que entre as duas escolas não ocorreu propriamente uma oposição, mas sim uma transição a respeito do objetivo que deveria nortear o estudo do Direito Romano. O interesse da Escola dos glosadores era o de estudar o Direito Romano para aplicá-lo na vida prática. Precisavam, portanto, conhecer e compreender os textos legais romanos para, depois, fazerem neles as adaptações necessárias para que fossem coerentes com as normas jurídicas vigentes. Só assim seria possível aplicar o Direito Romano na vida prática. Já os pós-glosadores abandonaram o estudo direto das fontes do Direito Romano. Valendo-se dos estudos feitos por seus predecessores, concentraram esforços na tarefa de fundir o Direito Romano com o canônico e ainda com os direitos vigentes em cada país, dando origem a um novo sistema normativo melhor adaptado à época de então.

Nesse contexto, foi possível que o Direito Romano, já então transformado conforme explanado, viesse a se tornar o direito vigente em vários países europeus desde o século XIII até o XIX. Somente quando começaram os movimentos das grandes codificações, no século XIX, é que o Direito Romano veio a ser substituído pelos códigos que foram sendo editados em cada país. Mas, note-se bem, o Direito Romano foi incorporado como base dos referidos códigos. Deixou de ser aplicado como direito produzido pelo Império Romano, mas foi nacionalizado por meio das grandes codificações, nas quais foi incorporada grande parte dos institutos do Direito romano.

Sendo assim, observando-se a estrutura dos institutos jurídicos encontrados no Direito Romano e contrastando-a com a estrutura desses institutos existentes no direito moderno, constata-se a enorme influência do pensamento jurídico romanista. Por isto, é sempre interessante, ao se examinar certo instituto jurídico, recorrer às fontes do Direito romano. O Direito brasileiro herdou do sistema jurídico romano a estruturação básica da teoria contratual. O Direito Romano havia sido absorvido, em grande parte, pela legislação lusitana, que, por sua vez, vigorou durante largo período no Brasil.

As profundas transformações sociais, econômicas e políticas provocadas na Europa a partir da decomposição do regime produtivo feudal desencadearam transformações progressivas no Direito Contratual. A desagregação do sistema feudal provocou dois fenômenos sociais muito importantes: (a) o deslocamento de imensos contingentes de pessoas que perderam suas funções produtivas nas zonas agrárias; e (b) aglomeração nos centros urbanos de parte das populações campesinas deslocadas dos campos feudais.

O sistema feudal de produção conseguiu manter, durante séculos, as populações vinculadas à terra pertencente aos senhores feudais. A característica mais marcante desse modo de produção é o fato de ele ser hermético. No feudo, os camponeses produziam para sua própria subsistência. Por outro lado, parte da produção campesina era entregue ao senhor feudal como tributo ou como retribuição pelo uso da terra que a ele pertencia. De sua parte, o senhor feudal garantia à população dele dependente a segurança de que os camponeses precisavam. Com suas rendas, o senhor feudal mantinha exércitos, pessoal administrativo, fazia as obras de conservação de seu feudo e trabalhos de interesse geral. Dessa maneira, somente os excedentes excepcionalmente obtidos eram comercializados. Não se produzia para o mercado e sim para a subsistência dos camponeses e do senhor feudal. O poder real, embora existente, não tinha qualquer expressão política ou econômica. O monarca era tão somente mais um senhor feudal. Fora de seu próprio feudo, o monarca exigia dos demais senhores feudais a vassalagem, isto é, o dever de obediência, respeito e colaboração com o suserano, especialmente no âmbito militar. Na prática, porém, somente em circunstâncias muito específicas esses deveres dos senhores feudais eram cumpridos. Além de tudo isto, por influência do Direito Canônico, existia no sistema jurídico feudal o instituto da primogenitura, ou seja, o feudo, com tudo e todos que nele estivessem, seria transmitido por herança ao primogênito do senhor feudal. Consequentemente, os filhos não primogênitos precisavam buscar novos territórios, muitas vezes fora do continente europeu, onde pudessem instalar seus próprios feudos. Outros, porém, à falta de outras opções, passaram a se dedicar ao comércio. Questões políticas e econômicas vieram a desagregar o sistema feudal.

De fato, o ativo comércio com entre a Europa e as regiões orientais e africanas era feito por diversas rotas comerciais marítimas e terrestres. As cidades européias localizadas em pontos estratégicos das costas mediterrâneas foram as mais beneficiadas por tal atividade comercial. Cruzado o Mediterrâneo, as rotas comerciais terrestres na Europa abrangiam as regiões italianas e francesas e, transpondo os Alpes, chegavam aos países baixos.

A prosperidade comercial de então era obstada, em muitas situações, pela fragmentação do poder econômico e político inerente ao sistema feudal. Assim, as rotas comerciais eram inseguras, quer em decorrência de seu precário estado de conservação em alguns territórios feudais, quer pelos constantes assaltos e pilhagens que as caravanas comerciais sofriam. Além disto, cada feudo tinha seu próprio sistema tributário e seus pesos e medidas, circunstâncias estas que prejudicavam a livre circulação comercial e a encareciam sobremaneira o preço final das mercadorias. Não bastasse isto, havia constantes disputas políticas e econômicas sobre o domínio das rotas comerciais e nem sempre os senhores feudais – isoladamente ou em conjunto – conseguiam garantir os interesses dos comerciantes seus aliados.

Esse contexto foi pouco a pouco demonstrando a necessidade de se transformar o sistema feudal, já há tempo inadequado à expansão e consolidação do capitalismo comercial. Entretanto, fatos mais sérios terminaram por abalar definitivamente o prestígio feudal. Com efeito, com a queda do Império Romano do Oriente, em 1.054 d. C., marcou-se o fim da Idade Antiga e o início da Idade Média, na qual prevaleceu o regime feudal. No entanto, nos séculos XII e XIII o capitalismo comercial europeu deparou-se com graves bloqueios de rotas mercantis.

Naquela época já era multissecular a disputa entre os povos antigos pelo domínio das principais rotas comerciais entre Europa, oriente e África. Entretanto, os povos árabes, que controlavam certos pontos estratégicos de tais rotas, implementaram a partir do século XI uma ofensiva militar e comercial de maior envergadura. Assim é que, invadindo parte da Península Ibérica, França e outras regiões costeiras da Europa e, paralelamente a isto, controlando praticamente a costa norte da África, voltada para o Mediterrâneo, os árabes praticamente inviabilizaram o comércio europeu sem que as mercadorias passassem pelos territórios que dominavam. Daí surgiram as guerras de reconquista, as Cruzadas, que nada mais eram do que tentativas européias de retomar aos árabes os pontos e rotas comerciais que estes controlavam.

Nessas circunstâncias, as contradições internas do próprio regime feudal, bem como esses fatores externos a ele relacionados (o domínio de rotas comerciais) forçaram a ruptura do regime feudal. Precisou-se, então, fortalecer o poder central do monarca, para que este pudesse eliminar os problemas apontados. Surgiram, assim, as Monarquias Absolutistas, que com suas justificativas ideológicas, religiosas, econômicas e sobretudo militares, puderam recuperar para os europeus importantes rotas comerciais. As Monarquias Absolutistas unificaram pesos, medidas e uniformizaram tanto quanto possível os tributos incidentes sobre a atividade comercial, ampliaram as rotas viárias terrestres e marítimas, conservaram-nas e tornaram-nas mais seguras. Esse contexto permitiu a diversificação das atividades econômicas, que passaram a ter, ao lado da produção agrícola, pequenas indústrias artesanais e profissionais prestadores de serviços variados. Nesse novo panorama, multiplicam-se os burgos, ou cidades, que passam a acolher parte daquela população que perdeu função após a decomposição do sistema feudal. Outra parte dos camponeses deslocados dos feudos foi absorvida em exércitos, que estavam permanentemente em campanha, e ainda outra parte não teve outra alternativa senão a de emigrar.

Esse panorama prevalece até o século XV, quando as nações ibéricas, isto é, Portugal e Espanha, decidiram procurar rotas comerciais alternativas que lhes possibilitassem controlar diretamente o comércio com os centros fornecedores orientais. Nessa empreitada, vieram a integrar o continente americano ao capitalismo comercial do mundo. Nesse processo de colonização das novas regiões descobertas, as nações ibéricas foram seguidas de perto pela Inglaterra, França e Holanda. Para os novos territórios fluíram grandes contingentes de populações européias que não mais podiam ser absorvidas na economia do velho continente.

Esse processo evolutivo vai dando origem, ao lado do capitalismo comercial, a uma nova fase de desenvolvimento, consagrada com a Revolução Industrial ocorrida na Europa nos séculos XVIII e XIX. Estabelecidas as bases da fase capitalista industrial, o panorama sócio-econômico da Europa e das regiões por ela dominadas sofreu transformações muito profundas. A indústria, sempre em expansão tanto para atender à demanda dos mercados internos como dos mercados internacionais, precisava de abundante mão-de-obra barata. Por isto, pouco a pouco foram sendo absorvidas na atividade industrial todas as pessoas disponíveis para o trabalho. Famílias inteiras integraram-se nessa nova realidade. Assim, além do homem, a quem tradicionalmente competia o sustento material da família, passou-se a usar também a mão-de-obra feminina e a de crianças que, em qualquer idade, tivessem condições de produzir.

Esse novo contexto influenciou, obviamente, a estruturação dos contratos, sobretudo no que concerne à denominada “autonomia da vontade contratual. A necessidade de trabalho de todos os membros da família, a migração populacional do campo para as cidades, a ampliação do mercado de consumo massificado, o processo de produção de bens em larga escala e outros aspectos tornaram imprescindível a reorganização da teoria contratual. O Estado, então, passou a intervir diretamente para disciplinar e controlar certas as relações contratuais, de modo a assegurar um mínimo de equilíbrio entre as partes contratantes. As populações econômica, social e culturalmente dominadas não tinham como discutir o conteúdo dos contratos com as classes dominantes. Às classes dominadas, quando muito, deixava-se apenas a alternativa de contratar ou não. Entretanto, diante de situações de monopólio empresarial ou comercial, na prática enormes contingentes populacionais eram obrigados a contratar nos moldes estabelecidos pela parte contrária. Sendo assim, uma das partes não tinha nenhuma autonomia de vontade para fixar o conteúdo contratual, discutindo-o com a parte dominante. Por conseguinte, desde o século XVIII os Estados Absolutistas europeus viram-se obrigados a intervir cada vez mais na disciplina das relações contratuais, procurando assim, por um lado, preservar alguma autonomia de vontade contratual para a parte fraca da relação jurídica e, de outro lado, assegurar a continuidade da expansão econômica européia. Esse fenômeno da intervenção estatal na estrutura contratual foi consolidado nas grandes codificações surgidas na Europa a partir do século XIX.

Envolta por todos os fatores acima apontados, a teoria contratual moderna, já nas grandes codificações européias, apresenta-se estruturada com substituição do princípio da isonomia formal entre as partes contratantes, pelo princípio da isonomia material entre essas partes. O Estado passou a intervir nas relações contratuais para restabelecer o equilíbrio contratual e assegurar, tanto quanto possível, a igualdade material entre as partes contratantes.

Com este caráter intervencionista é que a teoria geral dos contratos tem evoluído e chegou aos dias atuais. O Estado intervém para assegurar que as partes tenham igualdade de condições para exercerem suas respectivas autonomias de vontade no âmbito contratual. A sociedade moderna, influenciada pela incessante globalização das atividades econômicas, culturais e sociais, tende a acentuar ainda mais a intervenção política nos contratos, não apenas por cada Estado, dentro de seus limites territoriais, mas também por meio de Convenções e Tratados internacionais cada vez mais abrangentes.

O contrato passou a ter, então uma função social extremamente importante e que se passa agora a examinar.

6. FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS

No contexto assinalado, o contrato cumpre relevante função social que pode ser sintetizada como segue:

(a) o contrato é o principal elemento jurídico propulsor do sistema econômico;

(b) a celebração de contratos permite relativa paz social e harmonia entre os contratantes, evitando a violência no ambiente social;

(c) o contrato estabelece norma jurídica de conduta entre as partes, contribuindo para o bem estar social;

(d) o contrato cumpre função supletiva de eventuais lacunas normativas estatais, permitindo aos contratantes liberdade para regular seus próprios interesses jurídicos nesses casos.

7. PRINCÍPIOS DA TEORIA GERAL DOS CONTRATOS

A moderna teoria geral dos contratos é informada por diversos princípios jurídicos que se passa a expor.

7.1. PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DOS CONTRATOS (PACTA SUNT SERVANDA)

No sistema do Direito Romano o contrato era individualista, no sentido de era personalíssimo porque a garantia das obrigações contratuais era o corpo do próprio devedor. Depois que a responsabilidade obrigacional foi transferida para o patrimônio, aquele individualismo contratual foi bastante atenuado.

Mas, além da questão da garantia obrigacional, o individualismo do contrato no Direito Romano significava, sobretudo, o princípio de que o contrato fazia lei entre as partes que nele intervinham. Esse princípio, conhecido como pacta sunt servanda, é o atual princípio da obrigatoriedade dos contratos.

De modo geral, as partes não são obrigadas a contratar (embora haja muitas exceções a esta regra geral). Contratam apenas quando querem contratar e nos limites em que a lei lhes permite fazer isto. Portanto, as partes fixam o conteúdo do contrato tendo em vista: (a) o que a lei determina ou permite que contratem; e (b) sua atividade supletiva das eventuais lacunas legais.

Celebrado o contrato, torna-se ele lei entre as partes e, por isto, as obrigações previstas no contrato para cada parte devem ser cumpridas. Desse modo, nenhuma das partes poderá revogar o contrato unilateralmente, nem o juiz poderá alterar o conteúdo contratual sem consentimento das partes.

O princípio da obrigatoriedade dos contratos tem sido atenuado ou afastado em várias hipóteses que serão oportunamente estudadas. Apenas a título de exemplos, pode-se indicar algumas dessas hipóteses.

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC) contém uma regra que obriga os fornecedores de produtos e serviços a fornecerem, nos limites de seus estoques e nas condições indicadas na oferta, esses bens aos consumidores. Nessa situação fica caracterizado o chamado contrato obrigatório, no sentido de que o fornecedor não tem a opção de contratar ou não, pois, uma vez feita a oferta de contratação, o fornecedor é obrigado a contratar enquanto seus estoques comportarem a contratação.

Por outro lado, há casos em que mudanças radicais, imprevisíveis e excessivamente onerosas para uma das partes nas circunstâncias em que o contrato foi celebrado tornam impossível, ou muito sacrificado, o cumprimento do contrato por essa parte assim prejudicada. Apesar do princípio da obrigatoriedade dos contratos, nenhuma das partes é obrigada a sofrer enormes prejuízos imprevistos apenas para cumprir o contrato. Preenchidos certos pressupostos, as disposições contratuais podem ser revisadas pelas próprias partes ou mesmo judicialmente, de modo a restabelecer o equilíbrio contratual. Trata-se aí da conhecida cláusula rebus sic stantibus, indicativa de que o contrato faz lei entre as partes enquanto permanecerem as mesmas condições circunstanciais em que o contrato foi celebrado. Alteradas tais circunstâncias, também o conteúdo do contrato deve ser revisto de modo a não prejudicar qualquer das partes excessivamente. Esta é a chamada Teoria da Imprevisão.

Nesses dois exemplos, vê-se que foram limitadas a liberdade de contratar e a liberdade de escolher o conteúdo do contrato. Essas limitações se justificam pelo crescente intervencionismo estatal na economia contratual, com o propósito de assegurar igualdade material de autonomia de vontade para cada contratante.

7.2. PRINCÍPIO CONSENSUALISTA

O princípio do consensualismo contratual significa que, como regra geral, o contrato nasce do simples acordo de vontades dos contratantes. Forma-se o contrato apenas com as declarações de vontade das partes sempre que a lei não exigir formalidade especial, ou quando o contrato não tiver natureza real. Nos casos em que a lei exige formalidade especial, tem ela que ser observada, sob pena de não se formar o contrato ou de ser ele ineficaz. Quando o contrato tiver natureza real, além da declaração de vontade de cada parte, a transferência do objeto do contrato de uma parte para outra é essencial para que o contrato se forme. Por exemplo, num contrato de depósito, é necessário que o depositante entregue ao depositário o bem que deverá ser mantido sob custódia, sem o que não se terá formado o contrato em questão.

Como já foi dito anteriormente, em sua fase mais antiga o Direito Romano adotava o princípio do formalismo material para que os contratos se formassem. Essa era a regra geral que predominava no ius civile. Mais tarde, em decorrência do longo processo de fusão do ius civile com o ius gentium, o sistema romano passou a admitir com bastante naturalidade a formação simplesmente consensual dos contratos.

Quando os povos germânicos invadiram o Império Romano, operou-se um retrocesso no que concerne ao princípio romanista da consensualidade contratual. O Direito germânico era bastante formalista e, por isto, exigia diversas formalidades para a celebração de contratos. Esse fato fez com que no Direito Romano houvesse um retorno ao princípio do formalismo contratual. Na Idade Média, além do formalismo contratual, passou-se a prestigiar muito o juramento, a palavra dada pelo contratante. Pouco a pouco, a força desse juramento foi suplantando o princípio formalista e abrindo novo caminho para a formação simplesmente consensual dos contratos. Isto porque a declaração das partes de que haviam cumprido todos os rituais contratuais tinha enorme força. Mesmo que tais rituais não tivessem sido rigorosamente realizados, a declaração das partes no sentido de que cumpriram tais rituais já era suficiente para dar origem ao contrato. O juramento das partes dava força à palavra delas e fazia preponderar a vontade contratual em relação ao próprio ritual formal de constituição do contrato.

Atualmente, a regra geral é a de que o contrato forma-se com a declaração de vontades das partes. Somente quando a lei exige solenidades especiais é que estas deverão ser observadas. Note-se, no entanto, que em atenção a um outro princípio jurídico – o da preservação dos atos jurídicos – somente quando a lei atribuir pena de nulidade absoluta ao ato é que o desrespeito à forma será insanável. Isto quer dizer que se a lei estabelecer solenidade especial para a formação de certo contrato, mas não atribuir pena de nulidade absoluta ao ato quando tal solenidade não for observada, o contrato estará formado apesar do defeito de forma.

7.3. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA DA VONTADE CONTRATUAL E INTERVENÇÃO ESTATAL

No item 5, acima, foram explicadas, sumariamente, as razões determinantes do crescente intervencionismo estatal na disciplina dos contratos. Esta intervenção prende-se ao problema da autonomia da vontade de cada contratante, que se passa agora a examinar.

7.3.1. Conceito de autonomia privada da vontade contratual

Autonomia privada de vontade contratual é a liberdade que o ordenamento jurídico concede ao indivíduo para que este, nos termos da lei, possa contratar ou não e, se contratar, para que possa regular seus próprios interesses jurídicos privados por meio do contrato.

A autonomia privada de vontade contratual é, portanto, bifronte: há a liberdade para contratar ou não contratar; e há a liberdade para estabelecer o conteúdo do contrato, respeitados os limites legais.

7.3.2. Consequências da adoção do princípio da autonomia privada da vontade contratual

(a) relatividade do princípio

Antes de o Estado começar a intervir significativamente na disciplina contratual, as partes tinham plena liberdade de vontade para contratar ou não contratar, e também para fixar o conteúdo do contrato. Nesse sentido, diz-se que a autonomia privada da vontade contratual das parte era absoluta.

Todavia, quando se defrontavam uma parte poderosa e outra parte fraca, esta última na prática: (a) muitas vezes sequer tinha a liberdade de não contratar, devendo, por conseguinte, celebrar compulsoriamente o contrato que a parte forte lhe ; e (b) não podia discutir com a parte forte o conteúdo do contrato e, por isto mesmo, na maioria das vezes a parte fraca terminava sofrendo sérios prejuízos para cumprir o contrato. Nesses casos, como já foi mencionado, tornou-se imprescindível a intervenção do Estado para reequilibrar o contrato e assegurar à parte fraca um mínimo razoável de autonomia privada de vontade contratual.

É preciso ficar claro que a intervenção estatal na economia contratual não ocorre para eliminar a autonomia privada de vontade das partes. Ao contrário, tal intervenção estatal é feita exatamente para preservar a autonomia privada de vontade contratual àquela parte que, por ser fraca diante da parte contrária, não tinha essa autonomia de vontade.

Consequentemente, atualmente o princípio da autonomia privada da vontade contratual não é mais absoluto. Essa autonomia de vontade contratual é relativa, porque somente pode ser exercida pelas partes nos limites especificados pelo ordenamento jurídico.

Ética e juridicamente é justificável a intervenção estatal na economia contratual. No sistema jurídico romano prevalecia a concepção de que o Estado deveria abster-se, tanto quanto possível, de intervir nos negócios privados. Esta concepção, com algumas transformações, atravessou os tempos e chegou até os séculos XVIII e XIX, em que predominava o princípio do absolutismo da vontade privada em matéria contratual. De fato, um dos principais dogmas da Revolução Industrial inglesa e, depois, da Revolução Francesa, era exatamente o de que o Estado deveria ocupar-se, exclusivamente, de assuntos absolutamente indispensáveis para a manutenção da sociedade. Assim, o Estado deveria cuidar das vias de transporte, da segurança, da Administração Pública, da Tributação uniforme, evitando o mais possível todo e qualquer assunto atinente às atividades privadas. Os indivíduos regulariam seus próprios interesses por meio de contratos, dispensando a intervenção estatal para esse fim. Essa concepção de laissez faire, laissez passer que prevalecia no âmbito privado inevitavelmente conduziu a diversos abusos por parte daqueles que tinham poder econômico, cultural, político ou mesmo jurídico. O princípio de que todos os cidadãos eram iguais perante a lei era apenas formal. Na realidade, as imensas diferenças econômicas, sociais, culturais e tantas outras impediam que, materialmente, os cidadãos fossem mesmo iguais uns aos outros. Nesse contexto, irromperam inúmeros conflitos sociais, econômicos e políticos.

Não se pode deixar de observar que os movimentos comunistas e socialistas formaram-se e tomaram corpo e força especialmente no decorrer do século XIX (especialmente com o “Manifesto Comunista” de F. Engels e das influências marxistas). Esses conflitos contrapunham as classes menos privilegiadas a um Estado controlado pela burguesia comercial, industrial e financeira e, também, pelo clero. Para evitar o rompimento violento desse delicado sistema tornou-se absolutamente necessário o intervencionismo estatal em diversos setores sociais. Para assegurar a manutenção da ordem pública, o Estado passou a editar, a partir de então, leis proibitivas e imperativas, caracterizadoras de um marcante dirigismo social, político, econômico e jurídico. O dirigismo estatal em matéria contratual é, por conseguinte, apenas um dos múltiplos aspectos dessas transformações que aqui se indicou em linhas muito gerais.

O intervencionismo estatal nos contratos tem como consequência mais notável o fato de que as partes não podem contratar em contradição com as leis de ordem pública ou com os bons costumes.  Esse tipo de restrição determina, por conseguinte:

(1º) o desaparecimento ou a redução da autonomia privada para contratar nos pontos que colidam com leis de ordem pública ou com os bons costumes;

(2º) a ineficácia da disposição contratual ofensiva à ordem pública ou aos bons costumes;

(3º) a possibilidade de intervenção judicial no contrato para restabelecer a ordem pública e os bons costumes contrariados pelas partes.

(b) conteúdo da autonomia da vontade contratual

Foi esclarecido acima que a autonomia privada de vontade apresenta duas faces (ver item 7.3.1). Abrange a liberdade de contratar ou de não contratar, sempre que a lei não imponha a contratação. Se a lei determinar a contratação como obrigatória, evidentemente a parte não terá a liberdade de não contratar. Por outro lado, a autonomia privada da vontade permite que as partes estabeleçam o conteúdo do contrato livremente, a não ser quando a lei impuser de modo cogente o conteúdo de tal contrato. Por isto, quando a lei tipifica um contrato e as partes o celebram, automaticamente os contratantes aceitam as disposições legais atinentes àquele contrato.

A liberdade de contratar inclui a liberdade de escolher a parte com quem se quer contratar e também a liberdade de escolher o tipo de contrato a ser celebrado. No entanto, é possível que a lei limite estas liberdades, como acontece, por exemplo, em alguns contratos regidos pelo Código de Defesa do Consumidor, ou nos casos de monopólios de serviços públicos, tais como os serviços de telecomunicações, fornecimento de luz, de água, de gás, etc.

(c) responsabilidade civil do contratante

Por princípio e em geral, as pessoas são livres para celebrarem ou não seus contratos. Uma vez celebrado o contrato, torna-se ele lei entre as partes, com as ressalvas que já foram referidas anteriormente. Portanto, cada parte tem que cumprir o contrato que celebrou e, em caso de inadimplemento, a parte lesada no contrato poderá pedir judicialmente contra a parte infratora tanto o cumprimento forçado da obrigação contratual, como indenização pelos prejuízos sofridos.

7.4. PRINCÍPIO DA PERMANÊNCIA DO CONTRATO

O contrato é um importantíssimo instrumento de harmonização dos interesses sociais. Por isto mesmo, somente deverá ser dissolvido quando efetivamente não houver mais possibilidade de mantê-lo para que cumpra os fins almejados pelas partes.

Assim, o princípio da permanência do contrato significa que o contrato deverá ser mantido para que as partes possam alcançar, por meio desse contrato, seus respectivos objetivos. Tanto quanto possível o contrato tem que ser preservado. Erros formais, imprecisões de redação, má articulação das cláusulas, vocabulário técnico inadequado e, enfim, vícios que puderem ser superados deverão ser desconsiderados ou corrigidos para que o contrato prevaleça. Apenas quando a lei ou os próprios contratantes expressamente indicarem vícios insanáveis é que o contrato deverá ser dissolvido.

Um dos instrumentos mais importantes para manter o contrato é a Teoria da Imprevisão, que será examinada um pouco mais adiante.

7.5. PRINCÍPIO DA BOA FÉ NEGOCIAL

Há um princípio jurídico generalizado: o da boa fé. Em matéria contratual, é denominado princípio da boa fé contratual, ou negocial.

Tal princípio significa que as partes de um contrato devem proceder com lealdade e boa fé uma em relação à outra, cada qual cumprindo suas respectivas obrigações contratuais.

8. FORMAS DE INTERVENÇÃO DO ESTADO NA DISCIPLINA CONTRATUAL

A intervenção do Estado na economia contratual ocorre por diversos modos. Do ponto de vista jurídico, a forma de que se vale o Estado para regular o convívio social é a edição de normas jurídicas de variadas espécies. Portanto, o Estado regula a atividade contratual privada por meio de leis, na acepção mais ampla do vocábulo “lei”. Essas leis têm conteúdo padronizado; podem impor a contratação, proibi-la ou permiti-la. Os mesmos padrões são observados no que concerne ao conteúdo das disposições contratuais, que ora são impostas, ora são vedadas e ora são permitidas.

É interessante examinar alguns exemplos práticos dessa intervenção estatal no contrato privado

(a) normas impositivas de contratação

O primeiro exemplo que pode ser apresentado é o de um contrato de locação predial urbana para fins residenciais. O locador não é obrigado a celebrar este contrato com o locatário. Entretanto, se essas partes vierem a celebrar tal contrato, a lei impõe a prorrogação automática da locação tão logo termine o prazo contratual previsto originalmente. Isto quer dizer que, terminado o prazo contratual, o locador é obrigado a manter a contratação com o locatário, somente podendo rescindir o contrato nos casos especificamente previstos em lei.

Outro exemplo interessante é o da sonegação de mercadoria. As leis que disciplinam os crimes contra a economia popular e também o CDC determinam que o fornecedor de bens no mercado de consumo é obrigado, no limite de seu estoque, a atender a demanda dos consumidores. Noutras palavras, esse fornecedor é obrigado a contratar nessas circunstâncias.

(b) normas que instituem cláusula contratual cogente

Há normas legais que determinam a inclusão no contrato de certas cláusulas que não podem ser afastadas pelas partes, nem mesmo se as partes assim quiserem. Isto quer dizer que tais cláusulas estão integradas ao contrato independentemente da vontade das partes contratantes.

Por exemplo, quando a lei determina que o cedente de um crédito responderá, perante o cessionário, pela existência do crédito, tem-se uma cláusula cogente. Outro exemplo é encontrado no CDC, quando diz que é nula de pleno direito qualquer cláusula contratual que elimine, limite ou transfira a terceiros a responsabilidade do fornecedor perante o consumidor, exceto nos casos indicados taxativamente pela lei. Ainda mais um exemplo está no contrato de seguros. A legislação securitária contém inúmeros dispositivos que necessariamente integram qualquer contrato de seguro, de modo que as partes não podem eliminar do contrato essas normas cogentes.

(c) normas que permitem a revisão judicial do contrato – Teoria da Imprevisão

Nos termos da Teoria da Imprevisão, é possível atenuar o princípio já examinado da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda). As partes celebram o contrato tendo em vista os riscos que aceitam correr e as vantagens que pretendem auferir. Portanto, celebram o contrato num determinado contexto de fato que conhecem ou deveriam conhecer e cujas transformações são capazes de prever. Por isto mesmo, o contrato deverá ser cumprido pelas partes, mesmo que elas não consigam auferir todas as vantagens que imaginaram poder obter, ou ainda que o prejuízo de cada uma delas seja maior do que aquele que a parte inicialmente se dispôs a suportar.

No entanto, é possível que no decorrer da vigência do contrato o contexto em que as partes contrataram se altere radical e profundamente. Essas transformações, na medida em que tenham sido imprevisíveis, drásticas e coloquem uma das partes em desvantagem exagerada em face do outro contratante, autorizam que a parte prejudicada pleiteie a revisão judicial do contrato.

É importante esclarecer que a Teoria da Imprevisão não tem por finalidade dissolver o contrato. Bem ao contrário, o objetivo dessa teoria é – exatamente – o de manter o contrato. Para chegar a esse resultado, admite-se que o juiz revise o contrato e introduza nele as modificações necessárias para restabelecer o equilíbrio contratual entre as partes. Somente quando não for possível proceder a essa revisão contratual é que o juiz dissolverá o contrato em que uma das partes se encontra em manifesto desequilíbrio em face da parte contrária.

Enfim, o fundamento jurídico da Teoria da Imprevisão é o de que ninguém pode enriquecer injustamente, às custas de sacrifício desproporcional a ser suportado pela outra parte contratante.

No Brasil, a Teoria da Imprevisão é construção doutrinária e jurisprudencial. Até o advento do CDC, em 1.990, inexistia no Direito brasileiro norma legal expressa contemplando tal teoria. O art. 6º, V, do CDC, foi o primeiro dispositivo legal brasileiro a tratar expressamente da referida teoria.

Para a aplicação da Teoria da Imprevisão exige-se a presença destes requisitos:

(1º) que, após a celebração do contrato, sobrevenha séria e significativa transformação do contexto em que o contrato foi formado e no qual terá que ser executado;

(2º) que a transformação referida tenha sido absolutamente imprevisível pelas partes no momento em que contrataram;

(3º) que, em decorrência da aludida transformação contextual, o equilíbrio contratual tenha sido rompido e uma das partes passe a estar em situação significativamente desfavorável em relação à parte contrária;

(4º) que o contratante devedor ainda não tenha executado sua obrigação e esteja na iminência de se tornar inadimplente;

(5º) que seja possível corrigir esse desequilíbrio contratual anormal mediante a intervenção judicial no contrato, ou então resolver o mesmo contrato.

9. REQUISITOS GENÉRICOS PARA A FORMAÇÃO, VALIDADE E EFICÁCIA DOS CONTRATOS.

Os requisitos de formação, validade e eficácia dos contratos serão examinados individualmente, mas desde logo é necessário fazer considerações genéricas sobre eles.

Há requisitos que precisam ser observados para qualquer contrato, razão pela qual são chamados de requisitos contratuais genéricos. Além desses requisitos genéricos, cada categoria de contrato tem requisitos específicos. Assim, por exemplo, em todos os contratos reais de garantia devem ser atendidos certos requisitos específicos; como também em todos os contratos em que se transmite o domínio de um bem há que se ter presentes certos outros requisitos específicos; e, ainda, em todos os contratos de empréstimo devem estar presentes outros requisitos específicos. Isto quer dizer que, ao lado dos requisitos genéricos exigidos para qualquer contrato, exige-se também requisitos específicos e peculiares a cada categoria de contrato. Essas categorias de contratos, por sua vez, têm diversas espécies que, por seu turno, também exigem requisitos mais específicos ainda. Por exemplo, na categoria dos contratos de garantia real, tem-se como espécies a hipoteca, o penhor, a anticrese, a alienação fiduciária e tantos outros. Cada uma das espécies da categoria de contratos de garantia real precisa ter seus próprios requisitos. Assim, não são os mesmos os requisitos próprios de um contrato de hipoteca e os de um contrato penhor, ou de anticrese, ou de renda constituída sobre imóvel. As mesmas considerações são válidas para a categoria dos contratos de empréstimo (cujas espécies são, por exemplo, o mútuo, o comodato, o mútuo feneratício, entre outras), ou dos contratos de depósito (que tem como espécies, exemplificativamente, o depósito mercantil, o depósito civil, o depósito necessário, o depósito financeiro), ou dos contratos de transmissão de bens (compra e venda, doação, etc.).

Em resumo, o contrato exige a presença de requisitos genéricos, requisitos específicos de certa categoria contratual e, ainda, requisitos próprios de cada espécie contratual.

Observe-se, também, que o contrato está incluído na categoria geral do ato jurídico em sentido amplo. Sendo um ato jurídico em sentido estrito ou um negócio jurídico, o contrato deve ter os requisitos exigidos para qualquer ato jurídico e que estão indicados no art. 82, do CC, a saber:

(a) declaração de vontade feita por agente capaz;
(b) ter objeto lícito (direta e indiretamente) e possível (jurídica e materialmente); e
(c) estar revestida a declaração de vontade pela forma determinada pela lei ou não proibida pelo ordenamento jurídico.

Esses requisitos contratuais todos podem ser estudados a partir de diferentes perspectivas. A literatura registra a existência de requisitos subjetivos, objetivos e formais. A inobservância desses requisitos determinará a ineficácia do contrato. O contrato, pode ser ineficaz juridicamente em decorrência de sua: (a) inexistência como um ato jurídico em sentido estrito ou como negócio jurídico; (b) nulidade absoluta; ou (c) anulabilidade.

Todo ato jurídico deve ser examinado no que concerne à sua: (a) existência jurídica; (b) validade jurídica; e (c) eficácia jurídica.

A inexistência jurídica de certo e determinado contrato se caracteriza pela ausência de pelo menos um dos requisitos essenciais (gerais ou específicos) exigidos para ele. Há que se lembrar que o Direito não tem por objeto algo que não seja jurídico e, por isto, a norma jurídica não regula diretamente o ato jurídico inexistente. A norma cuida dessa figura indiretamente. O ato inexistente juridicamente não é apto a produzir qualquer efeito jurídico e, por esta razão, nestes limites de ineficácia, foi equiparado ao ato nulo, que também não produz efeitos jurídicos (embora tenha existência jurídica). Nessas circunstâncias, o ato inexistente juridicamente não produz efeitos porque o art. 145, I, II e III, do CC, assim determina. O art. 145 disciplina a nulidade absoluta dos atos jurídicos e estabelece que tais atos não produzem efeitos jurídicos. Os três primeiros incisos do art. 145 indicam, na verdade, casos de inexistência jurídica do ato em razão da ausência de algum dos requisitos essenciais do ato jurídico (previstos no art. 82, do CC). Em resumo, o ato inexistente juridicamente não produz efeitos e, por esse motivo, foi equiparado ao ato nulo, que existe do ponto de vista jurídico mas também não produz efeitos.

O ato nulo tem existência jurídica, pois contém todos os requisitos essenciais para esse fim (art. 82, do CC). No entanto, o ato apresenta vício que a norma jurídica considera grave e insanável, razão pela qual o declara nulo, isto é, completamente ineficaz juridicamente. O art. 145, IV e V, do CC, estabelece a regra geral dos atos nulos. Portanto, o ato nulo existe juridicamente, porém é inválido de modo absoluto e sendo inválido, não produz efeitos.

A nulidade relativa, ou anulabilidade do ato jurídico, está regulada genericamente a partir do art. 147, do CC. O ato anulável existe juridicamente, é válido e produz efeitos jurídicos. Entretanto, padece de vício que a norma jurídica não considera grave e que pode ser sanado. Por isto, o ato anulável somente tornar-se-á ineficaz mediante declaração judicial de sua anulabilidade. Enquanto não sobrevier essa declaração judicial, o ato anulável deve ser considerado regular e apto a produzir seus efeitos.

9.1. REQUISITOS SUBJETIVOS DO CONTRATO

Os requisitos subjetivos do contrato são os que dizem respeito aos sujeitos do contrato, ou seja, as pessoas contratantes. De modo geral, os requisitos subjetivos em análise são: (I) a capacidade das partes para contratar; e (II) a declaração de vontade de contratar.

A capacidade das partes contratantes deve ser analisada a partir de duas perspectivas: a capacidade geral da pessoa e também sua capacidade específica para contratar. A parte contratante precisa ser genericamente capaz, isto é, não ser sujeito incluído nas hipóteses previstas nos arts. 5º e 6º, do CC. Todavia, mesmo sendo genericamente capaz, é possível que o sujeito não tenha capacidade específica para celebrar certo e determinado contrato, em decorrência de restrição imposta por lei. Assim, por exemplo, uma pessoa maior e plenamente capaz do ponto de vista genérico pode celebrar contratos de venda e compra de bens. Mas se essa pessoa for um corretor de bens, estará impedida de adquirir bens que o alienante lhe confiou para fins de corretagem. Portanto, o corretor não pode adquirir o bem destinado à corretagem, pois sua função é a de aproximar o vendedor do bem e o comprador do bem. Nesse caso, existe um impedimento legal que incapacita o corretor para ser o contratante comprador do bem. Outro exemplo interessante é o caso do contrato de sociedade. Satisfeitos os requisitos próprios, qualquer pessoa capaz pode celebrar um contrato de sociedade. No entanto, a lei estabelece impedimento para certas pessoas, que estão proibidas de celebrar contratos de sociedade, embora sejam capazes do ponto de vista genérico. É esse o caso dos falidos e dos juízes de direito.

A declaração de vontade de contratar deve ser feita pelas partes ou por seus representantes legais. A vontade de contratar abrange o acordo das partes sobre: (a) a existência e natureza do contrato; (b) o objeto do contrato; e (c) as cláusulas substancias do contrato. Por exemplo, num contrato de venda e compra, o vendedor precisa declarar que quer vender determinado bem; o comprador precisa declarar que quer comprar aquele mesmo bem; as partes precisam fixar o preço da venda e compra e também as demais cláusulas inerentes a esse contrato, tais como o local de entrega do bem, o termo dessa entrega; as despesas com o pagamento; etc.

9.2. REQUISITOS OBJETIVOS DO CONTRATO

Os requisitos objetivos do contrato são os que seguem.

(I) Licitude e possibilidade do objeto contratual

Todo contrato deve ter um objeto jurídico. O contrato é um ato jurídico e o art. 82 exige para qualquer ato jurídico um objeto lícito e possível. É preciso entender que o objeto do contrato é a prestação contratual a que a parte se obrigou e é também o bem jurídico sobre o qual incide a prestação do contratante devedor. Por exemplo, num contrato de compra e venda, o vendedor está obrigado a cumprir uma prestação de dar (entregar) algo ao comprador. O ato de entrega precisa recair sobre certo bem, como por exemplo, um livro. Por outro lado, no mesmo contrato, o comprador está obrigado a cumprir uma prestação em face do vendedor, ou seja, o comprador tem que dar (entregar) ao vendedor determinado objeto. O bem devido pelo comprador ao vendedor é o dinheiro correspondente ao preço do objeto comprado (o livro).

Sendo assim, o objeto do contrato (noutras palavras, a prestação devida por cada contratante e o bem sobre o qual incide cada prestação) deve ser lícito e possível juridicamente.

A licitude do objeto é analisada do ponto de vista material e do ponto de vista jurídico. Será ilícito o objeto contratual que contrariar, direta ou indiretamente, a lei, a ordem pública ou os bons costumes. Por isto, a ilicitude gera a ineficácia do contrato. Assim, é materialmente ilícito o contrato de compra e venda que tiver por objeto um bem roubado de terceiro. Também é ilícito, agora juridicamente, o contrato de compra e venda de imóvel celebrado entre os ascendentes vendedores e um descendente comprador sem anuência dos demais descendentes daqueles vendedores.

De outro lado, a impossibilidade material pode ser absoluta ou relativa. O objeto contratual absolutamente impossível é aquele que ninguém pode cumprir e, por essa razão, acarreta a nulidade do contrato (art. 1.091, do CC). É nulo o contrato de prestação de serviço em que alguém contrata o prestador de serviço para matar terceira pessoa, por exemplo. O objeto contratual relativamente impossível é aquele que não pode ser cumprido pelo contratante, mas que poderia ser cumprido por outra pessoa, ou ainda que poderia ser substituído por outro objeto. Por exemplo, se uma pessoa comum for contratada para realizar o resgate de objetos de um navio naufragado que se encontra a grande profundidade, tal tarefa será materialmente impossível se o contratado não dispuser de adequado equipamento para realizá-la. Mas o contrato poderá ser perfeitamente cumprido se o contratado puder usar os aparelhos adequados ao resgate em questão.

É importante a distinção entre impossibilidade material absoluta e impossibilidade material relativa, porque, na primeira (absoluta) tem-se a nulidade do contrato, ao passo que na segunda (relativa), o contratante devedor – se culpado da impossibilidade – poderá ser compelido a indenizar o contratante prejudicado.

A possibilidade ou impossibilidade material e jurídica do objeto do contrato devem ser averiguadas em relação ao momento em que o contrato foi celebrado.

Havendo possibilidade material e jurídica do objeto contratual no momento em que o contrato se forma, tal contrato é existente e válido juridicamente. Ao contrário, sendo impossível material ou juridicamente o objeto contratual no momento de formação do contrato, este será ineficaz.

Pode acontecer que o objeto contratual seja lícito e possível (jurídica e materialmente) no momento de formação do contrato e, depois, deixe de ser lícito ou possível. É o que se chama de ilicitude superveniente ou de impossibilidade superveniente e que acarretam a inexequibilidade do contrato. Nesses casos, o contrato existiu, foi válido e até eficaz, porém deixa de ser exequível em face da impossibilidade ou ilicitude superveniente de seu objeto. Se o contratante devedor for culpado, deverá indenizar a parte inocente. Não havendo culpa do devedor, o contrato será resolvido sem o dever de indenizar o contratante credor.

A ilicitude ou a impossibilidade supervenientes do objeto contratual podem ser totais ou parciais. Sendo total a ilicitude ou a impossibilidade, o contrato não tem como subsistir. Mas se a ilicitude ou impossibilidade for parcial, é possível manter o contrato nos limites em que o objeto ainda é lícito e possível (princípio da permanência do contrato). Todavia, a ilicitude ou impossibilidade parcial do objeto do contrato poderão torná-lo inteiramente ineficaz se for constatado que, no contexto em que foi celebrado, as partes não teriam contratado a avença apenas em relação ao objeto parcialmente lícito e possível.

É conveniente não confundir impossibilidade do objeto contratual com o contrato que tem por objeto bem futuro. O contrato que tem como objeto um bem futuro existe, é válido e fornece critérios precisos e objetivos para identificar o bem em questão. A existência desse bem é que será fato futuro. Já no caso do contrato com objeto impossível, tem-se que o bem – seja este presente ou futuro – não pode servir de objeto contratual.

(II) Determinação do objeto contratual

A determinação do objeto do contrato pode ocorrer:

(a) no momento de celebração do contrato;

(b) em momento posterior à formação do contrato, desde que tal contrato forneça, desde sua celebração, elementos objetivos e precisos que permitam determinar o objeto no máximo até o momento de pagamento da prestação contratual pelo contratante devedor.

O objeto do contrato pode ser determinado pelas próprias partes, por apenas uma delas, por terceiro indicado pelas partes ou até mesmo por um fato jurídico impessoal.

(IV) Economicidade do objeto contratual

Por força do art. 78, I, do CC, todo bem jurídico objeto de relação obrigacional deve ter conteúdo econômico. Assim, a economicidade do objeto contratual é necessária, pois o contrato, como já foi dito, é um complexo de relações obrigacionais entre as partes contratantes.

9.3. REQUISITOS FORMAIS DO CONTRATO

Foi esclarecido anteriormente que o Direito brasileiro contempla o princípio da liberdade de forma para os atos jurídicos em geral. Somente em casos específicos a lei exige o respeito a determinada forma para a prática do ato jurídico, sem a qual o ato: (a) ou não existirá juridicamente; (b) ou existirá, mas não terá validade; (c) ou não produzirá seus efeitos típicos, especialmente os de natureza probatória.

A exigência de determinada forma para a celebração do contrato pode decorrer: (a) de mandamento legal; ou (b) de acordo de vontades das próprias partes contratantes.

10. FORMAÇÃO DO CONTRATO

A relação contratual se estabelece após terem sido superadas algumas fases essenciais, que se passa agora a examinar.

10.1. BREVE REVISÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DO CONSENSUALISMO CONTRATUAL E SEUS TRAÇOS GERAIS

Já foi comentado que no Direito Romano contrato era um acordo de vontades das partes sobre um mesmo ponto negocial e que, apesar disto, as obrigações, em Direito Romano mais antigo, não se constituíam apenas pelo acordo de vontades (elemento subjetivo); exigia-se que as vontades estivessem revestidas por uma forma especial, muitas vezes solene (elemento objetivo ou material). Também já foi examinado que mais tarde, no processo de fusão do ius civile com o ius gentium, o Direito romano passou a admitir a formação consensual de alguns contratos (venda, locação, mandato, sociedade). Nos demais contratos, contudo, a forma (litteris, re, verbis) era obrigatória para a formação do contrato e a obrigação contratual assim formada tinha caráter personalíssimo. A evolução do Direito romano foi pouco a pouco prestigiando o princípio do consensualismo e, assim, foi cada vez mais acentuando-se a tendência de que os contratos formavam-se mediante o simples acordo de vontade das partes contratantes. Examinou-se, ainda, que após a invasão do Império Romano pelos povos germânicos, ocorreu um retrocesso em certos setores da cultura jurídica romana, pois o Direito germânico era menos evoluído que o romano. Este retrocesso jurídico manifestou-se em matéria contratual. No Direito germânico, ainda muito preso ao formalismo jurídico, adotava-se ritos sacramentais para que um contrato fosse celebrado. Sendo assim, não bastava o simples acordo de vontades dos contraentes para que o contrato se formasse; exigia-se também várias outras formalidades. Essas divergências entre os dois regimes jurídicos foi sendo superada com o passar dos séculos e, atualmente, o Direito ocidental, de modo geral, consagra o princípio do consensualismo contratual, segundo o qual as declarações de vontades dos contratantes é suficiente para formar o contrato.

No Direito contratual a regra geral é o consensualismo. Os chamados contratos reais são casos excepcionais no sistema jurídico moderno. Por isto, a declaração de vontade contratual é simultaneamente requisito de existência do contrato e de validade dele.

A formação do contrato ocorre quando cada contratante declara sua vontade de modo coordenado com a vontade declarada pelo outro, de modo que ambos possam alcançar o resultado jurídico perseguido por cada um deles. Essas declarações de vontade, obviamente, devem estar de acordo com a norma jurídica, que lhes dá eficácia negocial. Em resumo, o contrato forma-se e torna-se obrigatório quando as partes declaram suas respectivas vontades, de acordo com a lei, para que seus objetivos jurídicos sejam alcançados.

É possível, entretanto, que uma das partes contratantes, ao fazer sua declaração de vontade, fique obrigada a cumprir o que prometeu perante a outra, mesmo que esta última ainda não tenha declarado sua vontade contratual. Nessa hipótese, o contrato ainda não terá se formado e, por isto mesmo, a obrigação da parte que já declarou sua vontade tem natureza pré-contratual.

10.2. MODOS DE DECLARAR A VONTADE CONTRATUAL

A vontade de contratar, em geral, pode ser manifestada por qualquer forma. Pode ser expressa ou tácita. A manifestação tácita da vontade de contratar é admitida apenas quando: (a) a norma jurídica não exigir forma expressa (art. 1.079, do CC); e (b) for possível inferir do comportamento do agente um inequívoco desejo de contratar. Nesse sentido, o silêncio é uma forma de manifestação tácita da vontade de contratar.

10.3. FASES DA CONTRATAÇÃO

O contrato não se forma de imediata, mesmo quando na vida cotidiana parece ocorrer o contrário. A contratação de desenvolve em fases perfeitamente identificáveis. Essas fases podem ocorrer em intervalos de tempo razoavelmente longos, ou podem ocorrer de modo praticamente instantâneo. Não importa qual o tempo que intermedeia cada fase de formação do contrato, mas sim a presença dessas fases.

De modo geral, a formação do contrato depende da ocorrência de cada uma destas fases:

•    fase das negociações preliminares;
•    fase da proposta;
•    fase da aceitação da proposta;
•    fase da tradição (somente para os contratos reais.

Cada uma dessas fases deve ser estudada separadamente.

(I) Fase das negociações preliminares

Na fase de negociações preliminares os possíveis contratantes discutem livremente seus interesses jurídicos a serem regulados no contrato. É uma fase pré-contratual, pois nela as declarações de vontade feitas pelos interessados não têm – ainda – a finalidade de formar o contrato. Por isto mesmo, os possíveis contratantes não criam entre si vínculos obrigacionais na fase pré-contratual em decorrência das declarações de vontade que exteriorizam durante suas discussões. Não podem exigir uma da outra o cumprimento de condutas prometidas nessa etapa de discussões, até mesmo porque uma das finalidades dessa fase preliminar é a de verificar se será ou não possível um acordo de vontades.

É preciso esclarecer, no entanto, dois pontos relevantes, a saber: (1º) a responsabilidade civil pré-contratual; e (2º) a aplicação da teoria da base do negócio jurídico. Nesses dois casos, o comportamento dos possíveis contratantes durante a fase das negociações preliminares poderá dar origem ao dever de indenizar.

(a) Responsabilidade civil pré-contratual

Foi examinado que as normas jurídicas estabelecem padrões de comportamento humano, de modo a tornar possível o convívio social. Essas normas ora impõem um certo comportamento a seus destinatários, ora proíbem que eles adotem determinada conduta, e ora toleram que os destinatários se comportem livremente. Se os sujeitos destinatários do comando normativo não o obedecerem, estarão expostos à aplicação da sanção punitiva que a própria norma jurídica previu para o caso. Também foi examinado que a estrutura da norma jurídica tem em vista um sujeito ao qual ela dirige o comando de comportamento e, ainda, outro sujeito a quem aquele comando favorece. Verificado o fato jurídico real da desobediência à norma jurídica, forma-se uma relação jurídica de direito subjetivo em que o sujeito ativo pode exigir do sujeito passivo, até mesmo coercitivamente, o cumprimento da conduta que a mesma norma determinou para o sujeito passivo. É comum que, ao desobedecer a norma jurídica, o sujeito passivo cause ao sujeito ativo um dano material ou moral. Nesse caso, o sujeito infrator passa a ter a obrigação de indenizar o prejuízo causado ao sujeito ativo. Trata-se, aí, da responsabilidade civil.

A responsabilidade civil pode ser contratual ou extracontratual.

A responsabilidade civil contratual caracteriza-se pelo fato de existir prévia relação jurídica obrigacional entre o sujeito causador do dano e o sujeito que sofreu o dano. Havia uma obrigação entre esses dois sujeito e o devedor não cumpriu tal obrigação, causando o dano moral ou material ao seu credor. A norma jurídica desobedecida pelo devedor foi a norma contratual. Havia entre esses sujeitos uma relação obrigacional que foi descumprida pelo devedor e, consequentemente, surgiu uma outra relação obrigacional entre as mesmas partes, agora tendo por objeto o dever do devedor de indenizar seu credor por ter causado a este um dano quando o mesmo devedor descumpriu a obrigação anterior.

Por outro lado, na responsabilidade civil extracontratual inexiste prévia relação obrigacional entre o causador do dano e o sujeito que sofre o dano. Um sujeito desobedece um dever geral de conduta especificado por uma norma jurídica e, ao proceder assim, causa prejuízo a outro sujeito. Como entre tais sujeitos não havia nenhum vínculo obrigacional precedente, o infrator da norma jurídica deu causa ao nascimento de uma relação jurídica obrigacional entre ele e o sujeito a quem prejudicou.

Ora, foi explicado que na fase das negociações preliminares não está formado o contrato e, por conseguinte, os danos que um sujeito causar ao outro, durante tal fase, não pode gerar responsabilidade civil contratual. Além disto, como regra geral, as discussões entabuladas entre os possíveis contratantes não geram entre eles vínculos obrigacionais. Nessas circunstâncias, é necessário examinar em que hipóteses um dos possíveis contratantes poderia reclamar indenização contra o outro em decorrência de danos que viesse a sofrer durante a fase de discussões preliminares do contrato.

A doutrina e a jurisprudência têm admitido com relativa tranquilidade a responsabilidade civil extracontratual por danos causados na fase de discussões preliminares, desde que um dos possíveis contratantes tenha se conduzido com manifesta má fé em face do outro, a quem prejudicou. O sujeito prejudicado pedirá indenização não com base no contrato, pois este ainda não se formou, mas com apoio na regra geral do art. 159, do CC.

Um exemplo ilustrará bem a situação. Um comerciante, sabendo que seu estabelecimento comercial está prestes a ser interditado pelo Poder Público, tenta alienar seu fundo de comércio para um possível adquirente, ocultando deste último o risco iminente de interdição. O possível adquirente, então, desinteressa-se de outros pontos comerciais vizinhos e passa a negociar apenas com o aludido comerciante desleal. Passa-se o tempo em negociações e, antes de celebrado o contrato entre as partes, o estabelecimento comercial em questão é efetivamente interditado. Nesse momento, o sujeito que se interessava pela aquisição já não pode mais obter outro estabelecimento na mesma região. Sofreu, inegavelmente, um prejuízo material em decorrência do comportamento doloso por omissão do comerciante desleal. Mesmo não tendo sido celebrado o contrato de aquisição do estabelecimento, o prejudicado poderá pedir indenização contra o comerciante inescrupuloso e o fará com base na responsabilidade civil extracontratual.

(b) Aplicação da teoria da base do negócio jurídico

Como foi demonstrado acima, exceto no caso de manifesta má fé de um possível contratante em relação ao outro, as declarações de vontade desses sujeitos durante a fase das negociações preliminares ao contrato são em geral completamente irrelevantes para o Direito. Tudo aquilo que os sujeitos discutiram antes da celebração do contrato, e mesmo os motivos que os levaram a contratar, não integram o conteúdo contratual. Um exemplo com certeza será esclarecedor.

Os pais de uma noiva, preparando-a para o futuro matrimônio, encomendam a feitura do vestido para as bodas. Contratam também os músicos para a cerimônia e a decoração do local em que o casamento será celebrado. Como de praxe, realizam pagamentos pecuniários em cumprimento a todos esses contratos. No entanto, há poucos dias do dia marcado para o casamento, ocorre um fato qualquer que impede definitivamente a realização do matrimônio. Os pais da noiva, evidentemente, não poderão pretender a dissolução de todos os contratos mencionados por causa da inviabilidade do casamento da filha.

Há outro exemplo também bastante ilustrativo. Uma pessoa reserva sua passagem de avião para passar suas férias em certa localidade de praia. Para o mesmo fim, reserva hospedagem em hotel. Às vésperas de sua partida, muda o tempo e passa a chover torrencial e ininterruptamente. Não pode o sujeito querer desfazer todos esses contratos alegando que fez as reservas supondo que o tempo estaria ensolarado na praia e que agora, com chuva, não lhe interessa mais passar as férias na referida localidade.

Em suma, as discussões preliminares ao contrato não interferem na eficácia e no conteúdo desse contrato. Apesar disso, por causa de circunstâncias específicas, a doutrina foi pouco a pouco desenvolvendo princípios para excepcionar tal regra geral e, assim, surgiu a chamada Teoria da Base do Negócio Jurídico.

A teoria da base do negócio jurídico, resumidamente, sustenta que os motivos mediatos, indiretos, remotos que levaram as partes a contratar podem integrar o conteúdo do contrato se assim as mesmas partes desejarem.

Os motivos que levam uma pessoa a celebrar um contrato são muito variados e, de modo geral, podem ser classificados em: (a) motivação imediata, ou direta ou próxima; e (b) motivação mediata, ou indireta ou remota.

A motivação imediata é a que impele o sujeito a contratar para atingir certo objetivo inerente ao tipo de contrato celebrado. Por isto mesmo, a motivação imediata integra o contrato e influi na eficácia dele.

Por exemplo, o sujeito que deseja ir de sua casa até seu local de trabalho contrata os serviços de transporte oferecido por uma empresa de ônibus urbanos. É evidente que o motivo de tal contratação é o desejo do passageiro de ser transportado de um local para outro com presteza, conforto e segurança. Se o transporte desse passageiro não puder ser feito, o contrato pode ser dissolvido, porque o motivo da contratação estará frustrado. Outro exemplo. Alguém toma em locação um imóvel para fins residenciais. O inquilino foi motivado a celebrar o contrato de locação, obviamente, para ter o direito de usar o imóvel, temporariamente, para sua residência. Para esse fim, o imóvel precisa estar em adequadas condições de habitabilidade, pois, caso contrário, estará frustrado o motivo pelo qual o inquilino contratou a locação.

A motivação mediata, ou indireta, ou remota, é aquela que leva o sujeito a contratar para alcançar objetivo não inerente ao tipo de contrato celebrado. Nesse caso, o contrato é apenas um meio, um instrumento, uma ferramenta que, ao produzir seus resultados típicos, permitirá ao contratante a satisfação de outro objetivo exterior ao contrato. A motivação mediata, portanto, não integra o conteúdo do contrato e também não interfere na eficácia dele. alguns exemplos esclarecerão melhor a matéria.

O sujeito que contratou o serviço de transporte em ônibus urbano para ir de sua casa até seu local de trabalho desejou ser fisicamente transportado (motivação imediata para contratar). Esse desejo de ser deslocado do local de moradia para o local de trabalho, por sua vez, foi motivado por outro desejo mediato, indireto, remoto. O sujeito quer ser transportado ao seu local de trabalho porque, lá, teria uma reunião de negócios, ou porque não poderia faltar no emprego, ou porque precisava consultar determinado material técnico (motivação mediata para contratar). Se, ao chegar ao local de trabalho, o sujeito vier a saber que a reunião foi cancelada, ou não puder ingressar no prédio porque neste estiver ocorrendo um incêndio, ou ainda não puder consultar o material técnico porque este foi retirado do local por qualquer motivo, é evidente que o contrato de transporte já mencionado não receberá nenhuma dessas interferências. Nesses casos, a motivação imediata para contratar foi atendida, pois o sujeito foi efetivamente transportado de sua casa para o local de trabalho. No entanto, a motivação mediata (isto é, a razão pela qual o sujeito queria ser transportado de sua casa para o local de trabalho) não foi atendida e, apesar disto, o contrato de transporte permaneceu íntegro.

O mesmo raciocínio é válido para o exemplo da pessoa que alugou um imóvel para nele residir. A motivação imediata para que o sujeito tenha celebrado o contrato é a necessidade de moradia no imóvel. Todavia, o inquilino queria alugar o imóvel para fins residenciais porque iria se casar dentro de certo prazo e lá estabeleceria o domicílio conjugal; ou porque reside noutra cidade e teria que vir cursar sua faculdade na cidade em que se localiza o imóvel alugado; ou ainda porque não dispunha de recursos para adquirir casa própria. Ora, celebrado o contrato de locação do imóvel para fins residenciais, a motivação imediata do inquilino para contratar foi atendida (ele passou a ter onde residir). Mas, após a celebração do contrato, ele desfaz seu noivado; ou desiste de cursar a faculdade; ou ainda obtém o dinheiro necessário para adquirir casa própria. Em síntese, os motivos (mediatos, indiretos, remotos) que influenciaram o inquilino a celebrar o contrato de locação desapareceram. Este inquilino não poderá, nessas circunstâncias, querer dissolver o contrato sob a alegação de que não tem mais motivos mediatos para manter o que foi contratado.

Mais um exemplo. Um sujeito vai a uma lanchonete e adquire a ficha para que lhe seja servido um sanduíche. Esse sujeito quer adquirir o sanduíche e este é o motivo imediato que o levou a celebrar o contrato de compra e venda. Cabe perguntar agora: para qual finalidade o sujeito queria adquirir o sanduíche? Qual foi sua motivação mediata, indireta, remota, para celebrar o contrato de compra e venda? Ora, o sujeito foi mediatamente motivado a contratar porque estava com fome e queria comer o sanduíche; ou ele pode ter celebrado o contrato para poder levar o sanduíche para alguém em seu local de trabalho; ou pode ter adquirido o sanduíche para fazer uma análise bacteriológica de seus ingredientes. Esses podem ter sido os motivos mediatos, indiretos ou remotos para a celebração do contrato de compra e venda do sanduíche. Se, após a aquisição do sanduíche, o adquirente tiver perdido o apetite; ou se a pessoa para quem ele comprou o sanduíche já tiver se ausentado do local de trabalho; ou se a análise bacteriológica do sanduíche não puder ser realizada porque os equipamentos laboratoriais para este fim não estiverem funcionando; é evidente que o adquirente daquele sanduíche não poderá devolvê-lo à lanchonete, desfazendo o contrato de compra e venda daquele bem.

Por conseguinte, quando se diz que os motivos que levam alguém a contratar não integram o conteúdo do contrato nem interferem na eficácia dele, é preciso distinguir entre os motivos imediatos e os mediatos. Os motivos imediatos integram, sim, o conteúdo contratual e, se não forem atendidos, permitem até mesmo a dissolução do contrato. Já os motivos mediatos, como regra geral, são exteriores ao conteúdo contratual, porque o contrato serve apenas como meio de satisfação dessas motivações mais remotas.

A teoria da base do negócio jurídico tem em vista exatamente os motivos mediatos, indiretos, remotos, que levam os sujeitos a contratar. Observados certos pressupostos, os contratantes podem fazer com que tais motivos passem a compor o conteúdo contratual.

As partes podem indicar com clareza e precisão os motivos mediatos, indiretos, remotos que levaram cada uma delas a celebrar o contrato e, nessas circunstâncias, as partes também declaram que o contrato somente interessa a elas na medida em que aqueles motivos existirem. Uma vez frustrados os motivos mencionados, o contrato poderá ser dissolvido ou será ineficaz. Por exemplo, locador e locatário fazem constar do contrato que o imóvel é alugado para fins residenciais (motivo imediato da contratação) para que lá o inquilino e sua noiva possam morar após a celebração do matrimônio (e, assim, o estabelecimento da vida conjugal é o motivo mediato que levou o inquilino a contratar a locação). As partes fazem constar do contrato, ainda, previsão de que, se o matrimônio do inquilino não vier a se realizar, a locação será desfeita (porque, obviamente, o inquilino não poderá estabelecer a vida conjugal, que era seu motivo indireto para contratar a locação). Nessas circunstâncias, um fato completamente exterior à finalidade típica do contrato de locação, isto é, o estabelecimento da vida conjugal do inquilino, passa a integrar o referido contrato e influir em sua eficácia.

Sendo assim, o objetivo prático da teoria da base do negócio jurídico é o de fazer com que fatos previamente especificados pelas partes – e que normalmente não integrariam o conteúdo contratual – passem a integrar o contrato por vontade das parte e passem a influenciar a eficácia de tal contrato. Em resumo, a teoria faz com que os motivos mediatos, indiretos, remotos discriminados pelas partes sejam integrados ao contrato celebrado.

c) Requisitos para a aplicação da teoria da base do negócio jurídico

Para que seja possível invocar a aplicação da teoria da base do negócio jurídico é preciso atender a estes pressupostos:

(1º) declaração dos motivos mediatos do contrato – as partes devem indicar com precisão e clareza os motivos indiretos que tiveram para contratar;

(2º) aceitação pelas partes dos motivos mediatos como base da contratação – cada uma das partes deve aceitar os motivos remotos elencados como base da celebração do negócio jurídico contratual, de modo que, frustrados aqueles motivos, o negócio jurídico perde sua base e poderá ser dissolvido ou tornar-se ineficaz.

Feitos todos esses esclarecimentos, pode-se concluir que, durante a fase de negociações preliminares ao contrato, as partes podem apresentar seus respectivos motivos remotos para a contratação e, uma vez preenchidos os pressupostos para a aplicação da teoria da base do negócio jurídico, as partes ficam expostas aos efeitos dessa teoria.

(II) Fase da proposta contratual

Encerrada a fase das negociações preliminares ao contrato, inicia-se outra, chamada fase de proposta contratual. Esta nova fase é aquela em que uma das partes interessadas na contratação formula para a outra parte uma proposta de contrato firme, séria, precisa no que concerne aos elementos essenciais do negócio jurídico proposto. Quem formula a proposta é denominado proponente. A proposta é dirigida ao destinatário dela. A disciplina legal básica e geral da proposta é encontrada no art. 1.080 e seguintes, do CC.

A proposta feita pelo proponente ainda não dá origem ao contrato. Para que o contrato seja celebrado, como regra geral exige-se que o destinatário da proposta a aceite sem restrições. Este aspecto será estudado mais adiante.

O proponente fica obrigado aos termos de sua proposta ou oferta contratual. Isto quer dizer que é possível exigir dele, até mesmo coercitivamente, o comportamento que prometeu ao destinatário da proposta. Observe-se bem: a proposta ainda não forma o contrato, mas tal proposta já é uma obrigação jurídica para o proponente, que não mais poderá revogar a proposta sem consentimento do destinatário da oferta (a não ser que, expressamente, o proponente tenha se reservado esse direito de arrependimento e revogação de sua proposta).

(A) Requisitos da proposta contratual

A proposta contratual somente produzirá efeitos jurídicos se apresentar certos requisitos, que se passa a examinar:

(1º) declaração de vontade do proponente

Enquanto a pessoa interessada em contratar não exteriorizar sua vontade contratual, tal vontade é considerada uma reserva mental e, assim, não produz qualquer efeito jurídico.

Portanto, o proponente precisa declarar juridicamente sua vontade de contratar. A declaração de vontade pode ser feita de modo expresso ou tácito e até mesmo o silêncio poderá significar vontade de contratar, conforme o contexto de cada caso.

(2º) capacidade do proponente

Quem desejar formular uma proposta de contratação precisa ter capacidade para praticar esse ato jurídico. O proponente deve ter capacidade genérica para a prática dos atos jurídicos, o que significa que não pode ser incapaz (arts. 5º e 6º, do CC). Além da capacidade geral, o proponente deverá, também, ter capacidade específica para propor a celebração do contrato que deseja. Por exemplo, um sujeito casado quer vender seu imóvel e, para esse fim, formula uma proposta de venda. É preciso que a mulher do proponente ratifique a oferta feita pelo marido, pois ele não poderá vender o imóvel sem o consentimento da mulher, qualquer que seja o regime de bens adotado no casamento. Faltaria ao marido, neste caso, capacidade específica para propor a venda do aludido imóvel, muito embora ele tenha, para outros atos jurídicos, plena capacidade jurídica.

(3º) Elementos essenciais do futuro contrato

A proposta precisa referir-se aos os elementos essenciais do futuro contrato. Como foi dito, a proposta gera uma obrigação para o proponente e, para que tal obrigação seja exigida dele, basta que o destinatário da oferta a aceite sem restrições. Por esta razão, a proposta deverá referir-se claramente aos elementos essenciais do contrato que se pretende celebrar.

Por exemplo, alguém que anuncia no jornal seu desejo de vender certo veículo por determinado preço, está inequivocamente formulando uma proposta pública para celebrar um contrato de venda e compra do referido veículo. A proposta forneceu as características gerais do automóvel, seu preço e condições de pagamento. Falta apenas a declaração de vontade do comprador do veículo para que o contrato se aperfeiçoe.

Outro exemplo. Um lojista coloca em sua vitrine determinada peça de vestuário e indica o preço dela, bem como as condições de pagamento. Está assim formulada uma proposta de contrato de compra e venda.

(4º) Seriedade da proposta

A proposta precisa ser formulada com seriedade, com firmeza. A proposta que não se refere claramente aos elementos essenciais do futuro contrato que o proponente deseja celebrar é, em geral, uma proposta sem seriedade. Por exemplo, determinada construtora anuncia: “Resolva seu problema de moradia. Compre um imóvel da (nome da construtora).” Ora, não se sabe que imóvel está sendo ofertado (embora isto possa ser determinável). Não se sabe quais são os preços desses imóveis e também é evidente que nem todas as pessoas que virem o anúncio poderão pagar o preço do imóvel desejado. Logo, tal proposta não é séria porque não há como exigir judicialmente o cumprimento dela pela construtora anunciante.

Mais um exemplo. Um sujeito, tem uma casa de praia muito aprazível e, certo dia, recebe nela um amigo que foi visitá-lo. Esse amigo elogia o imóvel de seu anfitrião e este, para ser amável com o visitante, diz a respeito do imóvel: “está à sua disposição, venha usufruir dele quando quiser! É obvio que não se pode ver aí uma proposta de comodato que teria sido feita pelo dono da casa ao amigo visitante. Este visitante não poderá obrigar o proprietário do imóvel a emprestá-lo quando e como o visitante quiser. A frase de amabilidade dita pelo proprietário não significou uma proposta séria de transferência do uso do imóvel para o visitante.

Outro exemplo clássico. Um ator, durante a encenação de uma peça teatral, cumprindo o roteiro da cena, oferece seus serviços profissionais a outro ator. É lógico que, dado o contexto da encenação, não se trata de verdadeira proposta contratual. O ator proponente não está obrigado a prestar serviços ao ator destinatário da proposta.

(B) Modalidades da oferta contratual

Existem basicamente dois modos de proposta, a saber: (a) proposta pública; e (b) proposta privada.

A proposta pública é aquela apresentada ao público em geral, tal como ocorre com os anúncios em jornais, com as ofertas em vitrines de lojas, com os gritos em feiras livres. A proposta pública não tem em vista um destinatário específico. Qualquer pessoa que tenha conhecimento da oferta e a aceitar poderá se habilitar à contratação.

Por outro lado, a proposta privada é a que se dirige a pessoa ou pessoas determinadas. Seja ela expressa ou tácita, o proponente tem em vista um destinatário certo para a oferta. Por exemplo, alguém se dirige diretamente ao proprietário de um imóvel ocioso e propõe tomá-lo em locação.

(C) Efeitos da proposta contratual

A proposta é um ato jurídico pré-contratual muito importante porque desencadeia diversos efeitos jurídicos. Serão indicados, a seguir, os efeitos mais relevantes.

(1º) vinculação do proponente ao conteúdo da proposta

Já foi esclarecido anteriormente que, embora a proposta por si mesma não forme o contrato, ela é suficiente para criar uma obrigação para o proponente. Quem formula a proposta está obrigado a cumprir o que nela prometeu, a não ser que: (a) expressamente, ressalve seu direito de revogar a oferta; (b) a natureza do negócio jurídico proposto seja tal que não obrigue o proponente desde logo; ou (c) as circunstâncias específicas em que a proposta for apresentada indiquem que o proponente não poderia ficar imediatamente vinculado ao conteúdo da oferta.

Há casos em que, ao formular a proposta, o proponente já deixa esclarecido que, em certos casos ou mesmo a seu critério, poderá revogar sua oferta. Consequentemente, o proponente não poderá ser obrigado a cumprir a proposta revogada nessas circunstâncias.

Outras vezes, a própria lei admite que a proposta não seja vinculante para o proponente. Dois casos merecem destaque: (a) a oferta feita a pessoa presente; e (b) a oferta feita a pessoa ausente.

(a) oferta contratual feita a pessoa presente

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o que é “pessoa presente”. Trata-se da pessoa que está fisicamente presente (por si mesma ou por meio de representante legal) em face do proponente, como também é a pessoa domiciliada no mesmo município em que o proponente tem domicílio. Modernamente, tem-se entendido que o conceito de “pessoas presentes” abrange também as pessoas que estejam se comunicando por meios de telecomunicações que possibilitem a troca de informações de modo instantâneo, mesmo que os interlocutores estejam em locais muito distantes um do outro. Assim, um exportador que esteja na China, conversando telefonicamente com um importador no Brasil a respeito de um contrato de exportação-importação de mercadorias, é considerado pessoa presente no que concerne à disciplina da oferta contratual.

A proposta feita a uma pessoa presente, sem fixação de prazo de validade da oferta, obriga o proponente a cumprir o que prometeu apenas no momento em que apresenta tal proposta. Esse tipo de proposta exige do destinatário uma resposta imediata à oferta a ele apresentada: deve aceitá-la ou não. Não havendo pronta resposta do destinatário, o proponente estará imediatamente liberado da proposta que apresentou (art. 1.081, do CC).

Por exemplo, num pregão da Bolsa de Valores, o operador grita aos presentes que vende determinado lote de ações por certo preço. Quem quiser adquirir aquelas ações deverá declarar isto imediatamente. Passada essa oportunidade, o vendedor poderá aumentar o preço, diminuí-lo ou até mesmo desistir da venda.

(b) oferta contratual a pessoa ausente

Inicialmente, a “pessoa ausente” que se tem em vista aqui não é o ausente que desaparece do lugar em que tinha domicílio sem deixar representante que administre seus interesses jurídicos (arts. 5º, IV e 463/468, do CC). A “pessoa ausente” ora considerada é aquela que, por si ou por meio de representante legal, não está diante do proponente, ou a que não está domiciliada no mesmo município que ele e não pode, por meio de telecomunicação, manter conversação instantânea com o ofertante.

Feita a proposta a pessoa ausente, o proponente precisa aguardar pela resposta do destinatário durante certo lapso temporal. Por isto mesmo, essa proposta poderá ser feita com fixação de prazo certo para a resposta do destinatário, ou sem prazo determinado para a resposta.

No caso da oferta feita com prazo certo para a resposta, o destinatário terá que dizer se aceita ou não a oferta dentro do prazo especificado. Se não proceder assim, ou se der sua resposta após o término do prazo fixado, o proponente não mais estará obrigado a manter a proposta.

Se a oferta for feita sem prazo determinado para a resposta, o proponente terá que aguardar a resposta do destinatário por um prazo razoável, levando em consideração a natureza do contrato proposto, as circunstâncias do caso, os meios de comunicação entre as partes, etc. Não chegando a resposta do destinatário nesse prazo razoável, o proponente ficará desvinculado da oferta que fez.

(2º) retratação ou revogação da proposta contratual

Se o proponente alterar ou revogar injustamente a proposta, poderá ter responsabilidade civil extracontratual em face ao destinatário da proposta que prejudicar com essa conduta. É importante anotar que a responsabilidade do proponente é extracontratual porque, antes de aceita a proposta, inexiste contrato e, logo, também não existe responsabilidade contratual.

Conforme examinado anteriormente, a lei (art. 1.081, do CC) considerou alguns casos em que o proponente pode alterar ou mesmo revogar a proposta. Não se deve confundir, assim obrigatoriedade da proposta com imodificabilidade ou irrevogabilidade da proposta. Noutros termos, a proposta é obrigatória para o proponente, mas em certos casos ele está autorizado a modificá-la e, assim ocorrendo, ele ficará obrigado a cumprir os novos termos da proposta; noutros casos, apesar da obrigatoriedade da proposta, o proponente tem autorização legal para revogar a oferta e, desse modo, extinguir a obrigação que até então tinha em decorrência da proposta apresentada.

A alteração ou a revogação da proposta são admitidas desde que presentes estes requisitos:

(a) a retratação não pode ser arbitrária, devendo ser justificável juridicamente;

(b) a retratação deverá chegar ao conhecimento do destinatário antes mesmo que a própria proposta ou, no máximo, ao mesmo tempo em que a oferta chegar ao conhecimento daquele destinatário, de maneira a excluir os termos da oferta.

Cabe esclarecer, aqui, que a morte do proponente não desobriga seus herdeiros e sucessores de cumprirem, perante o destinatário, os termos da proposta, a não ser que tais sucessores, em tempo oportuno, tenham comunicado ao destinatário o fato da morte do proponente e tenham esclarecido que não poderiam cumprir a proposta. Evidentemente, a retratação dos herdeiros do proponente falecido deverão atender aos requisitos acima indicados. Todavia, se o proponente falecido havia proposto um contrato personalíssimo, que somente ele poderia cumprir, é óbvio que seus sucessores estarão desobrigados perante o destinatário da oferta.

(3º) aceitação da proposta contratual

Em princípio, a proposta é uma declaração receptícia de vontade, pois, embora crie para o proponente (em geral) a obrigação de cumprir o que prometeu, somente produzirá o resultado desejado pelo ofertante se for aceita pelo destinatário da proposta.

O proponente fica obrigado a cumprir os termos da proposta. Mas o contrato apenas estará formado se o destinatário aceitar a proposta sem restrições. Aceita a proposta, forma-se o contrato e, então, o resultado jurídico desejado pelas partes haverá de se produzir.

Por exemplo, se alguém anunciou num jornal a venda de seu carro, por certo preço, está obrigado a vender aquele carro, pelo preço indicado no anúncio, a qualquer pessoa que desejar adquirir o veículo em tais circunstâncias. Todavia, enquanto não surgir um comprador que declare sua vontade de aceitar as condições da oferta, o proponente anunciante não conseguirá seu intento, que é o de vender o automóvel. Por isto, a declaração de vontade de vender é receptícia, isto é, precisa ser recebida e aceita pelo destinatário que irá comprar o carro.

(4º) limites da proposta contratual pública

Sempre que a proposta for dirigida ao público em geral, deverá ser interpretada com reservas. Isto quer dizer que o proponente faz sua oferta ao público tendo em vista sua disponibilidade de estoque, sua capacidade de fornecimento de bens e serviços, considerando a possibilidade de escolha dos bens por parte dos destinatários da oferta, as condições gerais do mercado, etc.

Assim, por exemplo, se um determinado fabricante de automóveis – mediante campanha publicitária – propõe a venda de certo veículo e remete o público para as concessionárias autorizadas daquele fabricante, é evidente que poderá ocorrer que nem todas as concessionárias tenham o veículo anunciado em seus estoques, ou que não disponham do carro na cor desejada pelo cliente, etc.

(III) Fase da aceitação da proposta contratual

Ficou esclarecido que o proponente apresenta sua proposta a um destinatário e que somente depois que esse destinatário aceita a oferta, sem restrições, é que o contrato estará celebrado (se for um contrato apenas consensual, obviamente).

O ato jurídico da aceitação da proposta, por conseguinte, é muito importante, já que:

(a) antes da aceitação – e desde que preenchidos os requisitos próprios – o proponente poderá se retratar da proposta; e

(b) depois da aceitação, o contrato estará formado e, em atenção ao princípio da força obrigatória dos contratos, nenhuma das partes poderá pretender alterá-lo ou desfazê-lo sem justo motivo.

Consequentemente, após a aceitação irrestrita da proposta, forma-se um contrato obrigatório para todos os contratantes.

(A) Modalidades de aceitação da proposta contratual

O destinatário da proposta poderá manifestar sua declaração de vontade de aceitar a proposta contratual de modo:

(a) formal, sempre que a lei ou os termos da proposta assim determinarem;

(b) expresso, ou seja, por meio escrito, por sinais, por códigos convencionais;

(c) tácito, isto é, adotando um comportamento tal que evidencie inequivocamente sua vontade de aceitar a proposta a ele dirigida.

(B) Requisitos para a aceitação da proposta contratual

A aceitação da proposta contratual somente produzirá efeitos jurídicos se apresentar certos requisitos, que se passa a examinar:

(1º) declaração de vontade de aceitação da proposta

Enquanto a pessoa destinatária da proposta não exteriorizar sua vontade de aceitar a oferta e de contratar, tal vontade é considerada uma reserva mental e, assim, não produz qualquer efeito jurídico.

Portanto, o destinatário da proposta precisa declarar juridicamente sua vontade de  aceitar contratar.

(2º) capacidade do destinatário da proposta

O sujeito interessado em aceitar a proposta contratual que lhe foi feita precisa ter capacidade para praticar esse ato jurídico. O destinatário aceitante deve ter capacidade genérica para a prática dos atos jurídicos, o que significa que não pode ser incapaz (arts. 5º e 6º, do CC). Além da capacidade geral, o aceitante deverá, também, ter capacidade específica para aceitar o contrato proposto. Por exemplo, uma sociedade anônima interessada em aceitar uma proposta contratual, declara sua vontade nesse sentido sem, contudo, obter a prévia autorização do Conselho de Administração, exigida por disposição estatutária. Ora, a empresa tem capacidade genérica para celebrar contratos mas, no caso específico aqui enfocado, faltou-lhe capacidade específica para celebrar o contrato considerado.

(3º) aceitação irrestrita da oferta

Foi esclarecido anteriormente que a proposta precisa referir-se aos os elementos essenciais do futuro contrato. A proposta gera uma obrigação para o proponente e, para que tal obrigação seja exigida dele, basta que o destinatário da oferta a aceite sem restrições. Logo, a proposta deverá referir-se claramente aos elementos essenciais do contrato que se pretende celebrar.

Se o destinatário da proposta quer aceitá-la, porém introduzindo nela modificações, então passará a ser um novo proponente e, consequentemente, o proponente original passará a ser o destinatário da proposta modificada (art. 1.083, do CC). Essas modificações, evidentemente, podem referir-se tanto aos elementos essenciais do futuro contrato como também a cláusulas contratuais consideradas importantes pelas pessoas interessadas em contratar.

Por exemplo, tomando-se novamente o caso de alguém que anuncia no jornal seu desejo de vender certo veículo por determinado preço. Este proponente está inequivocamente formulando uma proposta pública para celebrar um contrato de venda e compra do referido veículo. A proposta forneceu as características gerais do automóvel, seu preço e condições de pagamento. Falta apenas a declaração de vontade do comprador do veículo para que o contrato se aperfeiçoe. Ocorre que um sujeito interessado na aquisição do carro quer pagar preço menor. Fez, assim, uma oferta ao vendedor que, agora na posição de destinatário de nova proposta, poderá ou não aceitá-la.

Na prática da vida jurídica é necessário ter cuidado para não confundir a fase de discussões preliminares ao contrato, com a fase de apresentação de propostas e contrapropostas do contrato. A fase das propostas pressupõe que o proponente, antes de formular sua oferta, já discutiu com a outra pessoa interessada em contratar os aspectos genéricos do futuro contrato. Portanto, a proposta ou a contraproposta representam discussão de pontos mais específicos do futuro contrato, sem recolocar em discussão os pontos já aceitos ou rejeitados por ambos os interessados. Mesmo assim, nem sempre é fácil superar a confusão prática entre as fases mencionadas. Nesses casos, se o proponente sabe ou se supõe que o destinatário ainda irá apresentar várias alterações à proposta original, ele – proponente – deverá deixar muito claro (fazendo constar isto de sua proposta) que a proposta ainda está sujeita a discussões. Assim procedendo, o proponente situar-se-á ainda na fase das negociações preliminares, na qual, como já foi estudado, em geral não surgem direitos e obrigações entre as partes envolvidas nos debates. Caso contrário, o proponente poderá ser considerado como estando já na fase de proposta contratual e, portanto, estará obrigado a cumprir os termos de sua oferta. Mesmo que o destinatário proponha modificações na proposta original (passando, então, a ser o novo proponente), o proponente original não poderá mais, em princípio, retratar-se em relação aos pontos da proposta original que não foram modificados pelo destinatário original.

(4º) tempestividade da aceitação da proposta

O destinatário precisa manifestar sua vontade de aceitar a proposta em tempo oportuno.

Se a proposta fixou prazo certo para a resposta, o destinatário deverá dizer de aceita ou não a oferta dentro do prazo especificado.

Se a proposta não estabeleceu prazo determinado para que o destinatário manifeste sua aceitação, então o aceitante terá que se manifestar dentro de um prazo razoável, levando em consideração a natureza do contrato proposto, as circunstâncias do caso, os meios de comunicação entre as partes, etc. Não chegando a resposta do destinatário nesse prazo razoável, o proponente ficará desvinculado da oferta que fez.

(C ) Dispensa da aceitação expressa para a formação do contrato

O art. 1.084, do CC, admite que em certos casos muito específicos, o contrato proposto seja formado mesmo sem expressa aceitação da proposta por parte do destinatário. Conforme a natureza do contrato ou as circunstâncias de cada caso, a lei, ou o próprio proponente, podem considerar celebrado o contrato independentemente de o destinatário aceitar expressamente a oferta, a não ser que esse mesmo destinatário recuse formalmente a proposta que lhe foi apresentada.

Por exemplo, quando um sujeito é admitido por uma empresa, pode torna-se segurado de uma apólice de seguro de vida em grupo independentemente de manifestar sua vontade nesse sentido. A empresa custeia o seguro de vida para seus empregados e eles tornam-se partes no contrato securitário. Se o sujeito não quiser ser segurado, bastará manifestar sua vontade de ser excluído do grupo coberto pela apólice de seguro de vida.

(D) Efeitos da aceitação da proposta contratual

A declaração do destinatário no sentido de aceitar a proposta que lhe foi apresentada é um ato jurídico extremamente importante porque dá origem ao contrato. Por essa razão, inúmeros efeitos decorrem do ato de aceitação. Aqui serão apontados os efeitos mais interessantes da aceitação da proposta contratual.

(1º) formação do contrato

A declaração de aceitação da proposta contratual acarreta, em geral, a formação do contrato consensual. No caso dos contratos reais, o contrato somente estará formado após a realização dos atos materiais de transferência do bem objeto do contrato.

Por exemplo, tratando-se de um contrato de compra e venda (que é consensual), a celebração do contrato ocorre desde que as partes declarem suas respectivas vontades de vender e de comprar, acordem sobre o bem objeto da compra e venda e sobre o preço.

No contrato de depósito (que é real), além de as partes precisarem declarar suas respectivas vontades de depositar e de aceitar em depósito certo objeto, é necessária ainda a entrega desse objeto pelo depositante ao depositário. Faltando este ato material de entrega do bem, o contrato de depósito não se formará.

(2º) aceitação tardia da proposta

Quando a oferta contratual é feita a pessoa presente, esta última deve imediatamente dizer se aceita ou não a proposta. Nesse caso, o problema da aceitação tardia inexiste. Diferentemente ocorre nos casos em que a proposta contratual é feita a pessoa ausente.

O destinatário ausente precisará informar ao proponente sobre a aceitação ou rejeição da proposta. Por conseguinte, entre o momento em que o destinatário expede sua declaração de aceitação da proposta, e o momento em que o proponente recebe tal mensagem, sempre decorre um lapso temporal. Pode acontecer que, muito embora o destinatário da proposta tenha expedido sua aceitação dentro do prazo regular, esta declaração de aceitação somente chegue ao conhecimento do proponente após o fim do prazo previsto. Nessas circunstâncias, dois fatos mostram-se muito relevantes:

(a) o aceitante, porque expediu a aceitação dentro do prazo regular, acredita que celebrou o contrato;

(b) o proponente, que recebeu a aceitação tardiamente, acreditava que sua proposta fora rejeitada e que, assim, ele estaria já desobrigado dos termos de sua oferta.

A lei brasileira (art. 1.082, do CC) resolve este impasse estabelecendo que o proponente, ao receber a aceitação tardia de sua proposta, deverá imediatamente comunicar esse fato ao aceitante, sob pena de responder por perdas e danos que vier causar ao aceitante que acreditava ter celebrado o contrato.

(3º) retratação da aceitação da proposta contratual

Tal como ocorre com o proponente, que pode se retratar da proposta que fez (seja para alterá-la ou para revogá-la), também o aceitante pode retratar-se nos termos da lei. Noutras palavras, o aceitante poderá revogar sua declaração de aceitação da proposta, ou mesmo modificar os termos da aceitação (caso em que estará, na verdade, transformando-se em proponente de nova proposta dirigida ao proponente original, que torna-se destinatário da nova oferta).

Para ser regular, a retratação da aceitação deverá preencher os seguintes requisitos (art. 1.085, do CC):

(a) a retratação não pode ser arbitrária, devendo ser justificável juridicamente;

(b) a retratação deverá chegar ao conhecimento do proponente antes mesmo que a própria aceitação ou, no máximo, ao mesmo tempo em que ela (aceitação) chegar ao conhecimento do proponente.

(IV) Contrato celebrado por correspondência – os meios de telecomunicações

A epístola, originalmente, era a designação dada à carta escrita por uma apóstolo. tinha, portanto, conotação religiosa. Com o passar do tempo, a palavra “epístola” passou a significar uma carta qualquer que um sujeito remetia a outro. Daí surgiu a expressão “correspondência epistolar”.

Os contratos podem ser celebrados por meio de correspondências espistolares. Cada uma das partes interessadas na contratação manifesta sua respectiva vontade contratual por meio de carta, isto é, por uma epístola, de modo que o contrato é celebrado e instrumentalizado por via epistolar.

O contrato epistolar é modalidade contratual bastante difundida, especialmente no comércio, nos negócios em que a lei dispensa a forma pública. Inicialmente, esse tipo de contratação era feito mediante troca de correspondência escrita entre os contratantes, a saber, cartas, telegramas, telex. Modernamente, não se pode mais ignorar a enorme influência que os meios de telecomunicação exercem na vida jurídica. Assim, ao invés de usar a expressão “contrato epistolar”, é preferível usar expressão mais genérica, como por exemplo “contratos por correspondência”. Esta última expressão abrange todos os tipos de meios de comunicação que possam ser utilizados pelas partes para trocarem correspondência com o propósito de contratar. Desse modo, os contratos celebrados com o uso de redes informatizadas, ou por fax, ou via satélite e, enfim, qualquer meio de comunicação, devem ser entendidos como “contratos por correspondência”.

(A) Problemas decorrentes dos contratos celebrados por meios de telecomunicação

É preciso que se tenha em mente, sempre, que os contratos por correspondência via meios de telecomunicações ainda são aceitos com muita reserva pelo Direito. Primeiramente, existe o problema da prova. É preciso provar que a proposta contratual foi feita. Muitas vezes, nos meios de telecomunicações, esta prova é muito difícil de ser produzida e, sobretudo, é difícil determinar quem efetivamente fez a proposta. Por outro lado, são igualmente problemáticas as provas a respeito da aceitação da proposta e da identidade de quem aceitou a proposta. Essas provas todas invariavelmente exigirão prova pericial, sempre muito cara e, às vezes, inconcludente. Em razão disto tudo, sempre que se quiser celebrar contrato por via de instrumentos de telecomunicação, é preciso ter a cautela de confirmar o mesmo contrato em instrumentos mais estáveis e seguros.

Veja-se, por exemplo, o caso muito comum dos investimentos financeiros bancários. A maior parte dos bancos realiza operações de investimento pedidas pelos clientes por via telefônica. O cliente liga para o banco e, após o procedimento normal de identificação eletrônica, comando, por exemplo, a transferência de dinheiro de sua conta corrente para investimento em ações. O banco executa a ordem e, na mesma data, as ações adquiridas pelo cliente têm queda vertiginosa na bolsa de valores. O cliente sofre enorme prejuízo. Nessas circunstâncias, poderá surgir discussão sobre: (a) se foi mesmo dada a ordem para aquele investimento; (b) quem deu a ordem; (c) se a ordem foi cumprida corretamente pelo banco. Se o banco não dispuser de mecanismos eficientes de controle dessas transações, poderá vir a ser responsabilizado pelo cliente.

Outro exemplo. Determinado investidor estrangeiro contrata um banco brasileiro para executar as ordem de investimento que aquele investidor quer realizar. No contrato, consta cláusula prevendo que o investidor dará as instruções ao banco brasileiro por via de fax ou por telefone e que o banco deverá cumprir tais ordens sem discutir o conteúdo delas. Ora, observe-se bem o risco existente. A ordem do investidor – dada por fax – para que o banco brasileiro compre ou venda certos títulos em determinada data, pode não chegar ao conhecimento do banco. Noutros termos, o investidor pode acreditar que seu fax chegou ao destinatário, mas o banco não recebeu aquela ordem e, assim, não a executou. Pode também acontecer que, embora o fax tenha chegado ao banco, não seja um documento legítimo, isto é, não foi expedido pelo investidor, mas sim por terceiros fraudadores. Os mesmos problemas poderiam surgir na comunicação telefônica. O investidor liga para o banco e dá a ordem de investimento. Por sua infelicidade, a ligação caiu em número errado e um sujeito, com espírito maldoso, recebe a ligação como se fosse mesmo funcionário do banco. Anota a ordem do investidor mas, obviamente, nunca a informará ao banco que, então, não cumprirá ordem que jamais recebeu. Por outro lado, alguém poderia ligar para o banco e, fazendo-se passar pelo investidor, dar uma ordem de investimento, procurando, com isto, obter vantagem própria. Em todos esses casos, o banco, ou o investidor, teriam que fazer prova da regularidade de suas respectivas condutas e essas provas são evidentemente de difícil produção.

(B) Momento de formação do contrato por correspondência

Além dos problemas já apontados, há ainda o problema mais genérico de se determinar com precisão o momento em que o contrato por correspondência foi celebrado. Quer se trate de correspondência comum ou feita por meios de telecomunicação, o momento exato da formação do contrato é relevantíssimo.

O contrato por correspondência pressupõe que, entre o momento da proposta e o instante da aceitação da proposta, decorreu um lapso de tempo necessário ao trânsito das correspondências trocadas pelos sujeitos interessados na contratação. Essas circunstâncias acarretam tormentosos problemas em matéria contratual.

Do ponto de vista teórico, o contrato proposto por correspondência estaria formado no instante em que o destinatário viesse a aceitar a oferta. Ocorre que, enquanto tal vontade de aceitação do contrato não chegar ao conhecimento do proponente, este não saberá que o contrato se formou, muito embora o destinatário da oferta tenha a convicção de que o contrato já esteja celebrado. Com o propósito de solucionar esse problema, diversas teorias surgiram indicando qual seria o momento exato de formação do contrato por correspondência. Aqui serão examinadas brevemente algumas dessas teorias.

Antes de se passar ao exame das teorias, contudo, é preciso esclarecer que todas elas são teorias supletivas, o que quer dizer que as partes contratantes têm inteira liberdade para disciplinar o momento em que considerarão celebrado o contrato por correspondência.

(1ª) Teoria da informação do proponente

A teoria da informação do proponente sustenta que o contrato por correspondência deve ser considerado celebrado não no instante da aceitação da proposta, mas sim no momento em que a declaração de aceitação chega ao conhecimento do proponente.

A principal objeção a essa teoria é a de que o proponente, por má fé, poderia retardar o recebimento da notícia de aceitação da proposta e, assim, somente tomaria conhecimento dela depois de esgotado o prazo de validade da oferta.

(2ª) Teoria da recepção da aceitação pelo proponente

A teoria da recepção da aceitação pelo proponente tenta evitar a incerteza que vicia a teoria da informação do proponente. Nesta última, o proponente, além de receber a aceitação, precisa tomar conhecimento do teor dessa aceitação.

O que a teoria da recepção sustenta é que o contrato deve ser considerado celebrado tão logo o proponente receba a notícia de aceitação do destinatário da oferta. Pouco importa que o proponente tome ou não conhecimento da aceitação: basta que ele receba a correspondência expedida pelo aceitante para que o contrato esteja formado.

(3ª) Teoria da declaração da aceitação da proposta

A teoria da declaração da aceitação da proposta é, talvez, a mais infeliz entre todas. Esta teoria defende que o contrato deve ser considerado celebrado no momento em que o destinatário da proposta escreve sua declaração de aceitação. Salvo em casos muito específicos seria possível determinar com precisão o exato instante em que a declaração foi escrita. Ma maioria das vezes, é impossível identificar esse fato e, por isto, a teoria aqui referida caiu em franco desprestígio.

(4ª) Teoria da expedição da aceitação da proposta

A teoria da expedição defende a tese de que o contrato deve ser considerado celebrado no instante em que o destinatário da proposta expede sua correspondência comunicando ao proponente que aceitou a oferta.

A objeção que se apresenta a essa tese é a de que, em geral, é difícil produzir prova do momento exato em que a correspondência do aceitante foi expedida. Mesmo assim, esta foi a teoria adotada no Direito brasileiro (art. 127, do Código Comercial e art. 1.086, do CC). Entretanto, o Código Civil estabeleceu três exceções à aplicação da teoria da expedição da aceitação, a saber:

(a) retratação da aceitação (arts. 1.085 e 1.086, I, do CC)

O contrato não estará formado no momento de expedição da correspondência de aceitação da proposta se, antes de tal correspondência ou no máximo juntamente com ela, o aceitante comunicar ao proponente retratação da aceitação.

(b) recepção da notícia de aceitação  (art. 1.086, II, do CC)

O contrato também não estará celebrado no instante de expedição da correspondência de aceitação da proposta se, na formulação da proposta, o proponente houver especificado que a formalização do contrato somente ocorrerá no momento em que ele – proponente – receber a resposta do destinatário aceitante.

(c) recepção tardia da notícia de aceitação

Mesmo que o aceitante expeça sua correspondência de aceitação da proposta em prazo regular, a lei brasileira não considerará formalizado o contrato no momento da expedição de tal notícia se esta chegar tardiamente ao conhecimento do proponente. Assim, além de a aceitação precisar ser expedida dentro do prazo correto, deverá também chegar ao conhecimento do proponente dentro do mesmo prazo. Caso contrário, o proponente estará desobrigado de manter os termos da proposta.

(V) Lugar da celebração do contrato

Foi examinado que, em geral, três fases se verificam até que o contrato seja celebrado. Existe a fase das negociações preliminares ao contrato; depois passa-se à fase de apresentação da proposta contratual; e, finalmente, tem-se a fase de aceitação da proposta de contratação, ocasião em que o contrato é efetivamente celebrado.

Formado o contrato, dele decorrerão direitos e obrigações para as partes contratantes. Surge, então, o problema de se saber em que lugar o contrato foi celebrado.

Quando as partes contratantes indicam no contrato o lugar da celebração, a questão perde interesse. Mas quando não procedem assim, o problema precisa ser examinado. Isto porque é preciso determinar em que lugar poderão ser exigidos os direitos e obrigações das partes contratantes. É necessário, ainda, saber qual será a lei aplicável ao contrato, no caso de os contratantes terem diferentes domicílios e nacionalidades.

A lei brasileira apresenta regras gerais para solucionar essas questões decorrentes de contrato celebrado entre pessoas domiciliadas em países diversos, um deles sendo o Brasil. O art. 1.087, do CC, considera celebrado o contrato no lugar em que foi feita a proposta, salvo se as partes dispuserem diferentemente no próprio contrato. A Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) também traz disposições sobre a matéria (art. 9º, § 2º).

Quando o contrato tiver por objeto bens e as relações a eles concernentes, o art. 8º, caput, da LICC, manda aplicar ao contrato a lei do país em que os bens estiverem situados. Tratando-se de bens móveis que devam ser transportados de um país para outro, deve-se aplicar a lei do país em que estiver domiciliado o proprietário de tais bens (art. 8º, § 1º, LICC).

Por outro lado, para qualificar e reger as obrigações contratuais, o art. 9º, da LICC, manda aplicar a lei do país em que for constituído o contrato e, nesse sentido, o § 2º, do mesmo art. 9º, estabelece que a obrigação resultante de contrato considera-se constituída no lugar em que residir o proponente.

Por conseguinte, é muito importante indicar com clareza não só o lugar em que o contrato é celebrado, mas também qual a legislação a ele aplicável (se o contrato for celebrado entre pessoas domiciliadas em diferentes países). No caso específico dos contratos internacionais, é bom esclarecer desde logo que as partes, em geral, não podem, a seu bel prazer, “escolher” a legislação que quiserem.

A legislação aplicável ao contrato internacional precisa ter alguma conexão com o conteúdo do contrato ou com os contratantes. Assim, por exemplo, dois contratantes brasileiros não podem aplicar a legislação sueca ao contrato que celebraram no Brasil, a respeito de bens brasileiros e que deva ser completamente executado no Brasil. A legislação sueca poderia ser aplicada se: (a) algum desses brasileiros estivesse domiciliado na Suécia; (b) algum dos bens previstos no contrato viesse a ser transferido para a Suécia; (c) alguma das obrigações contratuais tivesse que ser executada na Suécia; ou (d) a proposta de contratação tivesse partido de pessoa residente (e não simplesmente domiciliada) na Suécia.

Além disso, não se admite, em geral, que os contratantes misturem legislações aplicáveis ao contrato. Por exemplo, não poderão regular certos direitos e obrigações de acordo com a lei sueca, outros direitos e obrigações de acordo com a lei brasileira, e ainda outros de acordo com a lei espanhola.

(VI) Contratos regulados pela legislação de proteção ao consumidor

É muito importante deixar bem esclarecido que a teoria geral dos contratos, no que concerne às fases de formação do contrato, não é inteiramente aplicável aos contratos regulados pela legislação disciplinadora das relações jurídicas de consumo.

O consumidor é considerado pela lei um sujeito vulnerável e que, portanto, não tem possibilidade de discutir livremente o conteúdo contratual com o fornecedor de bens no mercado de consumo. Por essa razão, a legislação consumerista é típica manifestação de intervenção estatal nas relações de consumo. Essa legislação tem por finalidade proteger o consumidor no mercado de consumo e, para esse fim, estabelece diversas regras jurídicas que, necessariamente, integram os contratos de consumo.

Especialmente no que se refere à oferta de bens de consumo a legislação do consumidor difere da sistemática tradicional. Todo e qualquer material publicitário ou de outra natureza divulgado pelo fornecedor, desde que contenha elementos essenciais do futuro contrato a ser celebrado com o consumidor, integrará o conteúdo contratual. Desse modo, tanto a responsabilidade civil pré-contratual como a contratual do fornecedor perante o consumidor terão bases diferentes da responsabilidade civil do proponente de contratos excluídos do regime de proteção ao consumidor.

O sistema contratual vigente no Direito do Consumidor será examinado separadamente, noutro seguimento deste curso. Para que se possa compreendê-lo bem, é indispensável conhecer toda a teoria geral do Direito Contratual e, também, os diversos contratos específicos existentes no Direito brasileiro. Com tal bagagem teórica, será possível contrastar o sistema contratual geral com o sistema contratual especial do Direito do Consumidor.

11. CLASSIFICAÇÃO GERAL DOS CONTRATOS

As ciências, quer as humanas, as biológicas ou as exatas, adotam o método de sistematizar o estudo de seus respectivos objetos e costumam estabelecer categorias nas quais incluem aqueles objetos. Esses sistemas e categorias, por sua vez, comportam divisões e subdivisões, nas quais são classificados os objetos de estudo científico. Tudo isto é feito com o propósito de facilitar o estudo científico.

De fato, agrupar objetos que têm a mesma natureza, ou que têm características ou funções semelhantes, separando-os de outros objetos diferentes, é processo de investigação que auxilia muito o estudo desses variados objetos. Consegue-se assim resolver muitos problemas práticos com menor esforço. Por exemplo, o ciclo biológico evolutivo de animais mamíferos tende a ser muito semelhante entre as espécies incluídas nessa classificação, de maneira que é possível prever as fases dessa evolução num novo animal mamífero que tenha sido recém descoberto.

O Direito esforça-se por sistematizar, categorizar, classificar e organizar, de acordo com traços de semelhança ou de diferenças, os diversos objetos que estuda. Com tal metodologia, torna-se mais fácil e mais lógico o estudo do Direito.

No caso específico dos contratos, é importante saber classificá-los, pois as diversas espécies contratuais produzem efeitos jurídicos muito semelhantes conforme a categoria ou a classe em que sejam incluídas. A resolução de controvérsias práticas torna-se mais fácil.

Por exemplo, duas pessoas controvertem sobre se ocorreu ou não a celebração de um contrato de depósito. Um sujeito parou seu carro na calçada, em frente a um estacionamento onde iria deixar o veículo. O carro ainda não estava, nem mesmo em parte, dentro do terreno do estacionamento, pois havia outros veículos à sua frente. O motorista desce de seu carro, deixando a chave no contato. Dirige-se à cabine do estacionamento e lá manifesta sua intenção de estacionar o carro (ou seja, de depositar seu veículo). O funcionário diz que aceita o depósito, mas pede que o cliente aguarde sua vez na fila. A seguir, alguém furta o automóvel do cliente. Quem suportará o prejuízo do furto do veículo: o estacionamento ou o proprietário? Houve mesmo o contrato de depósito? Depositante e depositário manifestaram suas respectivas vontades de celebrar o contrato, mas ele chegou a se formalizar? A resposta a estas indagações dependerá da classificação que se fizer do contrato de depósito. Se tal contrato for considerado consensual (ou seja, contrato que se forma com a declaração de vontade de cada contratante), ter-se-á que admitir que o contrato foi celebrado, já que as partes declararam suas vontades de formar o contrato de depósito. Nesse caso, o depositário (estacionamento), terá que indenizar o cliente depositante. Todavia, no Direito brasileiro o depósito é um contrato real e, por conseguinte, não bastam as declarações de vontade dos contratantes para que o contrato se forme. Nos contratos reais, além das vontades das partes, exige-se que o objeto do contrato seja transferido de um contratante para o outro. Assim, o cliente teria que entregar seu carro ao estacionamento para que o contrato de depósito fosse considerado celebrado. Como esse fato da entrega não ocorreu, o depósito não se formou. O cliente suportará sozinho o prejuízo pelo furto de seu veículo.

Vê-se, então, que é importante classificar corretamente um contrato, pois suas consequências jurídicas dependerão dessa classificação.

A classificação dos contratos pode ser feita a partir de critérios muito variados. Na verdade, não há classificações rígidas e cada autor pode organizar classificações próprias. O que parece importante ressaltar é que as diversas classificações podem ser combinadas entre si. Um mesmo contrato pode ser classificado, simultaneamente, como bilateral, aleatório, oneroso, consensual, de execução continuada, típico, de adesão, comercial e principal.

Postas essas considerações preliminares, pode-se começar a indicar as principais classificações dos contratos, sem a pretensão de apresentar lista exaustiva dessas classificações.

Os contratos podem ser classificados, em geral, como:

•    contratos típicos, atípicos ou mistos;

•    contratos consensuais ou reais;

•    contratos formais ou informais;

•    contratos onerosos ou gratuitos;

•    contratos unilaterais, bilaterais ou plurilaterais;

•    contratos comutativos (sinalagmáticos) ou aleatórios;

•    contratos de execução imediata, diferida no tempo ou sucessiva;

•    contratos individuais ou coletivos;

•    contratos principais ou acessórios;

•    contratos de adesão ou paritários.

Pode-se agora examinar essas diferentes classificações.

11.1. CONTRATOS TÍPICOS OU ATÍPICOS

O Direito romano conhecia contratos nominados e contratos inominados.

Os contratos nominados eram designados por nomes específicos e tinham a sua esquematização geral definida em lei. Esses contratos estavam associados a ações específicas que protegiam os contratantes.

Por outro lado, os contratos inominados não tinham nomes específicos. Eram designados pacta e os contratantes não dispunham de ações para a proteção de seus interesses contratuais. Além disto, os contratos inominados não tinham características gerais previstas em lei.

O direito moderno, embora ainda admita a divisão dos contratos em nominados e inominados, atribui a essa divisão outro significado muito diferente daquele que existia em Direito romano. Atualmente, sabe-se que não é o nome atribuído ao contrato que definirá sua natureza jurídica. A natureza jurídica do contrato é definida tendo-se em vista os elementos essenciais que tal contrato apresenta e não com base na sua denominação.

Assim, a título de exemplo, suponha-se que um sujeito, por meio de contrato, adquira o direito de usar temporariamente certo bem, para finalidade específica, mediante pagamento periódico de certa quantia ao dono daquele bem. Suponha-se, ainda, que esses dois contratantes tenham denominado este contrato de “compra e venda de bem”. Ora, apesar do título do contrato – compra e venda – é evidente que não trata efetivamente de compra e venda. O contrato celebrado entre esses dois sujeitos é um contrato de locação, pois estão presentes todos os requisitos essenciais de um contrato de locação.

Exatamente porque o nome não define a natureza jurídica do contrato, o direito moderno substituiu os contratos nominados e inominados pelos contratos típicos, atípicos e mistos.

(I) Contratos típicos

Contratos típicos são aqueles previstos em lei e cujas características genéricas são também definidas em lei. Ao celebrarem um contrato típico, os contratantes implicitamente adotam todas as normas legais disciplinadoras daquele contrato, a não ser que tais normas, quando possível, sejam expressamente afastadas pelos contratantes. Trata-se, assim, de um tipo, um padrão, de contrato.

São contratos típicos, por exemplo, a compra e venda, a locação, o mútuo, a hipoteca, a locação, o penhor, a alienação fiduciária, o comodato, o mandato, a gestão de negócios, a doação.

(II) Contratos atípicos

Contratos atípicos são aqueles que não se enquadram nos tipos definidos em lei, mas que também não são proibidos pelo ordenamento jurídico. Por isto mesmo, sua estruturação, conteúdo e cláusulas são elementos definidos pelas próprias partes.

São exemplos de contratos atípicos o factoring, o franchising, a abertura de crédito bancário, o outsourcing, os negócios fiduciários.

(III) Contratos mistos

Contratos mistos são os que resultam da combinação de contratos típicos e contratos atípicos, a fim de que as partes consigam alcançar o resultado contratual que desejam.

11.2. CONTRATOS CONSENSUAIS E CONTRATOS REAIS

A classificação dos contratos em consensuais ou reais tem em vista o aspecto da constituição do contrato, à sua formação. Os principais traços desses contratos já foram comentados anteriormente.

(I) Contratos consensuais

Contratos consensuais são os que se formam apenas com as declarações de vontades das partes, coordenadas entre si e com a lei, sem outras exigências. Basta que cada contratante declare sua vontade lícita de contratar e o contrato já estará celebrado. Esta é a regra geral no direito atual.

Mesmo que as partes, voluntariamente, adotem formalidades especiais para a celebração do contrato, isto não retira o caráter consensualista da contratação (art. 133, do CC). Assim, por exemplo, se um sujeito desejar comprar a bicicleta de seu vizinho e efetivamente realiza esta compra, tem-se um contrato de compra e venda, que é consensual porque o comprador declarou sua vontade de comprar aquele objeto, pelo preço previsto, e o vendedor declarou sua vontade de vender o mesmo bem, naquelas condições. Se, por hipótese, as partes quisessem realizar esse mesmo contrato mediante um documento escrito, por elas assinado, com testemunhas, ou ainda perante um notário público, nem por isto o contrato deixou de ser consensual.

São contratos consensuais, por exemplo, a compra e venda, a doação, a locação, o mandato, a representação comercial.

(II) Contratos reais

Contratos reais são aqueles em que se exige, além das declarações de vontades dos contratantes, também a transferência efetiva do bem objeto do contrato de uma parte para a outra. A transferência do objeto do contrato de um contratante para o outro não é, portanto, mera fase executória de tal contrato. Essa transferência é um dos elementos essenciais para a formação do contrato real.

Nota-se, então, que para formar o contrato real não é suficiente que cada contratante declare sua vontade de contratar. É necessário que um dos contratantes transfira para o outro o próprio objeto da contratação.

Há autores que negam a existência dessa categoria contratual. Todavia, a lei a prevê e, assim, não se pode desconhecê-la.

São exemplos de contratos reais o comodato, o mútuo, o depósito, o penhor, a alienação fiduciária em garantia.

11.3. CONTRATOS FORMAIS OU INFORMAIS

Já foi dito anteriormente que o Direito brasileiro consagra o princípio da liberdade de forma como regra geral para a prática dos atos jurídicos. Somente quando a lei exigir forma especial é que esta deverá ser observada. Assim, por princípio, os contratantes podem celebrar o contrato com a adoção da forma que quiserem, desde que não seja vedada pela lei ou não seja exigida pela norma jurídica forma especial.

(I) Contratos formais ou solenes

Contratos formais ou solenes são aqueles para os quais a lei exige a adoção de certa forma, ou de solenidade, para ou para integrar as declarações de vontade dos contratantes.

As partes têm que declarar suas vontades pela forma especificada pela lei. Assim, por exemplo, a lei pode exigir que o contrato seja celebrado por meio de escritura pública, ou por escritura particular com características específicas. É o que ocorre com o pacto antenupcial, para o qual a lei exige forma pública, ou para os contratos de transmissão de domínio de bens imóveis com valor superior à taxa legal, em que também se exige escritura pública. Noutras situações, a lei permite a adoção de forma particular, mas exige, por exemplo, o reconhecimento das assinaturas, a subscrição do documento contratual por testemunhas, ou um modelo ou formulário padronizado.

Não se deve confundir forma com solenidade do ato. A forma do ato é o modo pelo qual se reveste, ou se exterioriza, a vontade contratual de cada contratante. A solenidade é um conjunto de procedimentos que deve ser observado para complementar a vontade contratual já declarada pelas partes, quer tal vontade tenha sido exteriorizada por forma pública ou não.

Por exemplo, duas pessoas podem celebrar um contrato de compra e venda de um imóvel em papel comum, até mesmo manuscrito pelas partes. Este contrato é mesmo um contrato de compra e venda. Todavia, o comprador não conseguirá transferir o imóvel para seu nome, perante o Cartório de Registro de Imóveis, porque, para esse fim, a lei exige documento de natureza pública (escritura pública, sentença judicial, etc.). Logo, as vontades de vender e de comprar o imóvel precisam ser exteriorizadas por meio de escritura pública, sob pena de não ser possível realizar a transferência do bem para o comprador. A escritura pública, então, é a forma exigida pela lei para que o contrato em tela seja suscetível de registro imobiliário.

Mas, mesmo que as partes, no exemplo acima, realizem o contrato de compra e venda com a adoção da forma pública, deverão ainda observar as solenidades que a lei exige para o ato. A escritura pública deverá ser lida em voz alta pelo tabelião, na presença dos contratantes ou de seus representantes legais. As assinaturas das partes deverão ser lançadas após a leitura da escritura, na presença do notário público, que as conferirá à vista de documentos oficiais de identificação dos contratantes. A falta de observância dessas solenidades viciará o ato contratual.

A lei exige a forma ou a solenidade por razões variadas. Em certos casos, essas exigências são feitas porque a lei considera a forma ou a solenidade como elementos essenciais à formação do ato jurídico contratual, de maneira que, desrespeitada a forma ou a solenidade, o contrato não terá existência, nem chegará a se constituir (ou seja, será um ato juridicamente inexistente). Noutros casos, embora a lei não considere a forma ou a solenidade como elemento essencial de formação do contrato, exige que tal forma ou solenidade seja observada para que o ato tenha validade jurídica. Ainda noutros casos, a lei exige certa forma para que o contrato seja provado.

Em resumo, a lei exige a adoção de certa forma ou a observância de determinada solenidade para fins de existência, validade ou de prova do ato jurídico contratual.

(II) Contratos informais

Contratos informais são aqueles para os quais a lei não exige a adoção de certa forma, nem requer a observância de determinada solenidade, permitindo que os contratantes os celebrem pela forma que quiserem, desde que não seja proibida pela lei.

11.4. CONTRATOS ONEROSOS OU GRATUITOS

Ao celebrarem um contrato, o normal é que cada contratante procure obter vantagens para si. Assim, em geral a vontade de contratar envolve direitos e obrigações para cada contratante. Mas pode acontecer que, num determinado contrato, apenas uma das partes obtenha vantagens, enquanto que a outra parte somente suporte obrigações. Por isto, os contratos podem ser classificados em onerosos ou gratuitos.

(I) Contratos onerosos

Contratos onerosos são aqueles em que, para auferir benefícios e direitos decorrentes do contrato, o contratante deve suportar sacrifícios ou obrigações em face das demais partes contratantes.

O contrato oneroso é aquele em que a parte precisa suportar um ônus, ou mesmo uma obrigação, para poder obter a vantagem contratual que lhe interessa.

Por exemplo, o pai doa ao filho determinado imóvel, mas impõe sobre o bem o ônus de usufruto vitalício em favor do doador. Foi assim celebrado um contrato de doação. O pai, que é o doador, tem a obrigação de entregar o imóvel ao filho, que é o donatário. O doador não tem direito de exigir do donatário qualquer contraprestação. Por outro lado, o donatário obtém uma vantagem decorrente do contrato de doação, pois torna-se o novo proprietário do imóvel. No entanto, para que o donatário aufira a vantagem de tal contrato, tem que suportar o ônus representado pelo usufruto reservado para o pai doador.

Mais um exemplo. Um sujeito (mutuante) empresta para outro (mutuário), por certo período, bem fungível (por exemplo, dinheiro), que deverá ser restituído pelo mutuário ao mutuante acrescido de juros. O mútuo é um contrato real e, assim, o ato do mutuante de entregar o dinheiro ao mutuário não é ato de execução do contrato, mas sim ato de formação do contrato. O mutuante não tem obrigação nenhuma decorrente do contrato de mútuo. Só tem direito de exigir do mutuário o pagamento do dinheiro e dos juros. O mutuário, por sua vez, não tem direito algum em face do mutuante. Tem só obrigações. Se o mutuário quiser obter a vantagem contratual de ter o dinheiro emprestado, terá que suportar o ônus de pagar os juros convencionados com seu credor.

Se os direitos de uma parte são proporcionais às suas obrigações perante os demais contratantes, diz-se que o contrato é sinalagmático.

Veja-se um exemplo. Certa pessoa deseja vender seu carro, avaliado em R$ 10.000,00. Outro sujeito deseja comprar o mesmo carro e, assim, as partes celebram um contrato de compra e venda daquele bem, porém pelo valor de R$ 9.000,00. O vendedor tem a obrigação de entregar o carro para o comprador, mas este, em contrapartida, tem a obrigação de pagar o preço convencionado. O direito do comprador  de receber o carro é equivalente à sua obrigação de pagar o preço. De outro lado, o direito do vendedor de receber o preço é correspondente à sua obrigação de dar o automóvel para o comprador. Tem-se aí um contrato oneroso e sinalagmático, porque as prestações devidas por uma parte à outra são equivalentes. Entretanto, se o carro viesse a ser vendido, por exemplo, por apenas R$ 2.000,00, o contrato continuaria sendo oneroso, porque cada parte tem direitos e obrigações dele decorrentes, porém não seria mais um contrato sinalagmático, pois as prestações devidas por cada parte deixaram de ser equivalentes.

(II) Contratos gratuitos

Contratos gratuitos, também denominados contratos benéficos, são aqueles em que apenas uma das partes aufere benefícios, sem contudo dever qualquer contraprestação à outra parte.

Um dos contratantes, por força do contrato, tem que cumprir uma obrigação em face do outro contratante, porém este último nada deve àquele primeiro contratante. Quem deve a obrigação, ao pagá-la, ficará empobrecido e nada receberá em troca. Quem recebe a obrigação enriquece e, apesar disso, nada tem que pagar ao outro contratante.

É o que ocorre, por exemplo, com o contrato de doação simples. O doador tem a obrigação de transferir o bem doado para o donatário. O bem é retirado do patrimônio do doador (que, portanto, diminui) e ingressa no patrimônio do donatário (que aumenta). Não foi imposto nenhum ônus a ser suportado pelo donatário e, por isto, essa doação é um contrato gratuito.

Outro exemplo é o contrato de mútuo simples. Por meio dele, um sujeito (mutuante) empresta bem fungível (dinheiro, por exemplo) a outro sujeito (mutuário), que assume a obrigação de restituir ao mutuante o bem fungível emprestado ou outro equivalente. Não foram convencionados juros para o capital emprestado. O mutuante não tem obrigação alguma. Tem só o direito de exigir a restituição do bem emprestado. Por outro lado, o mutuário não tem direito nenhum em face do mutuante. Tem apenas a obrigação de devolver o objeto do empréstimo. Como o mutuante não cobrou juros pelo empréstimo, não teve nenhuma vantagem decorrente do contrato. O único beneficiado por essa contratação foi o mutuário. Por essa razão, esse mútuo simples é um contrato gratuito.

É importante esclarecer que os contratos gratuitos ou benéficos devem ser interpretados restritivamente (art. 1.090, do CC), porque sempre representam um empobrecimento de uma das partes sem direito a contraprestação.

Nos casos de fraude contra credores, o contrato gratuito que vier a ser anulado envolve tratamento punitivo menos severo para o sujeito que foi por ele beneficiado sem conhecer a fraude (arts. 106 e 107, do CC).

11.5. CONTRATOS UNILATERAIS, BILATERAIS E MULTILATERAIS

A classificação dos contratos em unilaterais, bilaterais e multilaterais leva em consideração:

(a) tanto o aspecto da formação do contrato;

(b) como os efeitos do contrato.

Noutros termos, a classificação tem em vista o número de vontades necessárias para a formação do contrato, bem como o número de contratantes em relação aos quais o contrato produzirá efeitos.

Todo contrato, para se formar, exige a presença de pelo menos duas partes que declarem suas respectivas vontades de contratar. Por isto, no que concerne à formação, todo contrato é no mínimo bilateral. Se houver mais de duas partes contratantes, o contrato é denominado multilateral (por exemplo, trilateral, quadrilateral, etc.).

No que atine aos efeitos do contrato, eles podem ser unilaterais, bilaterais ou multilaterais.

(I) Contratos unilaterais

Contrato unilaterais são aqueles em que uma das partes só tem obrigações, ou só tem direitos, em face da outra parte contratante. A unilateralidade de efeitos se caracteriza pelo fato de que, para um dos contratantes:

(a) ou só há efeitos passivos, isto é, obrigações, não tendo ele direito algum em face do outro contratante; ou

(b) só há efeitos ativos, vale dizer, direitos, desse contratante considerado diante do outro contratante, direitos, inexistindo qualquer obrigação do primeiro contratante em face deste último.

Para averiguar se um contrato é unilateral nos seus efeitos, deve-se analisar a situação individual de cada um dos contratantes. Se o contratante tiver só obrigações, ou só direitos, o contrato será unilateral no que se refere àquele contratante considerado em face da outra parte contratante. Ao contrário, se o mesmo indivíduo tiver, em decorrência do contrato – simultaneamente – direitos e obrigações diante do outro contratante (que por sua vez, igualmente terá direito e obrigações), então o contrato será bilateral nos seus efeitos.

Ma maioria das vezes, todo contrato gratuito é também contrato unilateral, mas a coincidência não é absoluta. Há casos em que o contrato é oneroso e unilateral, tal como foi demonstrado acima com o exemplo do contrato de doação entre pai e filho com reserva de usufruto para o pai. Nesse exemplo, só o pai tem obrigação e, assim, o contrato é unilateral nos seus efeitos obrigacionais. O filho donatário só tem direito (unilateralidade de efeitos ativos) de exigir a entrega do bem doado, mas, ao mesmo tempo, tem que suportar o ônus do usufruto. Esse respeito ao direito de usufruto do pai sobre o imóvel não é, para o filho donatário, uma obrigação, mas verdadeira restrição de direito, pois ele recebeu a propriedade do bem doado despojada dos poderes de usar e de fruir (porque esses poderes compõem o direito de usufruto).

Também no caso do mútuo simples de dinheiro (isto é, não sujeito a juros) tem-se, simultaneamente, um contrato gratuito, porque só o mutuário tem vantagem com a contratação, e também unilateral, já que apenas o mutuário tem obrigação. O mutuante só tem direito de exigir o pagamento do bem emprestado e não tem qualquer obrigação diante do mutuário.

Mais um exemplo. Um sujeito é devedor de certa obrigação perante outro. Para garantir o cumprimento dessa obrigação, o devedor celebra com o credor um outro contrato, a saber, o contrato de hipoteca. O bem hipotecado continua integrado ao patrimônio do devedor que, portanto, não fica mais pobre por ter celebrado este contrato de garantia. Os efeitos do contrato de hipoteca recaem apenas sobre o devedor, que deve suportar a restrição de seu direito sobre o bem e, se deixar de pagar a dívida, terá ainda que suportar a execução hipotecária. Trata-se de um contrato unilateral no que concerne aos seus efeitos, porque em decorrência dele somente o devedor tem obrigação e somente o credor tem direito de garantia. Mas não é um contrato gratuito, porque a finalidade típica do contrato de hipoteca é a de impor um ônus sobre o bem hipotecado, de modo a garantir o cumprimento de outra obrigação que atribuiu vantagem ao devedor.

(II) Contratos bilaterais

Contratos bilaterais nos seus efeitos são aqueles em que cada uma das partes é, simultaneamente, titular de direitos e de obrigações contratuais em face da outra.

Nos contratos de efeitos bilaterais, cada parte tem direitos e obrigações em face da outra parte. O mesmo sujeito está exposto aos efeitos passivos (obrigações) e aos efeitos ativos (direitos) decorrentes do contrato que celebrou. Esta situação acontece com cada parte contratante e, por isto, diz-se que os efeitos do contrato são bilaterais. Por esta razão, todo contrato bilateral é também um contrato oneroso, já que cada parte, para obter a vantagem de seu direito, tem simultaneamente que cumprir sua obrigação.

Alguns exemplos auxiliarão no entendimento do conceito.

Tome-se, inicialmente, um contrato de locação de imóvel. O locatário adquire por meio desse contrato o direito de usar temporariamente o bem para a finalidade convencionada. No entanto, por força do mesmo contrato, o locatário tem a obrigação de pagar o aluguel especificado no contrato. Verifica-se, assim, que em relação ao locatário os efeitos do contrato são bilaterais: criam direitos e obrigações para ele. Por outro lado, em decorrência do contrato de locação, o locador tem o direito de exigir do inquilino o pagamento do aluguel mas, simultaneamente, o locador tem a obrigação de permitir que o locatário use normalmente o imóvel para o fim convencionado. Nota-se, por conseguinte, que também em relação ao locador os efeitos do contrato são bilaterais: ele tem direitos e obrigações em face do locatário.

Imagine-se, agora, um contrato de prestação de serviços, por exemplo, o de serviços de encanador. O tomador dos serviços contratou o encanador para reparar o vazamento de um cano. Tem assim o direito de exigir do encanador a execução dos serviços necessários para eliminar o vazamento do cano. Simultaneamente, o tomador dos serviços tem a obrigação de pagar o preço convencionado com o encanador para a realização do conserto. Logo, os efeitos do contrato são bilaterais para o tomador dos serviços, porque ele tem direito e obrigações em face do encanador. De outra parte, por força do contrato mencionado, o encanador tem a obrigação de consertar o vazamento do cano e tem, também, direito de exigir o pagamento do preço convencionado para a prestação de seus serviços.

(III) Contratos multilaterais

Contratos multilaterais são aqueles em que cada parte contratante tem, simultaneamente, direitos e obrigações em face de mais de uma outra parte contratante.

Na verdade, os contratos multilaterais são uma variação dos contratos bilaterais. Neste último, examina-se a produção de efeitos ativos e passivos de um contratante em face de outro. Nos contratos bilaterais há, portanto, apenas duas partes contratante. Já nos contratos multilaterais analisa-se os efeitos ativos e passivos de um contratante em face de pelo menos mais dois outros contratantes. Por exemplo, se duas pessoas, cada uma delas representando uma parte no contrato, compram um imóvel de outra pessoa, tem-se duas partes compradoras e uma parte vendedora. Cada um dos compradores tem direitos e obrigações perante o vendedor e este, por seu turno, também tem direitos e obrigações diante de cada parte compradora. O contrato produz efeitos bilaterais para cada parte, pois todas têm direitos e obrigações, mas tais efeitos são examinados tendo-se em consideração uma parte diante das outras duas.

(IV) Efeitos importantes dos contratos bilaterais

A classificação dos contratos em unilaterais ou bilaterais tem enorme importância prática. O tratamento jurídico de cada um desses contratos é bem diferente na vida prática. Sendo assim, cabe examinar aqui pelo menos alguns dos aspectos muito relevantes a respeito dos contratos bilaterais.

(A) Princípio da força obrigatória dos contratos – pacta sunt servanda

Quando foram examinados os princípios jurídicos que regem o Direito contratual, foi esclarecido que desde época muito pretérita no Direito romano vigora o princípio pacta sunt servanda, modernamente denominado princípio da obrigatoriedade dos contratos. O contrato faz lei entre as partes contratantes.

No âmbito dos contratos bilaterais o princípio da obrigatoriedade dos contratos tem particular relevância. É que, num contrato unilateral, um contratante tem apenas direitos ou obrigações diante do outro contratante. Ora, que tem obrigação diante de alguém, somente de liberará de tal obrigação pagando-a (como regra geral). Quem tem apenas direitos em face do outro contratante, pode perfeitamente renunciar a esse direito, pondo fim ao contrato. Não é isto o que ocorre num contrato bilateral.

No contrato bilateral cada uma das partes tem, em face da outra, direitos e obrigações. Mesmo que uma das partes queira renunciar ao seu direito, nem por isto estará livre de cumprir sua obrigação diante do outro contratante. Por conseguinte, nos contratos bilaterais, cada parte só poderá deixar de cumprir suas obrigações com a concordância da outra e, assim, a renúncia de uma parte ao seu direito não a desobriga perante a parte contrária e nem põe fim ao contrato.

(B) Exceção de contrato não cumprido – exceptio non adimplenti contractus

(a) Generalidades sobre a exceção

Desde os tempos mais remotos do Direito romano se conhece o princípio da exceptio non adimplenti contractus, conhecido atualmente como princípio da exceção de contrato não cumprido.

Primeiramente, há que se lembrar que, na técnica jurídica do Direito romano, a existência de um direito era definida pelo fato de existir uma ação judicial capaz de proteger aquele direito. Assim, em geral, se não existia uma ação para a defesa de certo direito, era como se esse direito também não existisse. Ao longo dos tempos essa situação foi se modificando, especialmente em decorrência da atividade pretoriana. O pretor, respeitados certos pressupostos, podia criar uma ação judicial que ainda não existisse para, com isto, assegurar proteção a determinado direito. Pois bem. Nas discussões judiciais, os litigantes podiam usar diversos mecanismos de defesa e as exceções ((exceptio) eram uma das categorias de defesa então conhecidas.

A exceção, mesmo hoje em dia, tem a característica de ser uma defesa processual, o que quer dizer que é um tipo de defesa apresentada numa discussão processual. Todavia, em certas circunstâncias, aceita-se a exceção mesmo antes de instaurado o processo, sempre que se mostrar inequívoco o litígio entre as partes.

(b) Conceito da exceção de contrato não cumprido

Como foi visto anteriormente, no contrato bilateral cada um dos contratantes tem direitos e obrigações em face do outro contratante. Quando um desses contratantes não cumprir sua obrigação em face do outro, ou quando der sinais evidentes de que não cumprirá ou de que não poderá cumprir a obrigação contratual que tem, a parte credora dessa obrigação é autorizada, pela lei, a também não cumprir sua própria obrigação diante do outro contratante inadimplente enquanto este último: (1) não cumprir a obrigação que tem; ou (2) não der garantia suficiente de que cumprirá sua obrigação.

Veja-se um exemplo comum. Um sujeito (empreiteiro) é contratado por outro sujeito (dono da obra), para construir um imóvel residencial. As partes estabeleceram um preço global para os serviços, que seria pago em parcelas conforme determinadas etapas da obra fossem sendo . O empreiteiro tem a obrigação de construir o imóvel e tem o direito de receber o pagamento por seus serviços. O dono da obra tem o direito de exigir a construção do imóvel e tem a obrigação de pagar o preço combinado para cada etapa da obra. Trata-se de um contrato de efeitos bilaterais. Se o empreiteiro deixar de dar normal andamento às obras, não poderá exigir o pagamento do preço de seus serviços. No entanto, se em tais circunstâncias o empreiteiro vier a cobrar o preço, o dono da obra poderá invocar a exceptio non adimplenti contractus e, assim, não cumprirá sua obrigação de pagar o preço enquanto o empreiteiro não cumprir sua obrigação de construir, ou não apresentar ao dono da obra garantia idônea de que poderá efetivamente concluir os serviços de construção.

Pode-se analisar o mesmo contrato agora do ponto de vista do empreiteiro. Suponha-se que ele esteja cumprindo regularmente sua obrigação de construir, conforme as etapas previstas no contrato. Todavia, o dono da obra não faz os pagamentos devidos, ou dá sinais de que não poderá cumprir essa obrigação de pagar o preço. Ora, nesse contexto, o empreiteiro poderá legitimamente se negar a dar continuidade aos serviços, valendo-se da exceção de contrato não cumprido. Portanto, o dono da obra somente poderá cobrar os serviços devidos pelo empreiteiro depois que o mesmo dono da obra efetuar os pagamentos que deve àquele, ou depois de apresentar-lhe garantia idônea de que poderá pagar o preço dos serviços contratados.

Exceção de contrato não cumprido é, por conseguinte, a autorização legal dada a um contratante de contrato bilateral para que se recuse a cumprir sua obrigação enquanto o outro contratante, que se encontra em mora ou que dá sinais evidentes de que se tornará inadimplente, não cumprir sua própria obrigação contratual ou não der garantia suficiente para esse fim.

No Direito brasileiro, a norma básica e geral sobre a exceção de contrato não cumprido está no art. 1.092, do CC, que assim se lê:

“Art. 1.092. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contraentes, antes de cumprida sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.

Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio, capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a parte, a quem incumbe fazer a prestação em primeiro lugar, recusar-se a esta, até que a outra satisfaça a que lhe compete, ou de garantia bastante de satisfazê-la.

Parágrafo único. A parte lesada pelo inadimplemento pode requerer a rescisão do contrato com perdas e danos.

( c ) Requisitos para a aplicação da exceção de contrato não cumprido

A leitura do art. 1.092, do CC, indica claramente os requisitos essenciais para a aplicação da exceção de contrato não cumprido, a saber:

(1º) contrato bilateral

A exceção de contrato não cumprido só tem cabimento nos contratos bilaterais porque, nestes, cada contratante é, simultaneamente, credor e devedor do outro, em decorrência do mesmo contrato.

(2º) mora do contratante, diminuição patrimonial ou risco de inadimplência

A parte contratante, a quem incumbe o dever de cumprir sua obrigação em primeiro lugar, há de estar inadimplente. Entenda-se aí inadimplência relativa (mora), pois a prestação ainda poderá ser paga ao credor. Por essa razão, a outra parte contratante, que ainda não cumpriu sua própria obrigação, está autorizada a recusar-se a cumpri-la enquanto a parte inadimplente não eliminar tal inadimplência ou não garantir o cumprimento da obrigação atrasada.

A primeira parte do art. 1.092, do CC, exige o requisito da inadimplência (na verdade, da mora) já caracterizada. Entretanto, a segunda parte do art. 1.092 cogita também da mora potencial. A mora potencial se caracteriza pelo fato de que o devedor ainda não deixou de pagar o que deve, porém sofreu tal diminuição no seu patrimônio que tornou impossível ou muito duvidoso o cumprimento da mesma obrigação.

Sabe-se que o credor é, na verdade, credor do comportamento do devedor (de dar, fazer ou não fazer algo) que, se cumprido, colocará à disposição do credor o bem objeto da relação obrigacional. Se o devedor não cumprir o comportamento prometido, o credor poderá exigi-lo coercitivamente, extraindo do patrimônio do devedor os recursos necessários à satisfação do credor. Por conseguinte, a garantia do credor é o patrimônio do devedor, patrimônio este que haverá de fornecer ao credor os meios necessários à satisfação de seu crédito. Sabe-se, também, que é possível que um terceiro torne-se garantidor de obrigação alheia, de modo que, além do patrimônio do devedor, o credor pode ainda atacar o patrimônio do terceiro garantidor, a fim de satisfazer o crédito cobrado.

Assim, mesmo que o contratante ainda não esteja inadimplente, a alegação da exceção de contrato não cumprido será pertinente se as circunstâncias do caso evidenciarem que aquele contratante sofreu diminuição em seu patrimônio, capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou. Noutras palavras, a mora potencial de um dos contratantes autoriza o outro a invocar a exceptio non adimplenti contractus. Nessas circunstâncias, o contratante que teria que cumprir sua obrigação em primeiro lugar poderá deixar de cumpri-la e, ainda, poderá exigir do outro contratante que está em mora potencial a apresentação de garantia idônea de que cumprirá sua obrigação, eliminando, então, o risco de mora.

(d) Consequências da exceptio non adimplenti contractus

Invocada a exceção de contrato não cumprido por um dos contratantes, ele evita de ser constituído em mora pelo outro contratante que deu causa à aplicação de tal exceção.

Por outro lado, o contratante contra o qual foi alegada a exceptio non adimplenti contractus poderá dar causa à dissolução do contrato por sua culpa (rescisão contratual) se: (a) não purgar sua mora; (b) não apresentar garantia patrimonial suficiente para eliminar o risco de seu inadimplemento. Se o contrato vier a ser rescindido por culpa do contratante referido, terá ele que responder ainda, perante o outro contratante, pelos prejuízos a este causados e, nesse caso, trata-se de responsabilidade civil contratual.

11.6. CONTRATOS COMUTATIVOS (SINALAGMÁTICOS) OU ALEATÓRIOS

Os contratos comutativos e os aleatórios são, na verdade, variações dos contratos bilaterais. Quer nos contratos comutativos como nos aleatórios cada uma das partes têm, simultaneamente, direitos e obrigações em face da parte contrária.

(I) Contratos comutativos

Contratos comutativos são aqueles em que cada parte tem, simultaneamente, direitos e obrigações em face da outra parte, guardando cada prestação uma relação de proporcionalidade com a prestação devida pelo outro contratante.

O traço característico dos contratos comutativos não é a igualdade de valor das prestações que cada parte deve. O que se exige é que a prestação devida por uma parte seja proporcional à prestação devida pela outra parte.

Por exemplo, se alguém deseja vender seu veículo por R$ 10.000,00, porque o automóvel vale mesmo esta quantia, isto não quer dizer que o comprador tenha que pagar, necessariamente, R$ 10.000,00 pelo carro. A compra pode ser feita por R$ 5.000,00, por R$ 9.000,00 ou por R$ 12.000,00. O que importa é que a prestação devida por um dos contratantes seja mais ou menos equivalente à prestação devida pelo outro.

Quanto maior for a equivalência entre as prestações devidas por uma parte à outra, mais fica caracterizado o sinalagma, ou seja, a perfeita relação de correspondência entre tais prestações. Por isto, nessas circunstâncias, o contrato é denominado sinalagmático.

Contrato sinalagmático, portanto, é aquele em que ocorre perfeita relação de correspondência e equivalência entre as prestações devidas por uma parte à outra.

Imagine-se que um sujeito (comprador), deseja adquirir um imóvel em construção e, assim, contrata com uma construtora (vendedora) a compra do imóvel que esta irá construir. O preço do imóvel será o preço de custo da construção, mais um percentual de 10% sobre o custo total da obra, referente aos honorários de administração da construção pela construtora. Neste exemplo, tem-se um contrato sinalagmático, pois o preço que o comprador pagará pelo imóvel é exatamente o preço de construção de tal imóvel. Além disso, a taxa de administração é proporcional ao custo dos serviços de administração prestados pela construtora.

(II) Contratos aleatórios

Contratos aleatórios são aqueles em que uma das partes tem em face da outra um risco referente à prestação contratual prevista, de modo que a parte credora de tal prestação corre o risco de não recebê-la, ou de receber menos do que esperava,  embora este último contratante, por sua vez, tenha que cumprir normalmente sua obrigação contratual (arts. 1.118 e 1.119, do CC).

Trata-se, enfim, de contrato em que a prestação de um dos contratantes somente será devida em função de um fato futuro e incerto (condição), de maneira que tal prestação não é completamente conhecida, mas apenas estimada. A parte credora dessa prestação condicional corre o risco de nada receber. Apesar disto, esse credor, por outro lado, é devedor de uma obrigação contratual líquida e certa em face do outro contratante.

Em síntese, no contrato aleatório, a prestação devida por uma das partes é incerta e ilíquida, ao passo que a prestação devida pela outra parte é líquida e certa. Um dos contratantes deve cumprir sua obrigação normalmente. O outro contratante, cuja prestação é incerta e ilíquida, talvez nada tenha que pagar ao seu credor contratual.

Esta situação em que se encontram os contratantes (prestação líquida e certa para um, e prestação incerta e ilíquida para outro) rompe o equilíbrio entre as prestações, desmantela a comutatividade entre essas prestações, elimina a proporcionalidade entre as prestações.

O elemento essencial dos contratos aleatórios é o risco que uma das partes corre de nada receber do outro contratante. Uma das prestações é aleatória, pois nenhum dos contratantes sabe se tal prestação será ou não devida, já que ela depende de um acontecimento futuro e incerto. A outra prestação, ao contrário, é líquida e certa: seu devedor terá que pagá-la ao outro contratante, mesmo correndo o risco de não receber a mencionada prestação aleatória.

Pode-se, agora, passar a alguns exemplos de contratos aleatórios.

O exemplo mais comum de contrato aleatório é o contrato de seguro. Alguém (segurado) quer se proteger do risco de furto de seu carro e, assim, contrata o seguro desse bem, tendo em vista o risco mencionado, com uma seguradora de sua confiança. O segurado tem pagar à seguradora o prêmio do seguro, isto é, uma importância líquida e certa, exigida pela seguradora para assumir o risco de indenizar o segurado se, efetivamente, o carro vier a ser furtado. O contrato é aleatório porque a prestação contratual devida pelo segurado à seguradora é líquida e certa: o segurado tem que pagar o prêmio, sob pena de não ficar coberto do risco de furto de seu automóvel. Todavia, a seguradora ainda não deve indenização alguma para o segurado. A indenização, que é o valor do carro furtado, somente será devida se e quando o carro for furtado. Se o veículo não for furtado no prazo do contrato de seguro, a seguradora nada pagará ao segurado, embora tenha embolsado o prêmio do seguro. Por outro lado, o segurado não poderá exigir da seguradora o prêmio que pagou a ela, sob a alegação de que o furto não se verificou. A prestação devida pelo segurado era líquida e certa, mas a da seguradora era aleatória, o que quer dizer, não seria devida se o carro não fosse furtado.

Outro exemplo de contrato aleatório é o de aquisição de ações de sociedade anônima em pregão de bolsa de valores. O investidor quer adquirir 100.000 ações de certa companhia e paga por elas o preço de R$ 100.000,00, tendo em vista que, na cotação do dia da compra, esse era o valor daquele lote de ações. O preço devido pelo investidor é líquido e certo. Em contrapartida, a prestação do vendedor das ações tem valor aleatório. Terá que entregar tais ações ao investidor quer elas aumentem de valor ou diminuam de valor até o fim do pregão. Suponha-se que, celebrado o contrato, o preço das ações desabe até o fim do pregão. As ações que valiam R$ 100.000,00 agora não valem mais que R$ 10.0000,00. O risco do investidor será suportado por ele: terá que pagar R$ 100.000,00 por ações que valem apenas R$ 10.000,00. A hipótese inversa também poderia ocorrer. Fechado o contrato, o preço das ações dispara para R$ 150.000,00. O vendedor suportará os riscos dessa variação de preço: terá que entregar as ações ao investidor por R$ 100.000,00, embora tais ações valham R$ 150.000,00.

Mais um exemplo. Determinado fabricante de alimentos compra, por um preço líquido e certo, toda a produção que certo agricultor tiver em período determinado. O preço é fixo. Se o agricultor produzir muito, terá que entregar a produção pelo preço pactuado, nada mais podendo exigir. Se a produção for pouca, o fabricante terá que pagar o preço avençado, sem poder pleitear qualquer abatimento. Se a colheita se perder inteiramente, sem culpa do agricultor, ainda assim o fabricante terá que pagar o valor convencionado, embora nada receba.

Nestes exemplos verifica-se a presença da álea, ou seja, do risco de cada parte num contrato aleatório. Este fator aleatório impede a comutatividade das prestações.

(A) Objeto do contrato aleatório

Feitos esses esclarecimentos gerais, cabe examinar o que pode ser objeto de um contrato aleatório.

Os contratos aleatórios podem ter por objeto: (1º) o risco sobre bem presente ou sobre a existência futura de um bem; ou (2º) o risco de variação da quantidade ou do valor de bem presente ou futuro.

O contrato aleatório pode versar sobre o risco incidente sobre um bem presente, já existente. É o caso do exemplo do seguro de furto de um veículo. O veículo existe (é bem presente). O risco de tal veículo ser furtado existe do presente para o futuro. Quer este risco se concretize ou não, o segurado tem que pagar o prêmio para a seguradora.

No caso de o contrato aleatório ter por o risco sobre a existência futura de um bem, a prestação líquida e certa de uma das partes é devida inteiramente, mesmo que essa parte não venha a receber o bem futuro, que não chegou a existir (art. 1.118, do CC). É o caso do exemplo do fabricante que adquiriu por preço certo toda a produção futura de certo agricultor, produção esta que se perdeu sem culpa do agricultor.

Se o contrato aleatório tiver por objeto o risco de variação de quantidade ou de valor de bem presente ou de bem futuro, uma das partes terá obrigação líquida e certa em face da outra parte, referentemente a tais bens. No entanto, a outra parte correrá o risco decorrente da variação para maior ou para menor do valor ou da quantidade dos mesmos bens. Foi o caso do exemplo do investidor que comprou 100.000 ações pelo preço de R$ 100.000,00. Cada uma das partes terá que cumprir sua prestação: o investidor pagará o preço e o vendedor entregará as ações. Entretanto, ambas as partes correm o risco da variação para mais ou para menos do valor das ações.

(B) Aspectos importantes dos contratos aleatórios

As partes de um contrato aleatório não podem interferir no livre curso da aleatoriedade a que se submeteram. Nenhuma das partes pode provocar o risco ou eliminá-lo para, com este comportamento, melhorar sua posição contratual. Por isto, a parte que se conduzir deslealmente estará exposta às penalidades de que trata o art. 120, do CC. Em síntese, se o risco não iria se verificar e uma das partes o provocou para auferir vantagem contratual, a lei estabelece que os efeitos do contrato devem se produzir como se o risco não tivesse acontecido. Por outro lado, se o risco iria ocorrer e, no entanto, a parte o impede, desejando assim obter efeitos contratuais favoráveis a si mesma, a lei determina que os efeitos do contrato se produzam como se o risco tivesse mesmo acontecido.

É importante observar, ainda, que nos contratos aleatórios nenhuma das partes pode saber se o risco ocorrerá ou não. Por exemplo, o agricultor, ao vender sua produção para o fabricante, não podia saber de antemão que toda a colheita estava perdida por ter sido contaminada por uma praga. Se uma das partes, no instante em que celebra o contrato aleatório, sabe que não corre risco algum e, mesmo assim, declara no contrato que assume tal risco, é evidente que a parte prejudicada poderá pleitear  a rescisão do contrato por dolo.

11.7. CONTRATOS DE EXECUÇÃO IMEDIATA, DIFERIDA NO TEMPO OU SUCESSIVA

A classificação dos contratos como de execução imediata (ou instantânea), de execução diferida no tempo, ou de execução sucessiva, é feita tendo-se em consideração o momento em que tais contratos produzem efeitos típicos.

(I) Contratos de execução imediata ou instantânea

Contratos de execução imediata ou instantânea são aqueles cuja execução (solução) se faz de uma só vez e por prestação única, que acarreta a plena extinção das obrigações contratuais.

Por exemplo, se um sujeito vai a uma papelaria e lá adquire uma caneta pelo valor de R$ 1,00. O comprador tem que pagar R$ 1,00 ao vendedor e este, por sua vez, tem que entregar ao comprador a caneta objeto do contrato de compra e venda. Cada uma das partes contratante cumpre sua respectiva prestação de uma só vez. Pago o preço e entregue a caneta, nenhuma das partes tem nada mais a exigir da outra. O contrato dissolve-se.

Outro exemplo. Um sujeito vai ao médico para examinar sua acuidade visual. O exame clínico é realizado e o resultado dele comunicado ao paciente. O médico cumpriu integralmente e de uma só vez sua obrigação de fazer objeto daquela consulta. O paciente, por sua vez, pagou de uma só vez e imediatamente o preço da consulta médica. O contrato de prestação de serviços está completamente executado para ambas as partes.

(II) Contratos de execução diferida no tempo

Contratos de execução diferida no tempo, ou de execução retardada no tempo, são aqueles em que a prestação devida por pelo menos uma das partes será cumprida a termo (certo ou incerto), de modo que o contrato somente se extinguirá após a realização daquela prestação.

Suponha-se que um comerciante adquira de certo fabricante determinada mercadoria. A fim de que o comerciante tenha tempo de revender aquela mercadoria para o público em geral, ele – comerciante – combina com o fabricante que o preço da mercadoria adquirida somente será pago ao fabricante trinta dias após a celebração do contrato entre as partes. Ora, o fabricante já entregou a mercadoria ao comerciante. Contudo, o comerciante apenas pagará o preço dos bens ao fabricante no termo final do contrato, ou seja, trinta dias após a data da celebração. A prestação do fabricante em face do comerciante foi de execução imediata ou instantânea, mas a prestação do comerciante em face do fabricante é de execução diferida ou retardada no tempo.

Outro exemplo. Um sujeito adquire um armário numa loja de móveis e irá pagar o preço somente na data da entrega do armário, que está prevista para sessenta dias após a celebração do contrato. O vendedor do armário só cumprirá sua obrigação de entregar o bem em sessenta dias após a formalização do contrato. Tem, portanto, uma prestação de execução diferida no tempo. Por sua vez, o comprador apenas pagará o preço do armário quando este lhe for entregue. Assim, também a prestação do comprador é diferida ou retardada no tempo. Este contrato de compra e venda do armário somente se extinguirá quando o vendedor entregar o armário ao comprador e o comprador entregar o preço ao vendedor.

(III) Contratos de execução sucessiva ou continuada

Contratos de execução sucessiva ou continuada no tempo são aqueles em que a prestação de pelo menos uma das partes é cumprida em parcelas periódicas, de modo que o contrato somente se extinguirá depois que todas as parcelas houverem sido pagas ou se sobrevier outro fato extintivo da relação contratual.

Num contrato de execução continuada, a parte vai pagando, periodicamente, as parcelas de sua prestação contratual. O pagamento de cada parcela extingue os efeitos do contrato apenas parcialmente, nos exatos limites da parcela paga. Portanto, o contratante terá que pagar todas as parcelas de sua prestação contratual, sem o que não se liberará dessa obrigação.

Examine-se um exemplo. Uma pessoa toma em locação certo imóvel, pelo prazo de doze meses. O locador tem uma prestação de execução imediata, instantânea, consistente em entregar o imóvel ao inquilino. Mas o locador tem ainda uma outra prestação, agora de execução sucessiva ou continuada no tempo, a saber, tem que tolerar o uso do imóvel pelo inquilino durante todos os meses de duração do contrato de locação. Por outro lado, o inquilino também tem obrigações com obrigações de execução sucessiva ou continuada no tempo: periodicamente, durante todo o prazo de vigência do contrato, o inquilino tem que pagar os aluguéis e encargos da locação; tem que – continuadamente – conservar o imóvel locado e fazer nele as obras de conservação ordinária; não pode usar o imóvel para finalidade diversa daquela especificada no contrato.

Pode acontecer que um contrato de execução sucessiva ou continuada no tempo seja extinto antes que a parte consiga pagar todas as parcelas de sua prestação. Assim, há casos em que o contratante tem que pagar certo número de parcelas até certo valor para extinguir o contrato,  ou tem que pagar tais parcelas até que decorra determinado prazo. O fato que ocorrer em primeiro lugar extinguirá o contrato.

Tome-se, por exemplo, o caso de um financiamento habitacional pelo Sistema Financeiro da Habitação em que há cláusula relativa ao Fundo de Compensação de Variação Salarial. O adquirente do imóvel residencial obtém o financiamento imobiliário e deverá pagar prestações reajustáveis de acordo com a variação do salário do mutuário. O prazo do financiamento é, por exemplo, de vinte anos. Durante esses vinte anos, o mutuário terá que cumprir sua prestação de execução sucessiva ou continuada, pagando mensalmente as parcelas do financiamento. Pode acontecer que os encargos financeiros incidentes sobre o contrato desequilibrem o equilíbrio financeiro do contrato. Inicialmente, era estimado que, pagando certo valor reajustado, durante vinte anos, o mutuário chegaria ao fim desse prazo tendo liquidado todo o valor financiado, de maneira que não teria qualquer resíduo a pagar. No entanto, passados os vinte anos de duração do contrato, e tendo o mutuário pago todas as parcelas do financiamento, ainda restou um resíduo de dívida. No contrato em questão, o mutuário não precisará pagar tal resíduo, que será amortizado pelo Fundo de Compensação de Variação Salarial. Noutros termos, o decurso do prazo do contrato (20 anos) extinguiu a obrigação do mutuário de pagar outras parcelas até a completa extinção do resíduo do financiamento.

É possível, ainda, que um contrato de execução continuada chegue ao fim em decorrência de uma condição a que estivesse sujeito. O contratante vai cumprindo periodicamente as parcelas de sua prestação de execução sucessiva mas, ocorrida a condição prevista no contrato, este se extingue.

É o caso, por exemplo, do locatário que falece antes do término do prazo do contrato de locação. O locatário e também o locador vão cumprindo suas respectivas obrigações com prestações de execução sucessiva. Em certo momento, falece o locatário antes de esgotado o prazo de locação. Não havendo sucessores do locatário, a locação se extingue antes do prazo normal, mas sim pelo implemento de uma condição resolutiva, a saber, a morte do locatário no prazo contratual. Que a morte é evento certo, não há dúvida. Todavia, era evento futuro e incerto a verificação da morte do locatário dentro do prazo de vigência do contrato.

(IV) Efeitos importantes dos contratos de execução sucessiva

Os contratos de execução sucessiva ou continuada no tempo produzem efeitos muito importantes. Aqui serão examinados alguns desses efeitos.

(1º) imodificabilidade dos efeitos produzidos

Como regra geral, os efeitos já produzidos por um contrato de execução sucessiva são mantidos e respeitados em caso de ser decretada sua nulidade. Ao declarar a anulação do contrato, o juiz deverá esclarecer perfeitamente que efeitos serão mantidos e quais outros serão revogados.

(2º) aplicação da teoria da imprevisão contratual

A teoria da imprevisão contratual, antes denominada rebus sic stantibus, pode ser aplicada aos contratos de execução continuada. Os aspectos gerais dessa teoria foram examinados anteriormente (vide item ……).

Na verdade, a teoria mencionada encontra seu mais fértil âmbito de aplicação nos contratos de execução continuada, como facilmente pode se constatar com sumário exame da jurisprudência sobre a matéria.

(3º) impossibilidade de ruptura unilateral do contrato

Já foi comentado anteriormente que o contrato faz lei entre as partes, de maneira que nenhuma delas pode romper o contrato unilateralmente, salvo em casos excepcionais. Este princípio da força obrigatória dos contratos é especialmente válido para os contratos de execução continuada porque, como foi assinalado, a parte não terá cumprido sua obrigação contratual enquanto não realizar todas as parcelas de tal obrigação que foram diferidas no tempo de duração do contrato.

No entanto, entre outros casos excepcionais ao princípio da força obrigatória dos contratos, é importante ressaltar que se o contrato de execução sucessiva não tiver prazo determinado de duração, qualquer dos contratantes poderá rompê-lo unilateralmente.

Veja-se o exemplo de um prestador de serviços autônomo. Esse sujeito presta serviços de vigilância para um grupo de lojistas de certa rua. O contrato não tem prazo determinado, de sorte que as partes vão cumprindo suas respectivas prestações durante todo o período de vigência do contrato. Certo dia, o vigilante comunica aos lojistas que não mais manterá o contrato, pois irá realizar outra atividade profissional. Não tendo sido fixado prazo certo para o contrato, tanto o vigilante como os lojistas poderiam, a qualquer tempo, dissolver tal contrato de prestação de serviços.

(4º) contagem do prazo prescricional

Nos contratos de execução sucessiva ou continuada no tempo, a contagem do prazo prescricional é feita a partir do vencimento de cada parcela da obrigação considerada. Não se conta este prazo a partir do vencimento da primeira parcela, abrangendo todas as demais, nem se conta o prazo a partir do vencimento apenas da última parcela da obrigação. Para fins de contagem do prazo prescricional, cada parcela é tratada como se fosse a única obrigação.

Assim, por exemplo, se o inquilino deixar de pagar diversos aluguéis ( o aluguel do terceiro mês, o do quarto mês, o do quinto mês, o do sexto mês), o locador terá que cobrar essas prestações dentro do prazo prescricional correto. O prazo prescricional do aluguel do terceiro mês conta-se a partir da data em que tal aluguel era exigível. O prazo prescricional relativo ao aluguel do quarto mês é contado desde o vencimento desse quarto aluguel. E assim sucessivamente. Se, por hipótese, o locador contar o prazo prescricional a partir da data de vencimento do aluguel do quinto mês, e então decorrerem vinte anos, ele só conseguirá cobrar os aluguéis do quinto e do sexto mês, pois os anteriores já terão sido alcançados pela prescrição.

11.8. CONTRATOS INDIVIDUAIS E CONTRATOS

Em geral, a contratação se estabelece entre partes determinadas e bem individualizadas, de modo que os efeitos do contrato somente se produzem em relação a tais contratantes. No entanto, é possível que os efeitos do contrato se projetem não apenas em relação às partes contratantes, mas também sobre outros sujeitos que, direta ou indiretamente, estejam ligados aos contratantes. Os sujeitos sobre os quais os efeitos do contrato poderão se projetar às vezes fazem parte de uma coletividade de pessoas, de maneira que as partes do contrato são todos os sujeitos que integram a mencionada coletividade. Nesse caso, os sujeitos contratantes são temporariamente indeterminados, porém podem ser identificados pelo fato de pertencerem à coletividade a que se refere o contrato.

Pois bem. Tendo em vista o número de contratantes e também os sujeitos em relação aos quais o contrato produzirá efeitos, pode-se classificar o contrato em individual ou coletivo. Os traços gerais dessas espécies de contratação serão examinados a seguir.

(I) Contratos individuais

Contratos individuais são aqueles que se formal em decorrência de declarações de vontade de partes individualmente consideradas e cujos efeitos se produzirão apenas em relação a essas partes contratantes.

Já foi dito várias vezes que o princípio da obrigatoriedade dos contratos significa que o contrato faz lei entre as partes contratantes. Por isto, os efeitos do contrato devem se produzir apenas em relação aos sujeitos que declararam vontades de celebrar o contrato. Assim, os contratos individuais são a expressão mais significativa do princípio da força obrigatória dos contratos, pois somente quem for parte contratante estará sujeito aos efeitos do contrato. Os contratantes são individualizados, conhecidos e bem determinados.

Um professor que seja contratado para dar aulas particulares para determinado aluno tem com este um contrato individual. Os efeitos desse contrato se produzem apenas em relação ao aluno e ao professor.

Um médico que seja contratado para realizar um exame clínico em certo paciente também celebrou um contrato individual, pois os efeitos desse contrato de prestação de serviços estão restritos às pessoas do médico e do paciente.

(II) Contratos coletivos

Contratos coletivos são aqueles que, para se formarem, exigem declaração de vontade coletiva de um grupo de pessoas organicamente consideradas, sem que a individualidade de cada membro do grupo seja relevante para a formação e para a eficácia do contrato, e cujos efeitos se produzirão em relação a todos os sujeitos que integram ou venham a integrar o grupo contratante, independentemente de tais sujeitos pertencerem ao grupo no momento em que a contratação ocorreu.

Nos contratos individuais, a vontade de cada indivíduo é relevante tanto para a formação do contrato como para a delimitação subjetiva dos efeitos do contrato. Noutras palavras, é preciso saber quem é parte indispensável para a formação do contrato e também é necessário saber sobre quais pessoas o contrato individual projetará seus efeitos.

Nos contratos coletivos, bem diversamente, não é a vontade individual que se mostra relevante. Considera-se um grupo de pessoas que formam um todo orgânico, um ente coletivo. É exatamente este ente coletivo que realiza a contratação e não os indivíduos que formam tal coletividade. Estabelecida a relação contratual com a entidade coletiva, pouco importa que os indivíduos que a compõem permaneçam os mesmos ou que sejam substituídos por outros. O contrato produzirá seus efeitos em face da entidade coletiva, quaisquer que sejam os indivíduos que a integrem. Mesmo que nenhum dos indivíduos que formavam a coletividade permaneça no grupo, ainda assim os efeitos do contrato continuarão a se produzir sobre a coletividade, agora composta por novos membros.

Logo se vê, então, que os contratos coletivos significam uma atenuação do princípio da obrigatoriedade dos contratos, na medida em que os efeitos da contratação alcançam sujeitos que não integravam a coletividade no momento de celebração do contrato, mas que vieram a se vincular ao grupo posteriormente à celebração do contrato. É preciso compreender bem, entretanto, que parte no contrato é o grupo, a coletividade em si mesma considerada, e não os indivíduos que formam tal grupo. Assim, o contrato continua produzindo efeitos apenas em relação ao grupo contratante e, por essa razão, o princípio da obrigatoriedade dos contratos não foi eliminado dos contratos coletivos.

Em síntese, o traço característico dos contratos coletivos é o fato de que o grupo é a parte contratante, sendo admissível que os membros componentes do grupo sejam substituídos no todo ou em parte sem que isto interfira na eficácia contratual.

Alguns exemplos ajudarão a compreender a matéria.

Os condôminos de determinado edifício, reunidos em assembléia, deliberam validamente a contratação de uma empresa prestadora de serviços de limpeza para proceder à limpeza das instalações condominiais. A referida empresa e o condomínio celebram tal contrato. Algum tempo depois, todos os condôminos que votaram na mencionada assembléia já se mudaram do edifício. Foram todos substituídos por novos condôminos. Apesar disto, o contrato celebrado entre o condomínio e a empresa de limpeza remanesce inteiramente válido e eficaz entre essas duas partes. É irrelevante saber quem eram os indivíduos condôminos no momento em que o contrato foi celebrado, porque a parte contratante foi o grupo condominial e não cada condômino individualmente considerado.

Um sindicato patronal celebra com um sindicato de trabalhadores um contrato coletivo de trabalho. Tal contrato foi celebrado entre duas entidades coletivas: o sindicato dos empregadores e o sindicato dos empregados. Pouco importa quem eram os trabalhadores filiados ao sindicato dos empregados no instante da contratação. Também não interessa saber quem eram as empresas integrantes do sindicato dos empregadores quando o contrato se formou. Os membros de cada um desses sindicatos podem ter sido substituídos, no todo ou em parte, por outros membros. Não obstante isto, o contrato coletivo continua válido e eficaz para os dois grupos, quaisquer que sejam seus respectivos membros.

(A) Efeitos principais dos contratos coletivos

À vista dessas considerações, é possível fixar alguns efeitos importantes dos contratos coletivos, a saber:

(1º) a vontade de cada membro do grupo só é relevante no instante da deliberação para se determinar qual é a vontade coletiva a ser expressa no contrato;

(2º) uma vez celebrado o contrato regularmente, suas disposições produzirão efeitos em relação a todos os indivíduos pertencentes ao grupo, ainda que tais indivíduos não estivessem integrados à entidade coletiva no momento da elaboração da vontade coletiva expressa no contrato;

(3º) o contrato coletivo não gera direitos ou obrigações para cada indivíduo considerado isoladamente, concretas, mas apenas para o grupo ao qual o indivíduo se integra;

(4º) as disposições de um contrato coletivo são gerais e abstratas, à semelhança do que ocorre com as disposições legais, razão pela qual, em geral, os contratos coletivos precisam ser complementados por contratos individuais.

11.9. CONTRATOS PRINCIPAIS E CONTRATOS ACESSÓRIOS

Tal como ocorre com os bens, ou ainda com as obrigações, que podem ser classificados em principais e acessórios, também os contratos podem ser assim classificados: contratos principais e contratos acessórios.

(I) Contratos principais

Contratos principais são aqueles que têm existência, eficácia e função jurídica próprias, autônomas, em relação a outros contratos.

O contrato principal tem os seus próprios elementos constitutivos que lhe asseguram a produção autônoma de efeitos no universo jurídico. Esse contrato principal cumpri finalidade jurídica própria e autônoma, o que significa dizer que o seu resultado jurídico não depende de qualquer outro contrato para se produzir. O contrato principal basta-se em si mesmo. Por meio dele as partes contratantes conseguem obter o resultado jurídico que cada uma delas pretende.

Por exemplo, suponha-se que um sujeito precise de dinheiro emprestado e que outro sujeito, disponde de dinheiro para esse fim, deseje realizar o empréstimo mediante certa taxa de juros. Trata-se aí de um contrato de mútuo, em que o mutuante empresta o dinheiro ao mutuário que, por sua vez, se compromete a restituir ao mutuante, após certo prazo, o capital emprestado mais os juros pactuados. Ora, os objetivos desejados por cada uma das partes é plenamente realizável por meio do contrato de mútuo.

Certa loja deseja vender refrigeradores ao público em geral. Determinado sujeito, por seu turno, deseja adquirir um refrigerador e, assim, vai à loja e efetivamente compra o refrigerador anunciado. A vontade do comerciante era a de vender o refrigerador e a do consumidor era a de comprar o mesmo bem. Cada uma das partes realizou perfeitamente seu objetivo por meio desse contrato de compra e venda.

(II) Contratos acessórios

Contratos acessórios são aqueles que, embora tenham seus próprios elementos constitutivos, têm eficácia e função jurídica dependente de um contrato principal.

O contrato acessório existe e é válido uma vez que estejam presentes seus elementos essenciais. Todavia, a eficácia do contrato acessório e, por conseguinte, sua função jurídica, dependem da existência, validade e eficácia de um outro contrato, chamado principal. Se o contrato principal for inexistente, inválido ou ineficaz, o contrato acessório até poderá continuar sendo existente e válido, mas será inexoravelmente ineficaz, porque sua função jurídica somente se cumpre de modo vinculado à função do contrato principal.

Daí porque o brocardo jurídico de que o acessório segue a sorte do principal é inteiramente aplicável aos contratos acessórios. O inverso, contudo, não é verdadeiro, isto é, se o contrato acessório, por qualquer motivo for inexistente, inválido ou ineficaz, o contrato principal remanescerá perfeito na sua existência, validade e eficácia (exceto, obviamente, se o próprio contrato principal também padecer de vícios).

(A) Momento de formação dos contratos principal e acessório

É muito importante esclarecer o seguinte: a função jurídica do contrato acessório é vinculada e dependente da função jurídica do contrato principal. Isto quer dizer que, em algum momento, precisará existir, ser válido e eficaz um contrato principal, sem o que o contrato acessório será imprestável. Não se exige, contudo, que o contrato principal seja celebrado antes do contrato acessório, ou simultaneamente com este.

O contrato acessório pode ser celebrado antes do contrato principal, juntamente com este ou depois de nascido o contrato principal. O que importa é que os dois contratos, principal e acessório, estejam integrados de tal modo que o contrato acessório possa cumprir sua função jurídica.

Assim, por exemplo, um banco pode contratar com seu cliente um contrato acessório de fiança bancária, por meio do qual tal banco concorda em se tornar fiador daquele cliente em qualquer obrigação que o mesmo cliente vier a contratar com terceiros, até certo limite e por determinado prazo. Não se sabe, ainda, se o cliente irá mesmo assumir obrigações perante terceiros, mas, se assim proceder, a fiança bancária já terá sido contratada. As obrigações do cliente em face de terceiros serão obrigações principais às quais a função jurídica do contrato acessório de fiança se vincula. Se o cliente não assumir nenhuma obrigação, a fiança bancária também não terá função alguma, embora tal fiança tenha nascido antes mesmo da possível obrigação principal.

Também poderia ocorrer de o cliente, já estando por celebrar o contrato principal com terceiro, viesse também a celebrar com o banco o contrato de fiança bancária, com o propósito de que a fiança bancária garantisse a obrigação principal do cliente com o terceiro. Nesse caso, o contrato principal e o acessório foram formalizados simultaneamente.

Por fim, poderia ter ocorrido de o cliente já ter contratado com terceiro o contrato principal e, depois, viesse a ser obrigado a apresentar àquele terceiro contratante uma fiança bancária. Para esse fim, o cliente contrata com o banco a obrigação acessória de fiança bancária. O contrato principal foi celebrado em primeiro lugar e o contrato acessório foi celebrado posteriormente.

Em todos esses exemplos, é importante observar que a função jurídica do contrato acessório de fiança foi a de garantir o cumprimento do contrato principal. Se este se tornar ineficaz por qualquer motivo, o contrato acessórios de fiança perderá sua função, embora não padeça de qualquer vício.

(B) Forma do contrato acessório

O contrato acessório é um contrato e, como tal, está sujeito à normas jurídicas disciplinadoras da forma dos atos jurídicos.

O que se quer ressaltar aqui, na verdade, é o fato de que o contrato acessório pode ser formalizado: (1º) em instrumento separado do instrumento do contrato principal; ou (2º) no mesmo instrumento do contrato principal. Em qualquer desses casos, é preciso que o contrato acessório apresente seus próprios elementos essenciais, seja válido e tenha sua função jurídica vinculada ao contrato principal.

11.10. CONTRATOS PARITÁRIOS E CONTRATOS DE ADESÃO

A situação normal na formação de um contrato é aquela em que os interessados em contratar atravessam a fase das discussões preliminares à contratação, depois a fase da proposta ou da contraproposta do contrato e, finalmente, a fase de celebração do contrato. Entretanto, nem sempre isto é possível.

O desenvolvimento da economia mundial alterou profundamente os mecanismos de contratação. A produção agrícola e a industrial são feitas em larga escala, tendo em vista os mercados nacionais e internacionais. Os bens de consumo e os serviços são produzidos em série, aos milhões de unidades. A oferta desses bens no mercado é feita em massa, como também o consumo de tais bens é massificado.

A realidade inafastável é que a economia, a produção e o consumo atualmente são massificados, ignorando fronteiras de todas as espécies. Essa realidade tinha que influenciar o contrato, que, como já foi assinalado, é o principal instrumento jurídico de realização das trocas de bens jurídicos entre os indivíduos.

Até pouco antes da Revolução Industrial, ocorrida no século XVIII, a contratação era feita em escala quase que individual. Cada produtor ou prestador de serviços regulava o conteúdo de seus contratos com aqueles que consumiam os bens oferecidos no mercado. O fenômeno da industrialização em escala massificada e, por conseguinte, o consumo massificado de bens e serviços tornou impossível a negociação individualizada dos contratos entre os diversos agentes econômicos.

Nesse contexto, o direito de todos os povos começou a conhecer novas formas de contratação. Surgiram assim as chamadas “condições gerais de contratação”, “os contratos de adesão”, “os contratos de massa”, apenas para citar os exemplos mais relevantes. São estas novas formas de contratação que se passará a examinar aqui nos seus aspectos mais relevantes.

(I) Contratos paritários

Contratos paritários são aqueles em que os contratantes negociam, individualizadamente, paritariamente, cada uma das disposições contratuais conforme sues respectivos interesses e buscando um equilíbrio contratual aceitável para cada parte.

Os contratos paritários são, portanto, aqueles em que as partes contratantes se encontram em situação real de equilíbrio econômico, técnico, jurídico e, assim, em igualdade de condições, podem discutir uma com a outra as diversas disposições do contrato que querem celebrar. O resultado dessa ampla discussão é um contrato equilibrado, justo, aceitável para ambos os contratantes.

(II) Condições gerais de contratação

Condições gerais de contratação são disposições genéricas, previamente estabelecidas unilateralmente por uma das partes e divulgadas publicamente, que serão incorporadas a qualquer contrato que aquela parte venha a celebrar com qualquer contratante a respeito de certo objeto.

Há situações em que um contratante tem interesse em introduzir no mercado um bem ou serviço em escala massificada. Precisa, então, de contratos absolutamente uniformizados e com disposições previamente estabelecidas por aquele contratante, de modo unilateral. Esse tipo de contratação poderia ser realizado por meio dos chamados contratos de adesão. Entretanto, em certos casos, o formulários padronizado do contrato seria tão extenso ou tão complexo que, na prática, inibiria os consumidores que, assim, prefeririam não contratar. Para eliminar problemas desse tipo, passou-se a adotar as condições gerais de contratação.

Quando alguém pretende contratar valendo-se das condições gerais de contratação, elabora, unilateralmente, as disposições padronizadas, uniformes e indiscutíveis que deverão integrar cada um dos contratos que tal contratante deseja celebrar no mercado. Essas disposições todas são reunidas num documento, denominado condições gerais de contratação, que é tornado público por diversos mecanismos. A publicidade é feita, em geral, por meio do registro das condições gerais de contratação num Cartório de Registros Públicos. Isto é o que basta para que tais condições gerais de contratação passem a integrar os contratos individuais que aquele contratante vier a celebrar a respeito do objeto previsto naquelas condições de contratação. Depois destas providências, o contratante pode celebrar com quem quiser os contratos individuais, nos quais apenas fará referência de que tal contrato individual é integrado também pelas condições gerais de contratação já levadas ao conhecimento do público em geral.

Um exemplo para esclarecer melhor a matéria. Certa construtora de edifícios produz no mercado enorme quantidade de imóveis que quer comercializar. Esta construtora quer incluir em todos os seus contratos, unilateralmente, disposições que ela considera indiscutíveis e padronizadas, tais como, as condições em que transferirá a posse para os adquirentes dos imóveis, as garantias contratuais a serem exigidas dos adquirentes, o fato de que o terreno da edificação é dado em garantia hipotecária para banco financiador da obra, etc. A construtora, então, elabora todas essas disposições e, em documento próprio, registra as condições gerais de contratação no Registro Público competente. Feito isto, a construtora pode celebrar contratos de compra e venda com cada adquirente, individualmente, sem precisar mencionar – de novo – nos instrumentos contratuais, aquelas disposições que já constam das condições gerais de contratação registradas. Nesses contratos individuais, bastará que a construtora faça menção ao fato de que existem as condições gerais de contratação e de que estas estão registradas em tal órgão público.

(III) Contratos de adesão

Contratos de adesão são aqueles que apresentam disposições uniformes, padronizadas, estabelecidas prévia e unilateralmente por uma das partes contratantes sem que exista a possibilidade de a outra parte discutir tais disposições, que deverão ser aceitas em bloco pela parte aderente.

Há quem sustente que a característica do contrato do adesão está no fato de que o contratante aderente não poderia celebrar o contrato com outra pessoa a não ser com aquela que faz a oferta de adesão. Não parece ser correto esse entendimento porque não se deve confundir monopólio contratual com o contrato de adesão.

Por exemplo, se em determinada cidade existe apenas um médico, é evidente que, por praticidade, os habitantes daquela cidade somente podem celebrar contrato de prestação de serviços médicos com aquela médico. Nem por isto se pode dizer que tal contrato é de adesão, pois o paciente e o médico podem perfeitamente discutir paritariamente o conteúdo do contrato.

Outro exemplo. Os contratos de seguro contêm disposições que, às vezes, são reprodução fiel do texto da lei ou de normas regulamentares da SUSEP ou do CNSP. Tais disposições não foram sequer inseridas no contrato por vontade da seguradora, até mesmo porque várias dessas disposições em muitos casos são até mesmo contrárias aos interesses da seguradora e favoráveis ao segurado. Nesses casos, sequer se pode falar de monopólio das seguradoras e, no entanto, o contrato é inequivocamente de adesão.

Mais um exemplo. A PETROBRÁS detém o monopólio da exploração de petróleo e de seus derivados. Quem quiser contratar com a PETROBRÁS para esse fim, poderá ou não estar celebrando um contrato de adesão. Assim, se a PETROBRÁS vier a exportar derivados de petróleo, é muito provável que o importador discuta com ela, paritariamente, as disposições contratuais. Por outro lado, se a PETROBRÁS desejar vender combustível para determinado posto de gasolina, provavelmente imporá ao comprador cláusulas padronizadas, isto é, um contrato de adesão.

Mais um último exemplo. Uma loja coloca em sua vitrine certa mercadoria, indicando seu preço e condições de pagamento. Qualquer consumidor que, naquela loja, quiser adquirir tal mercadoria, terá que aderir ao preço anunciado e às condições de pagamento apresentadas pelo vendedor. Trata-se de um contrato de adesão porque as disposições básicas do contrato foram estabelecidas unilateralmente pelo vendedor, são indiscutíveis e válidas para qualquer pessoa interessada em comprar a mercadoria naquela loja. Evidentemente, inexiste qualquer monopólio do vendedor no que concerne à oferta da referida mercadoria ao público em geral.

Por conseguinte, não é o fato de existir ou não um monopólio negocial que caracteriza o contrato de adesão. O contrato de adesão se delineia quando um dos contratantes (o que faz a oferta contratual) estabelece prévia e unilateralmente cláusulas padronizadas que usa em todos os contratos do tipo proposto, eliminando a possibilidade de o outro contratante discutir tais disposições. O contratante destinatário da oferta deve aceitar em bloco as disposições padronizadas, sem discuti-las.

Assim, por exemplo, o locador que vai a uma papelaria e lá adquire um formulário padronizado de contrato de locação e, depois de preenchê-lo, celebra o contrato com o locatário, está inequivocamente celebrando um contrato de adesão, igual a milhares de outros. O locatário não pode discutir diversas das disposições padronizadas daquele formulário contratual. Se, diversamente, locador e locatário houvessem discutido livremente cada uma das disposições do contrato de locação, ter-se-ia um contrato paritário e não de adesão.

Em síntese, no contrato de adesão um dos contratantes apresenta ao outro um bloco de disposições contratuais indiscutíveis, elaboradas previamente pela parte ofertante ou implícitas naquele tipo de contrato, cabendo à parte destinatária dessa oferta simplesmente aderir ao contrato, discutindo, apenas, poucas questões atinentes ao negócio, tais como o preço, as condições de pagamento, o prazo contratual, detalhes específicos do produto ou do serviço, etc.

(A) Formação do contrato de adesão

Dadas as características do contrato de adesão, o normal é que tal contrato seja celebrado mediante simples declaração de aceitação do contrato pela parte aderente. Essa aceitação pode ser expressa ou tácita.

O fato de o aderente poder discutir algumas disposições do contrato não descaracteriza o contrato de adesão se, no seu conjunto, as disposições essenciais ou mais importantes do contrato não forem passíveis de discussão paritária entre as partes.

Embora o estudo do Direito do Consumidor não faça parte da presente exposição, é bom deixar registrado que, nas relações jurídicas reguladas pelas normas de proteção e defesa do consumidor, o contrato de adesão deve apresentar diversos requisitos adicionais e, o que é mais importante, não será obrigatório para o consumidor se – antes da adesão ao contrato – não lhe tiver sido assegurada a oportunidade de ler e compreender o conteúdo do contrato de adesão, ao passo que, para o fornecedor, tal contrato será inteiramente obrigatório.

(B) principais efeitos do contrato de adesão

Os contratos de adesão desencadeiam diversos efeitos jurídicos, sendo os principais deles os que seguem.

(1º) oferta permanente

A situação de oferta permanente é a mais fértil para a celebração de contratos de adesão. A oferta é pública e os produtos ou serviços ofertados são negociados mediante disposições contratuais prévia e unilateralmente estabelecidas pelo ofertante, de modo indiscutível. Quem quiser adquirir esses bens, deverá aderir à oferta padronizada formulada pelo vendedor ou prestador dos serviços.

Assim, se alguém ingressa numa padaria para lá adquirir pão, sabe que somente obterá esse bem se aderir aos termos padronizados da oferta pública permanente feita pelo dono da padaria: ele vende pão somente naquelas condições e não noutras.

(2º) disposições contratuais padronizadas e sua modificação

As disposições do contrato de adesão são padronizadas e constam de formulários, tabelas, anúncios e de mensagens publicitárias em geral.

As disposições do contrato de adesão, como foi dito, são estabelecidas pelo ofertante, prévia e unilateralmente, de maneira que a parte aderente deverá aceitá-las em bloco sem possibilidade de discussão. Por isto mesmo, o ofertante do contrato de adesão não pode alterar as disposições padronizadas sem que faça prévia e ampla divulgação desse fato.

Assim, a modificação das disposições padronizadas só é admissível se ocorrer antes de o aderente aceitar aquelas disposições e sempre mediante ampla publicidade do teor das modificações introduzidas no contrato.

(3º) disposições contratuais abusivas

As disposições do contrato de adesão são estabelecidas prévia e unilateralmente pela parte ofertante da contratação. Por esta razão, a lei veda que prevaleçam contra a parte aderente as disposições abusivas, vexatórias ou demasiadamente onerosas.

(4º) interpretação dos contratos de adesão

A parte ofertante de um contrato de adesão teve, presumivelmente, tempo suficiente e assessoria adequada para estipular prévia e unilateralmente o conteúdo do contrato. Por isto, sempre que alguma das disposições do contrato de adesão for duvidosa, obscura, colidente com outras disposições ao não permitir conclusão unívoca, tanto a doutrina como a jurisprudência tradicionalmente têm recomendado que o contrato de adesão seja interpretado contra a parte que o ofertou e o mais favoravelmente possível à parte aderente.

(5º) intervencionismo estatal no contrato de adesão

Já foi explicado anteriormente o enorme impacto que o intervencionismo estatal tem provocado no Direito contratual.

É extremamente comum que grande parte dos contratos de adesão apresente nítidos traços de intervencionismo estatal. Nesses casos, esses contratos de adesão incorporam disposições impostas por lei ou regulamentos editados pelo Poder Público, de modo que nem mesmo a parte ofertante do contrato pode se desviar dessas previsões legais. O respeito a tais determinações normativas é, às vezes, requisito essencial para a própria existência, validade ou eficácia do contrato de adesão.

12. EXTINÇÃO DOS CONTRATOS

O contrato é um instrumento jurídico para que as partes contratantes alcancem seus respectivos objetivos. A estrutura do contrato apresenta um feixe de relações obrigacionais para cada uma das partes e tais obrigações devem ser regularmente cumpridas, de modo que o contrato possa também cumprir sua função jurídica.

Assim que a finalidade jurídica do contrato for cumprida, ou seja, quando cada um dos contratantes realizar suas respectivas prestações contratuais, a relação contratual se esgota, o contrato se extingue, se dissolve. A maneira normal de extinguir um contrato é, portanto, cumprindo-o, executando-o.

No entanto, há situações em que o contrato se dissolve antes mesmo de alcançar o objetivo jurídico para o qual foi celebrado. Em certos casos, um dos contratantes, culposamente ou não, deixa de cumprir sua prestação contratual e, assim, o outro contratante deixa de ter interesse na manutenção do contrato e pede sua extinção prematura. Outras vezes, o contrato pode ser precocemente dissolvido por fato jurídico não provocado por qualquer das partes contratantes, tal como ocorre com fato de terceiro, fato de força maior ou evento fortuito. Em tal hipótese, torna-se impossível o cumprimento do contrato e as partes têm que extingui-lo. Ainda noutros casos são as próprias partes que preferem simplesmente dissolver a relação contratual, seja por meio de convenção nesse sentido, seja por meio de declaração unilateral de vontade. E também é possível que o contrato deixe de cumprir sua função jurídica, terminando antecipadamente, em decorrência de algum vício que acarreta sua inexistência, invalidade ou ineficácia.

Em todos os casos acima citados observa-se que a relação contratual chega a seu término ou porque foi regularmente executada, ou porque houve inexecução do contrato. Por isto, o estudo das causas de dissolução dos contratos exige conhecimento exato do que são estas duas situações jurídicas: execução e inexecução contratual.

12.1. EXECUÇÃO E INEXECUÇÃO DO CONTRATO

Execução do contrato significa a situação jurídica em que cada um dos contratantes cumpre suas respectivas obrigações contratuais exatamente como previsto. A inexecução do contrato, por sua vez, significa a situação jurídica em que pelo menos um dos contratantes não realiza sua prestação contratual, quer por fato voluntário ou involuntário.

As duas situações jurídicas descritas acima de modo muito sumário acarretam a extinção do contrato, porém com efeitos bastante diferentes. Por essa razão, deve-se estudar separadamente a execução e a inexecução contratual.

(I) Teoria geral do pagamento das obrigações

A Obrigação jurídica é necessariamente temporária. Nasce para se extinguir. Há modos normais e anormais para se colocar fim às relações obrigacionais. Tendo em vista que o contrato é um complexo de relações obrigacionais, organizadas para cumprir determinada função jurídica, os princípios que regem a extinção das obrigações são aplicáveis, em grande parte, à matéria de extinção dos contratos.

O pagamento é o fato jurídico por meio do qual uma relação obrigacional é dissolvida. Há várias espécies de pagamento e, em todas elas, a idéia central é sempre a de que o pagamento é meio de por fim à obrigação.

A primeira espécie de pagamento que merece ser destacada aqui é a do pagamento em sentido genérico.

(A) Pagamento em sentido genérico

Pagamento em sentido genérico é qualquer fato jurídico determinante da extinção da relação obrigacional, quer o credor receba o que lhe é devido, quer não.

Qualquer que seja o fato extintivo da obrigação, tem-se um pagamento em sentido genérico, que tem esse nome exatamente porque abrange todas as situações de pagamento.

Por exemplo, entre outros casos tem-se pagamento genérico quando:

(a) o devedor cumpre com absoluta regularidade sua obrigação;

(b) sem culpa do devedor, a prestação não pode mais ser cumprida;

(c) o credor, por qualquer motivo, não mais quer receber a dívida (renúncia ou perdão);

(d) o credor aceita receber do devedor coisa diversa da originalmente prevista (dação em pagamento);

(e) as partes extinguem uma obrigação e criam outra no lugar da primeira (novação);

(f) credor e devedor, após a criação da obrigação, tornam-se a mesma pessoa (confusão).

Enfim, seja qual for o fato terminativo da obrigação, diz-se que há pagamento em sentido genérico, que pode ser satisfativo do credor ou não satisfativo do credor.

Ocorre pagamento satisfativo se o credor receber a prestação do devedor, isto é, quer a prestação prevista, quer outra que a substitua. Assim, por exemplo, se o credor tem direito de receber do devedor certo e determinado livro e, efetivamente, recebe tal objeto, o pagamento é satisfativo. Mas, se o livro devido pereceu por culpa do devedor e este, em substituição ao livro, paga ao credor uma indenização, ou mesmo outro objeto que o credor aceite em lugar do livro, tem-se também pagamento satisfativo, já que o credor recebeu uma prestação, ainda que diferente daquela prevista originalmente.

O pagamento será não satisfativo do credor quando a relação obrigacional se extinguir sem que o credor nada receba. Assim, por exemplo, quando o objeto da obrigação perece sem culpa do devedor, ou por força maior, ou por evento fortuito, a obrigação termina e o credor nada recebe. Também quando se verifica a renúncia, o perdão, a confusão, a insolvência patrimonial do devedor, a relação obrigacional se dissolve e o credor nada recebe.

Assim, se o devedor devia um automóvel ao seu credor e, sem sua culpa, o veículo é furtado, resolve-se a obrigação, o que quer dizer que ocorreu um pagamento em sentido genérico, vale dizer, um fato que pôs fim à relação obrigacional (nesse caso, sem satisfação do credor). Imagine-se, agora, que o tal veículo estivesse segurado contra furto. O credor queria mesmo era receber o carro, não o dinheiro, mas, não sendo mais possível receber o veículo, terá que receber a indenização securitária em lugar do automóvel. Tem-se aí um pagamento em sentido genérico satisfativo do credor, porque o pagamento da indenização é um fato que põe fim à relação obrigacional e, embora não seja o objeto tecnicamente devido ao credor, pode satisfazê-lo. Além disso, o pagamento da indenização é também um pagamento em sentido estrito, porque feito em dinheiro.

Um colega empresta a outro seu livro para a realização de certa tarefa escolar. O tomador do empréstimo tem que devolver o livro a quem lhe emprestou esse objeto. Ao devolver o livro ao colega, o tomador do empréstimo realiza um pagamento em sentido técnico, pois devolve exatamente o objeto que lhe foi emprestado, observando todas as demais condições do contrato. O credor, então, fica completamente satisfeito. Mas, suponha-se que o tomador do empréstimo tenha perdido o livro. No momento de devolver o que lhe foi emprestado, terá que oferecer a seu colega ou o dinheiro equivalente ao livro perdido (e nesse caso, realizar um pagamento em sentido estrito e satisfativo), ou terá que oferecer um outro livro equivalente, se possível (caso em que estará fazendo um pagamento satisfativo em sentido técnico se o livro era fungível, ou um pagamento satisfativo em sentido genérico, se o livro era infungível).

(B) Pagamento em sentido técnico

Pagamento em sentido técnico é o fato jurídico terminativo de uma relação obrigacional em que o devedor cumpre sua prestação no tempo, modo e lugar convencionados.

O modo normal de se extinguir uma relação obrigacional é aquele em que o devedor realiza a prestação devida ao seu credor no tempo, lugar e forma convencionados. Tal situação jurídica é designada como “execução da obrigação”, “pagamento direto e satisfativo do credor”, “pagamento em sentido técnico”. Todas estas expressões são equivalentes entre si porque referem-se à situação em que o devedor paga o que deve ao credor tal como foi convencionado entre eles. Cuida-se aí da execução da obrigação, de seu cumprimento, de seu pagamento em sentido técnico.

Por ser um fato extintivo da relação obrigacional, o pagamento em sentido técnico é simultaneamente um pagamento em sentido genérico e é, ainda, pagamento satisfativo do credor, pois o credor recebe o que lhe é devido.

(C) Pagamento em sentido estrito

Pagamento em sentido estrito é a realização da prestação obrigacional cujo objeto é dinheiro.

No pagamento em sentido estrito, o devedor paga dinheiro ao seu credor. Se desde a origem o objeto da prestação era mesmo em dinheiro, então o pagamento em sentido estrito será simultaneamente um pagamento em sentido técnico e, evidentemente, será também um pagamento em sentido genérico e ainda um pagamento satisfativo do credor. Todavia, se o título obrigacional previa pagamento de objeto diferente de dinheiro e, apesar disto, o devedor pagar ao credor em dinheiro, então ter-se-á um pagamento em sentido estrito e, concomitantemente, um pagamento em sentido genérico e satisfativo do credor. Nesta hipótese, não se terá um pagamento em sentido técnico porque o credor recebe coisa diferente da originalmente estabelecida.

Estas breves noções gerais a respeito do pagamento podem, agora, ser aplicadas ao Direito contratual.

(II) Execução do contrato

Rigorosamente falando, a extinção de um contrato deve ocorrer por meio do pagamento em sentido técnico, vale dizer, pela execução do contrato, por seu regular cumprimento por cada um dos contratantes.

Cada uma das partes cumpre sua prestação obrigacional no tempo, lugar e forma convencionados e, então, o vínculo contratual entre elas se dissolve. Nesse caso, tanto as obrigações das partes no contrato como o próprio contrato terminam.

Por exemplo, alguém contrata uma faxineira para realizar uma limpeza geral em certo imóvel, num dia determinado e mediante certo preço. A faxineira realiza corretamente a limpeza no dia estabelecido e, assim procedendo, cumpre integralmente sua obrigação contratual. A pessoa que contratou a faxineira paga a esta o preço convencionado para os serviços de limpeza. O contrato está completamente terminado para as duas partes.

Se um amigo empresta a outro certa quantia, o tomador do empréstimo deverá pagar ao mutuante o valor emprestado. Trata-se de pagamento em sentido estrito e, também, em sentido técnico. O mutuante é credor de dinheiro e é este bem que deverá ser pago a ele pelo mutuário. Ao cumprir sua obrigação, o mutuário termina o contrato de mútuo.

Entretanto, nem sempre o contrato é regularmente executado, cumprido. A falta de cumprimento do contrato por uma das partes denomina-se, genericamente, inexecução do contrato.

(III) Inexecução do contrato e suas espécies

Inexecução do contrato é a falta de cumprimento da prestação contratual por qualquer dos contratantes, voluntária ou involuntariamente.

Noutras palavras, ocorre inexecução do contrato quando não se verifica o pagamento de pelo menos uma das obrigações contratuais.

A inexecução do contrato pode  por exemplo decorrer:

(a) por fato voluntário, culposo, do devedor, que deixa de pagar sua prestação contratual (assim, a mora ou o inadimplemento);

(b) por fato involuntário, não culposo, do devedor e que o impede de cumprir sua prestação contratual;

(c) por fato de terceiro, ou por fato de força maior, ou ainda por evento fortuito, que impedem o cumprimento do contrato pelo devedor;

(d) de vício da relação contratual que acarreta sua inexistência, invalidade ou ineficácia;

(e) por perecimento ou impossibilidade do objeto contratual.

Ocorrendo qualquer dos fatos determinantes da inexecução do contrato, o contratante que não deu causa a tal fato pode pleitear, judicialmente, a dissolução do vínculo contratual.

Pode-se observar que a inexecução contratual decorre de variadas causas e, em algumas dessas causas, o contratante devedor é responsável pela inexecução. Noutros casos, a inexecução não é de responsabilidade do devedor.

Consequentemente, a inexecução do contrato pode decorrer:

(a) de fato imputável, voluntário (ou seja, de responsabilidade) do contratante; ou

(b) de fato não imputável, involuntário (isto é, sem responsabilidade) do contratante.

Os efeitos desses tipos de inexecução são diferentes e serão estudados em momento oportuno. Quando nenhum dos contratantes é responsável pelo fato que determinou a inexecução do contrato, diz-se que tal inexecução foi involuntária e então a relação contratual se resolve, o contrato se dissolve, ocorre a resolução do contrato. Mas quando algum dos contratantes é responsável pela inexecução do contrato, usa-se o vocábulo técnico rescisão para designar a extinção da relação contratual em que um dos contratantes causou lesão ao outro.

Interessa neste momento estudar um pouco mais de perto os casos de inexecução culposa do contrato e, portanto, os casos de mora ou de inadimplemento culposo do contratante devedor.

(IV) Inexecução do contrato por mora ou por inadimplemento

A relação contratual pode terminar em decorrência de mora ou de inadimplemento do contratante devedor.

O inadimplemento obrigacional pode ser relativo ou absoluto. O inadimplemento relativo é também denominado mora. O inadimplemento absoluto, ou simplesmente “inadimplemento”, é espécie de inexecução mais grave que a mora, como se verá a seguir.

Tanto no inadimplemento como na mora exige-se a culpa do devedor pelo fato que inviabiliza o cumprimento da obrigação (exceto nos casos de responsabilidade civil contratual objetiva, em que a prova da culpa do devedor é dispensada).

(A) conceito de mora

Mora é a falta de cumprimento da prestação obrigacional, por responsabilidade do devedor, no tempo, lugar e forma convencionados, mas que pode ser corrigida quando a realização de tal prestação ainda for possível e interessar ao credor (art. 955, do CC).

A mora corresponde à situação em que o devedor deixou de pagar a obrigação no tempo, lugar e forma convencionados, mas ainda poderá remendar sua falta, ou seja, poderá purgar sua mora. No caso da mora, o pagamento ainda interessa ao credor e por isto a mora pode ser purgada.

(B) Conceito de inadimplemento

Inadimplemento (absoluto) é a falta de cumprimento da prestação obrigacional, por responsabilidade do devedor, no tempo, lugar e forma convencionados, sem que haja possibilidade de o devedor realizar tal prestação por ter ela se tornado impossível ou não mais interessar ao credor.

O inadimplemento absoluto é comumente referido como “inadimplemento”, querendo-se com isto designar aquela situação jurídica em que o devedor não realizou o pagamento da obrigação no tempo, lugar e forma convencionados, nem poderá mais realizá-lo, seja porque o pagamento se tornou impossível, seja porque não mais interessa ao credor.

(C) Distinção entre extinção do contrato e extinção das obrigações contratuais

Em primeiro lugar, é preciso deixar bem esclarecido que a mora ou o inadimplemento de obrigação contratual têm que decorrer de fato imputável ao contratante devedor. Assim, o contratante credor – e que, portanto, não foi o causador da mora ou do inadimplemento – poderá pedir judicialmente a dissolução do vínculo contratual.

Em segundo lugar, é conveniente relembrar que o contrato é um complexo de relações obrigacionais ordenadas, estruturadas, para que as partes contratantes consigam realizar seus respectivos objetivos. O contrato é uma ferramenta jurídica usada pelas partes para alcançar determinadas finalidades também jurídicas.

Assim, quando se diz que um contrato foi dissolvido, isto não quer dizer, também e necessariamente, que todas as obrigações do contrato foram igualmente dissolvidas.

A execução regular do contrato acarreta, logicamente, a extinção do próprio contrato e ainda a extinção das obrigações derivadas de tal contrato. Em geral, é isto o que ocorre. Mas nem sempre é assim.

Por exemplo, pense-se no caso de um consumidor que adquire numa loja um liqüidificador. Ao pagar o preço ao vendedor, o comprador terá cumprido sua obrigação contratual. O vendedor, por seu turno, cumprirá sua obrigação ao entregar o liqüidificador ao comprador. Cumpridas estas prestações, o contrato de compra e venda se dissolve. Entretanto, diversas obrigações dele decorrentes persistem depois da extinção do contrato. É o caso da garantia por vícios do produto, por inadequação do produto, da prestação de assistência técnica prometida pelo vendedor ou pelo fabricante, da responsabilidade por danos causados ao consumidor, etc. A origem de todas estas obrigações está no contrato de compra e venda que, contudo, já se extinguiu porque o comprador pagou o preço e o vendedor entregou a coisa. Naquele contrato de compra e venda nada mais há a executar.

Outro exemplo. Uma construtora é contratada para executar as obras de edificação de um prédio de apartamentos. O dono da obra paga à construtora o preço dos serviços contratados. A construtora conclui regularmente a obra. Neste contrato de prestação de serviços por empreitada nada mais há a realizar. Cada parte já cumpriu sua respectiva prestação contratual. Mesmo assim, a construtora tem obrigação de garantir a solidez e segurança da construção pelo prazo de cinco anos. É obrigação contratual que se projeta no tempo posterior à extinção do contrato de empreitada.

A mesma situação ocorre, de modo mais nítido, nos casos de extinção do contrato por inexecução decorrente de mora ou de inadimplemento.

Quando um dos contratantes dá causa à extinção do contrato por mora ou inadimplemento, o outro contratante pode pleitear a declaração judicial de dissolução do vínculo contratual. Extinto o contrato, isto não quer dizer que o contratante inocente não possa mais cobrar a prestação devida do contratante moroso ou inadimplente. Com efeito, o contrato se dissolve, mas a obrigação contratual do contratante responsável pela extinção contratual persiste.

O princípio é o de que, como regra geral, o devedor não se libera de sua obrigação a não ser pagando-a. Logo, o contratante que deu causa à extinção do contrato por mora ou inadimplemento não se libera de sua obrigação contratual, pois o contrato terminou exatamente porque tal obrigação não foi cumprida. Nessas circunstâncias, o contratante credor pode cobrar a prestação do contratante devedor. A cobrança será feita com base no contrato extinto, porque a origem da obrigação está naquele contrato.

Veja-se o exemplo que deixa de pagar os aluguéis devidos ao locador. O locador pedirá a declaração judicial de extinção do contrato de locação porque o inquilino deixou de pagar pontualmente a dívida locatícia. O juiz, então, dissolve o contrato e decreta o despejo do locatário por falta de pagamento. Seria absurdo supor que, nesse contexto, o locador não mais pudesse cobrar os aluguéis que lhe são devidos. Poderá cobrar a dívida e a base para tal cobrança é precisamente o contrato de locação que foi dissolvido.

Mais um exemplo. Um sujeito vai a uma lanchonete e lá adquire um sanduíche para fazer sua refeição. Desde que o comprador pague o preço anunciado e o vendedor entregue o sanduíche prometido, o contrato de compra e venda estará concluído. Ocorre que o comprador teve intoxicação alimentar porque algum dos ingredientes do sanduíche estava deteriorado. O vendedor terá que indenizar o comprador, porque uma de suas obrigações contratuais era a de servir alimento em adequadas condições de consumo, o que não ocorreu. Descumprida esta obrigação de qualidade e de segurança, a vítima pode exigir indenização do vendedor, embora o contrato de compra e venda já esteja extinto.

Como conclusão, é preciso ressaltar, então, que a extinção do contrato (seja por execução ou por inexecução) não significa a extinção simultânea de todas as obrigações contratuais assumidas por cada uma das partes contratantes.

(D) Efeitos da mora e do inadimplemento na extinção do contrato

A mora e o inadimplemento são causas de inexecução culposa, voluntária, do contrato. Verificada a inexecução do contrato nessas circunstâncias, o contratante que não provocou o fato da mora ou o do inadimplemento pode pedir, judicialmente, a dissolução do contrato.

Logo, a mora e o inadimplemento são fatos que dão causa à extinção da relação contratual os efeitos dessa situação são prejudiciais ao contratante culpado.

(V) Classificação dos fatos que dão causa à extinção do contrato

Sempre que o contrato é regularmente executado, o fato que determina sua extinção é o pagamento em sentido técnico das prestações devidas por cada contratante. Tais pagamentos são, obviamente, posteriores ao nascimento da relação contratual e a causa de extinção do contrato. Assim sendo, não há grande dificuldade para o exame da dissolução do contrato.

A situação de extinção do contrato por inexecução (culposa ou não) é mais complexa. A inexecução do contrato pode ser provocada por fatos muito diferentes e, por causa disto, costuma-se começar o estudo da dissolução do contrato por inexecução classificando os fatos que lhe dão causa conforme o momento em que ocorrem.

Há fatos jurídicos anteriores ou simultâneos à formação do contrato que interferem na existência, validade ou eficácia dele, causando sua inexecução, nulidade ou anulabilidade. Outras vezes, os fatos que acarretam a extinção anormal do contrato são posteriores à formação da relação contratual. Desse modo, a inexecução contratual pode ter por causa fatos:

(a) anteriores à celebração do contrato;

(b) simultâneos à formação do contrato; ou

(c) posteriores ao contrato.

As causas posteriores à formação do contrato e que acarretam sua extinção têm sido examinadas na doutrina em três categorias:

(1ª) resolução do contrato;

(2ª) rescisão do contrato; e

(3ª) resilição do contrato.

É preciso, assim, fazer alguns comentários sobre as três categorias mencionadas.

12.2.  RESOLUÇÃO DOS CONTRATOS

A inexecução do contrato, voluntária ou não, é fato jurídico posterior à formação da relação contratual e pode servir de base para que o contratante inocente pleiteie a extinção do contrato.

Caracterizada a inexecução do contrato, o contratante credor tem a alternativa; (a) de exigir o cumprimento da prestação contratual devida (se ainda possível), recolocando, assim, o contrato no sentido de cumprir sua típica função jurídica; ou (b) de pedir judicialmente a dissolução do contrato, cumulada com perdas e danos.

(I) Conceito de resolução

Resolução é a extinção do contrato por causa de inexecução, voluntária ou involuntária.

A inexecução do contrato, voluntária ou não, dá causa à “resolução do contrato”, vale dizer, permite ao contratante que não provocou a inexecução pleitear a dissolução da relação jurídica contratual. Toda inexecução contratual acarreta um prejuízo ao contratante que não lhe deu causa e, assim, é injusto que este contratante tenha que suportar os efeitos negativos do contrato que não foi cumprido pelo outro contratante.

Conforme a inexecução da obrigação contratual seja culposa ou não, os efeitos da resolução serão distintos.

(II) Resolução por inexecução voluntária do contrato

Cada contratante deve cumprir rigorosamente suas obrigações contratuais. Não procedendo assim, por fato decorrente de sua responsabilidade, o contratante devedor dá causa à inexecução voluntária do contrato.

Inexecução voluntária significa que o contratante devedor é responsável pela conduta ilícita de descumprir o contrato. Esse contratante é culpado pelo prejuízo causado ao outro contratante inocente que pode, então, pedir a resolução do contrato.

A resolução do contrato por inexecução voluntária, culposa, produz efeitos tanto em relação às partes contratantes como também em relação a terceiros expostos a tal situação jurídica. Além disto, conforme o contrato seja de execução instantânea ou de execução continuada no tempo, também variarão os efeitos da resolução.

A inexecução voluntária do contrato pressupõe a responsabilidade do contratante moroso ou inadimplente pela falta de cumprimento da obrigação contratual. Por isto, a resolução em exame precisa ser reconhecida judicialmente, vale dizer, o contratante inocente precisa ajuizar ação pedindo o reconhecimento da responsabilidade do outro contratante pela inexecução e, em consequência desses fatos, pedindo também a declaração judicial de resolução do contrato. Portanto, a resolução do contrato por inexecução voluntária não ocorre de pleno direito. Ao contrário, precisa ser reconhecida e declarada judicialmente.

(A) Principais efeitos da resolução por inexecução voluntária do contrato

Evidentemente, a dissolução de um contrato, especialmente em decorrência de resolução por inexecução voluntária, provoca inúmeros efeitos jurídicos. É impossível examiná-los todos, de modo que apenas os mais relevantes serão apresentados.

(1º) extinção do contrato

O principal efeito da resolução é o de dissolver o contrato, extingui-lo, dar-lhe fim. Há que se lembrar, como já foi ressaltado anteriormente, que a extinção do contrato não determina, necessária e simultaneamente, a extinção de todas as obrigações contratuais das partes.

(2º) eficácia retroativa da resolução ex tunc ou ex nunc entre as partes

A resolução extingue o contrato retroativamente e, por conseguinte, é necessário verificar em que casos a eficácia retroativa da resolução é ex tunc ou ex nunc.

A eficácia retroativa da resolução, entre as partes contratantes, dependerá da espécie de contrato resolvido, a saber, contrato de execução instantânea ou contrato de execução sucessiva.

No contrato de execução instantânea as prestações das partes devem ser cumpridas num único ato, de uma única vez. Ora, uma das partes descumpriu sua obrigação e, assim, deu causa à resolução do contrato por inexecução culposa.

Ao ser descumprido por uma das partes um contrato de execução imediata, instantânea, em geral a resolução tem efeitos retroativos ex tunc. Desde o momento da resolução e, retroativamente, até o instante de formação do contrato, todos os seus efeitos se apagam. Isto porque, presume-se, o contratante inocente não teria celebrado o contrato de execução imediata se soubesse que o outro contratante o descumpriria culposamente. Consequentemente, cada parte deve restituir à outra o que recebeu por força do contrato, que fica desfeito como se jamais tivesse existido. Em certos casos, as partes podem regular esta questão da eficácia retroativa da resolução no próprio contrato e, desde que lícita a disposição contratual, os efeitos da resolução serão os especificados na cláusula resolutória.

É diferente quando o contrato resolvido for de execução sucessiva, continuada no tempo. Neste caso, os efeitos do contrato se prolongaram no tempo desde o momento de sua formação até o momento da resolução por inexecução culposa. Esta situação jurídica desencadeia efeitos reflexos do contrato em face de terceiros e, assim, eliminar todos esses efeitos provocaria enorme instabilidade de diversas outras relações jurídicas.

Em atenção a esses problemas, nos contratos de execução sucessiva, continuada no tempo, a regra é a de que a resolução tem efeitos ex nunc, ou seja, não tem efeitos retroativos. O ato resolutório produz seus efeitos a partir da data da resolução para o futuro. Os efeitos contratuais anteriores à resolução remanescem íntegros. As prestações contratuais cumpridas até então não serão devolvidas por um contratante ao outro.

(3º) eficácia retroativa da resolução ex tunc ou ex nunc perante terceiros

Já é sabido que a regra geral é a de que o contrato faz lei entre as partes, não produzindo efeitos maléficos ou benéficos em face de terceiros, salvo em situações muito especiais.

Acontece que, embora os terceiros, em geral, não sejam atingidos diretamente pelo contrato, podem ser alcançados indiretamente por seus efeitos.

Por exemplo. Certa pessoa adquire um imóvel de outra, comprometendo-se a pagar o preço em parcelas. Posteriormente, a pessoa que atuou naquele contrato como compradora do bem, celebra outro contrato de compra e venda do mesmo bem, no qual passou a figurar como vendedora. O comprador do bem neste segundo contrato não é parte do primeiro contrato de compra e venda, mas sim um terceiro. Suponha-se, agora, que o primeiro contrato de compra e venda seja resolvido por iniciativa do vendedor porque o comprador não pagou parcelas do preço. Assim, o comprador do bem naquele primeiro contrato terá que devolver ao vendedor o imóvel objeto daquela negócio jurídico. Ocorre que, em tal ocasião, o bem imóvel não está mais na posse do comprador indicado no primeiro contrato, mas sim na posse do comprador referido no segundo contrato de compra e venda. Num caso como este, o segundo adquirente do bem, desde que esteja agindo em boa fé, não terá que devolver o bem imóvel ao vendedor mencionado no primeiro contrato. Este vendedor terá, apenas, direito de cobrar de seu comprador inadimplente indenização cumulada com perdas e danos.

Em consequência disto, a resolução do contrato por inexecução culposa pode ou não produzir efeitos perante terceiros. Se, entre a data de celebração do contrato e sua resolução, um terceiro vier a adquirir direitos em decorrência reflexa, indireta, remota, daquele contrato, será preciso investigar qual a natureza dos direitos desse terceiro.

Tratando-se de direitos de natureza real, o terceiro não será atingido pelos efeitos da resolução, caso em que o contratante inocente poderá exigir do contratante culpado apenas indenização por seus prejuízos. É o que ocorreu no exemplo da compra e venda do imóvel acima referido.

Nos casos em que o terceiro adquiriu direitos de crédito em função do contrato resolvido, tais créditos estarão frustrados porque a resolução produzirá efeitos na esfera jurídica do terceiro mencionado. É o que se verifica, por exemplo, na hipótese em que alguém contrata um seguro de vida junto a uma seguradora e obriga-se a pagar o prêmio do seguro em parcelas. O segurado indica como seu beneficiário um filho. O segurado deixa de pagar algumas das parcelas do prêmio do seguro e, logo em seguida, falece. O segurado deu causa à resolução do contrato por inexecução culposa. O beneficiário do seguro de vida não é parte no contrato de seguro; é apenas um terceiro exposto aos efeitos daquele contrato. Verificada a aludida resolução contratual, o direito de crédito à indenização securitária, prometida no contrato, extingue-se. Era direito de crédito eventual do beneficiário do contrato e, por causa do inadimplemento do segurado, tal direito não pode mais se realizar.

(4º) ressarcimento do contratante inocente

O contratante que não deu causa à inexecução voluntária do contrato foi prejudicado pelo outro contratante culpado. Tem, por isto, direito de cobrar do inadimplente indenização plena dos prejuízos que este lhe causou.

Trata-se, à toda evidência, de responsabilidade civil contratual, que pode ser subjetiva ou objetiva. Desde que o contratante inocente consiga provar cada um dos requisitos essenciais do dever de indenizar do outro contratante, receberá o ressarcimento completo de seus prejuízos.

(III) Resolução do contrato por inexecução involuntária do contrato

Como já foi esclarecido, em diversas situações a inexecução do contrato resulta de fatos que não podem ser imputados às partes contratantes. Cuida-se de hipóteses em que a inexecução contratual é involuntária, não culposa. O contratante não é responsável pelo descumprimento de sua prestação contratual.

Nos casos de inexecução involuntária do contrato o contratante quer cumprir sua obrigação, mas não pode fazê-lo por impossibilidade a que não deu causa. Embora o devedor não cumpra seu dever contratual, prejudicando assim o outro contratante, não será responsabilizado por esse fato.

É o que se verifica, por exemplo, quando o contratante deixa de cumprir sua obrigação contratual por motivo de força maior, caso fortuito, culpa exclusiva de terceiro, fato governamental insuperável, onerosidade excessiva do contrato, impossibilidade definitiva da prestação devida. Essas causas de resolução serão novamente estudadas um pouco mais adiante.

(A) Requisitos para resolução do contrato por inexecução involuntária

Para que a inexecução involuntária acarrete a resolução do contrato, é preciso atender a certos requisitos, que se passa a examinar:

(1º) fato superveniente ao contrato

A inexecução da obrigação contratual deve ser provocada por fato posterior à formação do contrato. Se o fato que desencadeia a inexecução for anterior ou simultâneo ao nascimento da relação contratual, não se tratará de resolução do contrato por inexecução involuntária.

Evidentemente, o contratante devedor não pode ter dado causa à verificação do fato jurídico que o levou a descumprir o contrato. Por conseguinte, tal fato deve decorrer de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva de outrem.

(2º) impossibilidade de cumprimento do contrato

Há que se retomar, aqui, o princípio da permanência dos contratos, de acordo com o qual deve-se fazer todo o possível para que o contrato cumpra sua função jurídica desejada pelas partes. Apesar de o contratante não ser o responsável pela inexecução involuntária do contrato, deve-se ponderar bem os limites da resolução contratual em exame. Se for possível manter o contrato, mesmo que parcialmente, esta providência deve ser adotada. Portanto, a resolução poderá ser total ou parcial.

Após a formação do contrato verifica-se um fato jurídico que impossibilita o contratante devedor de cumprir sua obrigação contratual. Trata-se de impossibilidade superveniente à formação do contrato, como já se disse. Esta impossibilidade de executar regularmente o contrato tem que ser:

(a) total;
(b) definitiva; e
(c ) objetiva.

A impossibilidade de cumprir o contrato há de ser total e não parcial. Há contratos que têm objetos múltiplos e, nesses casos, a resolução por inexecução involuntária somente ocorrerá se todos os objetos do contrato não mais puderem ser pagos. Isto porque, havendo impossibilidade parcial, ou seja, a que atinge apenas algum ou alguns dos objetos contratuais, pode acontecer de o contratante credor ainda ter interesse em receber os bens remanescentes, possíveis de serem pagos, e resolver o contrato tão somente em relação aos objetos impossibilitados.

Por exemplo. Um fabricante vendeu sua produção de bens certos e bem determinados para outro sujeito e comprometeu-se a transportar a mercadoria até o armazém do comprador. Depois de celebrado o contrato, ocorreu enorme enchente na cidade do vendedor, que perdeu toda a sua produção e ficou impossibilitado de realizar o transporte dos bens. Mesmo que o vendedor queira, não tem como cumprir o contrato em decorrência do evento de força maior. Por isto, o contrato tem que ser resolvido por inexecução involuntária do vendedor.

Outro exemplo. Uma distribuidora de veículos adquire do fabricante dez automóveis, que serão transportados da fábrica para a loja distribuidora por caminhão. Durante o percurso, o caminhão envolve-se num acidente não provocado por seu motorista e quatro dos veículos transportados perecem. Remanescem os outros seis. Pois bem. A distribuidora pode ter interesse em receber os veículos remanescentes e resolver o contrato apenas no que diz respeito aos outro quatro automóveis perdidos. Se todos os automóveis transportados houvessem sido perdidos, então o contrato deveria ser resolvido por inexecução involuntária do contratante devedor daqueles bens.

Mais um exemplo. Um estudante matricula-se num curso qualquer composto por três disciplinas de seu interesse, a serem ministradas por renomados professores. Trata-se de contrato de prestação de serviços personalíssimos, pois as disciplinas terão que ser ministradas por aqueles professores de prestígio e não por outros. Celebrado o contrato, a instituição comunica ao estudante que uma das disciplinas não será oferecida porque o professor dela adoentou-se. Se houver interesse do estudante, pode ele manter o contrato apenas com relação às disciplinas remanescentes. Todavia, se o estudante considerar essencial para sua formação a disciplina cancelada, poderá pedir a resolução do contrato por inexecução involuntária da obrigação da instituição.

A impossibilidade de cumprimento do contrato tem que ser definitiva. Tratando-se de impossibilidade transitória, o contrato será apenas suspenso, não extinto.

Por exemplo, uma pessoa toma em locação uma casa, pelo prazo de doze meses. A obrigação contratual do locador é permitir que o inquilino use o bem durante o prazo contratual. Em decorrência de fortes chuvas, verifica-se uma enchente no imóvel locado, fato este não imputável ao locador. O inquilino é forçado a deixar o imóvel e abrigar-se noutro local, onde permanece por alguns dias. É evidente que o locador não pode cumprir sua obrigação contratual de permitir o uso do bem no período da enchente. Mas tal impossibilidade é passageira, porque logo a situação se regulariza e o locatário pode retornar ao bem locado.

Outro exemplo. Uma pessoa vai ao cinema para assistir a um filme. A obrigação do cinema é a de exibir o filme. Durante a exibição da película, falta energia elétrica em toda a região em que se situa o cinema e, evidentemente, a sua prestação contratual é paralisada. Se a falta de energia durasse tempo tão longo que impedisse a projeção do filme naquele dia, o contrato teria que ser resolvido por impossibilidade definitiva de cumprimento da obrigação contratual assumida pelo cinema. Todavia, a projeção foi suspensa apenas por alguns minutos, sendo reiniciada tão logo o gerador de energia do próprio cinema foi ativado.

Por último, a impossibilidade de cumprimento do contrato tem que ser objetiva. Com isto se quer dizer que não basta que aquele contratante devedor, individualmente considerado, esteja impossibilitado de cumprir sua obrigação contratual para que, então, o mesmo contrato seja resolvido. A impossibilidade tem que ser objetiva, vale dizer, o cumprimento da obrigação é impossível tanto para o contratante devedor como para qualquer outra pessoa que estivesse na sua posição contratual. Obviamente, os contratos personalíssimos são exceção a esta regra. Se um contrato é celebrado intuitu personae e o devedor fica impossibilitado de cumprir sua obrigação contratual, não podendo ser substituído por outro sujeito, é certo que o contrato terá que se resolver. Mas, feita esta ressalva, o contrato não será resolvido por impossibilidade de execução do devedor se a prestação puder ser executada por outrem.

Por exemplo. Um certo cliente contrata um escritório de advocacia para defendê-lo numa ação judicial. O escritório tem três sócios que respondem solidariamente pelo andamento dos processos. O caso daquele cliente está sob os cuidados diretos de um dos advogados que, por ter ficado doente, apresenta-se impossibilitado de elaborar e interpor um recurso de interesse do cliente. Ora, nessa hipótese, é perfeitamente possível que qualquer dos outros dois advogados elabore e interponha o tal recurso. Nenhum deles poderá alegar impossibilidade de cumprimento de suas obrigações contratuais. Logo, a impossibilidade de execução do contrato é  subjetiva, ou seja, um dos advogados não pode cumpri-la, mas os outros dois sim.

Mais um exemplo. Certa transportadora foi contratada para transportar bens de um local para outro, por via rodoviária e por caminhão. O transporte deveria ser completado no prazo máximo de um dia. Durante o percurso, uma obstrução na estrada impede completamente o fluxo de veículos, que deverá ficar interrompido por pelo menos três dias. Inexiste qualquer outro caminho alternativo. Em tais circunstâncias, tanto aquela transportadora como qualquer outra que estivesse em seu lugar não conseguiria  cumprir a prestação contratual. A impossibilidade de execução do contrato nesse caso é objetiva: ninguém pode cumpri-la.

(3º) nexo causal entre o fato determinante da inexecução e a resolução

Além de a impossibilidade de cumprimento da obrigação contratual não poder ter sido provocada pelo devedor, de ter que ser total, definitiva e objetiva, exige-se ainda que haja nexo causal entre aquela impossibilidade e a resolução do contrato.

Noutras palavras, é preciso demonstrar que, verificado o fato impeditivo do cumprimento do contrato, não há outra alternativa razoável senão a de resolver o contrato por inexecução involuntária. Tem que existir, portanto, um nexo causal entre o fato jurídico determinante da inexecução do contrato e a resolução do próprio contrato.

O nexo causal acima referido ficou caracterizado nos exemplos antes mencionados, a saber, o da transportadora que não pode cumprir o contrato por força de obstrução na estrada; o do cinema que precisou paralisar a exibição do filme por falta de energia elétrica (não tendo gerador próprio disponível);  o do caminhão que transportava automóveis e que os perdeu em razão de acidente que não provocou.

(B) Efeitos da resolução do contrato por inexecução involuntária

A resolução do contrato por inexecução não culposa produz efeitos importantes e, para o contratante que descumpriu involuntariamente sua obrigação, significativamente menos severos que os efeitos decorrentes da resolução culposa do vínculo contratual.

Os efeitos que podem ser destacados são os seguintes:

(1º) inexistência do dever de indenizar

Nos casos de inexecução involuntária do contrato não há responsabilidade do contratante devedor pelo fato do não cumprimento da obrigação contratual. Não sendo imputável a ele a aludida responsabilidade, o devedor não tem dever de indenizar os prejuízos que a inexecução contratual acarretar para o outro contratante.

(2º) riscos e prejuízos decorrentes da inexecução involuntária do contrato

No Direito obrigacional existe um princípio de que o dono do bem jurídico deve ter também o titular dos benefícios que tal bem pode proporcionar e, por outro lado, deve suportar os prejuízos decorrentes daquele bem ou sobre o bem. É a chamada teoria do risco obrigacional. Esta teoria tem aplicação também no Direito contratual.

Sendo assim, é preciso investigar quem deve suportar os riscos e prejuízos inerentes à inexecução involuntária do contrato. A distribuição desses riscos e prejuízos entre os contratantes dependerá da espécie de contrato descumprido, a sabe: unilateral ou bilateral.

(a) inexecução involuntária de contrato unilateral

Nos contratos unilaterais, um dos contratantes tem apenas direitos em face do outro contratante que, por seu turno, só tem obrigações diante da parte contrária.

Ocorrendo a inexecução involuntária, isto é, o descumprimento não culposo da obrigação contratual do devedor de um contrato unilateral, a relação contratual deve ser resolvida. O outro contratante, que era o credor da prestação contratual que se impossibilitou, suportará sozinho os riscos e prejuízos oriundos da inexecução involuntária da prestação.

(b) inexecução involuntária de contrato bilateral

No contrato de efeitos bilaterais, cada contratante tem, em face do outro, direitos e obrigações. As partes são reciprocamente credoras e devedoras de obrigações contratuais. A causa da prestação devida por uma das partes é o direito que esta mesma parte tem diante do outro contratante. Desse modo, cada contratante cumpre sua obrigação contratual porque quer receber, por outro lado, o seu crédito oriundo do contrato.

Ora, se uma das partes de um contrato bilateral se vê na situação de descumprir involuntariamente sua obrigação, é preciso examinar se esta mesma parte ainda tem o direito de exigir o seu crédito diante do outro contratante, ou, ao contrário, se o contrato deve ser resolvido.

O entendimento dominante é o de que ninguém pode se enriquecer sem causa jurídica justa. No contrato bilateral, como foi dito, a causa do cumprimento da obrigação de um contratante é o crédito que o mesmo contratante tem em face do outro. Se uma das prestações se impossibilita sem culpa do contratante devedor, é evidente que ele nada terá que pagar, porém, em contrapartida, também nada receberá em decorrência do mesmo contrato. Se viesse a receber seu crédito normalmente, estaria enriquecendo sem causa, já que nenhum pagamento teria feito ao outro contratante.

Nessas circunstâncias, se a prestação de um dos contratantes não for executada sem sua responsabilidade, pode a parte adversa pedir a resolução do contrato por esse motivo. Nesse caso, cada uma das partes deverá restituir à outra as eventuais prestações que até então tenham sido pagas.

(IV) Cláusula de resolução do contrato

Foi comentado várias vezes que, nos contratos de efeitos bilaterais, cada um dos contratantes é simultaneamente credor e devedor de obrigações contratuais diante do outro. As obrigações e os direitos de um contrato bilateral são, por conseguinte, interdependentes. Em decorrência desta peculiaridade dos contratos bilaterais, considera-se implícita em todos eles uma disposição denominada de “cláusula resolutiva”, ou de “pacto comissório”.

A finalidade da cláusula resolutória a de possibilitar a resolução do contrato, a pedido de um contratante, em caso de inexecução culposa por parte do outro contratante.

(A) Conceito de pacto comissório ou cláusula resolutiva

Pacto comissório, ou cláusula resolutiva, é a disposição contratual, expressa ou implícita, que autoriza um dos contratantes a pedir a resolução do contrato em caso de inexecução voluntária de obrigação contratual por parte do outro contratante.

O princípio da força obrigatória do contrato indica que a contratação faz lei entre as partes. Portanto, cada contratante tem que cumprir suas respectivas obrigações contratuais. Se um dos contratantes, por fato de sua responsabilidade, deixa de executar regularmente o contrato, pode o contratante inocente pleitear a resolução do vínculo contratual.

Além do princípio da força obrigatória dos contratos, deve ser lembrado também o princípio ainda mais geral da boa fé que deve nortear qualquer comportamento jurídico. Os contratantes, então, devem adotar comportamento de boa fé um em relação ao outro, cada um cumprindo suas respectivas obrigações contratuais.

Verificada a inexecução voluntária do contrato por qualquer das partes, considera-se possível a dissolução contratual, mas o procedimento da resolução variará conforme se trate de cláusula resolutória expressa ou implícita no contrato.

(B) Espécies de cláusula resolutória

A cláusula resolutória ou pacto comissório pode ser (a) expressa; ou (b) implícita ou tácita.

(a) Cláusula resolutória expressa

Cláusula resolutória expressa é a que está inequivocamente lançada no contrato, ou seja, a que está expressa entre as disposições contratuais.

Apenas o contratante inocente pode invocar a cláusula resolutória como fundamento da resolução do contrato. O contratante que deu causa à inexecução do contrato não pode, obviamente, pretender aplicar aquela cláusula para dissolver contrato cuja inexecução ele mesmo provocou.

Discute-se tanto em doutrina como em jurisprudência se a simples existência da cláusula resolutória expressa é suficiente para resolver o contrato ou, ao contrário, se é necessária a declaração judicial dessa resolução.

Para aqueles que entendem que a cláusula resolutória expressa, por si mesma, é suficiente para resolver o contrato, a extinção da relação contratual opera-se de pleno direito tão logo se constate a inexecução do contrato pelo outro contratante.

Já para os que sustentam que a cláusula resolutória expressa não acarreta de pleno direito a extinção do contrato em caso de inexecução culposa, é necessário que o contratante inocente ajuize uma ação de resolução do contrato, baseando-a na inexecução voluntária do outro contratante e também na cláusula resolutória. Caberá ao juiz, apurados os fatos, declarar ou não a resolução do contrato.

Na maioria das vezes, por influência da legislação francesa, o Direito brasileiro exige que a resolução seja pleiteada judicialmente. Isto quer dizer que a simples verificação da inexecução do contrato não acarreta automaticamente a resolução do vínculo contratual. A resolução, nesse caso, precisaria ser decretada judicialmente. Noutros casos, contudo, e agora por influência do Direito alemão, admite-se que a inexecução provoque automaticamente a extinção do contrato, sem necessidade de intervenção judicial.

A solução dessa controvérsia envolve algumas considerações. A inexecução voluntária do contrato pressupõe mora ou inadimplemento do contratante responsável pela inexecução. Por sua vez, excetuados os casos de responsabilidade objetiva, tanto a mora como o inadimplemento baseiam-se na existência de culpa do devedor. Não é razoável que um dos contratantes tenha o direito de – arbitrariamente – atribuir culpa ao outro contratante pela inexecução do contrato.

Sendo assim, mesmo existindo cláusula resolutória expressa, sua eficácia, ou seja, sua força de resolver automaticamente o contrato não pode ser admitida sem reservas. Quando o contratante inocente ajuiza a ação de resolução do contrato com fundamento na cláusula resolutória e o juiz dissolve o contrato, a questão não oferece dificuldade. Valerá a decisão judicial. O problema mais sério decorre do fato de um dos contratantes invocar a cláusula resolutória e pretender a resolução do contrato extrajudicialmente. Nesse caso, duas situações devem ser consideradas:

(1ª) o contratante culpado aceita a resolução do contrato e a questão fica encerrada; ou

(2ª) o contratante apontado como culpado não aceita esta acusação e discorda da resolução automática do contrato e, portanto, vai a juízo discutir a existência ou inexistência de sua responsabilidade pela inexecução do contrato, de modo que, no final, a questão será mesmo resolvida judicialmente.

Além dessas considerações, há que se ter em mente que há obrigações contratuais com data determinada ou determinável para cumprimento e, por outro lado, obrigações com data indeterminada para cumprimento.

Quando a obrigação contratual tem data determinada para ser cumprida, sua inexecução na data estipulada constitui o devedor em mora de pleno direito, independentemente de qualquer aviso ou notificação para esse fim (art. 960, 1ª parte, do CC). É a regra clássica do brocardo dies interpellat pro homine.

Diversamente, quando a obrigação não tem data certa para cumprimento, pode ser exigida do devedor imediatamente, o que quer dizer, na verdade, que o credor precisa notificar o devedor para que cumpra a obrigação, sob pena de ficar constituído em mora (arts. 127, 952 e 960 2ª, parte, do CC).

Consequentemente, deve-se examinar se a obrigação contratual descumprida tinha ou não data determinada para execução e, conforme o caso, será ou não necessária prévia notificação do devedor para constitui-lo em mora. A cláusula resolutória expressa somente poderá ser invocada pelo contratante inocente depois de caracterizada a mora ou o inadimplemento do contratante devedor que deu causa à inexecução contratual.

Por último, deve ser lembrado que em muitas e muitas hipóteses a própria lei atribui à cláusula resolutória expressa a força suficiente para que o contrato seja resolvido de pleno direito, independentemente, portanto, de declaração judicial para esse fim. Outras vezes, a lei concede ao devedor um prazo em que ele pode impedir a resolução do contrato, remendando sua falta.

A título de exemplos, pode-se citar o caso do locatário que, para evitar a resolução do contrato de locação com cláusula resolutória expressa, pede o benefício de purgação da mora na ação de despejo por falta de pagamento em que figura como réu. É também o caso do compromissário comprador do imóvel que, para evitar a resolução do contrato de compromisso de compra e venda, pode purgar sua mora após receber do credor notificação para esse fim. É ainda a situação do devedor de parcelas de financiamento garantido por alienação fiduciária do bem financiado. Comprovada sua mora nos termos previstos na lei específica, pode o devedor que já houver pago 40% da dívida evitar a resolução do contrato purgando sua mora. Se pagou menos que aquele percentual, a resolução do contrato é de rigor.

Recomenda-se que a cláusula resolutória expressa discrimine quais as obrigações que, descumpridas, acarretarão a resolução automática do contrato. Todavia, na prática contratual, esta providência não é adotada, até mesmo por razões técnicas ou estratégicas na estrutura contratual.

(b) Cláusula resolutória implícita ou tácita

Mesmo que a cláusula resolutiva, ou pacto comissório, não conste expressamente no contrato, existe a presunção legal de que esta disposição está sempre implícita nos contratos bilaterais. É o que se chama de cláusula resolutiva implícita ou tácita.

Cláusula resolutória implícita ou tácita é a que não consta expressamente do contrato, nem foi excluída de modo inequívoco pelos contratantes, mas é legalmente presumida com o propósito de autorizar que um dos contratantes pleiteie, judicialmente, a resolução do contrato por inexecução voluntária de obrigação contratual do outro contratante..

O contrato de efeitos bilaterais – e isto já foi dito tantas vezes – se caracteriza pelo fato de que as partes são reciprocamente credoras e devedoras das obrigações oriundas do contrato. Por conseguinte, a causa do pagamento da obrigação de uma parte é o crédito que esta mesma parte tem em face do outro contratante. Por força do princípio da obrigatoriedade dos contratos e também do princípio da boa fé negocial, cada um dos contratantes deve cumprir suas respectivas obrigações. Dessa maneira, a falta de execução da prestação por parte de um dos contratantes autoriza que o outro possa pleitear a resolução do contrato.

Já foi assinalado durante o exame da cláusula resolutiva expressa que:

(1º) a inexecução voluntária do contrato pressupõe mora ou inadimplemento do contratante devedor;

(2º) a caracterização da mora ou do inadimplemento do devedor pode ocorrer de pleno direito ou após notificação endereçado pelo credor ao devedor para esse fim.

Ora, ficou claro então que a resolução do contrato por inexecução culposa causada por um dos contratantes exige averiguação da efetiva existência de responsabilidade desse contratante devedor. Não havendo no contrato bilateral previsão expressa de cláusula resolutiva, somente por via judicial poderá o contratante inocente pedir a resolução do contrato.

Assim, o contratante inocente terá que ajuizar a ação, demonstrar que a inexecução do contrato decorreu de fato de responsabilidade do outro contratante e, depois disto, terá que obter uma sentença judicial que decrete a mora ou inadimplência do devedor e, ainda, decrete a resolução do contrato por este motivo.

Em síntese, na ausência de cláusula resolutiva expressa, a resolução do contrato por inexecução voluntária somente pode ocorrer por via judicial.

(V) Resolução do contrato por onerosidade excessiva

O princípio da obrigatoriedade do contrato determina que cada contratante cumpra sua respectiva obrigação contratual, mesmo que, para esse fim, tenha que suportar sacrifícios maiores do que aqueles que haviam sido previstos ou, por outro lado, tenha que receber benefícios menores que os esperados.

Ao celebrarem o contrato, as partes devem analisar cuidadosamente suas respectivas situações jurídicas, os riscos e benefícios que podem esperar da contratação, o contexto em que o contrato será executado e as possíveis transformações desse contexto. Enfim, as partes devem examinar criteriosamente os fatos atuais e os futuros, mas previsíveis, que podem influir tanto na celebração do contrato como no seu cumprimento. Se qualquer das partes deixar de adotar as referidas cautelas, poderá ter que suportar efeitos prejudiciais do contrato e, ainda que isto ocorra, tal contratante tem que cumprir suas obrigações contratuais.

Entretanto, por mais diligentes que os contratantes sejam, muitas vezes fatos posteriores à formação do contrato e totalmente imprevisíveis interferem na eficácia contratual e tornam excessivamente oneroso para uma das partes o cumprimento de sua obrigação.

É preciso entender bem este ponto. No momento em que o contrato foi celebrado, as obrigações das partes contratantes estavam equilibradas entre si, eram proporcionais, comutativas. O empobrecimento que uma parte teria ao cumprir sua obrigação contratual seria justamente compensado pelo recebimento da prestação devida pelo outro contratante. Mais tarde, aqueles fatos supervenientes à formação do contrato e completamente imprevisíveis vêm a acontecer, alterando a comutatividade das obrigações de cada contratante. Uma dessas obrigações passa a ser excessivamente onerosa para o contratante devedor dela. A ocorrência desses fatos novos e imprevisíveis não se tornam a prestação contratual de uma das partes impossível (o que seria causa de resolução por inexecução involuntária). Nessas novas circunstâncias, o contratante devedor da obrigação ainda pode cumpri-la, porém de modo excessivamente oneroso, sacrificado, injusto.

É a situação em que o contratante, se ser forçado a cumprir sua obrigação contratual, empobrecerá desmesuradamente, suportará sacrifícios extremados, ficará em estado de ruína. Em contrapartida, o outro contratante, credor da obrigação, enriquecerá desarrazoadamente, auferirá extremos benefícios da contratação, aumentará sua fortuna sem causa jurídica justa.

Nesses casos, não é justo exigir que o contratante devedor da obrigação excessivamente onerosa a execute, sem ter contraprestação equivalente. Daí surgiu a Teoria da Imprevisão, também referida com a cláusula rebus sic stantibus.

(A) Teoria da imprevisão e revisão contratual

Nos termos da Teoria da Imprevisão, é possível atenuar o princípio já examinado da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda).

As partes celebram o contrato tendo em vista os riscos que aceitam correr e as vantagens que pretendem auferir. Portanto, celebram o contrato num determinado contexto de fato que conhecem ou deveriam conhecer e cujas transformações são capazes de prever. Por isto mesmo, o contrato deverá ser cumprido pelas partes, mesmo que elas não consigam auferir todas as vantagens que imaginaram poder obter, ou ainda que o prejuízo de cada uma delas seja maior do que aquele que a parte inicialmente se dispôs a suportar.

No entanto, é possível que no decorrer da vigência do contrato o contexto em que as partes contrataram se altere radical e profundamente. Essas transformações, na medida em que tenham sido imprevisíveis, drásticas e coloquem uma das partes em desvantagem exagerada em face do outro contratante, autorizam que a parte prejudicada pleiteie a revisão judicial do contrato.

É importante esclarecer que a Teoria da Imprevisão não tem por finalidade dissolver o contrato. Bem ao contrário, o objetivo dessa teoria é – exatamente – o de manter o contrato. Para chegar a esse resultado, admite-se que o juiz revise o contrato e introduza nele as modificações necessárias para restabelecer o equilíbrio contratual entre as partes. Somente quando não for possível proceder a essa revisão contratual é que o juiz dissolverá o contrato em que uma das partes se encontra em manifesto desequilíbrio em face da parte contrária.

Enfim, o fundamento jurídico da Teoria da Imprevisão é o de que ninguém pode enriquecer injustamente, às custas de sacrifício desproporcional a ser suportado pela outra parte contratante.

A cláusula rebus sic stantibus está associada ao princípio da obrigatoriedade dos contratos porque, por presunção legal, os contratantes obrigam-se a cumprir suas respectivas obrigações contratuais se e enquanto o contexto em que o mesmo contrato foi celebrado e terá que ser executado permanecer razoavelmente estável.

No Brasil, a Teoria da Imprevisão é construção doutrinária e jurisprudencial. Até o advento do CDC, em 1.990, inexistia no Direito brasileiro norma legal expressa contemplando tal teoria. O art. 6º, V, do CDC, foi o primeiro dispositivo legal brasileiro a tratar expressamente da referida teoria.

(B) Requisitos para aplicação da teoria da imprevisão

Para a aplicação da Teoria da Imprevisão exige-se a presença destes requisitos:

(1º) que, após a celebração do contrato, sobrevenha séria e significativa transformação do contexto em que o contrato foi formado e no qual terá que ser executado;

(2º) que a transformação referida tenha sido absolutamente imprevisível pelas partes no momento em que contrataram;

(3º) que, em decorrência da aludida transformação contextual, o equilíbrio contratual tenha sido rompido e uma das partes passe a estar em situação significativamente desfavorável em relação à parte contrária;

(4º) que o contratante devedor ainda não tenha executado sua obrigação e esteja na iminência de se tornar inadimplente;

(5º) que seja possível corrigir esse desequilíbrio contratual anormal mediante a intervenção judicial no contrato, ou então resolver o mesmo contrato.

Observe-se que o fato novo e imprevisível que tornou a obrigação de um contratante excessivamente onerosa não pode ter sido provocado por ele mesmo. Ninguém pode alegar sua própria malícia em seu benefício.

O fato novo e imprevisível tem que ser de tal ordem que provoque transformação radical do contexto em que o contrato foi celebrado e no qual teria que ser executado. As transformações contextuais normais, previsíveis, toleráveis, terão que ser suportadas pelo contratante devedor, ainda que com sacrifício maior que aquele imaginado por ele.

É necessário, ainda, que o fato no e imprevisível seja a causa determinante da onerosidade excessiva alegada pelo contratante devedor. Noutras palavras, é preciso existir um nexo causal entre aquele fato e a onerosidade anormal contra a qual o contratante se insurge.

Obviamente, o devedor não poderá alegar a onerosidade excessiva de sua prestação depois de já tê-la cumprido. Se sua obrigação contratual – mesmo que muitíssimo onerosa – for regularmente cumprida, é incabível a alegação da teoria da imprevisão. Por conseguinte, o pedido de revisão do contrato, ou o de resolução dele por onerosidade excessiva, só é admissível antes de o contratante devedor cumprir sua obrigação contratual.

Exige-se, também, que o contratante devedor demonstre que, em decorrência da onerosidade excessiva de sua prestação contratual, está em situação iminente de se tornar inadimplente perante o contratante credor.

Depois de satisfeitos todos esses requisitos, o juiz examinará se é possível revisar o contrato para reequilibrá-lo, ou seja, para restabelecer a comutatividade, a correspondência, a equitatividade das prestações de cada contratante.  Não sendo possível esta revisão judicial do contrato, então o vínculo contratual será resolvido por onerosidade excessiva.

12.3. RESILIÇÃO DOS CONTRATOS

Assim como as partes são, em geral, livres para celebrarem ou não o contrato, são também livres para, de comum acordo ou mesmo unilateralmente, extinguirem o contrato. Desse modo, o contrato pode ser extinto por deliberação das partes contratantes ou apenas de uma delas.

A vontade unilateral ou bilateral de desfazer o contrato é, assim, uma fato posterior à formação do contrato. Por óbvio que não pode ser anterior ou concomitante à formação do contrato, pois o efeito da resilição é o de dissolver um vínculo contratual já formado.

Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a resilição não contraria o princípio da obrigatoriedade do contrato. Este princípio, tantas e tantas vezes já mencionado, indica que, celebrado o contrato, cada um dos contratantes dele cumpri-lo, porque a contratação faz lei entre as partes. Por esta razão, nenhuma das partes pode declarar-se liberada do contrato sem a concordância da outra parte ou sem autorização legal.

Por conseguinte, a resilição tem lugar para dissolver o contrato quando todos os contratantes concordarem com este fato, ou quando a lei der autorização para que um dos contratantes o faça por meio de declaração unilateral de vontade. Num e noutro caso, o princípio da obrigatoriedade dos contrato não é desprestigiado. Ao contrário, é valorizado, porque, inexistindo concordância de todos os interessados para que se opere a resilição, ou não havendo autorização legal para que isto ocorra por iniciativa de apenas um dos contratantes, o contrato continua a ser obrigatório para todos.

(I) Conceito de resilição

Resilição é a dissolução de um contrato, já celebrado e ainda não integralmente executado, por acordo de vontades dos contratantes para esse fim, ou por meio de declaração unilateral de vontade de um dos contratantes que esteja autorizado pela lei ou pelo próprio contrato para proceder assim.

Os termos do conceito já indicam que a dissolução do contrato por resilição pode decorrer de acordo de vontade dos contratantes, ou de vontade unilateral do contratante interessado na extinção do contrato.

Quando a resilição resulta do acordo de vontades dos contratantes para extinguir o contrato, diz-se haver distrato. Se a resilição resulta de declaração unilateral de vontade de um contratante, diz-se haver denúncia.

(II) Cabimento da resilição contratual

Obviamente, as partes somente podem extinguir de comum acordo um contrato que ainda não tenha sido totalmente cumprido, porque, se o contrato já tiver sido integralmente executado, é óbvio que não mais existiria contrato a ser resilido. Portanto, a resilição só é possível para os contratos que foram cumpridos apenas parcialmente, ou para os que ainda não foram cumpridos.

Já foi esclarecido anteriormente que para se formar um contrato exige-se, pelo menos, duas declarações de vontade (uma de cada contratante). Por conseguinte, em geral, também para se dissolver o contrato exige-se declaração de vontade nesse sentido de cada um dos contratantes. A regra geral é a de que não se pode dissolver o contrato unilateralmente, salvo se isto for autorizado pela lei ou por alguma das disposições do contrato a ser dissolvido. Esta questão será melhor examinada um pouco mais adiante, quando se tratar das espécies de resilição.

A deliberação das partes contratantes de terminar o contrato não pode, contudo, ser prejudicial a terceiros. Noutros termos, a resilição contratual não pode ser fraudulenta ou simulada com o propósito de lesar terceiros. Por exemplo, uma empresa mantém um contrato de fornecimento de bens com outra empresa. A empresa fornecedora tem seu único faturamento decorrente do aludido contrato. Para lesar os seus próprios credores, a empresa fornecedora convenciona com a outra empresa a resilição do contrato de fornecimento. Ao proceder assim, a empresa fornecedora deixa de ter recursos em caixa e priva seus credores dos meios necessários ao recebimento dos créditos que têm em face da empresa fornecedora. Nesse caso, a resilição do contrato poderá ser impugnada pelos credores prejudicados por tal operação jurídica.

(III) Espécies de resilição

A resilição pode ser bilateral ou unilateral.

A resilição, tecnicamente, é bilateral, porque, em geral, ambos os contratantes devem declarar suas respectivas vontades de terminar a relação contratual. Nessa hipótese, na vida prática é também denominada “distrato contratual”. Distratar é desfazer o contrato celebrado.

Entretanto, é conhecida também a resilição unilateral. Nesse caso, bastaria que apenas um dos contratantes, unilateralmente, manifestasse sua vontade de romper a relação contratual. Mais precisamente, essa situação é denominada de denúncia do contrato.

Mas a resilição unilateral o é apenas aparentemente. Na verdade, a resilição unilateral decorre:

(1º) ou de expressa disposição contratual que a autoriza;

(2º) ou de disposição legal que atribui a um dos contratantes o poder de, em certos casos e respeitados determinados pressupostos, dissolver o contrato por manifestação unilateral de vontade.

Quando a resilição unilateral tem por base uma disposição contratual que a autoriza, deve-se prestar atenção em alguns fatos importantes. A disposição do contrato permissiva de resilição unilateral é o resultado do acordo de vontade dos contratantes. Portanto, as partes – bilateralmente – convencionaram ser possível que uma delas, em determinados casos, pudesse no futuro dissolver unilateralmente a contratação. Portanto, a causa, o fundamento, da vontade unilateral de resilir é o anterior acordo de vontade das partes que autorizou tal resilição.

Rigorosamente, a resilição é o resultado do acordo de vontades dos contratantes para extinguir um contrato entre eles e que ainda não foi completamente cumprido.

Quando a vontade unilateral de resilir o contrato é manifestada com fundamento em permissão legal, tem-se que observar o seguinte. Ao celebrarem um contrato, as partes podem exercer suas respectivas autonomias de vontade apenas nos limites em que a lei não intervém na disciplina contratual. Assim, se há um preceito legal que regula determinado contrato, deve-se entender que tal disposição está implícita no conteúdo do contrato. Em certos casos, a disposição legal é supletiva da vontade das partes e, então, as partes podem afastá-la dispondo no contrato de modo diverso. Se as partes não afastam do contrato uma disposição legal de natureza supletiva, então essa disposição está contida no contrato. Outras vezes a disposição legal e cogente e, por isto, os contratantes não podem contrariar a norma legal, que está necessariamente integrada ao contrato.

Nessas circunstâncias, se a disposição legal cogente ou supletiva estiver integrada ao contrato, as partes estão sujeitas a tal comando normativo e, no que diz respeito à matéria tratada no preceito legal, as partes não mais exerceram suas respectivas autonomias de vontade.

Postas todas essas considerações, há que se concluir que o contratante que deseja resilir um contrato por meio de uma declaração unilateral de vontade assim procede:

(1º) em decorrência do acordo de vontades das partes que, ao celebrarem o contrato, deixaram de afastar uma disposição legal supletiva que poderiam ter contrariado, mas não contrariaram e, assim, permitiram – por convenção, insista-se – que a resilição por iniciativa de um dos contratantes fosse possível;

(2º) valendo-se de permissão legal cogente, contra a qual as partes do contrato não poderiam se insurgir, de maneira que, ao celebrarem o contrato, as partes sabiam que ele poderia ser resilido por uma das partes apenas, porque assim quis a lei.

É o que sucede, por exemplo, quando uma disposição legal autoriza que uma das partes revogue sua declaração de vontade contratual, ou quando autoriza o contratante a se arrepender do contrato celebrado.

De qualquer modo, a denúncia do contrato, ou resilição unilateral, é exceção ao sistema do Direito contratual. Sabe-se que em geral prevalece o princípio da obrigatoriedade dos contratos, de sorte que nenhuma das partes pode romper unilateralmente o contrato. No entanto, nos casos acima mencionados, admite-se o rompimento do contrato por declaração unilateral de um dos contratantes.

É o que ocorre, por exemplo, nos contratos baseados na confiança que uma parte tem em relação ao outro contratante e que, uma vez abalada, torna inviável a manutenção do contrato (mandato, comissão mercantil, sociedade, gestão de negócios, comodato, depósito), ou ainda nos contratos de execução de continuada com prazo indeterminado.

A denúncia do contrato, ou resilição unilateral, pode ser efetivada com aviso prévio à outra parte ou sem ele. O mais comum é que seja dado um aviso prévio ao outro contratante, de maneira a possibilitar que ele se prepare para o fim da relação contratual.

(IV) Efeitos da resilição

Os efeitos da resilição são diferentes conforme ela seja bilateral ou unilateral.

Quando a resilição é bilateral, há que se respeitar a vontade das partes no que concerne aos efeitos do contrato. Poderão as partes eliminar todos os efeitos já produzidos pelo contrato (eficácia ex tunc da resilição), resguardar alguns desses efeitos e eliminar outros, ou ainda poderão impedir que o contrato produza efeitos a partir da resilição (efeitos ex nunc da resilição). Em qualquer dessas hipóteses, a resilição não poderá prejudicar terceiros, ou seja, não poderá ser um ato simulado ou fraudulento.

Sendo a resilição unilateral (denúncia do contrato), os efeitos produzidos pelo contrato são sempre respeitados, de maneira que tal resilição tem eficácia ex nunc.

(V) Forma da resilição

Foi examinado anteriormente que, em geral, no Direito contratual prevalece o princípio da liberdade de forma. Os contratantes podem celebrar o contrato pela forma que desejarem, desde que a lei não tenha exigido forma especial ou não proíba a forma escolhida pelos contratantes.

Assim, a resilição, por ser um acordo de vontades de natureza contratual, também segue o princípio da liberdade de forma, a não ser que a lei exija forma especial ou vede a forma desejada pelas partes.

Nos contratos para cuja celebração a lei exige forma especial não se pode proceder á resilição por forma diferente. Tem-se que realizar a resilição obedecendo-se a mesma forma que a li exige para a formação do contrato a ser resilido.

Quando a lei não exige forma especial para a celebração do contrato, a resilição dele pode ser feita por qualquer forma. Recomenda-se, contudo, que as partes não realizem a resilição do contrato por forma menos severa do que aquela que escolheram para celebrar o mesmo contrato. Deve-se escolher para a resilição, pelo menos, a mesma forma usada para formalizar o contrato.

Por exemplo, se o contrato foi celebrado por escritura pública, não é adequado resili-lo verbalmente, ou por escrito particular. Deve-se realizar a resilição também por forma pública.

(VI) Exemplos referentes à resilição contratual

Pode-se agora citar alguns exemplos desse caso de extinção do contrato.

Locador e locatário celebraram o contrato de locação de um imóvel pelo prazo de doze meses. No entanto, antes de decorrido o prazo contratual, o locador pede ao inquilino a devolução do imóvel por um motivo justo. Como o prazo do contrato ainda não acabou, o locatário não pode ser compelido a aceitar a dissolução do contrato mas, se assim quiser, ele e o locador podem de comum acordo por fim à relação contratual de locação.

Outro exemplo. Considerado o mesmo contrato de locação acima mencionado, há que se lembrar que a atual lei de locação predial urbana permite que o locatário antecipe o fim do contrato de locação. Assim, antes de esgotado o prazo de doze meses de locação, pode o locatário denunciar a locação (isto é, manifestar sua vontade de por fim ao contrato) dando ao locador aviso prévio de trinta dias e, obviamente, sujeitando-se às penalidades previstas no contrato por não cumprir o prazo previsto. Esta denúncia do contrato de locação é feita por vontade unilateral do inquilino, com amparo na lei.

Mais um exemplo. Num contrato de representação comercial, consta uma cláusula autorizando que qualquer das partes, unilateralmente, denuncie o contrato dando à outra um aviso prévio de sessenta dias. Por conseguinte, tanto o representado como o representante poderão invocar tal cláusula do contrato para, unilateralmente, darem fim à relação contratual.

12.4. RESCISÃO DO CONTRATO

O termo técnico “rescisão” é frequentemente usado na prática contratual como sinônimo tanto de resolução como de resilição. Na verdade, porém, seu significado é um pouco mais preciso.

A resolução é a extinção do contrato por inexecução, voluntária ou involuntária. A resilição, por sua vez, é a dissolução do contrato em decorrência de manifestação bilateral ou unilateral das partes para esse fim.

A rescisão envolve a noção de lesão. Por esta razão, há que se examinar os conceitos de lesão e de rescisão.

(I) Conceito de lesão

Lesão é a situação de desequilíbrio das prestações contratuais devidas por um dos contratantes ao outro, de modo que este último aufere vantagem excessiva do contrato por ter explorado injustamente a inexperiência ou a necessidade do outro contratante no momento da celebração do contrato.

A lesão representa a falta de comutatividade entre as prestações devidas por um dos contratantes ao outro. Não há equidade, equilíbrio, correspondência entre a obrigação de um contratante  e a do outro. Não há, numa palavra, sinalagma. Por causa disto, um dos contratantes obtém vantagens excessivas em face do outro. Uma das partes tem que suportar sacrifícios anormais, exagerados, injustos, desproporcionais se considerados em relação à contraprestação devida pela outra parte.

Entenda-se bem: não se trata de onerosidade excessiva resultante de fatos novos e imprevistos pelas partes e que desequilibra o contrato, que era originalmente justo, comutativo, equilibrado. Na hipótese de onerosidade excessiva, o contrato formou-se de modo idôneo e foi posteriormente desequilibrado por que fatos novos e imprevisíveis tanto pelas partes como para qualquer outra pessoa comum transformaram radicalmente o contexto contratual. O desequilíbrio entre prestação e contraprestação é, portanto, objetivo: qualquer pessoa que estivesse na posição contratual ocupada pelos verdadeiros contratantes também se depararia com a onerosidade excessiva do contrato.

No caso específico da lesão, o contrato já se forma desequilibrado. Nele uma das partes tem vantagens desarrazoadas, enquanto que a outra parte tem que suportar obrigações igualmente desmesuradas. Preste-se muita atenção: o desequilíbrio entre prestação e contraprestação é aferido entre os contratantes e tendo-se em vista o contrato em si mesmo. Noutros termos, não se exige que o desequilíbrio seja resultante de fatos novos e imprevistos, determinantes de profunda alteração do contexto do contrato. Também não se exige que o desequilíbrio seja objetivo, isto é, que qualquer outra pessoa que estivesse na posição dos contratantes também se deparasse com a situação de não comutatividade entre prestação e contraprestação.

No contrato celebrado com lesão, existe um elemento subjetivo muito forte: a inexperiência ou necessidade de um dos contratantes. Exatamente porque um dos contratantes é inexperiente para contratar, ou porque tem necessidade premente de celebrar o contrato, o outro contratante explora, a seu favor, esses fatores e estabelece disposições contratuais iníquas, que lhe proporcionam vantagem manifestamente exagerada diante do contratante prejudicado, lesado.

Alguns exemplos ajudarão a compreender bem a figura da lesão.

Uma pessoa leva um familiar seu ao pronto socorro de um hospital particular, porque aquele familiar sofreu um grave acidente e corre risco de vida. O hospital mencionado era o mais próximo para que o socorro urgente fosse prestado à vítima. Aproveitando-se da situação de desespero em que se encontrava o sujeito que levou seu familiar ao hospital,  a empresa hospitalar o induz a celebrar um contrato de prestação de serviços médicos e hospitalares excessivamente oneroso para aquele cidadão. Pode até ser que para outros usuários do hospital os preços de tais serviços sejam os regularmente praticados. No entanto, para o mencionado contratante, os preços são absurdamente elevados. O sujeito somente celebrou o contrato por causa da situação de necessidade urgente de atendimento médico ao seu familiar acidentado. Houve, portanto, lesão, já que, em relação àquele contratante específico, o hospital obteve vantagem contratual exagerada e, por sua vez, o sujeito submeteu-se a prestações contratuais tão onerosas que dificilmente poderá cumpri-las.

Outro exemplo. Uma senhora já bastante idosa, viúva e sem qualquer assistência, vendeu por preço irrisório sua casa localizada num dos bairros mais valorizados da cidade. A mulher não é interdita, de modo que podia perfeitamente celebrar o contrato. Todavia, o comprador, percebendo que se tratava de senhora desamparada, sem qualquer experiência negocial, aproveitou-se de tal situação e adquiriu o imóvel por apenas 10% de seu valor real. Nesse contexto, houve lesão, pois o comprador adquiriu bem por valor 90% menor do que aquele que pagaria a uma pessoa experiente e consciente do preço real do bem imóvel vendido.

A lesão contratual, por conseguinte, é sempre analisada casuisticamente, levando-se em conta os aspectos subjetivos de cada contratante e a falta de comutatividade das prestações que um deve ao outro.

Muitas vezes, a caracterização da lesão é conseguida por meio da prova do dolo contratual de uma parte em relação à outra, ou com a prova do erro substancial, ou, ainda, com a prova da coação (se o contrato foi celebrado em estado de necessidade tal que chegue a se apresentar como coação de um contratante em face do outro).

(II) Conceito de rescisão

Entendido o conceito de lesão, é possível fornecer agora o conceito de rescisão.

Rescisão é a extinção do contrato em razão de lesão.

A rescisão é fato jurídico superveniente à formação do contrato. Dissolve contrato já celebrado e, obviamente, ainda não executado completamente.

A rescisão necessariamente tem que ser decretada em sentença judicial. O contratante lesado deve ajuizar ação específica para obtê-la, porque a lesão exige a cognição de todos os elementos que a caracterizam e isto somente pode ocorrer pela via judicial, em que cada contratante poderá produzir ampla prova a respeito de suas respectivas alegações.

Decretada a rescisão do contrato, os efeitos da sentença retroagem à data de celebração do contrato, apagando todos os efeitos produzidos entre as partes. A eficácia da sentença de rescisão contratual é, então, ex tunc. Todavia, a tendência tradicional é a de se respeitar os direitos adquiridos por terceiros expostos, indiretamente, aos efeitos do contrato. Nesse caso, não sendo possível recolocar as partes contratantes no mesmo estado em que estavam antes da celebração do contrato lesivo, a parte culpada pela lesão terá que indenizar plenamente a parte prejudicada.

12.5. EXTINÇÃO DO CONTRATO POR NULIDADE OU ANULABILIDADE

Ao serem examinados os requisitos de formação do contrato, foi comentado que, sendo o contrato um ato jurídico em sentido estrito e, mais precisamente, um negócio jurídico, deve apresentar os requisitos exigidos para a prática de qualquer ato jurídico.

O contrato, portanto, tem que reunir requisitos genéricos, requisitos específicos de cada categoria contratual e, ainda, requisitos próprios do tipo contratual considerado.

O exame de qualquer ato jurídico deve atentar para três aspectos: (1º) é preciso investigar se o ato existe juridicamente; (2º) é necessário verificar se o ato, uma vez existindo juridicamente, é válido ou inválido; e (3º) é finalmente imprescindível examinar se o ato existente juridicamente e válido, é eficaz.
(I) Inexistência, invalidade e ineficácia dos atos jurídicos

Todo ato que é juridicamente inexistente é, por essa mesma razão, inválido e ineficaz. Mas, mesmo que um ato tenha existência jurídica, isto não significa que necessariamente também seja válido e eficaz.

O ato que existe juridicamente pode ser válido ou inválido. Se for válido, poderá ser eficaz ou ineficaz. Se for inválido, obrigatoriamente será ineficaz.

(A) Ato juridicamente inexistente

Ausente qualquer dos requisitos essenciais do contrato, a relação jurídica contratual sequer chega a se constituir. É o chamado ato inexistente que, por isto mesmo, não produz qualquer efeito jurídico.

O ato que não tem existência jurídica não é objeto de disciplina legal. Como ele não produz efeitos jurídicos, é equiparado ao ato nulo que, embora tenha existência jurídica, igualmente não gera efeitos jurídicos.

O ato é juridicamente inexistente quando lhe faltam elementos essenciais, a saber (arts. 82 e 145, I, II e III, do CC):

(1º) declaração de vontade feita por sujeito capaz genérica e especificamente para aquele ato;

(2º) ser o objeto da declaração de vontade impossível ou ilícito; e

(3º) não ter sido a declaração de vontade revestida pela forma exigida pela lei, ou ter adotado forma vedada pela lei.

Os principais aspectos dessa matéria já forma explanados na ocasião do exame dos requisitos essenciais do contrato.

(B) Invalidade do ato jurídico

Mesmo que o ato tenha existência jurídica, ou seja, que apresente todos os seus elementos essenciais, é possível que contenha vício que o torne inválido.

(a) espécies de invalidade

A invalidade do ato jurídico existente tem o nome genérico de nulidade, que pode ser:

(a) nulidade absoluta; ou
(b) nulidade relativa, também designada anulabilidade.

(b) nulidade e seus efeitos

A nulidade absoluta é comumente referida como “nulidade” simplesmente. Sua causa é um vício considerado tão grave pela lei que não permite saneamento.

Assim, o ato nulo não pode ser ratificado, nem retificado. Para corrigi-lo, tem-se que praticar o ato novamente e, nesse caso, seus efeitos começam a fluir apenas a partir do momento em que foi refeito o ato. Isto porque o ato nulo não produz efeito algum. Enfim, a ineficácia do ato nulo é ex tunc, isto é, desde o momento de sua prática não produz qualquer efeito.

Os casos genéricos de nulidade são os referidos nos incisos IV e V, do art. 145, do CC, ou seja, o ato é nulo quando não for observada alguma solenidade que a lei considere essencial para sua validade. Também é nulo o ato quando a lei assim o declarar expressamente.

Por exemplo, a falta de leitura de uma escritura pública, em voz alta, pelo tabelião, na presença dos contratantes e dos demais intervenientes no ato, torna nula a escritura em decorrência de não ter sido observada solenidade que a lei considera essencial para tal ato.

Outro exemplo. O Código de Defesa do Consumidor declara nulas de pleno direito as disposições contratuais abusivas e prejudiciais ao consumidor.

A nulidade do ato pode ser reconhecida judicial ou extrajudicialmente e, evidentemente, não pode ser alegada pela parte que a provocou. Feita esta exceção, a nulidade pode ser alegada por qualquer pessoa, interessada ou não na eficácia do ato.

(c) anulabilidade do ato

O ato anulável tem existência e validade jurídica, de modo que pode produzir efeitos jurídicos. Todavia, padece também de um vício. Esse vício não é considerado pela lei como grave, de sorte que o ato – mesmo com o defeito – está apto a produzir efeitos enquanto não for declarada judicialmente a anulação desse ato por pessoa nisto interessada.

As causas genéricas de anulação do ato jurídico estão referidas no art. 147, do CC, e são: erro, dolo, coação, simulação ou fraude.

A anulação do ato tem que ser pedida sempre judicialmente. Só os interessados nesta anulação podem requerê-la, sendo óbvio que tal requerimento não pode ser formulado por quem provocou o vício no ato.

O anulável pode ser retificado, ratificado, ou corrigido e, em qualquer desses casos, os efeitos do saneamento retroagem à data em que o ato viciado foi praticado. A eficácia do ato corretivo é ex tunc, retroativamente.

(C) Ineficácia do ato jurídico

Sendo o ato jurídico existente e válido (ou seja, não sendo nulo nem anulável), resta saber se é eficaz.

Tratando-se de ato jurídico simples, vale dizer, ato jurídico cujos efeitos não estão sujeitos a condição, a termo ou a encargo, pode produzir seus efeitos tão logo seja praticado.

Mas, se o ato jurídico tiver seus efeitos subordinados a condição suspensiva, a termo inicial ou a encargo suspensivo, então a eficácia do ato estará paralisada enquanto:

(a) não ocorrer o implemento da condição suspensiva;

(b) não for alcançado o termo inicial;

(c ) não for cumprido o encargo suspensivo.

Um sujeito vende certo bem para outro e as partes inserem no contrato de compra e venda uma cláusula denominada “pacto de melhor comprador”. Se, após a contratação e durante certo prazo, não aparecer outro comprador que ofereça maior preço pelo objeto vendido, então o comprador original poderá considerar-se dono da coisa. Tal contrato de compra e venda existe, é válido, mas é ineficaz, pois seus efeitos estão subordinados a fato jurídico futuro e incerto, a saber, o aparecimento de outro comprador, no prazo especificado, que ofereça preço maior pelo bem.

Locador e locatário celebram, no dia quinze de certo mês, um contrato de locação e estabelecem que o prazo de vigência do contrato começará a fluir a partir do dia 1º do mês subsequente. O contrato de locação existe, é válido, mas será ineficaz enquanto não se alcançar o termo inicial mencionado pelas partes: o dia 1º do mês seguinte ao da contratação.

O encargo, previsto no art. 128,  do CC, representa um ônus que um sujeito tem que suportar para adquirir ou exercitar um direito. Não é contraprestação. Quando o cumprimento do encargo é pré-requisito para a aquisição de um direito, pode ter o mesmo efeito que uma condição suspensiva, embora com esta não se confunda. A condição subordina os efeitos do ato jurídico a fato jurídico necessariamente futuro e incerto. O encargo, por sua vez, pode se referir a fato passado e incerto, passado e certo, presente e incerto, presente e certo, futuro e certo ou futuro e incerto. A condição não pode ser controlada pelas partes, ao passo que o encargo, na maioria das vezes, depende exclusivamente do comportamento do sujeito interessado na obtenção ou exercício de um direito. O único ponto de semelhança entre a condição suspensiva e o encargo suspensivo é que, em ambos os casos, os efeitos do ato jurídico ficam paralisados enquanto a condição suspensiva ou o encargo suspensivo não se verificarem.

Por exemplo. Um sujeito foi aprovado num concurso público e foi convocado para tomar posse de seu cargo. Para adquirir ou para exercer os direitos decorrentes do cargo, precisa cumprir o encargo de tomar posse dele, sem o que de nada adiantará ter sido aprovado no concurso.

Mais um exemplo. Uma pessoa adquiriu um veículo e quer utilizá-lo nas vias públicas da cidade. Para esse fim, tem que cumprir diversos encargos, entre eles o de licenciar o automóvel. Se não fizer o licenciamento, não terá o direito de circular pelas vias públicas, apesar de ser a dona do veículo.

(D) Extinção dos contratos, inexistência, invalidade e ineficácia dos atos jurídicos

Depois de tudo o que foi exposto a respeito da existência, validade e eficácia dos atos jurídicos, pode-se chegar a algumas conclusões importantes.

A inexistência não é causa de extinção do contrato, porque não pode ser juridicamente extinto o ato que não tem existência jurídica.

Por seu turno, a invalidade do contrato, seja ela por nulidade ou por anulabilidade, é causa de extinção do contrato. Todavia, trata-se de causa extintiva anterior ou, no máximo, simultânea à formação da relação contratual. O contrato inválido é também ineficaz e, por consequência, declarada a invalidade da relação contratual, os efeitos do contrato se extinguem nos limites já mencionados anteriormente.

Não se deve então confundir as causas de extinção do contrato. A resolução, a resilição e a rescisão são causas extintivas da relação contratual posteriores à celebração do contrato. De outro lado, a inexistência e a invalidade do contrato são causas anteriores ou concomitantes à celebração do mesmo contrato.

12.6.  Resumo das causas de extinção do contrato

Os principais aspectos das causas de dissolução dos contratos foram examinados nas seções precedentes. Apenas com o propósito de completar o estudo, cabe agora indicar de modo mais resumido algumas outras causas terminativas da relação contratual.

Os contratos, então, podem terminar em decorrência de:

(I) Resolução voluntária ou involuntária;

(II) Resilição bilateral ou unilateral;

(III) Rescisão;

(IV) nulidade ou anulabilidade;

(V) decurso do prazo contratual

O esgotamento do prazo contratual é outra das causas genéricas de extinção da relação contratual. Todo contrato tem um prazo de duração, que pode ser determinado ou indeterminado. No caso do prazo determinado, basta que o tempo previsto de duração do contrato se esgote para que a relação contratual chegue ao seu final. Na outra hipótese, ou seja, a de o prazo contratual ser indeterminado, está implícito no contrato o direito de qualquer dos contratantes denunciar o contrato, com ou sem aviso prévio à outra parte. A denúncia do contrato, nesse caso, é o direito de qualquer dos contratantes declarar sua vontade unilateral de terminar a relação contratual.

Assim, por exemplo, alguém vai ao cinema para assistir a determinado filme que lá está sendo exibido. Esta pessoa e a empresa que explora tal serviço de diversão celebraram, portanto, um contrato de prestação de serviços. O sujeito tem obrigação de pagar o preço estabelecido pelo serviço. O cinema tem a obrigação de prestar os serviços necessários para a exibição do filme, que tem um prazo máximo de duração. Terminado o prazo de exibição, o cinema cumpriu sua obrigação contratual e o contrato se encerra.

Um professor renomado é contratado por uma universidade para dar uma palestra a respeito de certo tema, com duração de uma hora. Feita a exposição pelo palestrista, por uma hora e sobre o tema previsto, terá ele cumprido sua obrigação contratual.

Uma família reserva aposentos num hotel para um passeio de fim de semana, realizando o pagamento do preço cobrado pelo estabelecimento hoteleiro. Terminado o fim de semana, ou seja, o prazo de duração dos serviços de hotelaria contratados pela família, extingue-se tal relação contratual.

É importante esclarecer, contudo, que mesmo extinto o contrato pelo decurso do seu prazo, isto não quer dizer que as obrigações das partes, decorrentes do contrato, também se extingam imediatamente. Muitas vezes é comum que o contrato termine pelo fim de seu prazo e, no entanto, algumas das obrigações contratuais das partes ainda não tenham sido cumpridas. Esse fenômeno é denominado “ultratividade contratual”, com o propósito de evidenciar que o contrato, em si mesmo, terminou, mas que alguns de seus efeitos se projetam no tempo para depois do momento em que o contrato foi dissolvido. Um exemplo a esse respeito.

Locador e locatário celebraram um contrato de locação de um bem pelo prazo de doze meses. Durante o prazo contratual, o locatário deveria pagar o aluguel estipulado no contrato. Entretanto, passados os doze meses, a locação termina pelo decurso de prazo. Ocorre que o inquilino deixou de pagar os três últimos aluguéis. É evidente que o término do prazo contratual não extinguiu a obrigação do locatário de pagar ao locador os aluguéis atrasados. Mesmo findo o contrato por decurso do prazo, o locador ainda pode, com base no contrato extinto, cobrar aquela dívida do inquilino. O princípio é simples: como regra geral, o devedor de uma obrigação somente se libera dela pagando-a.

Deve ser ressaltado que a extinção do contrato pelo término de seu prazo deve ser analisada tendo-se em consideração o tipo do contrato, ou seja, se é um contrato de execução instantânea, diferida no tempo ou de execução continuada no tempo.

(VI) implemento de condição a que esteja sujeito o contrato;

É sabido que a condição é um elemento acidental (ou seja, não essencial) que pode ser agregado ao negócio jurídico para subordinar os efeitos desse negócio a um acontecimento futuro e incerto (art. 114, do CC).

A condição pode ser suspensiva ou resolutiva. Sendo suspensiva a condição, o negócio jurídico se forma regularmente (isto é, existe e é válido), mas seus efeitos ficam paralisados até que se defina a verificação ou não verificação da condição suspensiva prevista. Por outro lado, se a condição for resolutiva, o negócio jurídico será existente, válido e eficaz, porém seus efeitos poderão vir a ser paralisados se a condição resolutiva prevista vier a ocorrer ou a não ocorrer.

A condição será positiva quando o fato futuro e incerto tiver que ocorrer para paralisar os efeitos de um negócio jurídico (condição resolutiva) ou para desencadear os efeitos daquele negócio (condição suspensiva).

A condição será negativa quando o fato futuro e incerto não tiver que ocorrer para paralisar os efeitos de um negócio jurídico (condição resolutiva) ou para desencadear os efeitos daquele negócio (condição suspensiva).

A ocorrência do fato futuro e incerto que subordina os efeitos do negócio jurídico chama-se implemento da condição. A não ocorrência do fato futuro e incerto que subordina os efeitos do negócio jurídico denomina-se inadimplemento da condição.

Pois bem. O contrato é um negócio jurídico e, como tal, seus efeitos poderão estar subordinados a uma condição suspensiva ou resolutiva. Ocorrido o implemento da condição (se esta for positiva) ou o inadimplemento dela (se for negativa), o contrato sujeito à condição termina.

Imagine-se que uma empresa contratou certo representante comercial para promover a venda de seus produtos em determinada região, assegurando exclusividade de representação para aquele comerciante e, também, exigindo que tal representante não represente nenhuma empresa concorrente do representado na mesma região. Este contrato de representação comercial apresenta uma condição resolutiva positiva, a saber: o representante não pode representar outra empresa concorrente e, se o fizer, o contrato de representação será dissolvido. O fato futuro e incerto positivo é este: não se sabe se o representante representará um concorrente do representado mas, se o fizer, este fato ocorrerá no futuro e extinguirá o contrato havido entre representante e representado. Do mesmo modo, a empresa representada está sujeita a uma condição resolutiva positiva: não pode nomear qualquer outro representante comercial para seus produtos na região reservada ao primeiro representante contratado. Se desobedecer tal disposição contratual, o contrato será extinto.

Outro exemplo, inclusive já citado anteriormente quando se tratou da ineficácia dos atos jurídicos. Um sujeito adquire um bem por certo valor. Neste contrato de compra e venda, as partes incluem uma cláusula chamada “pacto de melhor comprador” que diz, em resumo, que se não surgir ninguém que, dentro de certo prazo, ofereça maior valor pelo mesmo bem, então o contrato passará a produzir seus efeitos normais. Tem-se aí uma condição suspensiva negativa que paralisa os efeitos do contrato de compra e venda. O contrato existe e é válido, porém a compra e venda não produzirá seus efeitos enquanto não decorrer o prazo previsto para que terceiro possa ofertar maior preço pela coisa vendida. Decorrido tal prazo e ninguém ofertando preço maior pelo bem, então os efeitos do contrato passam a fluir normalmente.

(VII) Morte do devedor de contrato personalíssimo

Em geral, quando uma pessoa falece, seus direitos e obrigações transmitem-se aos sucessores do morto (art. 1572, do CC), que passam a ser responsáveis, nos limites das forças patrimoniais da herança, pelo cumprimento das obrigações do falecido.

Tratando-se, porém, de obrigação personalíssima infungível, que somente poderia ser cumprida pelo devedor original, não há possibilidade de seus sucessores darem cumprimento ao contrato. Este é caso de resolução do contrato por inexecução involuntária determinada por evento de força maior: a morte.

Se o devedor é uma pessoa jurídica, sua extinção equivale à morte da pessoa natural. Ora, se tal pessoa jurídica celebrou contrato em que tinha obrigação personalíssima e, posteriormente, vem a ser extinta por causa de fato não imputável aos membros que a controlam, o mencionado contrato deverá ser resolvido.

13. INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

As partes, ao elaborarem as disposições contratuais, procuram ser bastante cautelosas e tendem a prever o maior número possível de situações que poderão acontecer em decorrência da contratação. Mas, por mais previdentes que as partes queiram ser, por mais atenção que tenham para deixar a redação bastante clara, nem sempre conseguem alcançar esses objetivos.

Por vezes as disposições do documento contratual são mal escritas, desarticuladas, confusas, obscuras, contraditórias, incompletas e, enfim, apresentam tantos vícios que a execução do contrato se torna muito problemática.

Outras vezes, o contrato apresenta lacunas que não poderiam ocorrer. O contrato deixa de prever situações que deveria ter regulado, ou tem disposições colidentes com preceitos normativos, ou deixa boa parte da disciplina da execução contratual ao vai e vem das normas costumeiras de certo setor negocial.

A boa técnica de redação contratual exige que as disposições contratuais sejam, em primeiro lugar, corretas; em segundo lugar, claras; e, em terceiro lugar, tão concisas quanto possível, sem prejudicas a correção e a clareza. Em síntese, a redação contratual deve ser “CCC”: correta; clara; concisa.

Havendo vícios na elaboração do contrato, torna-se necessário interpretá-lo para fazê-lo cumprir a função jurídica que as partes desejaram ao celebrá-lo.

(I) Conceito de interpretação do contrato

Interpretação do contrato é a atividade intelectiva, desenvolvida com metodologia adequada, com a finalidade de integrar as lacunas do contrato, eliminar suas imprecisões, fixar seu exato conteúdo e fazer com que o contrato cumpra sua função jurídica correta.

A atividade interpretativa é também denominada “hermenêutica”. É atividade intelectual que deve obedecer a uma metodologia específica. Usa-se técnicas ou métodos de interpretação que vão progredindo do mais simples ao mais complexo, conforme se faça necessário para que o contrato cumpra sua função jurídica.

O Direito contratual é informado, como se sabe, pelo princípio da permanência dos contratos, ou seja, deve-se fazer tudo o que for legalmente possível para que o contrato consiga cumprir a função jurídica que lhe é reservada, a fim de que cada uma das partes consiga alcançar seus respectivos objetivos por meio do contrato.

Para que isto seja possível, a atividade interpretativa – observados certos critérios – pode integrar lacunas do contrato, isto é, inserir no contrato disposições que as partes, se tivessem sido mais cautelosas, teriam previsto. O intérprete não pode redefinir o contrato, não pode inserir ou retirar dele disposições conforme sua própria vontade. Bem ao contrário, está circunscrito e limitado ao contexto contratual. Só pode cogitar das disposições que as partes poderiam ter previsto e não previram, ou previram em excesso. Pode corrigir a organização gramatical do texto contratual, pode reorganizar mentalmente a ordem lógica das diversas cláusulas, pode combinar cláusulas entre si, ou dissociá-las, tudo com o propósito leal e honesto de delinear melhor o real conteúdo do contrato.

Definir o conteúdo do contrato é, na realidade, identificar com exatidão qual foi o tipo de contrato celebrado pelas partes, quais as prestações essenciais para cada contratante em tal tipo de contratação, que resultados jurídicos as partes pretendiam alcançar por meio do contrato.

(II) Forma da declaração de vontade contratual e sua interpretação

A celebração do contrato exige a adoção de uma forma para revestir as declarações de vontade das partes. A forma do contrato, quer seja expressa, quer tácita, é o modo de exteriorização da vontade contratual. Sendo assim, o revestimento formal dessas declarações de vontade deve ser apto a permitir que as partes contratantes alcancem os objetivos jurídicos desejados por intermédio do contrato.

Por exemplo. Se um sujeito que adquirir um bem imóvel com valor superior à taxa legal, precisará de um título adequado para que, no competente Cartório de Registro de Imóveis, o aludido bem seja transferido do nome do vendedor para o nome do comprador, de modo que lá seja indicado que o dono, o proprietário daquele imóvel é mesmo o comprador. Ora, para alcançar este resultado jurídico, os contratantes não poderão celebrar o contrato de compra e venda por instrumento particular. Terão que revestir o contrato por forma pública, sem o que o título contratual não permitirá que vendedor e comprador efetuem a transmissão de propriedade imobiliária.

(III) Conteúdo da vontade contratual

Uma vez declarada a vontade contratual, surge o problema de fixar seu exato conteúdo, seu significado e objetivos mais precisos. Diversas teorias hermenêuticas surgiram com o propósito de solucionar a questão da identificação do conteúdo verdadeiro da vontade do contratante.

A grosso modo, as diferentes teorias de hermenêutica contratual podem ser reunidas em dois grandes blocos, a saber:

(a) teoria objetivista;
(b) teoria subjetivista; e
( c) teoria mista.

Não há uma única teoria em cada um desses grupos, mas várias. Dentro de cada grupo, as múltiplas teses apresentam traços comuns que tornaram possível sua inclusão num grupo ou noutro. Essas características gerais serão examinadas brevemente.
(A) Formação da vontade jurídica

O Direito não se interessa, por princípio, com a vontade que permanece no foro íntimo da pessoa e que nunca foi exteriorizada. Antes que o contratante declare sua vontade de contratar, essa vontade permanece no seu foro íntimo, que é juridicamente indevassável, impenetrável.

Somente quando o sujeito declara sua vontade, ou seja, quando a exterioriza por algum modo, é que tal vontade passa a ter alguma relevância jurídica. Assim, do ponto de vista jurídico, a vontade atravessa diversas fases antes de ser exteriorizada pelo indivíduo.

No seu foro íntimo, o indivíduo esboça a idéia do que quer, organiza mentalmente essa idéia e a formula. Se parar aí sua atividade, a vontade formulada pelo indivíduo não tem interesse algum para o Direito. É preciso então declará-la, exteriorizá-la. Esta declaração pode ser verbal, escrita, sinalizada, por mímica, por símbolos e até mesmo pelo silêncio em face de certo contexto jurídico.

O ideal é que a vontade interior do agente corresponda exatamente à vontade contratual por ele declarada. É possível, contudo, que tal exatidão, tal coincidência de vontades não se verifique no todo ou em parte. A vontade interior do agente é total ou parcialmente diferente daquele vontade que o mesmo indivíduo declarou. É necessário, portanto, investigar qual é a sua real vontade: a interior, íntima, ou aquela que foi exteriorizada, declarada. Em síntese, torna-se imprescindível a atividade hermenêutica.

(B) Teoria hermenêutica subjetivista

Sob a influência filosófica e ideológica liberalista e individualista que predominava na Europa nos séculos XVII e XVIII, o indivíduo tornou-se o centro de convergência de diversas ciências e, especialmente do Direito. A liberdade individual tinha contornos muito mais amplos do que atualmente. A vontade do indivíduo e notadamente sua vontade jurídica eram extremamente prestigiadas.

A vontade contratual tinha que se a vontade real, a vontade verdadeira do indivíduo. Na hipótese de haver dúvida a respeito de qual era a vontade contratual verdadeira, ou seja, se a vontade íntima do indivíduo ou a vontade por ele declarada, haveria de prevalecer a vontade interior daquele agente.

Não se podia admitir que o indivíduo viesse a se tornar escravo da forma de sua declaração de vontade contratual. Se a vontade declarada não fosse exatamente aquela que o indivíduo pretendeu exteriorizar, deveria ser desprezada para que, então, fosse investigada cuidadosamente a vontade interior do agente.

Nesse contexto surgiu a teoria hermenêutica subjetivista, assim chamada porque tinha em vista o sujeito, isto é, a investigação da vontade íntima do sujeito. A teoria hermenêutica subjetivista defende que a interpretação deve buscar conhecer a vontade real, íntima, verdadeira, do agente, independentemente do conteúdo literal de sua declaração de vontade contratual.

A doutrina subjetivista sofreu feroz combate pelos partidários da teoria hermenêutica objetivista. A investigação da vontade íntima do agente, diziam os objetivistas, é difícil, instável, insegura e põem em risco a segurança do sistema jurídico. Sempre que o indivíduo se arrependesse da vontade contratual que declarou, poderia invocar o pretexto que tal vontade declarada não

correspondia exatamente à sua vontade íntima e, com isto, tinha facilidade de desconstituir o contrato celebrado ou de revisá-lo.

A dificuldade prática de aplicação da doutrina subjetivista provocou  seu declínio e também o surgimento da teoria hermenêutica objetivista, que se passa a examinar.
(C) Teoria  hermenêutica objetivista

A teoria hermenêutica objetivista sustenta que a interpretação da vontade contratual deve se restringir ao conteúdo da vontade declarada pelo agente, desprezando-se sua vontade interior. É denominada objetivista porque tem por objeto a forma da vontade, ou seja, a declaração formal daquilo que se supõe ser a vontade interior que o indivíduo exteriorizou.

O argumento fundamental da teoria objetivista é o de que a identificação da vontade íntima do agente é difícil, instável e insegura. O Direito precisa mais da certeza, da segurança, do que da verdade, notadamente em matéria contratual. Assim, essa teoria prefere privilegiar a vontade declarada pelo contratante, porque esta vontade pode ser objetivamente identificada, é estável e segura.

A teoria objetivista toma em consideração a vontade declarada e a examina, procurando dentro dela fixar com exatidão o conteúdo contratual desejado pelo contratante que a exteriorizou.

Acontece que, muitas vezes, a vontade declarada pelo sujeito contratante não corresponde exatamente à vontade contratual que formulou no seu íntimo. Basta pensar nos casos de simulação, erro substancial, dolo substancial ou coação. No caso da simulação, o agente declara vontade para produzir certo efeito jurídico, mas na verdade, intimamente, quer mesmo alcançar outro resultado vedado pela lei. Por isto, disfarça sua vontade para violar a vedação legal. Nos casos do erro, dolo e coação, tem-se os vícios de consentimento, em que o agente declarou uma vontade contratual que não teria declarado se desaparecesse, antes da contratação, a causa do erro, do dolo, ou da coação.

A teoria objetivista tem, por conseguinte, dificuldade de explicar a real vontade contratual do agente tendo em conta apenas os termos da declaração. Em casos como os citados, de simulação, erro, dolo, coação, a teoria objetivista é forçada a vasculhar, pelo menos em parte, a vontade interior do contratante. Essa situação vexatória expôs os objetivistas a várias críticas. Daí porque surgiram outras teoria que tentaram superar essa dificuldade.

(D) Teorias hermenêuticas mistas ou ecléticas

As dificuldades encontradas para a aplicação das teorias subjetivista e objetivista tornaram o contexto muito fértil para o surgimento de diversas outras teorias hermenêuticas, chamadas mistas ou ecléticas porque combinam fundamentos tanto da doutrina subjetivista como da objetivista, acrescentando fundamentos novos.

De modo geral, as teorias mistas sustentam que não se pode prestigiar de modo absoluto a vontade interior do agente, ignorando o teor da vontade declarada. Por outro lado, também não se pode prestigiar de modo extremado a vontade declarada, desconsiderando a verdadeira vontade interior do agente. É preciso achar um meio termo entre as posições extremadas das teorias subjetivista e objetivista.

O ponto intermédio encontrado por quase todas as teorias mistas foi o de que, na atividade hermenêutica contratual, deve-se procurar a verdadeira vontade interior do agente, mas tal vontade deve ser procurada nos limites da declaração formal de vontade, ou seja, no universo da vontade declarada. Assim, partindo-se dos termos da vontade contratual declarada e sem desconsiderá-los, mas também sem torná-los absolutos, os ecléticos tentam identificar a vontade real, a vontade íntima, que o contratante conseguiu transmitir por meio da vontade exteriorizada.

(E) Enfoque pragmático da hermenêutica contratual

Pelo pouco que foi exposto a respeito das diversas teorias hermenêuticas, logo se vê que não é fácil solucionar o problema da divergência entre a vontade íntima e a vontade declarada pelo contratante. A tendência, realmente, é que os estudos prossigam no sentido indicado pelas teorias mistas, mas é forçoso reconhecer que mesmo assim o problema está longe de ser resolvido.

Parece que, na realidade, todas estas teorias deixaram de examinar um aspecto muito relevante, ou pelo menos deixaram de ponderar mais aprofundadamente sobre ele. Trata-se da questão dos signos, do mecanismo simbólico que deve estar presente entre quaisquer interlocutores para que a comunicação entre eles seja satisfatória e alcance seus objetivos.

Quando um sujeito  precisa se comunicar com outro, ambos precisam adotar linguagem comum. Esta linguagem pode ser simbólica, escrita, verbal, gráfica, sonora e, enfim, de qualquer tipo. A comunicação entre dois indivíduos somente será eficaz se eles tiverem um mínimo de conteúdo comum nas linguagens que empregam no processo de comunicação. Os objetivos que cada indivíduo têm em relação ao outro só serão alcançados mediante comunicação eficiente. A linguagem usada por um dos indivíduos é recebida pelo outro, que a decodifica, interpreta, entende e, a seguir, pode emitir sua resposta para o interlocutor, que procederá do mesmo modo: decodificará a mensagem de resposta, interpretá-la-á e a entenderá.

O contrato é um instrumento de comunicação jurídica. O sistema jurídico é um meio de comunicação. A norma jurídica é uma ferramenta de comunicação entre o legislador e os destinatários da norma. Os contratantes comunicam-se entre si usando as normas jurídicas e as normas contratuais. Ora, todos esse processo de comunicação usa “linguagem jurídica”, não no sentido de emprego de termos técnicos, porém sim no sentido de que a linguagem tem como referência critérios jurídicos adotados por certo sistema jurídico. Um interlocutor consegue se comunicar com outro, dentro do sistema jurídico, porque ambos conhecem e usam os mesmos critérios, os mesmos valores simbólicos, de emissão, recepção, decodificação e interpretação dos signos jurídicos, da linguagem jurídica.

Veja-se um exemplo curioso. Na cidade de São Paulo, recentemente, as empresas distribuidoras de gás para uso doméstico adotaram curiosa estratégia de marketing. A distribuição, tradicionalmente, é feita por meio de caminhões, que passam pelas ruas da cidade anunciando em alto-falante sua presença. Ocorre que os moradores de edifícios dificilmente ouviam o aviso da presença do caminhão de gás. Os caminhões das empresas distribuidoras, então, passaram a tocar em seus alto-falantes trechos de músicas clássicas, suaves, que poderiam ser ouvidas pelas consumidores do gás, mesmo pelos moradores de edifícios. Uma dessas músicas é um trecho da 9ª Sinfonia de Beethoven. Pois bem. Perguntando a várias pessoas comuns de minha vizinhança, de diferentes formações e níveis sócio-econômicos, descobri que algumas delas sabiam identificar perfeitamente o nome da música e o seu autor. Outras não. Mas, todas essas pessoas reconheceram aquela música e a associaram ao caminhão distribuidor do gás de cozinha. Esta experiência evidencia que a comunicação foi eficiente sob dois aspectos: (1°) duas pessoas podem se comunicar por meio da linguagem comum musical; (2°) a empresa distribuidora de gás consegue vender seu produto porque consegue se comunicar com seus consumidores por meio da linguagem comum musical. Não tem a mínima importância que o consumidor desconheça o nome da música e seu autor: a comunicação consumidor/empresa foi estabelecida por emprego de linguagem e mensagem compreensível por ambos.

Outro exemplo curioso. A Antropologia dá notícia de pesquisa feita em certa sociedade tribal em que a divisão de trabalho era bastante rígida entre homens e mulheres. De acordo com as normas vigentes naquela sociedade tribal, os homens estavam encarregados de certas atividades produtivas, especialmente da caça, da pesca, da confecção de utensílios empregados nessas atividades e da educação das crianças interessadas nas mesmas atividades. As mulheres, por seu turno, estavam encarregadas da agricultura, da tecelagem, do preparo da alimentação, da confecção de objetos necessários para todas essas atividades e pela educação das crianças. O interessante disso tudo é que o sexo do indivíduo era determinado em função do grupo de trabalho em que ele se inseria e não pelos caracteres físicos. A mulher que se dispusesse a executar as atividades masculinas, era em tudo e por tudo considerada “homem” naquela sociedade. O homem que se dispusesse a executar tarefas femininas era, portanto, considerado “mulher” na mesma sociedade. Estes signos, esta linguagem, esta comunicação estava perfeitamente clara para os membros daquela tribo. Todavia, os pesquisadores, de início, tiveram bastante dificuldade para perceber, decodificar, interpretar e entender esses mecanismos de comunicação. No princípio dos estudos, os estudiosos não imaginavam que uma mulher caçando era “homem” e, por consequência lógica, adotava na tribo outros comportamentos masculinos. O que interessa ressaltar aqui é o fato de que, entre os pesquisadores e a tribo, não houve, nos casos acima apontados, uma linguagem simbólica comum, compreensível pelas duas partes.

Mais um exemplo, agora com alguma coisa de ficção.

Imagine-se que um brasileiro que somente saiba falar a língua portuguesa vá viajar, por hipótese, para a China. Essa pessoa, obviamente, tem diversas vontades interiores: quer dormir, comer, beber, transportar-se, adquirir bens, pedir informações. Estando na China, precisará exteriorizar todas essas vontades numa “língua”, num “código”, compreensível por um chinês que não fale a língua portuguesa. Se o brasileiro somente exteriorizar suas vontades em língua portuguesa, não conseguirá realizar seus desejos. Por outro lado, não entendendo a escrita chinesa, o brasileiro em questão não pode ter idéia alguma do significado que elas têm, de qual o conteúdo que apresentam. Como se vê, todas essas vontades são inaptas para produzirem seus efeitos regulares porque os interlocutores não estão utilizando os mesmos “sinais de comunicação”, os mesmos “códigos”, os mesmos “mecanismos interpretativos”, os mesmos “critérios de identificação” das vontades interiores e declaradas de cada interlocutor. Mas esta situação não pode persistir como descrita. Então, brasileiro e chineses procuram encontrar uma “linguagem comum”, um mecanismo de comunicação de vontades que possa fazer algum sentido para eles, sempre com vistas à satisfação recíproca de seus interesses de troca de idéias e informações. Os interlocutores põem-se a fazer sinais, a apontar objetos, a desenhar figuras, a gesticular, a emitir sons primários e, afinal, depois de muito esforço comum, o brasileiro consegue, por exemplo, comunicar sua vontade de saber onde fica determinado ponto histórico da cidade que quer visitar.

No exemplo acima descrito, viu-se que a vontade do brasileiro somente se tornou compreensível para o chinês e, assim, o brasileiro só alcançou o objetivo que desejava, depois que sua vontade interior foi exteriorizada de uma forma, com signos, com representações, que puderam ser decodificadas e compreendidas pelo chinês. Apenas nessas circunstâncias o resultado desejado pelo brasileiro poderia ser alcançada.

Um último exemplo. Um sujeito quer se comunicar com outro, por telefone. Um dos sujeitos está no Brasil e o outro na Argentina. Um deles inicia o mecanismo de comunicação e a própria conversação. Assim que foi discado no Brasil o número telefônico do destinatário na Argentina, os sinais eletrônicos de discagem percorreram fios, chegaram ao receptor de uma estação telefônica, foram decodificados e transformados noutra linguagem, agora enviada a um satélite. O satélite, depois de processar a mensagem, devolve-a para a estação telefônica terrena na Argentina, que também decodifica os sinais e os converte para a linguagem inicial, que chega ao aparelho telefônico receptor do outro sujeito na Argentina. Os dois interlocutores começam sua conversação e o som de suas vozes são convertidos em sinais eletrônicos e percorrem de novo o mesmo sistema, tornando possível a comunicação contínua entre eles. Entretanto, se os meios tecnológicos usados nesse processo de comunicação não fossem compatíveis uns com os outros, a comunicação seria impossível. Se, por exemplo, a estação telefônica terrena da Argentina não tiver um decodificador e conversor dos sinais enviados pelo satélite ou para o satélite, a comunicação se frustra.

Enfim, qualquer processo de comunicação é feito por meio de linguagem comum aos interlocutores, seja esta linguagem de que espécie for.

Tudo isto serve para demonstrar que a vontade interior de um contratante precisa ser declarada por uma forma que possa ser decomposta, decodificada, interpretada  e entendida pelo outro contratante por meio do sistema jurídico, com os critérios que este sistema adota e conhece. Um contratante emite sua vontade, que circula pelo sistema jurídico e chega ao conhecimento do outro contratante. A vontade emitida por um declarante será absorvida pelo sistema jurídico que a enviará ao outro contratante, de maneira que os dois contratantes receberão do sistema jurídico apenas os efeitos que este mesmo sistema pode compreender a respeito da declaração feita.

Portanto, é muito importante que – ao declararem suas vontades contratuais – os contratantes tenham perfeita consciência de que deverão formular suas vontades com elementos corretos e que possam ser interpretados pelo sistema jurídico tal qual eles, contratantes, desejam. Isto porque, feitas as declarações de vontade, os declarantes perdem controle sobre elas em termos de interpretação dentro do sistema jurídico. Voltando ao exemplo do brasileiro viajando pela China, enquanto ele declarar sua vontade sem usar signos compreensíveis pelo chinês, não conseguirá obter o resultado desejado: saber onde fica o ponto turístico a ser visitado.

Como se pode notar, a questão não é privilegiar a vontade interior do agente (teoria subjetivista) ou prestigiar a vontade por ele declarada (teoria objetivista). Também não é suficiente compatibilizar a busca da vontade íntima a partir da vontade declarada (teorias mistas). A questão a ser enfocada é a seguinte: como interpretar a declaração de vontade que foi feita, tendo-se em vista os critérios, os códigos, os signos, enfim, a linguagem com que o sistema jurídico considerado trabalha. A vontade interior do agente somente pode ser atendida se for declarada de modo tal que o sistema possa compreendê-la e atribuir-lhe os efeitos corretos.

Parece que é indispensável considerar tanto a vontade interior do agente como a vontade que ele declarou, mas de maneira a coordenar essas duas vontades e adequar o significado delas aos critérios definidos pelo sistema jurídico, pela simples razão de que a comunicação entre os contratantes é feita por meio do sistema jurídico e com o emprego de instrumentos jurídicos. Este é o ponto crucial a ser ressaltado: a vontade que se interpreta não é aquela que o agente quer que seja interpretada, mas sim a vontade interna exteriorizada por uma forma compreensível pelo sistema jurídico e à qual se possa reconhecer certos efeitos jurídicos.

Feita a declaração de vontade contratual, este fato jurídico ingressa no sistema jurídico e será valorado de acordo com os critérios adotados por esse sistema para, depois, chegar ao destinatário da declaração de vontade contratual. Noutros termos, enquanto a vontade do agente estiver reclusa no seu foro íntimo, a pessoa pode dar-lhe a interpretação que quiser, já que tal vontade é inteiramente irrelevante para a produção de efeitos jurídicos.

Por exemplo, alguém que vender seu carro e formula esta vontade contratual interiormente. Se não declarar tal vontade de vender, por algum modo, o Direito a ignorará por completo e, obviamente, o veículo não será vendido.

Declarada a vontade de contratar, aí, sim, passa a ser importante verificar se ela corresponde ou não à vontade íntima do agente. Ocorre que a vontade declarada, como dito, é absorvida pelo sistema jurídico e por ele decodificada, interpretada e enviada ao outro contratante. Os elementos componentes da vontade de contratar são contrastados com os códigos de valor existentes no sistema jurídico, para que sejam transformados em linguagem jurídica. Esses elementos são  decompostos, analisados à luz do sistema, com os critérios existentes nesse mesmo sistema e, a seguir, são remontados e devolvidos ao intérprete. Por conseguinte, a vontade interior de uma pessoa só tem significado jurídico se for exteriorizada para produzir os efeitos jurídicos possíveis dentro de um dado sistema normativo.

Estas, ao que parece, são as considerações que devem servir de base para o prosseguimento dos estudos de hermenêutica contratual.

(F) A posição do Direito brasileiro

A regra básica de interpretação do contrato existente no Direito brasileiro é o art. 85, do CC. Não é a única regra, evidentemente, mas é o preceito que norteia a regra geral de interpretação contratual dentro do sistema. Outros dispositivos legais estabelecem regras excepcionais de interpretação.

O art. 85, do CC, diz que, na interpretação dos atos jurídicos, deve-se valorizar mais a vontade real do que aquela contida na declaração de vontade. A uns, pareceu que o legislador brasileiro teria aderido à doutrina subjetivista. Outros, tendo em vista que o art. 85 não desconsidera os termos da declaração de vontade, entendem firmemente que o Código filiou-se à doutrina objetivista. Finalmente, há quem sustente que o Código prestigia na verdade a posição eclética.

Enfim, no Direito brasileiro, a vontade declarada serve de ponto de partida para a busca da vontade interior do agente, estabelecendo, assim, alguma liberdade para o intérprete vascular o querer íntimo do contratante, porém sem abandonar e sem contrariar o conteúdo objetivo da vontade declarada.

Não é objetivo deste estudo buscar e comentar os múltiplos dispositivos legais existentes no Direito brasileiro que estabelecem regras de interpretação. Há normas para interpretar os contratos de públicos, os de adesão, os benéficos, os contratos regidos pelo Direito do Consumidor, os contratos internacionais e, enfim, os contratos de diversas espécies.

Algumas das disposições legais estabelecem regras obrigatórias de interpretação contratual, que devem ser observadas pelo intérprete. É o que acontece, por exemplo, com a regra que manda interpretar restritivamente os contratos benéficos, ou com a que manda interpretar o contrato de adesão em favor da parte aderente.

Outras disposições legais estabelecem regras de interpretação contratual que não são obrigatórias para o intérprete, mas que são meros critérios de orientação geral que o intérprete aplicará conforme as circunstâncias. Tal é o caso da regra do art. 85, do CC, que manda atentar mais para a vontade real do contratante do que aos termos literais da declaração de vontade.

Para os fins deste estudo, basta ter noção geral a respeito das diversas técnicas ou métodos de interpretação e é isto que se passa a fazer.

13.1. Métodos de hermenêutica contratual

(A) Teoria hermenêutica geral

A interpretação dos contratos é feita, basicamente, com os mesmos métodos e princípios com que se faz a interpretação das normas legais e dos atos jurídicos em geral. É que o contrato faz lei entre as partes e é também um ato jurídico, de maneira que não há razão para construir uma teoria hermenêutica toda especial para os contratos. Apesar de se aplicar a teoria hermenêutica geral para a interpretação dos contratos, há regras especiais para esse fim.

A teoria hermenêutica geral apresenta basicamente quatro métodos de interpretação, a saber:

(1°) interpretação literal ou gramatical;
(2°) interpretação lógica;
(3°) interpretação sistemática; e
(4°) interpretação finalística ou teleológica.

Deve-se conhecer pelo menos os aspectos caracterizadores dos quatro métodos interpretativos indicados.

(B) Interpretação literal ou gramatical

O método de interpretação literal ou gramatical é o mais simples. O intérprete deve começar a atividade hermenêutica exatamente por este método. Se conseguir fixar o conteúdo da vontade contratual por meio da interpretação literal ou gramatical, terá cumprido satisfatoriamente sua função.

A interpretação literal ou gramatical consiste na análise do texto do contrato. Envolve o conhecimento etimológico das palavras, seu emprego semântico, a organização sintática das sentenças e, enfim, a aplicação das regras gramaticais da língua em que o contrato está redigido.

É importante observar aqui que a análise literal ou gramatical do contrato deve ser feita tendo-se em vista o significado geral das palavras, salvo se, pelo seu caráter preponderantemente técnico, o contexto do contrato determinar que suas palavras sejam também analisadas com significado técnico.

Assim, por exemplo, se uma cláusula disser que “o contrato será rescindido se o devedor deixar de pagar a prestação do financiamento”, deve-se entender as palavras “rescindido” e “prestação” no sentido geral, ou seja, o de que o contrato será desfeito se o devedor não pagar as parcelas em que está dividida sua prestação obrigacional. Nesse exemplo, é evidente que não se está empregando a palavra “rescisão” no seu sentido técnico de dissolução do contrato em que há lesão. “Rescisão” foi usada no sentido amplo de extinção do contrato. Também a palavra “prestação” não foi usada no sentido técnico de ser o fato humano devido pelo devedor ao seu credor. “Prestação”, no exemplo, tem o significado comum de “parcela da dívida”.

Ao contrário, se uma cláusula disser que “a falta de pagamento de qualquer das parcelas do preço acarretará o protesto da nota promissória”, é óbvio que as palavras “protesto” e “nota promissória” têm significado técnico jurídico muito preciso e é nesse sentido que deverão ser interpretadas. Se o devedor não pagar a quantia que deve, a nota promissória que é o título de crédito representativo da parcela da dívida será levado a Cartório de Protesto para que se dê publicidade ao fato da falta de pagamento.

(C) Interpretação lógica

A interpretação lógica do contrato é o segundo método interpretativo a ser usado pelo hermeneuta. Se o esforço interpretativo literal ou gramatical não for suficiente para fixar o conteúdo da vontade contratual, então há que se partir para a interpretação lógica.

A interpretação lógica consiste em examinar as cláusulas do contrato umas em relação às outras para, assim, extrair delas o conteúdo verdadeiro da vontade contratual.

Por exemplo, uma cláusula do contrato diz que “o devedor pagará a fatura dos serviços prestados até o 15º dia útil do mês subsequente ao da prestação dos serviços”. Bem, esta cláusula não explica como é que o devedor saberá qual é o preço dos serviços. Também não diz como e onde o pagamento será feito. Igualmente não esclarece se terá ou não possibilidade de conferir o valor da fatura tendo em vista os serviços que foram efetivamente prestados. Por isto, a referida cláusula contratual tem que ser necessariamente complementada por outra, a saber:

“X. Até o 10° dia do mês subsequente ao da prestação dos serviços, o credor emitirá e remeterá para o devedor a respectiva fatura discriminando:

(a) o valor dos serviços prestados;
(b) os serviços efetivamente prestados;
(c) os eventuais encargos de mora; e
(d) a conta corrente bancária em que o devedor efetuará o depósito para pagamento.

X.1. O devedor receberá a fatura mediante protocolo e terá cinco dias úteis para conferi-la e pagá-la mediante depósito na conta corrente do credor, indicada na fatura, valendo o comprovante de depósito como prova de quitação da dívida.

X.2. Em caso de divergência entre credor e devedor, este pagará o valor incontroverso da fatura e as partes tentarão solucionar de comum acordo o litígio sobre a parte controvertida do valor indicado na fatura.”

Vê-se, então, que as duas cláusula precisaram ser examinadas em conjunto para que o intérprete pudesse compreender perfeitamente como o pagamento seria realizado. Isto é interpretação lógica do contrato.

Na medida em que o hermeneuta consiga fixar a vontade contratual depois de interpretá-la literal, gramatical e logicamente, não mais precisará progredir para outros métodos interpretativos. Caso contrário, terá que valer-se da interpretação sistemática.

(D) Interpretação sistemática

A interpretação sistemática é aquela em que o hermeneuta examina o documento contratual em conjunto com outros documentos e com as disposições legais aplicáveis ao contrato. É chamada de sistemática porque envolve a noção de um sistema de regras aplicáveis ao contrato e de fatos jurídicos vinculados ao mesmo contrato.

Nem todas as regras que regulam o contrato constam de seu texto. Há disposições legais que estão implícitas no contrato, mesmo que ele não se refira a elas. Por exemplo, em todo contrato existe uma cláusula resolutiva tácita, ou a regra de lealdade e boa fé dos contratantes. Além disso, conforme o tipo de contrato, há disposições legais inerentes a ele, mesmo que os contratantes não tenham cogitado de tais regras. Por exemplo, em todo contrato de compra e venda o vendedor responde perante o comprador pela existência de vícios ocultos na coisa vendida; num contrato de locação está implícito que a coisa alugada deve servir ao uso previsto no contrato; no contrato de depósito está implícito que o depositário não pode usar a coisa depositada sem consentimento do depositante; no contrato de transporte está implícito que o transportador transportará a coisa ou a pessoa do ponto inicial ao ponto final do percurso com segurança, conforto, presteza e pontualidade.

Em todos esses exemplos, o intérprete precisará conhecer todas as regras aplicáveis ao contrato. Deverá, então, ter uma visão do sistema normativo daquele contrato a ser interpretado, a fim de que possa fixar corretamente o conteúdo da vontade contratual.

Assim, por exemplo, um consumidor estaciona seu veículo num estacionamento. As partes – consumidor e empresa de estacionamento – celebraram um contrato de depósito, na maioria das vezes representado singelamente por um pequeno papel em que constam o nome da empresa de estacionamento e os dados gerais do veículo depositado. Para que o intérprete consiga fixar corretamente o conteúdo das vontades contratuais de cada parte, tem que conhecer as regras legais do contrato de depósito. O depositário tem que guardar com diligência a coisa depositada, não pode servir-se dela sem consentimento do depositante, tem que devolvê-la a qualquer tempo, tão logo o depositante a requisite, etc. Por outro lado, o depositante tem que pagar o preço estabelecido para o depósito, não pode enviar representante para retirar o veículo sem apresentar ao depositário documento idôneo para esse fim, deve responder pela posse legítima do bem depositado.

Outras vezes, além da aplicação das regras legais pertinentes ao tipo de contrato interpretado, o intérprete deve ainda examinar documentos vinculados ao próprio contrato mas que com ele não se confundem. É o caso das propostas, recibos, quitações, protestos, notificações, laudos de vistoria, correspondências trocadas pelas partes antes, durante e após a contratação, etc.

Nesse universo de informações o hermeneuta colhe os dados capazes de identificar a verdadeira vontade contratual. Por exemplo, num contrato de locação não há cláusula dizendo que o fato de as partes tolerarem o atraso no pagamento de seus respectivos créditos não significará perdão, renúncia, novação ou desistência de seus direitos. Portanto, se o atraso existir e for tolerado pela parte credora, poderá este fato significar perdão, renúncia, novação ou desistência da obrigação contratual. Pois bem. O mesmo contrato estabelece que o locatário deve efetuar o pagamento do aluguel no dia dez de cada mês subsequente ao vencido. Ocorre que, há vários anos, o inquilino efetua o pagamento do aluguel sempre no dia vinte do mês posterior ao vencido e o locador sempre emitiu recibos de aluguel com a data do dia vinte. Em certo momento, as partes de desentendem e o locador, já no dia onze, ajuiza contra o locatário uma ação de despejo por falta de pagamento. Ora, o intérprete logo perceberá, valendo-se da interpretação sistemática do contrato, que houve novação da obrigação locatícia: o aluguel se vence no dia vinte, como especificado nos recibos, e não no dia dez, como estabelecido no documento contratual. Nesse caso, está claríssimo que a vontade das partes era a de que o aluguel se vencesse no dia vinte, até mesmo porque o próprio locador emitia os recibos naquela data. Os recibos não são o próprio contrato de locação, mas sim novo documento contratual que alterou, nesse particular, o contrato de locação original.

Por essas razões, é sempre bom ter em mente que, em geral, as partes não fazem referência, ou seja, não repetem no texto contratual, as normas legais aplicáveis ao contrato, o que não significa que tais normas tenham sido excluídas do mesmo contrato. Na verdade, o contrato é composto por suas próprias cláusulas, pelas disposições legais a ele aplicáveis e pelos documentos expressamente nele referidos. Os documentos anteriores ou posteriores à contratação são, em regra, excluídos do contrato, mas poderão contribuir para que o intérprete identifique o verdadeiro conteúdo do contrato. Isto porque, em hermenêutica contratual, o comportamento das partes antes, durante e depois de celebrado o contrato e, especialmente, durante sua execução, é o melhor indicador da verdadeira vontade de cada contratante.

Se, após empregar a interpretação literal ou gramatical, a interpretação lógica e a interpretação sistemática, o intérprete não conseguir descobrir o verdadeiro significado da vontade contratual, terá então que recorrer ao método interpretativo finalístico ou teleológico.

(E) Interpretação finalística ou teleológica

A interpretação finalística ou teleológica é a que tem por objetivo identificar o fim, o objetivo, o resultado jurídico pretendido por cada um dos contratantes por meio do contrato.

O contrato é um instrumento jurídico de que se valem as partes para alcançarem resultados jurídicos específicos. Por isto, o intérprete precisa realizar a atividade hermenêutica de tal modo que o contrato possa cumprir sua função jurídica.

Não é o nome do contrato que determina sua natureza jurídica nem sua função jurídica. Se as partes realizaram de verdade um contrato de compra e venda, pouco importa que tenham atribuído ao contrato o nome de locação, de contrato preliminar, de compromisso de compra e venda, de proposta de contrato. A natureza e a função jurídica do contrato é ser uma compra e venda e como tal deverá ser interpretado.

O hermeneuta, ao realizar a atividade interpretativa, precisa levar sempre em consideração todos os princípios jurídicos que norteiam o Direito contratual. O contrato é obrigatório entre as partes desde que não se transforme, radical e imprevisivelmente, as condições  contextuais da contratação e da execução do contrato. Os contratantes devem proceder, um em relação ao outro, com lealdade e boa fé. O contrato deve permanecer apto a cumprir sua função jurídica, pois para isto foi celebrado. Enfim, o hermeneuta deve preservar o contrato e interpretá-lo de modo útil, isto é, de tal maneira que possa cumprir o objetivo desejado pelos contratantes.

A interpretação finalística ou teleológica tem em vista o resultado prático a ser alcançado pelo contrato e o intérprete não deve realizar sua tarefa de modo a impedir a consecução de tal resultado.

Por exemplo, imagine-se que num contrato regido pelas normas de proteção ao consumidor, um sujeito realize com a empresa fornecedora um contrato de compra e venda de um apartamento em construção. O contrato contém cláusulas nulas diante da lei, lesivas ao consumidor, abusivas, vexatórias. Está repleto de vícios. Todavia, o intérprete se pergunta: para que finalidade as partes celebraram este contrato? Ora, o vendedor quis transferir para o comprador, mediante o pagamento de certo preço, a propriedade sobre o imóvel. Por sua vez, o comprador, pagando o preço especificado, quis adquirir a propriedade do mesmo imóvel. O intérprete, então, verifica se estão presentes no contrato os elementos essenciais do contrato de compra e venda, a saber: (a) vontade de vender; (b) vontade de comprar; (c) identificação do objeto da compra e venda; e (d) fixação do preço do bem. constata que todos esses elementos estão perfeitamente presentes no contrato e, mais que isto, verifica que tais elementos não foram prejudicados pelas disposições contratuais viciadas. Ora, em tais circunstâncias, mesmo que todas as outras disposições contidas no documento contratual sejam imprestáveis, o intérprete deve fazer com que o contrato cumpra sua função jurídica: transmitir a propriedade do bem imóvel do vendedor ao comprador, mediante o pagamento de certo preço. Isto é interpretação finalística, teleológica.

Por isto, as cláusulas viciadas de um contrato devem ser, tanto quanto possível, isoladas para não prejudicar as outras cláusulas não viciadas. As disposições contratuais contraditórias entre si devem ser interpretadas tendo-se em vista o resultado maior objetivado pelas partes, para que possa ser realizado o objetivo do contrato. As cláusulas duvidosas, obscuras ou desconexas devem ser interpretadas em favor do devedor. As omissões do contrato podem ser integradas pelo intérprete, não conforme sua própria vontade, mas sim de acordo com a vontade presumida das partes, ou presumida pela lei. Enfim, o hermeneuta deve proceder de modo a levar o contrato a cumprir sua função jurídica.

(F) Influências exteriores ao contrato

A interpretação do contrato deve ser feita com critérios puramente jurídicos. Fatores metajurídicos, isto é, exteriores ao Direito, não podem influenciar a interpretação contratual. Mas o Direito não é uma ilha científica. Inegavelmente sofre influências de fatos econômicos, sociais, históricos, políticos, etc. Daí porque se fala, com frequência, em interpretação econômica, histórica, política, social, etc. Porém estas modalidades de interpretação precisam ser bem compreendidas.

A regra jurídica escolhe fatos da vida que qualifica como jurídicos e fixa os efeitos que esses fatos poderão produzir dentro do sistema jurídico. Um fato só é jurídico na medida em que como tal seja qualificado pela norma jurídica. Se a norma jurídica tomar um fato econômico, político, social, histórico, psicológico ou qualquer outro, e o qualificar como fato jurídico, nesses exatos limites tal fato poderá ser levado em consideração pelo intérprete que está incumbido de interpretar um contrato.

Assim, os fatos ligados ao contrato, sejam eles econômicos, históricos, sociais, etc., podem ser valorados pelo intérprete, mas desde que tenham sido qualificados como fatos jurídicos por uma norma jurídica legal ou contratual. Fora desta hipótese, tais fatos são irrelevantes para o hermeneuta porque não são fatos jurídicos e, obviamente, os fatos não jurídicos são completamente irrelevantes para o sistema jurídico, não produzindo qualquer efeito jurídico dentro dele.

13.2. As regras clássicas de Pothier

O Código Civil francês incorporou em seus arts. 1.156 até 1.164, as famosas regras interpretativas de Pothier. Este jurista relacionou diversas regras interpretativas com o propósito de sistematizar e orientar a atividade hermenêutica.

Não são regras sempre obrigatórias. Servem mais como um roteiro ou como um conjunto de princípios para auxiliar a atividade interpretativa contratual. Muitas dessas regras foram incorporadas também por outras legislações, inclusive a brasileira.

14. TRANSMISSÃO DOS CONTRATOS

O contrato é um complexo de direitos e obrigações organizamente considerado para que as partes alcancem certo resultado jurídico. Por isto, de modo geral, a transmissão dos direitos e obrigações de cada contratante obedece as mesmas regras jurídicas que regulam a transmissão dos direitos e das obrigações.

Em geral, o credor pode livremente transferir seu crédito a terceiros, salvo se a isto se opuser a lei, a convenção das partes ou a natureza da obrigação. Por outro lado, em geral, o devedor não pode transmitir a terceiro suas obrigações sem prévio e expresso consentimento do credor. Estes mesmos princípios são válidos para a transmissão dos contratos.

Observadas as regras acima referidas, ou seja, as relativas à cessão de crédito e à cessão de obrigação (cessão de débito), os contratantes podem transferir a terceiros seus direitos ou obrigações contratuais. A transferência desses direitos ou obrigações pode ser:

(a) parcial; ou
(b) total.

Tem-se transferência parcial dos direitos ou obrigações quando apenas alguns desses direitos ou obrigações são transferidos a terceiro, de modo que o contratante que efetuou a transferência permanece no contrato como parte e, além disto, o terceiro a quem foram transferidos os direitos ou obrigações deixa de ser terceiro e ingressa no contrato também como parte.

A transferência do contrato é total quando o contratante transfere todos os seus direitos ou obrigações a alguém e, assim procedendo, deixa de ser parte do contrato, cedendo sua posição contratual àquele sujeito a quem a transferência foi feita, que passa a ser, então, o novo contratante.

Em resumo, a disciplina de transferência de direitos e obrigações aplica-se à transmissão do contrato, de modo que as regras de cessão de crédito, cessão de obrigação, assunção de obrigação, garantia obrigacional e tantas outras devem ser empregadas em matéria de transmissão contratual.

INTRODUÇÃO À DISCIPLINA ESPECÍFICA DOS CONTRATOS

Há algumas disposições contratuais que podem ser incluídas em diversos contratos ou que são consideradas implícitas neles.

Algumas das referidas disposições estão mesmo integradas em qualquer contrato, enquanto que outras podem ou não ser incluídas pelas partes na contratação. Há ainda certas disposições que, estando implícitas no contrato, são contudo supletivas e podem ser afastadas pelas partes contratantes.

Interessa aqui examinar apenas três categorias dessas disposições contratuais: as arras, os vícios redibitórios e a evicção.

1. DISCIPLINA GERAL DAS ARRAS

Arras é vocábulo de origem latina e proveniente do Direito Romano. Deve ser empregado no plural: arras. As arras são bens economicamente valoráveis que um contratante entrega ao outro como sinal da força ou da fraqueza do vínculo contratual. Têm o significado de facultar à parte contratante o arrependimento de ter celebrado o contrato ou, ao contrário, o de vedar a ela o direito de arrependimento, conforme sejam, respectivamente, arras penitenciais ou arras confirmatórias. Se a parte que deu as arras se arrepender do contrato, perdê-las-á em favor do outro contratante. Se, ao contrário, o arrependimento for da parte que recebeu as arras, deverá devolvê-las em dobro ao contratante que as havia dado.

A disciplina legal das arras é encontrada nos arts. 1.094 a 1.097, do CC.

(I) Conceito de arras

Arras são bens valoráveis economicamente que um contratante entrega ao outro, em cumprimento de cláusula contratual acessória inserta no contrato, com a finalidade específica de fortalecer ou enfraquecer o vínculo contratual, permitindo ou vedando o arrependimento contratual conforme sejam, respectivamente, arras confirmatórias ou penitenciais.

Já se sabe que o contrato é obrigatório para as partes. Celebrado o contrato, devem os contratantes cumprir suas respectivas obrigações contratuais. Como regra geral, a dissolução do contrato somente é permitida mediante concordância dos contratantes. Porém, apesar disto, a lei permite que os contratantes insiram no contrato uma disposição que lhes permita:

(a) revogar unilateralmente sua vontade contratual; ou
(b) tornar impossível a revogação da vontade contratual.

No primeiro caso, apesar da força obrigatória do contrato celebrado, as partes se concedem o direito de revogar unilateralmente a vontade contratual manifestada e, assim, dissolver o contrato. No segundo caso, as partes desejam exatamente confirmar que o vínculo contratual formado é indissolúvel por desejo de apenas uma das partes.

Quando é permitida a dissolução do contrato por revogação unilateral de vontade de um dos contratantes, as arras são denominadas penitenciais. A parte que se arrepender do contrato estará sujeita aos efeitos das arras penitenciais.

No caso em que não se tolera a revogação de vontade contratual de modo unilateral, as arras são chamadas confirmatórias, exatamente porque confirmam a obrigatoriedade do contrato.

(II) Natureza jurídica das arras

A estipulação das arras, qualquer que seja a espécie delas, não cria obrigação contratual distinta daquela em que são pactuadas. Daí porque se entende que as arras são cláusula acessória do contrato. Nesse sentido, estão submetidas ao princípio geral de que o acessório segue a sorte do principal. O contrato pode ser celebrado com ou sem a cláusula das arras, mas esta cláusula não tem função própria. Sua finalidade jurídica depende da existência e validade do contrato em que é inserida. As arras permitem ou vedam a dissolução desse contrato por revogação unilateral de vontade de um dos contratantes.

(III) Espécies de arras

As arras podem ser confirmatórias ou penitenciais. Cada uma tem finalidade e efeitos distintos.

(A) Arras confirmatórias

As arras confirmatórias têm por finalidade específica fortalecer o vínculo contratual, vedando que possa ser dissolvido por revogação unilateral de vontade do contratante e induzindo-o a cumprir suas obrigações contratuais (art. 1.094, do CC).

As arras confirmatórias confirmam a obrigatoriedade do contrato. Impedem que um dos contratantes dissolva o vínculo contratual por sua vontade unilateral. Sendo assim, os contratantes têm que cumprir suas respectivas obrigações contratuais.

Ao ser estipulada a cláusula de arras confirmatórias, um dos contratantes entrega ao outro bem valorável economicamente, querendo com isto demonstrar que o contrato é sério, que será cumprido, que não comporta o direito de arrependimento. Daí o nome: arras confirmatórias.

(B) Arras penitenciais

As arras penitenciais têm por finalidade específica enfraquecer o vínculo contratual, permitindo que um dos contratantes se arrependa de ter celebrado o contrato e possa dissolvê-lo mediante revogação unilateral de sua vontade de contratar, sujeitando-se às penalidades previstas por essa conduta (art. 1.095, do CC).

A primeira impressão que se tem ao ouvir a expressão “arras penitenciais” é exatamente a de que tais arras reforçam o vínculo contratual, já que o contratante suportará penalidades, penitências. Nada mais enganoso. A finalidade das arras penitenciais é exatamente contrária ao reforço do vínculo contratual, pois permitem que a parte se arrependa de ter contratado.

As arras chamam-se penitenciais porque dão ao contratante o direito de se arrepender do contrato, suportando a penitência, a pena, a punição prevista na cláusula que estabeleceu as arras. O contrato pode ser dissolvido mediante o exercício do direito de arrependimento por qualquer dos contratantes.

As arras penitenciais enfraquecem a força obrigatória do contrato porque permitem o arrependimento das partes. Qualquer dos contratantes pode, por essa razão, revogar unilateralmente sua vontade de contratar e dissolver o contrato.

Os efeitos das arras penitenciais variam conforme o arrependimento de contratar seja da parte que deu as arras ou da parte que recebeu as arras.

(a) arrependimento contratual pela parte que recebeu as arras

O contratante que recebeu as arras penitenciais pode se arrepender de ter celebrado o contrato e, ao proceder assim, esse contratante tem que se sujeitar à penalidade de restituir as arras em dobro para o outro contratante (art. 1.095, do CC).

Assim, por exemplo, se um contrato de compra e venda é celebrado com cláusula de arras penitenciais, em decorrência da qual o comprador dá ao vendedor arras em dinheiro no valor de R$ 10.000,00, e, posteriormente, o vendedor se arrepende de ter celebrado o contrato, terá, então – esse vendedor – que restituir ao comprador R$ 20.000,00, ou seja, o dobro do valor das arras que recebeu.

(b) arrependimento contratual pela parte que pagou as arras

Como já foi dito, a cláusula de arras penitenciais permite o arrependimento de qualquer dos contratantes de ter celebrado o contrato. Quando o direito de arrependimento é exercitado pela parte que pagou as arras, a penalidade que esse contratante deve suportar é a de perder as arras dadas à parte contrária (art. 1.095, do CC)..

Tome-se como exemplo o mesmo contrato de compra e venda citado logo acima. Nesse contrato foi inserida uma cláusula acessória de arras penitenciais, em que foi facultado o direito de arrependimento por qualquer das partes. O comprador deu ao vendedor arras em dinheiro no valor de R$ 10.000,00. Se esse comprador se arrepender de ter celebrado o contrato de compra e venda, perderá, em favor do vendedor, aqueles R$ 10.000,00. Noutras palavras, a parte que deu as arras e se arrependeu do contrato não pode pedi-las de volta para a parte que as recebeu.

(IV) Objeto das arras

Já foi explicado que as arras consistem em bens, sempre valoráveis economicamente, que um contratante dá ao outro com o propósito de reforçar ou de enfraquecer o vínculo contratual, conforme exista ou não o direito de arrependimento da contratação.

Não há necessidade de que as arras tenham sempre por objeto dinheiro. Qualquer bem pode ser dado a título de arras, desde que se possa avaliar economicamente tal bem (art. 1.096, do CC).

(V) Efeitos das arras

A inserção no contrato da cláusula de arras, quer confirmatórias, quer penitenciais, provoca outros efeitos jurídicos além dos já mencionados até aqui. Os principais são estes:

(1°) arras em dinheiro (art. 1.096, do CC) –

Quando o bem dado por um contratante ao outro a título de arras for dinheiro, presume-se que a quantia seja também um sinal e princípio de pagamento de obrigação contratual. Ao dar arras em dinheiro, o contratante estará simultaneamente pagando parcela de obrigação pecuniária assumida no contrato.

As arras em dinheiro só não serão presumidas como sinal e princípio de pagamento de obrigação contratual se os contratantes convencionarem o contrário. Inexistindo convenção contrária, prevalecerá a presunção legal acima mencionada (art. 1.096, do CC).

Se estiver, então, estabelecido no contrato que as arras em dinheiro não são consideradas sinal e princípio de pagamento de obrigação contratual, manda a lei que – tão logo seja concluído o contrato ou quando for desfeito – a parte que recebeu as arras as devolva àquela que deu as arras.

Por exemplo. Num contrato de compra e venda de uma linha telefônica, o comprador entrega ao vendedor, a título de arras, R$ 1.000,00. As partes especificam que tais arras não são pagamento de parcela do preço total do telefone. Portanto, assim que as formalidades contratuais forem cumpridas, o vendedor do telefone deverá devolver ao comprador o valor de R$ 1.000,00. Essas arras não compõem o preço da linha telefônica. Do mesmo modo, se o contrato for dissolvido, o vendedor devolverá as arras ao comprador, porque elas não são parte do preço do bem vendido.

(2°) retenção das arras confirmatórias

As arras confirmatórias, podem ser retidas pelo contratante que as recebeu. Evidentemente, somente se cogitará da retenção das arras se elas não forem parte de pagamento da obrigação contratual assumida pelo contratante que as deu.

A retenção das arras confirmatórias ocorre para atender a diversos fins jurídicos. Alguns podem ser evidenciados nos exemplos que seguem.

•    retenção para assegurar celebração de contrato futuro ou para garantir o cumprimento de formalidade complementares ao contrato

As arras confirmatórias podem ser retidas até que as formalidades contratuais sejam cumpridas, após o que precisam ser restituídas ao contratante que as deu. Nesse caso, as arras confirmatórias destinam-se praticamente apenas a incentivar a contratação e o cumprimento das formalidades inerentes a tal contratação.

Um exemplo comum é o caso de pessoas que celebram um contrato de compra e venda de imóvel, pactuando também arras confirmatórias. O vendedor entrega arras ao comprador, que as retém até que o vendedor lhe entregue as certidões de praxe para que a contratação seja idônea. O mesmo pode acontecer em relação ao comprador que dá essas arras. O comprador dá arras ao vendedor, que as retém até que possa coletar informações cadastrais ou adotar outras medidas de garantia que lhe assegurem que o comprador é idôneo. Cumpridas essas formalidades, as arras devem ser devolvidas para o contratante que as deu.

Mais um exemplo. As partes celebram um contrato preliminar, por meio do qual elas assumem obrigação de fazer, a saber, a de celebrar outro contrato futuro. Para assegurar que tal contrato futuro seja mesmo celebrado, as partes pactuam, no contrato preliminar, que um contratante dê ao outro arras confirmatórias, que serão restituídas tão logo as mesmas partes celebrem o contrato futuro a que se refere o contrato preliminar. Isto ocorre com bastante frequência em contratos de mercado financeiro ou em contratos societários. É o caso em que um investidor celebra com outro um contrato preliminar, cujo objeto é o de obrigar esses contratantes a celebrarem outro contrato futuro. No contrato preliminar, as partes estabelecem que um dos contratantes deverá comprar, no futuro, sob certas condições e dentro de determinado prazo, as ações que o outro contratante for vender. O futuro comprador entrega ao futuro vendedor das ações arras confirmatórias, demonstrando com isto que irá cumprir a obrigação assumida no contrato preliminar, qual seja, a obrigação de celebrar o futuro contrato de compra e venda. Celebrado este contrato de compra e venda, o vendedor das ações devolve ao comprador aquelas arras que havia recebido em função do contrato preliminar que ambos haviam celebrado.

•    retenção das arras confirmatórias para garantir o cumprimento do contrato

Outras vezes, a retenção das arras confirmatórias persiste até que o contrato seja completamente executado pela parte que as deu. Assim que o contratante que deu as arras cumprir todas as suas obrigações, terá direito de exigir a devolução das arras. Esse mecanismo é muitíssimo comum em contratos de empreitada.

Por exemplo. Um empreiteiro é contratado para executar certa obra e, para esse fim, no momento da contratação ou mesmo durante a execução do contrato, dá arras confirmatórias para o outro contratante, que é o dono da obra. O dono da obra reterá as arras dadas pelo empreiteiro até que as obras e todas as demais obrigações contratuais estejam perfeitamente executadas. Ocorrendo isto, o dono da obra devolverá ao empreiteiro as arras. Esse mecanismo de retenção das arras funciona como garantia de boa execução do contrato. Pensando em receber de volta as arras, o empreiteiro é estimulado a cumprir o contrato. O vínculo contratual fica reforçado.

(3°) forma das arras

As arras são previstas em cláusula acessória a um contrato, o que não significa dizer que precisam estar previstas no mesmo instrumento do contrato a que se reportam. Pode-se estipular a cláusula de arras no mesmo instrumento contratual, ou em documento apartado. O importante é que as arras tenham a função confirmatória ou penitencial referentemente a um contrato. A função da cláusula de arras é acessória e como tal deve ser tratada juridicamente.

(4°) caráter indenizatório das arras (art. 1.097, do CC)

Formada a relação contratual, pode acontecer que uma das partes de causa à impossibilidade de execução do contrato, ou o descumpra (voluntária ou involuntariamente). Se a parte responsável por esses fatos que provocam a inexecução do contrato for aquela que deu as arras, será punida perdendo-as em favor da parte contrária, sem exclusão do direito de esta última (a parte inocente) ainda pleitear ressarcimento por outros prejuízos sofridos em decorrência da inexecução do contrato (art. 1.097, do CC).

Isto quer dizer que, nesses limites, as arras têm caráter indenizatório em favor da parte inocente.

2. VÍCIOS REDIBITÓRIOS

Várias vezes foi dito que as obrigações em geral e, portanto, também as obrigações contratuais, têm duas espécies de objeto, a saber: (a) um objeto imediato, direto, que é o comportamento devido pelo devedor ao credor, ou seja, a prestação do devedor, que é sempre um fato jurídico humano de dar, fazer ou não fazer algo; e (b) um objeto mediato, indireto, que é o bem jurídico sobre o qual recai o comportamento do devedor.

Os vícios redibitórios dizem respeito ao segundo tipo de objeto da obrigação: o bem jurídico a que se refere o comportamento do devedor.

Os bens jurídicos precisam cumprir a função jurídica que lhes é peculiar. Uma música é um bem jurídico imaterial e sua finalidade típica é a de ser ouvida. Uma caneta é um bem jurídico material e juridicamente pode servir como instrumento de escrita; como instrumento de perfuração; como símbolo comercial. Um boi, por exemplo, é um bem jurídico material que pode cumprir funções jurídicas diversas: pode ser alimento; pode ser fonte de força de tração; pode fornecer couro e ossos para a produção de bens manufaturados; pode destinar-se à reprodução de certa raça de gado.

Enfim, os bens jurídicos prestam-se a diversas finalidades que, evidentemente, ora interessam a alguns sujeitos, ora são irrelevantes para eles.

Quando as partes celebram um contrato, têm em vista os bens jurídicos sobre os quais versarão suas respectivas prestações e querem que tais bens cumpram a função jurídica especificada para eles em decorrência do contrato. Um locatário de um imóvel para fins residenciais, ao celebrar o contrato de locação, obviamente deseja que tal imóvel possa normalmente ser usado para sua moradia. Quem adquire uma caneta como instrumento de escrita, espera que esse objeto possa cumprir a função que lhe é reservada: escrever. Se uma pessoa adquire um certo medicamento para tratar de sua enfermidade, espera que o remédio cumpra a finalidade terapêutica prometida.

Sendo assim, se o bem jurídico objeto de uma obrigação não se presta à finalidade esperada, se apresenta defeitos, se é inadequado para cumprir a função jurídica que dele se possa legitimamente esperar, é evidente que o sujeito interessado nesse bem passa a ter problemas. Por exemplo, se um sujeito adquire um televisor, que espera usar como ferramenta de entretenimento ou de informação e, no entanto, esse televisor não funciona por ter um defeito de fabricação, é óbvio que o adquirente desse bem fica com objeto inútil. Não comprou o bem para que não funcionasse.

A situação se agrava ainda mais quando o bem jurídico que tem defeito é objeto de um contrato comutativo. Como se sabe, nos contratos comutativos as prestações que um contratante deve ao outro são equivalentes, correspondentes, equilibradas, proporcionais. Ora, um dos contratantes paga ao outro sua obrigação contratual corretamente. Entretanto, na ora de executar sua contraprestação, o contratante que já recebeu seu crédito, paga ao outro com um objeto defeituoso. Nessa situação, a comutatividade do contrato se rompe.

Veja-se um exemplo comum. Alguém aluga uma fita de videocassete para assistir a um filme. Para esse fim, paga o valor estabelecido para a locação. A empresa locadora entrega ao cliente locatário a fita desejada. No momento de exibição do conteúdo da fita, apresenta-se ela danificada, com estrias na imagem, com som deficiente ou outros defeitos que efetivamente prejudiquem tanto a finalidade de entretenimento que a fita deveria cumprir, como também o entendimento do filme. Elimine-se desse exemplo qualquer defeito no próprio aparelho de videocassete. Ora. é lógico que o locatário não alugou o filme para não conseguir assisti-lo. Pagou o valor de aluguel para receber em locação uma fita em condições de cumprir sua função normal. Desequilibrou-se o valor econômico de cada prestação: o aluguel pago não corresponde à má qualidade da fita. Seria diferente se a empresa locadora informasse ao cliente a péssima qualidade da fita e a oferecesse em locação por aluguel muito inferior ao normal. Nesse último caso, o locatário pagaria aluguel bem menor sabendo que talvez nem conseguisse usar a fita. A fita defeituosa e o aluguel baixo manteriam a comutatividade do contrato.

Muitas vezes, o defeito do bem jurídico objeto do contrato é facilmente identificável num exame sumário. Uma peça de vestuário mal acabada ou com pequenas manchas; um carro usado com lataria apresentando pontos de ferrugem; um imóvel cuja conservação sempre foi negligenciada; uma peça de louça trincada; são, por exemplo, casos em que o defeito é facilmente reconhecido.

Todavia, há defeitos que não podem ser constatados mediante exame sumário do objeto. É o caso, por exemplo, de um televisor entregue ao comprador em caixa lacrada. A televisão tem uma peça defeituosa em seu interior que impede o funcionamento do aparelho. Também é a situação de um automóvel com defeito estrutural de fabricação; ou o de um medicamento com composição química errada e diversa daquela que consta na bula do remédio. Em casos assim, uma pessoa medianamente diligente não consegue identificar o defeito que torna o bem jurídico inútil ou impróprio para aproveitamento jurídico normal, ou que diminui consideravelmente o valor do bem defeituoso. É isto o que se chama de vício redibitório.

(I) Conceito de vício redibitório

Vício redibitório é o defeito oculto existente no bem objeto de contrato comutativo e que torna o mesmo bem impróprio ou inútil para cumprir sua finalidade jurídica prevista no contrato, ou lhe diminui razoavelmente o valor, rompendo a comutatividade da relação contratual.

O vício redibitório é defeito oculto no bem objeto do contrato. Não é reconhecível por pessoa medianamente diligente que examina o objeto. Tal defeito há de tornar o bem inadequado para

cumprir a função que dele se espera nos termos do contrato. O vício redibitório também se caracteriza se ocorrer diminuição anormal do valor do bem em decorrência do defeito oculto.

É muito importante esclarecer este ponto: o defeito oculto há de causar a diminuição do valor do bem, ou a sua inadequação para os fins previstos no contrato, ou seja, tendo-se em vista a destinação do bem indicada no contrato, o defeito inviabiliza que tal resultado seja obtido pelo contratante que recebeu o bem defeituoso.

O vício redibitório é, por conseguinte, sempre relativo, vale dizer, o bem não se presta à finalidade prevista para ele em certo e determinado contexto contratual. Alguns exemplos ajudarão a compreender o alcance desta afirmação.

Suponha-se que determinada pessoa vá a uma farmácia e adquira um comprimido analgésico para diminuir uma dor de dente. Este objeto contratual – o comprimido analgésico – não será examinado quimicamente por uma pessoa comum, ali na farmácia. O comprimido deve cumprir sua função jurídica normal, qual seja, a de inibir impulsos nervosos de dor na região afetada do corpo do usuário do medicamento. Para este fim, o comprimido tem que ser eficiente. Ora, ministrado o medicamento conforme as instruções do fabricante, a dor de dente não diminui. Por isto, o adquirente do remédio manda analisá-lo em laboratório especializado, descobrindo que o comprimido não tinha composição química para ser eficiente como analgésico. Por isto, caracterizou-se o vício redibitório do remédio, já que ele é imprestável como analgésico.

Imagine-se, agora, que o mesmo comprimido acima referido seja objeto de outro contrato, desta vez de prestação de serviços. O fabricante do medicamente contrata um laboratório independente para prestar os serviços de análise química de um lote de comprimidos analgésicos já produzidos. O objeto da análise laboratorial são os tais comprimidos. Quer sejam eles analgésicos ou não, o objeto do contrato não se prejudica, pois os serviços foram contratados exatamente para que o laboratório independente informasse ao fabricante sobre a composição química daqueles comprimidos, classificando-os ou não como analgésicos.

Outro exemplo. Alguém adquire um bem imóvel para sua moradia e paga por esse bem o preço de R$ 50.000,00. Depois de celebrado o contrato, começam a surgir rachaduras significativas nas paredes. Feita uma perícia de engenharia civil, constata-se que os alicerces do imóvel são inadequados e estão provocando o afundamento da construção. Esta situação se caracteriza como vício redibitório por dois motivos, a saber: (1°) o defeito estava oculto e, ao provocar o risco de desabamento do imóvel, torna-o impróprio para servir como moradia; (2°) com o defeito oculto existente, o preço pago pela aquisição do imóvel é excessivo e deve ser reduzido, pois o atual proprietário não conseguirá vender o bem pelo mesmo valor em decorrência dos defeitos agora aparentes.

Considere-se, agora, que o mesmo imóvel acima mencionado seja adquirido por R$ 50.000,00 por uma empresa de estacionamento, que deseja demolir a construção e aproveitar o terreno para o estacionamento de veículos, considerando o ponto muito interessante para esse fim. Ora, o imóvel, para fins de moradia, é imprestável e não vale o preço aludido, mas, para servir como estacionamento de carros é irrelevante que o alicerce da casa seja ou não adequado. Por outro lado, o valor de R$ 50.000,00 foi considerado pela empresa adquirente como justo para a compra do ponto comercial do estacionamento a ser instalado ali.

Em resumo, é preciso verificar se no caso concreto o vício é mesmo oculto e de tal monta que inutiliza o bem para certo aproveitamento jurídico, ou diminui o valor do mesmo bem de modo a romper a comutatividade das prestações contratuais.

(II) Requisitos dos vícios redibitórios (arts. 1.101 a 1.104, do CC)

Não é qualquer defeito do bem objeto do contrato que se caracteriza como vício redibitório. Exige-se diversos requisitos para esse fim.

(A) Defeito oculto

Em primeiro lugar, o defeito do bem objeto do contrato tem que ser oculto. Considerando-se a capacidade de exame do bem por parte de uma pessoa comum, medianamente diligente, o defeito não pode ser facilmente identificável.

Uma pessoa normal que deseja adquirir um veículo usado precisa, logicamente, prestar atenção em certos fatores: ruídos anormais no motor ou na estrutura do carro; manchas na pintura; sinais de infiltração de água no interior do automóvel; regularidade da suspensão; equilíbrio no manejo do volante e peças de direção; existência de luzes de sinalização; funcionamento de freios; idoneidade da documentação de propriedade do veículo. Adquirido o automóvel após o exame de todos esses pontos, considerados satisfatórios pelo adquirente, começam a se manifestar defeitos normais de um carro usado: a bateria não se recarrega; os freios demonstram necessidade de manutenção; pontos de ferrugem aparecem na lataria; nota-se infiltração de água pelos vidros porque a borracha de isolamento envelhece, etc. Nenhum desses defeitos é vício redibitório, pois decorrem do uso normal do veículo e eram não só aparentes como previsíveis para quem queria adquirir um carro usado.

Outro exemplo. Outra pessoa também deseja adquirir um automóvel usado. Esse comprador nada entende de automóveis, mas ao examinar o carro, nota que o motor emite barulhos bastante diferentes; percebe diversas manchas na pintura do veículo; sente cheiro forte de umidade e de mofo no interior do automóvel, etc. Ora, também esses vícios não são redibitórios porque foram facilmente reconhecíveis até mesmo por quem nada entende de carros usados.

Finalmente, mais um exemplo. Outro sujeito quer adquirir um carro usado e procede aos exames de praxe. Celebrado o contrato, vem a descobrir que o velocímetro do veículo havia sido adulterado e, assim, o carro tinha quilometragem real muito superior àquela registrada no marcador. O motor já havia sido retificado diversas vezes, mas esse fato foi omitido pelo vendedor. O carro sofreu capotamento que abalou toda a sua estrutura, embora todas as peças de funilaria tivessem sido substituídas por outras inteiramente novas, que receberam nova pintura no veículo inteiro. Nesta situação tem-se vícios redibitórios, quer porque tais defeitos podem inviabilizar o uso do automóvel para certa finalidade (segurança, por exemplo), quer porque a simples existência de tais vícios são suficientes para diminuir o valor do carro.

Outro exemplo. Certa pessoa adquiriu de outra um sítio às margens de um rio. As paredes da casa do sítio apresentavam evidentes marcas de lama, decorrentes de sucessivas enchentes ocorridas no local. Essas paredes não haviam sido pintadas recentemente. Pouco depois da celebração do contrato, ocorreu uma enchente do rio. O comprador processou o vendedor, pretendendo a dissolução do contrato e indenização por perdas e danos. O fundamento da ação foi a existência de vício redibitório que tornava a casa imprestável para uso normal ou que, pelo menos, diminuía consideravelmente seu valor. Foi oferecida a defesa negando a existência de vício redibitório porque: (1º) qualquer pessoa comum, que não fosse absolutamente cega, poderia reconhecer nas paredes da casa as marcas de enchentes anteriores; (2°) jamais as marcas de lama foram ocultadas ou disfarçadas por nova pintura anterior à venda do bem. E, realmente, a defesa foi acolhida e a ação julgada improcedente, pois os defeitos eram evidentes para qualquer pessoa comum. O comprador, conhecendo-os de antemão, assumiu os riscos inerentes a novas enchentes.

(B) Inutilidade do bem para uso normal

A existência do vício redibitório deve tornar o bem imprestável, inútil, impróprio, inadequado para o uso normal previsto no contrato, ou inerente à natureza do próprio objeto.

Há que se insistir mais uma vez: deve-se considerar os efeitos do vício redibitório tendo-se em vista o uso que o contratante prejudicado poderia legitimamente fazer do bem, ou o valor que tal bem teria que apresentar para não romper a comutatividade do contrato.

Por exemplo, se um criador de cavalos adquire um animal com certas características muito especiais, desejando usá-lo como reprodutor para certa raça pura de cavalos, é evidente que o animal adquirido para esta finalidade não pode ter defeito oculto. Ocorre que, embora todas as cautelas normais tenham sido adotadas, nem o vendedor nem o comprador do cavalo sabiam que tal animal padecia de esterilidade para gerar novas crias. Esse defeito, oculto, sequer conhecido pelo vendedor, torna o cavalo completamente inútil para a finalidade que deveria cumprir. A existência de vício redibitório nesse exemplo é inegável.

Imagine-se, todavia, que aquele mesmo cavalo houvesse sido adquirido não para a reprodução de raça pura, porém para servir de montaria ou para realizar trabalhos de força, ou mesmo para ser treinado para corridas. Ora, para tais finalidades, é absolutamente irrelevante que o animal seja estéril para procriar.

(C) Diminuição do valor do bem

O vício redibitório deve ser capaz de diminuir o valor econômico do bem tendo-se em vista dois fatores muito importantes, a saber: (1º) a finalidade que o bem tem para a pessoa que o recebe com defeito oculto; e (2°) a comutatividade entre as prestações contratuais de cada parte.

O bem objeto do contrato há de ser usado para certo fim e, em atenção a isto, tem um valor maior ou menor para os contratantes. Um comerciante de peças de vestuário tem ponta de estoque em excesso. Normalmente, essas peças seriam vendidas por um preço hipotético de R$ 10,00 cada uma. Todavia, o comerciante quer eliminar essas peças, vendendo-as, cada uma, por R$ 5,00. As peças têm defeitos, mas quem vier adquiri-las sabe muito bem disto e sabe também que, pelo fato de existirem tais defeitos, as peças de vestuário não são vendidas a R$ 10,00, mas a R$ 5,00. Os defeitos não impedem o uso normal das peças de vestuário e, além disto, o valor fixado foi tido como justo pelas partes contratantes.

Sendo assim, o ponto essencial a ser destacado aqui é o do rompimento da comutatividade do contrato. Mesmo que exista o defeito, seja ele oculto ou aparente no bem objeto do contrato, é essencial que tal defeito diminua o valor do bem a tal ponto que não se tenha mais um contrato comutativo.

Tome-se novamente os exemplos já mencionados de alguém que adquire uma casa com alicerce defeituoso. Se o adquirente quiser usar o bem para moradia, esta finalidade resta inviabilizada por causa do risco de desabamento do imóvel. Mas, mesmo que o adquirente quisesse correr esse risco, usando o imóvel para morar, é evidente que o preço de R$ 50.000,00 mostra-se excessivo para um imóvel com tal tipo de defeito estrutural. Assim, o contrato de compra e venda pode até ser mantido, porém diminuindo-se o preço de aquisição, de modo a restabelecer a comutatividade do contrato. Por outro lado, se o adquirente do bem vier a usá-lo como local de estacionamento, para esta finalidade é irrelevante o defeito do alicerce, porque a casa terá mesmo que ser demolida. Como o ponto comercial é adequado para um estacionamento de automóveis, o preço de venda do bem, R$ 50.000,00, não elimina a comutatividade do contrato, apesar do defeito mencionado.

Ressalte-se bem, no entanto, que não se exige que o vício redibitório, simultaneamente, torne inútil o bem para certo fim e também diminua o valor desse bem, rompendo a comutatividade do contrato. Trata-se de fatos alternativos, que podem até ocorrer concomitantemente. O vício redibitório acontece quando determina a inutilidade do bem para certa finalidade. Existe também quando o defeito diminui o valor do bem desequilibrando o contrato. Uma hipótese ou outra. Se as duas consequências do vício redibitório acontecerem simultaneamente (imprestabilidade do bem e diminuição de seu valor), a parte lesada terá duplo fundamento para desfazer o contrato ou revisá-lo. Mas basta apenas uma das hipóteses para que o vício redibitório se caracterize.

(D) Contrato comutativo

O equilíbrio das obrigações de cada parte é a característica essencial do contrato comutativo. A prestação devida por uma parte há de ter valor econômico mais ou menos proporcional, equivalente, ao valor da prestação que esta última parte, por sua vez, deve pagar àquele primeiro contratante.

O locador quer alugar um bem imóvel pelo valor mensal de R$ 1.000,00. O locador estabeleceu que o direito de usar o imóvel vale mais ou menos R$ 1.000,00. O locatário, por sua vez, sabe que, de acordo com os preços de mercado de locação de imóveis, o preço justo de aluguel seria de R$ 800,00 mensais. Todavia, o locatário concorda em pagar aluguel de R$ 1.000,00. As obrigações do locador e do locatário têm valor econômico mais ou menos proporcional, equivalem-se. O contrato é comutativo, portanto.

Após a celebração do contrato, o locatário constata diversos defeitos ocultos no imóvel locado: canos antigos que se rompem; infestação de cupins no madeiramento do teto; entupimento de fossas sanitárias por saturação; quebra de telhas antigas que provocam infiltrações nas paredes. Esses vícios ocultos, obviamente, diminuem o valor locatício do imóvel. Se tais defeitos houvessem se manifestado antes da celebração do contrato de locação, certamente R$ 1.000,00 não seriam valor justo a título de aluguel. Talvez o valor justo fosse de R$ 500,00 mensais. A constatação dos vícios redibitórios apontados alterou a comutatividade da relação contratual.

Por conseguinte, se o defeito oculto, ao ser constatado, romper a comutatividade do contrato, poderá acarretar a resolução ou a revisão do mesmo contrato.

(E) Época da ocorrência do defeito oculto

É importante não confundir o momento em que o defeito oculto ocorre, isto é, quando ele tem origem, como o momento em que aquele defeito oculto é percebido, ou seja, a ocasião em que ele se torna aparente, é descoberto.

Exige-se que o defeito oculto tenha se originado antes da celebração do contrato comutativo e, ainda, que tal vício redibitório somente tenha se tornado evidente depois de formado o vínculo contratual.

Se o defeito oculto tiver origem após a celebração do contrato comutativo, quem tem a posse do bem deve suportar os prejuízos daí decorrentes. Se o vício redibitório se tornar evidente antes da celebração do contrato comutativo, é lógico que o possuidor do bem não poderá alegá-lo, pois tinha conhecimento do defeito antes de celebrar o contrato e assumiu os riscos de sua conduta.

Assim, é preciso que a origem do vício redibitório seja anterior ao contrato e que a descoberta do defeito se verifique depois de formado o vínculo contratual. O problema dos vícios redibitórios vincula-se ao princípio geral de Direito de que o dono do bem aproveita os benefícios advindos do objeto e, por outro lado, suporta os prejuízos que o mesmo bem acarretar. Isto porque, por presunção jurídica, o titular do bem deve conhecê-lo suficientemente, deve saber de seus defeitos e qualidades.

Consequentemente, de nada adianta o titular do bem alegar que não conhecia o defeito oculto antes de celebrar o contrato e que transferiu o mesmo bem ao outro contratante ignorando a origem do vício redibitório.

Assim, por exemplo, pense-se no caso de um sujeito que vende a outro certo número de cabeças de gado bovino, destinadas a corte para abastecimento de carne nos mercados. O vendedor ignora que o rebanho está contaminado por doença que torna aquela carne animal imprópria para o consumo humano. O comprador poderá pedir a resolução do contrato, ou o abatimento no preço do gado, em razão da existência de vício redibitório. O fato de o vendedor alegar que desconhecia o defeito é inteiramente irrelevante, porque, como dono do bem, deveria conhecer seus defeitos e qualidades.

O bem móvel é transferido de um titular para outro mediante tradição (qualquer que seja a espécie de tradição). O bem imóvel é transferido de um titular para outro por meio da transcrição do título adequado no Cartório de Registro de Imóveis.

Portanto, o vício redibitório deve ter se originado antes do ato de tradição (bem móvel) ou de transcrição (bem imóvel), e deve ser descoberto após a tradição ou a transcrição.

(F) Responsabilidade do contratante

Mesmo que estejam presentes todos os requisitos anteriormente examinados, a existência do defeito oculto não viciará o contrato comutativo se as partes assim convencionarem.

É que a lei permite que os contratantes estabeleçam que o titular do bem não responderá pela existência do vício redibitório. Trata-se de verdadeira cláusula de não indenizar. Constatado o defeito oculto, a parte que era titular do bem defeituoso não será obrigada a dissolver o contrato, nem a revisá-lo. Quem recebeu o bem defeituoso não poderá extinguir o contrato e tão pouco revisá-lo.

Todavia, não existindo no contrato tal cláusula liberatória dos efeitos do vício redibitório, o antigo titular do bem não pode alegar sua ignorância a respeito do defeito oculto. Como já foi dito, o titular do bem deve conhecê-lo suficientemente, deve saber de seus defeitos e qualidades. Por isto, mesmo que não soubesse da existência do vício redibitório, terá que indenizar o contratante prejudicado, terá que revisar o contrato, ou terá que suportar a resolução da relação contratual, conforme desejo do contratante lesado.

(III) Efeitos dos vícios redibitórios

A existência de vício redibitório no bem objeto do contrato comutativo produz importantes efeitos jurídicos. Geralmente, a discussão a respeito dos vícios redibitório ocorre em contratos em que se dá a transferência de domínio do bem de um contratante para outro. Assim de dá na compra e venda, na doação, na troca, na alienação fiduciária, por exemplo. Mas, mesmo em contratos em que não ocorre a transferência de domínio, porém somente a transferência de posse, é cabível a discussão sobre a existência de vício oculto.

Aqui serão examinados os efeitos mais importantes oriundos dos vícios redibitórios.

(A) Doação com encargo

O contrato de doação é típico contrato gratuito. Por meio desse contrato, uma pessoa (doador), transfere para outra (donatário), por mera liberalidade, o domínio de bem móvel ou imóvel. O doador empobrece, porque o bem doado é retirado de seu patrimônio e, no lugar dessa redução patrimonial, não ingressa qualquer outro bem a título de contraprestação paga pelo donatário. Por outro lado, o donatário enriquece, pois seu patrimônio aumenta em função do ingresso do bem doado. Este é o típico contrato de doação simples, ou seja, sem qualquer encargo devido pelo donatário.

Se a coisa doada apresentar vício redibitório, o donatário não pode reclamar contra o doador. A doação é liberalidade, é favor que o doador faz para o donatário. Não é justo, então, que o doador, que já empobrece em razão da doação, seja ainda responsabilizado por eventual vício redibitório. Mas a situação é diferente se a doação for com encargo.

Na doação com encargo, o donatário tem que suportar um ônus (não uma contraprestação) para poder beneficiar-se da doação. Por exemplo, o doador doa ao donatário um bem imóvel, mas impõe o ônus de que tal imóvel somente seja usado para fins comerciais e, para esse fim, o donatário terá que realizar benfeitorias no bem. O donatário tem, portanto, que suportar o encargo se realmente quiser obter a propriedade do bem doado e com ela se manter. Ora, havendo vício redibitório, o donatário terá suportado encargo do qual haverá de ser indenizado. Se preferir, o donatário poderá ainda pedir a resolução do contrato de doação (art. 1.101, § único, do CC).

(B) Opções do adquirente de bem com vício redibitório

O sujeito que adquire bem com vício oculto, ou que se torna possuidor desse bem, pode:

(1°) pedir a resolução do contrato;
(2°) rejeitar o bem defeituoso;
(3°) aceitar o bem no estado em que se encontra, pedindo abatimento de preço.

(1°) Resolução do contrato

Quem se torna titular de bem com vício redibitório, encontra-se na situação de ter um bem impróprio para a utilização prevista, ou com valor menor do que o normal, de modo a romper a comutatividade do contrato.

Assim, pode o contratante prejudicado pedir a resolução do contrato comutativo (arts. 1.101, 1.105, 1.138 e 1.191, do CC).

(2°) Rejeição do bem defeituoso

O contratante que recebeu bem defeituoso pode preferir, ao invés da resolução do contrato, a substituição do bem por outro sem defeito, se possível. É o que ocorre, por exemplo, quando um comerciante troca um produto defeituoso objeto de operação comercial, entregando ao consumidor outro produto sem vício (arts. 1.101, 1.105, 1.138 e 1.191, do CC).

(3°) Aceitação do bem defeituoso com abatimento de preço

Pode acontecer, ainda, que o contratante prejudicado pelo vício redibitório não tenha interesse na resolução do contrato, ou que o bem não seja substituído (porque o contratante não quer substitui-lo ou porque a substituição não seja possível). Nesse caso, pode o contratante mencionado aceitar o bem – mesmo com defeito – desde que o preço daquele bem seja diminuído até que se restabeleça a comutatividade do contrato.

Em resumo, pode o contratante pedir a revisão do contrato para, abatendo o preço da coisa defeituosa, restabelecer a correspondência entre as prestações devidas por cada contratante (arts. 1.101 e 1.105, do CC).

(C) Bens conjuntos

Muitas vezes o objeto do contrato é composto por diversos bens sobre os quais haverão de incidir a prestação do devedor. É o que ocorre quando alguém adquire uma coleção de livros, ou compra dois ou mais veículos, aluga diversas máquinas para realizar certo serviço, por exemplo.

Se todos os bens objeto do contrato apresentarem vícios redibitórios, deve-se aplicar ao caso as regras jurídicas até aqui examinadas. Porém pode acontecer que apenas alguns dos bens objeto do contrato apresentem defeito, enquanto que os outros bens não. Ora, nessa situação, o contratante prejudicado poderá exercer sua opção apenas em relação aos bens defeituosos.

Noutras palavras, o contratante pode desejar resolver o contrato, rejeitar os bens, ou aceitá-los com defeito e abatimento de preço. Mas estas opções estão restritas aos bens com vícios redibitórios, de modo que, no que concerne aos bens sem vício, não se poderá resolver o contrato, rejeitar os mesmos bens, ou pedir diminuição de seu preço.

Por exemplo, se uma empresa adquire quatro veículos para compor sua frota operacional e, no entanto, um desses veículos apresenta vício redibitório, somente em relação ao carro defeituoso é que o comprador poderá pretender resolver o contrato, rejeitar o automóvel, ou aceitá-lo com defeito e abatimento de preço.

(D) Aquisição de bem em venda judicial

Por diferentes razões um bem pode ser alienado por via judicial. Qualquer que seja o motivo determinante dessa alienação, ela sempre representa um contrato de compra e venda celebrado com intervenção do Estado-juiz e, por isto mesmo, celebrado com várias formalidades e solenidades essenciais à existência e validade do contrato.

A venda judicial de um bem é necessariamente precedida de fase de exposição, na qual os interessados podem examinar cuidadosamente o objeto. Esta providência destina-se a evitar que os interessados na aquisição do bem sejam posteriormente surpreendidos pela existência de vícios redibitórios. Além disto, na maioria das vezes, a venda judicial decorre de expropriação de bens, como ocorre nas ações de execução. Logo, o proprietário do bem, nesses casos, é despojado do bem independentemente de sua vontade e até mesmo contra sua vontade. É o Poder Judiciário quem expropria o bem e o vende judicialmente em certas hipóteses. Não é justo que o proprietário do bem, em situações como esta, além de sofrer a expropriação judicial ainda tenha que responder perante o adquirente pelos eventuais vícios redibitórios do bem.

Assim, a venda judicial de um bem impede que o adquirente reclame contra eventuais vícios ocultos existentes no mesmo bem (art. 1.106, do CC). Não é possível, então, desfazer a venda judicial e nem pedir abatimento do preço de aquisição por causa de vício oculto do bem.

(E) Ignorância do vício redibitório

Já foi suficientemente esclarecido acima que o alienante de bem com defeito oculto não se exime da responsabilidade que a lei lhe impõe alegando que não conhecia o vício. Somente se as partes expressamente pactuaram essa cláusula de não indenizar é que o alienante estará isento de responsabilidade (arts. 1.102 e 1.103, do CC).

(F) Responsabilidade do transmitente de bem com vício redibitório

O titular do bem deve, por presunção legal, conhecê-lo, saber de seus defeitos e qualidades, até mesmo porque tem o dever legal de conservar o mesmo bem. Como regra geral, deve responder pelos prejuízos que causar ao outro contratante por ter transmitido a este um bem com vício redibitório.
Todavia, a extensão da responsabilidade do transmitente o bem defeituoso ao outro contratante variará conforme ele tenha assim procedido com boa fé ou com má fé.

(a) responsabilidade do transmitente de boa fé

Se o transmitente não conhecia o defeito oculto do bem que transmitiu ao outro contratante, responderá apenas restituindo o valor recebido, mais as despesas do contrato (art. 1.103, do CC).

(b) responsabilidade do transmitente de má fé

Se o transmitente já conhecia o vício oculto quando transmitiu o bem à outra parte, fica obrigado a indenizá-la do modo mais completo possível, observadas as circunstâncias do caso e a efetiva prova dos prejuízos sofrido pela parte inocente (art. 1.103, do CC).

(G) Perecimento do bem com defeito oculto

A responsabilidade do transmitente do bem persiste mesmo que tal bem venha a perecer em decorrência do vício redibitório. Exige-se, contudo, que a parte prejudicada demonstre que o defeito teve origem em momento anterior à transmissão do bem  (art. 1.104, do CC).

3. EVICÇÃO

Na ocasião em que foram examinados os requisitos essenciais para a existência e validade de qualquer ato jurídico e, por conseguinte, também para os contratos, viu-se que as partes contratantes devem ser capazes.

A capacidade aqui considerada é, em primeiro lugar, a capacidade genérica (de fato e de direito) para a prática de atos jurídicos, no sentido de que o sujeito não pode se enquadrar em qualquer das situações referidas nos arts. 5° e 6º, do CC, que estabelecem, respectivamente, os casos de incapacidade absoluta ou relativa das pessoas. No caso de entidades abstratas, sua capacidade de fato e de direito é definida tanto na lei como nos seus respectivos atos constitutivos. Mas, em segundo lugar, há que se considerar também a capacidade específica da pessoa (física ou jurídica) para a prática de determinado ato jurídico.

Por exemplo. Um homem, antes de se casar, adquire com seus próprios recursos um bem imóvel. Depois, casa-se em regime de separação total de bens. A seguir, deseja vender aquele imóvel que adquiriu. Para poder vendê-lo, inexoravelmente precisará do consentimento de sua mulher, porque assim determina o art. 235, do CC. Noutras palavras, aquele homem é sujeito plenamente capaz para a prática de atos jurídicos em geral, mas não tem capacidade específica para vender seu próprio imóvel sem a concordância de sua mulher. Sua cônjuge tem que integrar a capacidade para que ele – único proprietário do bem – possa vendê-lo.

Outro exemplo. Uma pessoa é plenamente capaz para praticar atos jurídicos de venda e compra de bens. Se quiser vender um automóvel, pode fazê-lo, em tese. Mas só pode vender automóvel que lhe pertença, sendo óbvio que não pode vender veículo de que não seja proprietária. Tem capacidade geral e específica para vender apenas o seu próprio automóvel, não o carro de outrem.

Muitas vezes, por força de contrato oneroso celebrado, um sujeito aliena a alguém um bem que, na verdade, não lhe pertence. É possível que este alienante proceda assim com má fé, transferindo ao outro contratante um bem que sabe que não poderia transferir. Mas é possível também que o alienante do bem celebre o contrato e transfira o bem à outra parte completamente convencido de que age regularmente.

Veja-se um exemplo comum. Uma pessoa furta um automóvel, falsifica os documentos de propriedade do veículo e, em seguida, o vende como se fosse dono. O comprador do carro pensa que o adquiriu do verdadeiro dono, mas o vendedor sabe perfeitamente que isto não é verdade. Mais tarde, este sujeito que comprou o carro, por sua vez, decide vendê-lo a outra pessoa. Ora, este segundo vendedor acredita realmente ser o legítimo proprietário do veículo e com essa convicção realiza o segundo contrato de compra e venda.

No primeiro contrato de compra e venda citado no exemplo, o vendedor agiu com má fé, alienando bem que sabia não lhe pertencer. No segundo contrato referido, o vendedor agiu com boa fé, pois estava convicto de ser o legítimo dono do bem.

Nessas situações em que um contratante  transfere a outrem a propriedade, a posse ou o uso de bem sobre o qual não tem titularidade, é possível ocorrer a evicção.

Quando alguém transfere a outrem um bem sobre o qual não tem titularidade, o verdadeiro dono desse bem pode ajuizar ação judicial contra aqueles dois sujeitos e reivindicar o objeto para si, demonstrando que é o dono do bem. Se tal ação for julgada procedente, isto é, se o autor da ação for judicialmente reconhecido como o verdadeiro titular do bem, então o juiz determina que o aludido bem seja entregue ao autor, que se denomina evictor. O contratante a quem o bem havia sido transmitido por força de contrato ficará, então, evicto, o que quer dizer que ficará privado do bem, devendo restitui-lo ao evictor. O outro contratante, que havia transmitido o bem ao evicto, passa assim a ter o dever legal de indenizar os prejuízos que causou ao evicto. Em linhas gerais, é isto o que se chama de evicção.

(I) Conceito de evicção

Evicção é a obrigação que tem o transmitente de bem objeto de contrato oneroso, no sentido de resguardar aquele a quem o bem é transmitido (evicto) dos riscos de privação do domínio, posse ou uso do mencionado bem, ou de indenizar o evicto dos prejuízos que lhe causar em decorrência de sentença judicial que reconheça a um terceiro o domínio, a posse ou o direito de uso sobre o mesmo bem (art. 1.107, do CC).

A evicção é, a um só tempo: (a) dever contratual de garantir o outro contratante contra os riscos de perda de domínio, posse ou direito de uso sobre o bem objeto do contrato; (b) dever legal de indenizar os prejuízos causados ao contratante que perdeu o bem objeto do contrato para um terceiro, que foi judicialmente reconhecido como o legítimo titular do domínio, posse, ou direito de uso sobre o bem objeto do contrato.

Dois sujeitos celebram um contrato oneroso por meio do qual um dos contratantes transmite ao outro o seu domínio, a sua posse ou o seu direito de uso sobre determinado bem sobre o qual alega ter titularidade. Porém, um terceiro ajuiza contra aqueles dois contratantes uma ação judicial, na qual pede que o juiz reconheça que o domínio, a posse, ou o direito de uso sobre o bem não é titularizado por nenhum dos referidos contratantes, mas sim por este terceiro autor da ação, ou seja, pelo evictor. Obtendo sentença judicial nesse sentido, o contratante que tem o bem em seu poder é obrigado a entregá-lo ao terceiro evictor. Mas, como tal contratante celebrou com o outro um contrato oneroso, sofre prejuízo por perder o domínio, a posse ou o direito de uso sobre o bem objeto do contrato. Tem, por conseguinte, direito de receber indenização a ser paga pelo contratante que lhe causou o mencionado prejuízo.

Veja-se um exemplo. Uma pessoa vende sua casa pelo valor de R$ 100.000,00 para outro sujeito. A obrigação contratual do vendedor é a de entregar a casa ao comprador. Em contrapartida, pode exigir do comprador o pagamento do preço do bem. O comprador, por seu turno, tem a obrigação contratual de pagar os R$ 100.000,00 ao vendedor. Por outro lado, o comprador tem o direito de exigir que o vendedor lhe entregue a casa vendida. O contrato é oneroso porque tanto o vendedor como o comprador auferem benefícios e suportam sacrifícios contratuais. Celebrado o contrato, um terceiro sujeito surge e, em ação judicial própria, consegue demonstrar que ele é o verdadeiro proprietário daquele imóvel e que, por esta razão, o contratante vendedor não poderia ter vendido bem que não lhe pertencia. O juiz, então, manda que o comprador do bem o entregue ao verdadeiro dono, o evictor. O comprador se vê despojado do bem que adquiriu e, simultaneamente, do valor do preço que pagou para comprar o imóvel. Ora, o vendedor do bem, que não era afinal o seu proprietário, tem devolver ao comprador o valor de R$ 100.000,00, com os encargos legais e, se procedeu com má fé, terá também que ressarcir os demais prejuízos causados ao comprador.

(II) Requisitos para a evicção

A evicção somente ocorre mediante o preenchimento de certos requisitos, que se passa a examinar.

(A) Contrato oneroso

A evicção só ocorre em contratos onerosos, isto é, naqueles em que ambas as partes, respectivamente, auferem benefícios e suportam os sacrifícios patrimoniais decorrentes da contratação, de sorte que, operada a evicção, essa onerosidade desaparece para uma das partes em prejuízo da outra. Por isso, o evicto termina sem o recebimento da contraprestação a que tinha direito em face do outro contratante.

(B) Objeto da evicção

Embora os casos mais comuns de evicção envolvam o direito de propriedade sobre um bem, na verdade não é apenas o domínio que pode ser objeto de evicção.

A evicção pode ter por objeto o direito de propriedade (domínio) sobre o bem, a posse sobre o bem, ou o direito de uso sobre o bem.  Quando alguém não tem título de domínio, título de posse, ou título de uso sobre o bem e, mesmo assim, o transfere a outra pessoa, pratica ato irregular. Reconhecido tal fato judicialmente, a pessoa a que o bem foi transferido vê-se privada do direito de propriedade, da posse, ou do direito de uso que pensava ter sobre o bem. É a evicção. Pode agora cobrar os prejuízos que sofreu em face do outro contratante que, indevidamente, transferiu-lhe o bem.

(C) Sentença judicial

Somente sentença judicial pode decretar a evicção. O terceiro que se intitula o verdadeiro proprietário, possuidor ou usuário do bem precisa demonstrar judicialmente que tem razão. Tem que promover a ação contra aqueles que, aparentemente, têm os mesmos direitos que o evictor alega ter. Colhidas as provas e verificada legitimidade ou ilegitimidade dos títulos de cada um dos interessados, o juiz decretará ou não a evicção.

(D) Responsabilidade pela evicção

Quem transfere a outrem, por meio de contrato oneroso, o domínio, a posse, ou o direito de uso sobre um bem, tem o dever legal de assegurar que é titular desses direitos e que pode realizar a transferência de modo legítimo. Por isto, se ocorrer a evicção, o transmitente do bem tem responsabilidade pelos prejuízos causados ao outro contratante. Trata-se de responsabilidade imposta por lei. Basta que se verifique o fato da evicção para que tenha origem o dever de indenizar.

A responsabilidade que o transmitente do bem tem pelos riscos da evicção pode ser reforçada ou enfraquecida (art. 1.107, parágrafo único, do CC). Isto quer dizer que as partes podem estipular no contrato que, se ocorrida a evicção, o transmitente do bem:

(a) não pagará indenização alguma;
(b) pagará indenização limitada a certo valor;
(c) pagará indenização mais outras penalidades;
(d) oferecerá garantia patrimonial que assegure o pagamento da indenização.

Se as partes do contrato oneroso estipularem que o transmitente do bem não responderá pelos riscos da evicção, então, por óbvio, não terá qualquer responsabilidade se de fato a evicção ocorrer.

Sendo assim, para que exista a responsabilidade do transmitente do bem pelos riscos da evicção, é necessário que as partes não tenham estipulado no contrato cláusula de não indenizar, ou seja, cláusula em que ficou estabelecido que o transmitente não responderia pela evicção.

Noutros termos, é preciso que as partes não tenham expressamente afastado a responsabilidade do transmitente do bem pelos riscos da evicção. A responsabilidade pela evicção existe por determinação legal. Não precisa estar prevista no contrato. Para afastar tal responsabilidade, as partes têm que prever no contrato, de modo expresso e inequívoco, que o transmitente não assume a responsabilidade pelos riscos da evicção.

(E) Inexistência de fatos excludentes da responsabilidade pela evicção (art. 1.117, do CC)

Além de todos os requisitos já indicados acima, exige-se também alguns requisitos negativos. Os requisitos negativos são aqueles fatos que não podem ocorrer para que a responsabilidade pela evicção exista. Se qualquer desses fatos acontecer, o transmitente do bem não terá qualquer responsabilidade pela evicção.

Os requisitos negativos estão indicados no art. 1.117, do CC. São eles:

(a) caso fortuito, força maior, roubo ou furto (art. 1.117, I, do CC)

Já foi esclarecido que a evicção somente ocorre mediante sentença judicial. É o único modo legítimo pelo qual o contratante pode ser privado do bem que lhe foi transmitido por meio de contrato oneroso.

Se o contratante for privado do bem não por determinação judicial, mas sim por caso fortuito, força maior, roubo ou furto, não poderá responsabilizar pela evicção o contratante que lhe havia transmitido o bem, como diz o art. 1.117, I, do CC. Esse dispositivo, na verdade, é completamente inútil. Se a evicção somente pode ser decretada judicialmente, e se o caso fortuito, a força maior, o roubo e o furto não são – logicamente – inerentes a uma sentença judicial, é óbvio que não poderia existir responsabilidade pela evicção nessas hipóteses referidas no art. 1.117, I, do CC. Tem que ser assim porque inexiste evicção nos mencionados casos e, se não existe evicção, é lógico que não pode existir responsabilidade pela evicção.

(b) assunção dos riscos da evicção (art. 1.117, II e 1.108, segunda parte, do CC)

Se o contratante que recebe o bem, por força de contrato oneroso, conhece os riscos da evicção e os assume, é natural que, ocorrida a evicção, não poderá responsabilizar o contratante que lhe transmitiu o bem.

Por isto, quando o contratante prejudicado pela evicção celebrou o contrato oneroso sabendo que o bem não pertencia ao transmitente, mas a terceiro, não tem legitimidade para reclamar pela evicção. Do mesmo modo, se ao celebrar o contrato o contratante prejudicado pela evicção sabia que o outro contratante litigava com terceiro sobre o bem, é lógico que assumiu os riscos da evicção. É que, se o terceiro viesse a vencer o litígio, o contratante que litigava contra tal terceiro

não poderia ter transmitido o bem ao contratante prejudicado pela evicção. Ora, se este último contratante sabia dessa situação, não é justo que queira responsabilizar pela evicção aquele que lhe transmitiu o bem estando envolvido em litígio (art. 1.117, II, do CC).

Observe-se, porém, que o art. 1.117, II, precisa ser lido e interpretado em conjunto com o art. 1.108, segunda parte, do CC. Quando o sujeito que recebe o bem é informado pelo outro contratante a respeito dos riscos da evicção, por ser o bem litigioso, e nesse contexto não assume expressamente tais riscos, então aquele contratante prejudicado pela evicção:

(1°) não poderá reclamar perdas e danos pelo fato da evicção; mas
(2°) tem o direito de receber de volta o preço que pagou pelo bem objeto da evicção.

Portanto, a parte prejudicada pela evicção não será ressarcida pelas perdas e danos que sofrer (art. 1.117, II, do CC), mas poderá receber o valor do bem (que não se confunde com as perdas e danos) se, informado dos riscos da evicção, não os assumiu expressamente no contrato (art. 1.108, do CC).

(F) Formalidades relativas à evicção (art. 1.116, do CC e art. 70, I, do CPC)

Foram examinados acima os requisitos indispensáveis para que a evicção se caracterize, para que tenha origem o dever legal do transmitente do bem de ressarcir os prejuízos causados ao evicto. Preenchidos tais requisitos, a responsabilidade pela evicção estará caracterizada. Todavia, o evicto precisa adotar certos procedimentos, observar determinadas formalidades, sob pena de perder seu direito de ressarcimento de danos decorrentes da evicção.

Veja-se bem: o direito ao ressarcimento terá existência se preenchidos os requisitos indicados. O exercício desse direito já existente é que depende da observância de certos procedimentos e formalidades.

Por conseguinte, tais procedimentos e formalidades não são requisitos para a caracterização da responsabilidade pela evicção, mas requisitos para o exercício do direito em exame.

O terceiro que se considera titular do bem a ser objeto da evicção normalmente ajuiza sua ação tanto contra a pessoa que tem o bem consigo, como contra aquela que fez a transmissão do bem. No entanto, pode ocorrer que o evictor promova a ação apenas contra o sujeito que está com o bem. Neste caso, o art. 1.116, do  CC, impõe ao contratante que recebeu o bem o dever de noticiar a demanda, contra ele ajuizada pelo evictor, ao contratante que lhe transmitiu o bem. Noutras palavras, quem está sendo processado pelo evictor, tem que comunicar esse fato ao contratante de quem recebeu o bem.

Se o contratante ameaçado pela evicção não cumprir seu dever legal de comunicar a demanda ao contratante que lhe transmitiu o bem, perderá o direito de ser ressarcido pelos prejuízos que sofrer em decorrência da evicção (arts. 1.116, do CC e art. 70, I, do CPC). Precisa, portanto, denunciar à lide o contratante que lhe transmitiu o bem.

(III) Espécies de evicção

A evicção pode ser total ou parcial. Será total se o evicto ficar privado inteiramente do domínio, posse, ou direito de uso sobre o bem. Será parcial se apenas em parte o evicto perder o domínio, a posse ou o direito de uso do bem.

(IV) Efeitos da evicção

Os principais efeitos da evicção já foram examinados incidentalmente durante o desenvolvimento da matéria. Mesmo assim, é interessante ordená-los para facilitar sua identificação.

(A) Responsabilidade do transmitente do bem (art. 1.107, do CC)

O principal efeito da evicção é o dever legal imposto ao transmitente do bem de ressarcir plenamente os prejuízos causados ao contratante que sofre a evicção, o evicto. Tal dever somente não existirá se as partes expressamente o afastarem no contrato oneroso celebrado.

(B) Renúncia à garantia contra a evicção (arts. 1.108 e 1.117, II, do CC)

O contratante que recebe o bem sujeito à evicção pode renunciar aos benefícios que lhe são assegurados por lei. A renúncia deve ser expressa no contrato, de modo que, a partir de então, o contratante transmitente do bem não mais terá responsabilidade pelos riscos da evicção.

Uma vez estipulada a exclusão da responsabilidade do transmitente do bem pelos riscos da evicção, podem ocorrer as seguintes consequências:

(1ª) repetição do valor do bem

Operada a evicção, o evicto tem o direito de repetir (isto é, de pedir a devolução) o valor do bem objeto da evicção. Quem tem que devolver esse valor é, obviamente, o contratante que lha havia transmitido o bem.  Mas, para que o evicto possa cobrar a devolução do valor é necessário que: (a) não tenha sido informado dos riscos da evicção; ou (b) apesar de ter sido informado dos riscos da evicção, não os assumiu expressamente no contrato;

(2ª) assunção dos riscos da evicção

O evicto que foi informado sobre os riscos da evicção e os assumiu expressamente em contrato, não tem direito nem ao ressarcimento dos prejuízos que sofreu, nem ao reembolso do valor que pagou pelo bem objeto da evicção.

(C) Reforço ou diminuição da garantia contra a evicção (art. 1.107, parágrafo único, do CC)

Conforme explicado no item II, letra “D”, acima, as partes podem reforçar, diminuir ou mesmo eliminar a garantia contra os riscos da evicção.

(D) Composição dos prejuízos do evicto (arts. 1.109 e 1.112, do CC)

A não ser que as partes do contrato oneroso convencionem diferentemente, o evicto tem direito a receber:

(1°) o preço integral que pagou pelo bem objeto da evicção);

(2º) indenização pelos prejuízos que sofrer em consequência de ter devolvido ao evictor os frutos do bem objeto da evicção;

(3º) indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis que o evicto introduziu no bem objeto da evicção;

(4º) todas as despesas que realizou para celebrar o contrato oneroso em que ocorreu a evicção;

(5º) os lucros cessantes e os danos emergentes causados pela evicção;

(6º) as custas e despesas judiciais, inclusive honorários advocatícios, que realizou para defender seu direito sobre o bem objeto da evicção.

(E) Deterioração do bem objeto da evicção (arts. 1.110 e 1.111, do CC)

O transmitente do bem objeto da evicção tem responsabilidade perante o evicto mesmo que aquele bem apresente-se deteriorado na ocasião em que a evicção ocorrer. Noutros termos, o evicto pagou pelo bem certo valor e, depois de celebrado o contrato oneroso em razão do qual o bem lhe foi transmitido, constata-se diminuição do valor do bem em consequência de deterioração que tal objeto sofreu. Realizada a evicção, é claro que o evicto poderá cobrar  do transmitente do bem o valor que ele – evicto – pagou, e não apenas o valor real do bem deteriorado. Contudo, se a diminuição do valor do bem decorreu de deterioração provocada pelo próprio evicto, este somente poderá cobrar o valor real do bem e não o valor que pagou ao transmitente do bem.

Pode acontecer que o evictor se contente em receber o bem objeto da evicção mesmo deteriorado por culpa do evicto, deixando de cobrar do evicto indenização pela diminuição de valor do mesmo bem em razão das deteriorações existentes. Nessa hipótese, não se pode admitir que o evicto, que é responsável pela deterioração, cobre do contratante que lhe transmitiu o bem o valor dos prejuízos oriundos da referida deterioração. O evicto entregou ao evictor bem estragado, com valor menor do que o valor que o bem teria se não apresentasse deterioração. O evicto, embora responsável pela deterioração, não foi condenado a pagar ao evictor o valor da indenização pelas deteriorações do bem. Seria injusto, então, que o evicto, nesse contexto, fosse cobrar do contratante que lhe transmitiu o bem o valor desse bem como se não existisse deterioração alguma. O evicto estaria se enriquecendo sem causa, porque receberia valor maior do que o valor que o bem teria se continuasse com ele, evicto. Sendo assim, o contratante responsável pela evicção pode deduzir do valor a ser restituído ao evicto o montante dos prejuízos causados pela deterioração do bem, que devem ser suportados pelo evicto (art. 1.111, do CC).

(F) Indenização pelas benfeitorias no bem objeto da evicção (arts. 1.112 e 1.113, do CC)

Os arts. 1.112 e 1.113, do CC, disciplinam o direito de indenização pelas benfeitorias necessárias ou úteis feitas no bem objeto da evicção.

O ponto de partida do raciocínio é o seguinte: o evictor é o verdadeiro titular do bem, razão pela qual é responsável pelo pagamento das benfeitorias necessárias e úteis realizadas no bem objeto da evicção. Duas hipóteses devem ser examinadas:

(a) benfeitorias realizadas pelo evicto

A primeira hipótese é a de que tais benfeitorias tenham sido realizadas pelo evicto. Nesse caso, o evicto tem direito de receber indenização por parte do evictor. Mas, se o evictor não realizar o pagamento dessa indenização por benfeitorias, então o evicto poderá cobrar tal indenização do contratante que lhe transmitiu o bem por força do contrato oneroso celebrado. O que não se permite é que o evicto cobre a mesma indenização duas vezes, ou seja, uma vez do evictor e outra vez do contratante que lhe transmitiu o bem. Isto seria enriquecimento sem causa. Assim, se o evicto já tiver recebido do evictor a indenização por benfeitorias, obviamente que o transmitente do bem poderá deduzir tal valor indenizatório do montante que ele – transmitente do bem – terá que pagar ao evicto em decorrência de sua responsabilidade pela evicção.

Por exemplo, o transmitente do bem teria que indenizar o evicto pelo valor total de R$ 10.000,00, dos quais R$ 1.000,00 corresponderiam ao valor indenizatório de benfeitorias necessárias ou úteis. Ocorre que o evictor, por seu turno, já pagou ao evicto aqueles R$ 1.000,00 a título de indenização pelas mesmas benfeitorias. Nesse caso, o transmitente do bem terá que indenizar ao evicto apenas o valor de R$ 9.000,00, pois está legalmente autorizado a deduzir de sua responsabilidade indenizatória os R$ 1.000,00 das benfeitorias, já recebidos pelo evicto por parte do evictor. Enfim, o evicto não pode cobrar a indenização por benfeitorias do evictor e do transmitente do bem, pois isto implicaria em receber R$ 1.000,00 a mais do que tem direito de receber.

(b) benfeitorias realizadas pelo transmitente do bem

A segunda hipótese é aquela em que as benfeitorias foram realizadas pelo transmitente do bem, evidentemente antes que tal bem fosse transmitido ao evicto. Como as benfeitorias já estavam incorporadas ao bem, o evicto pagou pelo mesmo bem o valor fixado já considerando a existência das benfeitorias. Ocorre, porém, que o evictor – que é o verdadeiro titular do bem – teria que pagar por tais benfeitorias. Então, o evictor tem que pagar o valor das benfeitorias:

(1°) ou ao evicto, porque este sujeito suportou o custo de tais benfeitorias, já que esse custo foi incorporado ao valor total que o evicto pagou ao transmitente do bem;

(2°) ou ao transmitente do bem, que foi o sujeito que inicialmente custeou as benfeitorias.

Mas, observe-se, o transmitente do bem não pode enriquecer injustamente, recebendo o valor das benfeitorias duas vezes: uma do evicto, que pagou o preço do bem já considerando as benfeitorias; e outra do evictor.

Portanto, se o evictor pagar o valor das benfeitorias ao transmitente do bem, este último sujeito, por sua vez,  terá que ressarcir o evicto, devolvendo-lhe o valor total pago pelo bem (que, como se disse, abrangeu o custo das benfeitorias). Por outro lado, se o evictor pagar o valor das benfeitorias diretamente ao evicto, este, ao cobrar indenização do transmitente do bem, terá que deduzir do montante indenizatório o valor que já recebeu do evictor a título de benfeitorias. A não ser assim, o evicto estaria recebendo o custo das benfeitorias duas vezes: uma do evictor e outra do transmitente do bem (se este tivesse que devolver ao evicto o valor integral do bem, que inclui o custo das benfeitorias).

(G) Evicção parcial (arts. 1.114 e 1.115, do CC)

Foi explicado que a evicção pode ser total ou parcial. Tratando-se de evicção parcial, os efeitos jurídicos variam um pouco em relação àqueles da evicção total.

Sendo parcial a evicção, é necessário examinar se o evicto ficou privado do bem em grande proporção ou em parcela diminuta.

(a) evicção parcial pouco significativa

Se a evicção for parcial e pouco significativa, o evicto poderá exigir do transmitente do bem apenas a restituição do preço proporcional à parte evicta do mesmo bem (arts. 1.114 e 1.115, do CC).

Não há critério legal objetivo para se determinar quando a evicção parcial é ou não pouco significativa. A análise deve ser feita caso a caso, conforme as circunstâncias de cada situação.

(b) evicção parcial significativa

Cuidando-se de evicção parcial, porém de grande monta, o evicto pode optar por uma das seguintes alternativas (arts. 1.114 e 1.115, do CC):

(1ª) resolução do contrato, com as consequências já examinadas para o caso de evicção total; ou

(2ª) manter o contrato e cobrar do transmitente do bem a restituição do preço proporcional ao desfalque que o evicto suportou, caso em que o cálculo de tal valor deve ser feito de acordo com o valor do bem na época em que a evicção ocorreu, com correção monetária.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista as necessidades de um curso de graduação em Direito, este estudo apresentou um panorama dos principais assuntos de interesse na Teoria Geral dos Contratos. O conteúdo do estudo não dispensa, logicamente, a leitura complementar e mais aprofundada do assunto.

Parece importante ressaltar, mais uma vez, que os aspectos examinados em Teoria Geral dos Contratos são aplicáveis aos contratos em espécie. Assim, embora cada contrato tenha regramento próprio, notadamente se for contrato disciplinado em lei, este fato não significa que não se possa aplicar a todo e qualquer contrato vários dos princípios e diversas regras encontradas na teoria geral do Direito contratual. É com esta última observação que se encerra este volume para que se possa passar prontamente ao estudo das espécies de contrato no volume próprio.

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CONTRATOS DE ALIENAÇÃO DE DOMÍNIO – V.2

CONTRATOS DE TRANSFERÊNCIA DE DOMÍNIO DE BENS

 

INTRODUÇÃO

 Metodologia da exposição

 

A Teoria Geral dos Contratos foi examinada no primeiro volume desta obra. O conhecimento dos aspectos gerais do Direito Contratual foi importante para que a evolução histórica desse ramo jurídico fosse estudada; para que os requisitos dos contratos fossem apresentados; para que as fases da contratação fossem bem analisadas; para que a classificação dos contratos fosse conhecida, o mesmo acontecendo com os modos de extinção dos contratos. Naquele primeiro volume também se examinou a interpretação dos contratos e as principais disposições gerais dos contratos.

 

Agora chegou-se ao momento de examinar os contratos em espécie. Serão estudados os principais contratos tipificados quer no Código Civil, quer em legislação extravagante. Assim, ter-se-á em vista o contrato de compra e venda em cada uma de suas modalidades, a troca, a doação, a locação de serviços e de coisas ou de direitos, a empreitada, o empréstimo, o mútuo, o depósito, o mandato, a gestão de negócios, os contratos de representação em geral, os contratos referentes à propriedade intelectual, a sociedade civil, o contrato de seguro, a parceria rural, a constituição de renda, a fiança, os contratos fiduciários em geral, o leasing, o franchising, o outsourcing e, enfim, novas figuras contratuais.

 

No momento de se examinar cada um desses contratos adotar-se-á sempre a mesma metodologia expositiva. O esquema de análise de cada contrato será feito com obediência a este roteiro:

 

(1º) Generalidades sobre a figura contratual

 

Nesse tópico serão examinados alguns aspectos históricos relativos ao contrato, seus traços gerais, sua função essencial e outros assuntos que se mostrem relevantes.

 

(2º) Conceito do contrato

 

A conceituação do contrato será feita, sempre que possível, com os elementos indicados na própria lei e tendo-se em vista a função específica do contrato examinado.

 

(3º) Requisitos do contrato

 

Os requisitos do contrato examinado, sejam requisitos essenciais ou não, serão apresentados nesse tópico da exposição. Em geral, a identificação desses requisitos será feita com os dados constantes da lei.

 

(4º) Indicação das espécies ou modalidades do contrato

 

Há contratos que apresentam mais de uma espécie ou modalidade. Nesses casos, a exposição apresentará essas espécies separadamente, a fim de que possam ser contrastadas com a estrutura geral do contrato.

 

(5º) Efeitos principais do contrato

 

É impossível, senão inócuo, querer relacionar todos os efeitos de cada espécie de contrato. Os contratos produzem efeitos que interessam às partes de modo especial e efeitos que interessam à sociedade em geral, pois todo contrato tem uma função social a cumprir.

 

Por conseguinte, não se pretende de modo algum indicar, um a um, os efeitos do contrato. A o contrário, o que se deseja a indicar de modo geral os principais efeitos de certo contrato, apontando os direitos e obrigações mais evidentes de cada contratante e, na medida do possível, os efeitos sociais do contrato.

 

Feitos esses esclarecimentos de caráter metodológico, pode-se agora passar ao estudo dos contratos em espécie.

 

CONTRATO DE COMPRA E VENDA

 

(1) Generalidades sobre o contrato de compra e venda

 

O contrato de compra e venda pertence à categoria dos contratos de alienação de bens. Além do contrato de compra e venda, na referida categoria estão todos os contratos em razão dos quais uma pessoa transfere a propriedade de um bem para outra pessoa, como ocorre na doação, na troca, na alienação fiduciária, na cessão definitiva de direitos.

 

Por meio do contrato de compra e venda, um sujeito (vendedor), obriga-se a transferir a outro (comprador), o domínio, posse e direito de uso de um certo bem, mediante o pagamento, pelo comprador, de certo preço correspondente ao valor do bem vendido.

 

Logo se vê que o contrato de compra e venda permite a aquisição da propriedade de dois bens. O vendedor se despoja da propriedade do bem vendido, a qual é transmitida ao comprador. Por sua vez, o comprador se despoja da propriedade do dinheiro correspondente ao preço do bem vendido.

 

Acontece que essas trocas econômicas possibilitadas pelo contrato de compra e venda nem sempre foram realizadas com os elementos apontados. É que em várias sociedades antigas a moeda só foi introduzida muito tardiamente, de modo que não havia a possibilidade de o comprador dar dinheiro ao vendedor. Mesmo nas sociedades em que a moeda foi introduzida, seu uso não era generalizado, de maneira que os negócios mais populares não eram realizados mediante troca de moeda pela coisa vendida.

 

Em suma, a troca, ou escambo, precedeu naturalmente a compra e venda. O vendedor entregava ao comprador o bem vendido e o comprador, por seu turno, entregava ao vendedor outro bem equivalente àquele que estava adquirindo. Isto quer dizer que o bem entregue pelo comprador ao vendedor correspondia ao preço do bem vendido.

 

A origem do contrato de compra e venda, bem como sua natureza jurídica, têm sido muito discutidas na doutrina. A esse respeito, José Carlos Moreira Alves (Direito Romano, volume II, 4ª edição, Editora Forense, 1.986, p. 185/187) faz interessante síntese da polêmica:

 

“Primitivamente, havia em Roma a venda à vista, celebrada – quando se tratava de res mancipi – por meio da mancipatio (…), e executada, de pronto, com a troca imediata da coisa pelo preço. Essa operação procedia, sem dúvida, da troca, que preexistiu à venda, pois esta depende da existência da moeda, desconhecida em tempos muito remotos. Mas a venda à vista, realizada pela mancipatio, não é a compra e venda contratual, geradora de obrigações; é, sim, translatícia da propriedade da coisa e do preço, pertencendo, por isso, à teoria dos modos de aquisição do domínio – os autores modernos dão-lhe várias denominações, como, por exemplo, venda manual, venda real. Ela não produz obrigações para as partes, exceto as decorrentes de culpa do vendedor, e estas resultantes não da existência de um contrato, mas de um delito.

 

Por outro lado, não se pode negar que, mesmo nos primórdios do direito romano, ao lado da compra e venda à vista, tenha existido a compra e venda a crédito, em que a entrega da coisa não é seguida imediatamente do pagamento do preço, ou em que este é feito parceladamente. Essa compra e venda a crédito, porém, não era ainda um contrato consensual (cuja origem é mais recente), e os romanistas, tendo em vista que o simples acordo de vontade (pacto nu) não gerava, no direito romano, obrigações, divergem quanto à identificação do expediente a que recorreram os romanos para dar eficácia jurídica a essa compra e venda a crédito. Entendem uns – como VOIGT – que, primitivamente, o acordo de vontade entre comprador e vendedor estava protegido pelo princípio de lealdade que se observava rigidamente nos tempos mais recuados; assim, graças à moral, esse pacto vinculava comprador e vendedor. Outros – como PERNICE – julgam que, a princípio, a compra e venda a crédito era um contrato real, que, portanto, se perfazia com a entrega da coisa, só se transformando, posteriormente, em contrato consensual. Já JHERING e GIRARD defendem a tese de que, para dar eficácia à compra e venda a crédito, os romanos se utilizavam, de início, de duas stipulaciones: uma, pela qual o comprador se tornava credor da coisa; outra, mediante a qual o vendedor passava a ser o credor do preço.

 

Vinculados a esse problema, surgem dois outros: como e quando os romanos deixaram de lado o simples expediente para dar eficácia jurídica à compra e venda a crédito e passaram a concebê-la como contrato consensual.

 

Também a respeito dessas duas questões os autores não são acordes.

 

Quanto à primeira, entendem uns (nesse sentido, GIRARD) que essa transformação ocorreu em virtude de movimento que fez subentender, progressivamente, as duas stipulaciones (a do comprador e a do vendedor), quando elas não tivessem sido celebradas ou se o tivessem sido irregularmente. Outros – entre os quais COLLINET e GIFFARD – julgam que a compra e venda consensual nasceu das relações entre comerciantes, e que foi o pretor peregrino quem, em nome da bona fides (boa fé), pela primeira vez, deu eficácia ao contrato consensual de venda, nas operações de comércio internacional.

 

Com referência à segunda, opinam alguns romanistas (como KARLOWA) que o contrato consensual de compra e venda surgiu (omissis), antes dos fins do século III a.C. Entendem outros – assim, GIRARD – que isso somente ocorreu depois do advento da Lei Aebutia (meados do século II a.C.), pois a compra e venda consensual era sancionada por iudicia bonae fidei, e essas ações só teriam sido admitidas no sistema jurídico romano em época posterior à daquela lei. O que se sabe de certo, a esse respeito, é que, segundo informação de CÍCERO, no tempo de QUINTO MÚCIO SCÉVOLA, o Pontífice (140 a 82 a.C.), já existia em Roma, o contrato consensual de compra e venda.

 

Apesar de todas essas dificuldades históricas, o contrato de compra e venda é hoje um contrato consensual, como se verá adiante. Para a sua formação, exige-se determinação do bem objeto da compra e venda, a fixação do preço e as declarações de vontade contratual do comprador e do vendedor.

 

Por influência ainda do Direito Romano, o contrato de compra e venda em si mesmo não estabelece nenhum direito real. Os contratantes têm apenas direitos e obrigações pessoais oriundos da compra e venda. Noutras palavras, o contrato de compra e venda não atribui direito de propriedade sobre o bem ou sobre o preço. A aquisição da propriedade do bem ou do preço somente irá se verificar por um dos modos de aquisição do domínio (tradição ou transcrição, conforme se trate, respectivamente, de bem móvel ou imóvel).

 

Além disso, no Direito Romano o contrato de compra e venda não obrigava o vendedor a transferir ao comprador a propriedade do bem vendido, mas sim sua posse. No entanto, por variados mecanismos, especialmente criados na jurisprudência, a transferência da posse do bem implicava ainda na transferência da propriedade.

 

De modo geral, os efeitos da compra e venda no Direito Romano pós-clássico chegaram aos dias atuais. O vendedor responde pela entrega da coisa, pela evicção, pelos vícios redibitórios, entre outras obrigações. O comprador deve pagar o preço avençado e cumprir as demais obrigações a ele atribuídas pelo contrato.

 

No Direito brasileiro, o contrato de compra e venda está regulado nos arts. 1.122 a 1.163, do Código Civil. Também o Código Comercial, nos arts. 191 a 220 regula a compra e venda mercantil. Não se pode deixar de citar a influência que tem o Código do Consumidor em vários aspectos do contrato de compra e venda. Em todos esses preceitos legais, a estrutura do contrato de compra e venda é a mesma, conforme se passará a examinar.

 

(2) Conceito do contrato de compra e venda

 

Compra e venda é o contrato consensual, oneroso e de efeitos bilaterais, por meio do qual um sujeito (vendedor) se obriga a transferir a outro (comprador) a propriedade de um bem, material ou imaterial, mediante o pagamento, pelo comprador, de certo preço em dinheiro (art. 1.122, do CC).

 

Os termos desse conceito exigem alguns esclarecimentos.

 

(A) Formação e execução do contrato

 

O primeiro esclarecimento a ser feito diz respeito à natureza jurídica do contrato de compra e venda. O contrato de compra e venda apresenta duas fases que precisam ser bem examinadas, a saber:

 

(1ª) fase da formação do contrato; e

(2ª) fase de execução do contrato.

 

O contrato de compra e venda é consensual e se forma, portanto, mediante o simples acordo de vontades do vendedor e do comprador a respeito do bem a ser vendido e de seu preço. Formado o contrato, o vendedor passa a ter a obrigação de entregar ao comprador o bem vendido. O comprador, de sua parte, passa a ter a obrigação de entregar o preço ao vendedor.

 

A fase seguinte à da formação do contrato é a de sua execução. Somente depois de ter sido celebrado o contrato de compra e venda – e nas condições nele previstas – é que o vendedor praticará o ato material de entregar ao comprador o bem vendido. Do mesmo modo, o comprador praticará o ato de transferência do dinheiro ao vendedor apenas depois da formação do contrato de compra e venda.

 

Em síntese, comprador e vendedor cumprirão suas respectivas obrigações de entregar o preço e o bem vendido por causa do contrato de compra e venda celebrado. Os atos de entrega desses bens não são atos de formação do contrato, mas sim de execução do contrato.

 

(B) Noções gerais sobre posse e propriedade

 

O segundo esclarecimento a respeito do contrato de compra e venda diz respeito ao direito de propriedade, ou domínio. Foi visto que, até certa fase do Direito Romano, o contrato de compra e venda não era apto a transferir a propriedade do bem para o comprador. Transmitia-se apenas a posse do bem.

 

O conceito de propriedade, ou domínio, consta do art. 524, do CC. O direito de propriedade é o mais completo direito real. Contém quatro elementos, a saber: (a) o poder de disposição sobre o bem; (b) o poder de fruição do bem;  (c) o poder de utilização do bem; e (d) o poder do proprietário de recuperar o bem em face de quem quer que injustamente o tenha.

 

O poder de disposição abrange o direito de alienar ou onerar o bem, o direito de abandonar o bem e o direito de dar-lhe a utilização econômica que o proprietário desejar, respeitada, obviamente, a função social desse direito. O poder de fruição do bem significa que o proprietário pode aproveitar-se das vantagens que o bem pode lhe proporcionar. Essa fruição pode ser feita pelo proprietário ou por outra pessoa no interesse do proprietário. O poder de uso do bem permite que o proprietário o destine a finalidades especiais, conforme o seu interesse e tendo em vista também os interesses sociais mais amplos. Finalmente, o poder de recuperar o bem das mãos de quem quer que injustamente o tenha é denominado poder de seqüela.

 

A posse, cuja natureza jurídica é controvertida há milênios, não apresenta os mesmos elementos da propriedade. Há quem entenda que a posse é mero fato com efeitos jurídicos. Outros sustentam que a posse é direito. Se direito for, a posse suscita a discussão infindável de se saber se é direito real ou pessoal. Essas questões serão examinadas na ocasião do estudo sobre o Direito das Coisas. Por ora, basta registrar que a posse tem sido considerada modernamente uma aparência de propriedade, dado o prestígio alcançado pela teoria objetivista de Rudolph von Jhering.

 

Na posse inexiste o poder de disposição e, em certos casos, nem mesmo o poder de fruição está presente. O que atualmente caracteriza a posse é o fato de alguém ter consigo um bem e comportar-se em relação a esse bem como se dono fosse, embora saiba, ou deva saber, que o bem não lhe pertence a título de propriedade.

 

Quem transmite a propriedade a outro sujeito transmite-lhe, também, a posse (como regra geral). Por meio do contrato de compra e venda, o vendedor transmite ao comprador a propriedade do bem e, por via de consequência, transmite também a posse daquele bem. O comprador, por sua vez, transmite ao vendedor a propriedade e ainda a posse do dinheiro correspondente ao preço da coisa vendida.

 

A propriedade de bem móvel é transmitida de um sujeito para outro por meio da tradição, que pode ser real, ficta, ou simbólica. A propriedade de bem imóvel é feita mediante a transcrição do título de propriedade no órgão de registro público competente.

 

(C) Pagamento do preço em dinheiro

 

O terceiro esclarecimento relativo ao contrato de compra e venda diz respeito ao preço. O comprador deve pagar ao vendedor dinheiro. Ocorre, porém, que na prática tem se tornado cada vez mais comum o pagamento do preço com títulos de crédito ou com documentos de valor fiduciário.

 

É o que ocorre, por exemplo, quando alguém adquire um bem e paga o preço mediante a emissão de cheque. O cheque não é dinheiro; é ordem de pagamento à vista. Quem recebe o cheque acredita que tal ordem de pagamento à vista é legítima, isto é, que o cheque tem suficiente provisão de fundos e que será regularmente pago pelo banco sacado.

 

Do mesmo modo, nota-se a existência de contratos de compra e venda em que o comprador efetua o pagamento do preço com duplicatas, letras de câmbio, ações de sociedade anônima e títulos de crédito em geral. É preciso entender que o preço da compra e venda deve ser pago em dinheiro, por expressa disposição do art. 1.122, do CC. O pagamento do preço em títulos fiduciários como os mencionados não descaracteriza o contrato de compra e venda, contudo. É que a obrigação de pagar o preço – obrigação esta do comprador – pode ser liquidada por meio de dação em pagamento, novação, transação e outros pagamentos indiretos. Assim, o preço deve ser fixado no contrato de compra e venda em dinheiro. Se, posteriormente à formação do contrato, o preço vier a ser pago com bem diverso de dinheiro, nem por isto a compra e venda terá sido prejudicada.

 

(3) Requisitos essenciais do contrato de compra e venda

 

A lei brasileira (art. 1.126, do CC, e art. 191, do CComl.) considera o contrato de compra e venda formado desde o instante em que as partes estejam de acordo sobre o objeto a ser vendido e comprado e sobre o preço desse objeto. São exigidos, portanto, três elementos essenciais para a existência do contrato de compra e venda, a saber:

 

(a) a declaração de vontade contratual do vendedor coordenada com a declaração de vontade contratual do comprador;

 

(b) a determinação do bem objeto da venda e compra; e

 

(c) a fixação do preço do bem em dinheiro.

 

Cada um desses requisitos deve ser examinado separadamente.

 

(A) Declaração de vontade contratual pelas partes

 

São duas, pelo menos, as vontades necessárias à formação do contrato de venda e compra.

 

O vendedor deve declarar sua vontade de vender o bem, ou seja, a vontade de que tal bem seja retirado de seu patrimônio para que seja integrado ao patrimônio do comprador a título de propriedade, em troca de dinheiro que o comprador integrará ao patrimônio do vendedor. Em suma, o vendedor troca sua propriedade sobre o bem pela propriedade de dinheiro equivalente ao valor do bem.

 

O comprador deve declarar sua vontade de comprar o bem, isto é, a vontade de retirar de seu patrimônio certa quantia em dinheiro e de entregá-la, a título de propriedade, para o vendedor, recebendo, como contraprestação, a propriedade do bem vendido. O comprador troca a propriedade de dinheiro equivalente ao valor do bem pela propriedade do próprio bem.

 

Para que o comprador e o vendedor possam declarar suas respectivas vontades contratuais, precisam, ambos, apresentar capacidade genérica e capacidade específica para a formação do contrato.

 

De fato, a regra geral que vigora no sistema jurídico brasileiro é a de que todo ser humano é capaz de titularizar relações jurídicas (art. 2º, CC). O poder que todo ser humano tem de titularizar relações jurídicas chama-se capacidade de direito (também denominada capacidade de gozo). A capacidade de direito difere da capacidade de fato. Entende-se por capacidade de fato (também chamada de capacidade de exercício) o poder que o sujeito tem de, por si próprio ou por meio de representante legal, adotar os comportamentos necessários para tornar-se efetivamente titular de direitos ou de obrigações.

 

Embora todo ser humano tenha capacidade de direito, nem todos têm capacidade de fato. Os arts. 5º e 6º, do CC, estabelecem os casos em que certos sujeitos são considerados absolutamente incapazes (art. 5º) ou relativamente incapazes (art. 6º).

 

Sendo assim, comprador e vendedor devem apresentar capacidade genérica para celebrarem o contrato de compra e venda, ou seja, não podem ser pessoas absoluta ou relativamente incapazes. Todavia, mesmo que comprador e vendedor sejam pessoas genericamente capazes, é necessário ainda examinar se tais sujeitos apresentam capacidade específica para celebrarem certo e determinado contrato de compra e venda. É que há casos em que a lei proíbe a celebração do contrato de compra e venda entre certos sujeitos, impondo-lhes restrição para tal contratação. Este ponto precisa ser bem esclarecido.

 

Há pessoas que, sendo capazes, podem praticar os atos jurídicos que quiserem no plano geral. Entretanto, essas pessoas encontram obstáculo legal para celebrarem determinado contrato de compra e venda em que são partes outras pessoas especialmente protegidas pela lei. É o que acontece, por exemplo, com um sujeito que é considerado legalmente capaz para praticar atos jurídicos em geral, mas que não pode – por expressa vedação legal – alienar um imóvel que tem sem o consentimento de sua mulher (art. 235, do CC). Esse sujeito, sendo casado, é capaz e, apesar disso, para o ato específico de vender seu imóvel, precisará que sua capacidade seja integrada pela intervenção de sua mulher no ato jurídico de alienação. Celebrado o contrato sem anuência da mulher, tal ato contratual será declarado nulo por defeito de capacidade do alienante.

 

Em alguns casos, portanto, a lei exige que a capacidade do vendedor (ou a do comprador) seja integrada – naquele ato contratual específico – pela vontade de outro sujeito. Noutros casos, a lei não restringe a capacidade específica do sujeito para o ato contratual, mas estabelece restrições ou impedimentos para a celebração do contrato. Cabe examinar aqui, a título de exemplos, alguns desses casos de integração de capacidade ou de existência de limitações legais ao direito de contratar.

 

(a) venda de bem imóvel de ascendentes para descendente

 

O art. 1.132, CC, estabelece impedimento legal para a celebração do contrato de compra e venda a que se refere. Os ascendentes não podem vender um imóvel a um de seus descendentes sem que os demais descendentes concordem com tal contrato. A finalidade da regra do art. 1.132, do CC, é a de evitar que sejam desigualadas as legítimas dos herdeiros necessários (art. 1.721, do CC). Portanto, os descendentes a que se refere o art. 1.132, do CC, são apenas aqueles que poderiam ser prejudicados na sucessão de seus ascendentes.

 

O imóvel vendido a um dos descendentes será retirado do patrimônio dos ascendentes vendedores e integrado ao patrimônio do descendente comprador. No lugar do imóvel retirado de seu patrimônio, os ascendentes vendedores receberão a quantia em dinheiro correspondente ao valor do bem vendido. É preciso que tal valor em dinheiro seja justo, porque, falecendo os ascendentes, o seu patrimônio será transmitido aos deus descendentes herdeiros necessários. Se o valor pago pela aquisição do imóvel for menor que o valor real do imóvel, o descendente que adquiriu tal bem estaria sendo beneficiado, porque: (1º) teria recebido bem de valor maior que o preço pago para a aquisição desse mesmo bem; e (2º) o descendente comprador, agora na qualidade de herdeiro, ainda iria receber, a título de herança, parte do valor que pagou pela aquisição do bem.

 

Por exemplo, imagine-se que o imóvel vendido pelos ascendentes ao descendente tenha o valor de 100. No entanto, no contrato de compra e venda, fixa-se o preço de 50 para a aquisição do bem. Imagine-se, agora, que aqueles ascendentes tivessem dois filhos. Se, na ocasião do falecimento dos ascendentes, o imóvel estivesse no patrimônio deles, o valor do bem seria repartido entre os dois filhos em partes iguais, ou seja, 50 para cada filho. Tendo sido realizada a compra e venda do mesmo imóvel por 50, o bem que valia 100 saiu do patrimônio dos ascendentes vendedores e, no lugar desse bem, entrou o valor de 50. Quando esses ascendentes morrerem, aqueles 50 serão repartidos igualmente entre os dois filhos já mencionados, isto é, 25 para cada um. Verifica-se, então, que o filho que havia comprado o imóvel (que valia 100) pelo valor de 50, recebeu, na verdade, o valor de 75, enquanto que o outro filho recebeu apenas o valor de 25. Um dos filhos recebeu o valor de 25 a mais do que deveria ter recebido, ao passo que o outro filho recebeu o valor de 25 a menos do que teria direito de receber.

 

Por causa de tudo isto, a lei exige que os demais descendentes concordem com a venda de imóvel que os ascendentes pretendam fazer a um dos descendentes. Se a vedação legal do art. 1.132, do CC, for desobedecida, o contrato de compra e venda ainda assim existirá, será válido e eficaz. Poderá, contudo, ser pleiteada sua anulação.

 

(b) aquisição de bens do administrado pelo administrador

 

O art. 1.133, do CC, apresenta longo elenco de situações em que certas pessoas são impedidas de adquirir bens que estejam sob sua administração e que pertençam a outros sujeitos.

 

O princípio básico retratado no artigo 1.133 é o seguinte: quem, por determinação legal ou mesmo contratual, administra bens alheios, não pode se prevalecer dessa situação para adquirir tais bens em condições mais favoráveis do que aquelas que um terceiro desinteressado teria que observar.

 

Esses administradores de bens alheios podem livremente celebrar contratos de compra e venda com terceiros. No entanto, estão legalmente impedidos de celebrarem contratos de compra e venda com os administrados referidos no art. 1.133, do CC, mesmo que tal aquisição seja feita em hasta pública.

 

(c) aquisição de propriedade condominial

 

O direito de propriedade, como qualquer outro direito patrimonial, pode ser titularizado simultaneamente por mais de um sujeito. Duas ou mais pessoas podem ser donas do mesmo imóvel, ou do mesmo carro, ou da mesma linha telefônica, ou do mesmo crédito representado por título cambial, apenas para citar alguns exemplos.

 

Quando mais de uma pessoa titulariza um direito de propriedade sobre certo bem, diz haver entre elas um condomínio (art. 623, do CC). Há no sistema normativo brasileiro, como acontece em geral nas legislações provindas do sistema jurídico romano-germânico, duas espécies de condomínio: (1ª) o condomínio tradicional, previsto no art. 623, do CC, que pode ocorrer tanto para bens móveis como para imóveis; e (2ª) o condomínio especial regulado pela Lei 4.591/64. Nesta segunda espécie, o sujeito é titular exclusivo do direito de propriedade de uma unidade autônoma, que é parte de um imóvel mais amplo, tendo sobre aquela unidade plena propriedade, em geral. A unidade autônoma é parte de um imóvel maior, sobre o qual o titular da unidade autônoma tem, também, direito de propriedade condominial. Em síntese, no regime da Lei 4.591/64, o sujeito é titular exclusivo do direito de propriedade sobre uma parte  (unidade autônoma) do imóvel maior e, ainda, é titular, juntamente com todos os outros condôminos, de uma fração ideal das áreas comuns do imóvel em que se inserem as unidades autônomas. É o que ocorre nos edifícios de apartamentos ou de escritórios, ou ainda nos chamados “condomínios fechados”.

 

No regime condominial tradicional, instituído pelo Código Civil (art. 623), dois ou mais sujeitos titularizam, simultaneamente, o direito de propriedade sobre um mesmo bem. Cada um deles pode usar livremente o bem comum sem que, assim procedendo, exclua igual direito dos demais condôminos. Via de regra, o bem objeto do condomínio é indivisível, embora tal indivisibilidade não seja essencial para a caracterização da relação jurídica condominial.

 

O condomínio é uma situação jurídica inconveniente, porque representa sempre limitação ao exercício do direito de propriedade. Por causa disso, a lei estabeleceu alguns mecanismos destinados a fazer com que, sempre que possível, o direito de propriedade se concentre em mãos de um único titular. Nesse sentido, o art. 1.139, do CC, estabeleceu o direito de preferência entre os condôminos para a aquisição das frações ideais do bem comum indivisível que um dos condôminos pretenda vender.

 

Qualquer dos condôminos poderá querer vender sua fração ideal do bem comum indivisível. Nesse caso, terá que, primeiramente, oferecer a venda dessa fração ideal do bem para os demais condôminos, em igualdade de condições com terceiros. Se algum dos condôminos quiser adquirir a fração ideal oferecida à venda, terá preferência para celebrar com o vendedor o contrato de compra e venda. Se o condômino vendedor vender sua fração ideal a terceiro, sem antes dar preferência aos demais condôminos, o condômino interessado na aquisição (e que foi preterido no seu direito de preferência), poderá  depositar judicialmente o preço do bem e haver para si a fração ideal vendida. Esse direito tem que ser exercitado no prazo decadencial de seis meses, contado da data em que for feito o registro do título de venda e compra (celebrado entre o condômino vendedor e o terceiro) no cartório imobiliário competente.

 

Importante notar que o contrato celebrado entre o vendedor e o terceiro será, então, anulado e substituído pelo contrato obrigatório de venda e compra entre o condômino vendedor e o condômino comprador.

 

(d) contrato de compra e venda entre marido e mulher

 

O matrimônio produz efeitos pessoais, patrimoniais e sociais. No que concerne aos efeitos patrimoniais, verificam-se eles entre os cônjuges e a prole do casal, e também apenas entre os cônjuges. Interessa aqui falar do regime matrimonial de bens.

 

O Direito brasileiro conhece quatro tipos de regime de bens, a saber: (a) o regime da comunhão universal de bens, previsto nos arts. 262 a 268, do CC; (b) o regime da comunhão parcial de bens, disciplinado nos arts. 269 a 275, do CC; (c) o regime da separação de bens, de que tratam os arts. 276 e 277, do CC; e (d) o regime dotal, regulado pelos arts. 278 a 309, do CC.

 

O regime dotal de bens está atualmente em franco desuso.

 

No regime da comunhão universal de bens, o patrimônio conjugal é formado por todos os bens que cada cônjuge tinha antes do casamento, mais aqueles adquiridos no decorrer da vida conjugal, com exceção daqueles bens incomunicáveis referidos nos arts. 263 a 267, do CC. Antes do advento da Lei do Divórcio (Lei 6.515/77), o regime da comunhão universal de bens era o regime oficial do casamento.

 

O regime da comunhão parcial de bens é hoje o regime oficial de bens no matrimônio. Assim determinou a Lei 6.515/77 (art. 51, nº 7 e art. 258, do CC). Nesse regime, os bens que cada cônjuge possuía antes do casamento não se comunicam com os bens do acervo patrimonial conjugal, formado, este último, apenas pelos bens que o casal adquirir no curso da vida comum. São, contudo, excluídos da comunhão parcial os bens indicados nos arts. 269 e 272 a 275.

 

Finalmente, no regime da separação de bens, seja convencional ou legal (art. 258, parágrafo único, do CC), os bens presentes e ou futuros de cada cônjuge não se comunicam.

 

O regime de bens escolhido para vigorar a partir do casamento é imutável. Por isto, não é possível celebrar contratos que tenham como resultado prático alterar o regime matrimonial de bens.

 

Assim, por exemplo, se o casal tiver adotado o regime da separação de bens, não pode o marido vender à mulher certo bem, porque isto significaria mudar, pelo menos em parte, o regime de bens do casamento. Da mesma forma, o contrato de compra e venda entre marido e mulher casados sob o regime da comunhão universal de bens é impraticável. Nesse caso, o bem objeto da compra e venda teria que ser retirado do patrimônio conjugal, a título de venda, e entraria nesse mesmo patrimônio, a título de compra. Idêntica situação ocorreria em relação ao preço de aquisição do bem. Não seria diferente a situação de uma compra e venda realizada entre marido e mulher que adotaram o regime da comunhão parcial de bens: no que concerne aos bens incomunicáveis, a compra e venda não poderia ocorrer pelos mesmos motivos indicados no regime da separação de bens; no que se refere aos bens comuns, o contrato seria inócuo pelas razões mencionadas no caso do regime da comunhão universal de bens.

 

Por conseguinte, eventual compra e venda entre pessoas que irão se casar deverá ser regulada: (1º) ou por contrato normal anterior ao casamento; (2º) ou, em último caso, por meio do pacto antenupcial a que se refere o art. 256, do CC.

 

Em resumo, é nulo (art. 257, do CC) o contrato de compra e venda de bens celebrado entre pessoas casadas e que, direta ou indiretamente, viole disposição legal de ordem pública ou implique na modificação do regime matrimonial de bens.

 

(e) contrato de compra e venda celebrado por pessoa casada

 

Qualquer que seja o regime de bens adotado no casamento, o marido não pode vender bem imóvel sem consentimento expresso de sua mulher (art. 235, do CC), nem a mulher pode vender bem imóvel sem o consentimento expresso de seu marido (art. 242, do CC).

 

Os arts. 235 e 242, do CC, têm a finalidade de assegurar à família proteção do patrimônio necessário à manutenção da entidade familiar. Nem o marido nem a mulher têm capacidade específica para alienar bem imóvel sem a integração de sua capacidade por vontade do respectivo cônjuge. O ato contratual praticado em desobediência àqueles dois preceitos legais é anulável (art. 239, do CC).

 

(f) contrato de compra e venda em conflito com restrições comerciais contratuais

 

Há situações em que certos sujeitos celebram contratos por meio dos quais, um deles, obriga-se a somente realizar contratos de compra e venda por intermédio do outro sujeito.

 

Assim ocorre em contratos de corretagem, de representação comercial, de comissão mercantil, por exemplo, nos quais conste cláusula de exclusividade.

 

Por exemplo, alguém pode contratar um corretor para que este se incumba da venda de certo bem (móvel ou imóvel) com exclusividade. Em cumprimento desse contrato, o vendedor está obrigado a não vender o bem por si mesmo, ou por intermédio de outrem. Tem que realizar a venda apenas por meio do corretor contratado. Nesse caso, é lógico que o vendedor não está impedido, de modo absoluto, de realizar a venda sem ser por intermédio de seu corretor. Entretanto, se assim proceder, terá que pagar ao corretor a comissão devida, mais as perdas e danos que lhe causar.

 

O mesmo ocorre com um representante comercial que tenha exclusividade de representação do vendedor em certa região. O vendedor representado somente pode realizar a venda de seus produtos ou serviços, naquela região, por meio de seu representante comercial. Se o vendedor celebrar contratos de compra e venda sem a intermediação do representante comercial, é evidente que tais contratos existirão, serão válidos e eficazes. todavia, o representante comercial terá direito de receber as comissões pelos negócios realizados dentro de sua zona exclusiva e, se o caso, também terá direito a receber indenização pelos prejuízos que tenham sido causados a ele pelo vendedor.

 

(B) Bem objeto da venda e compra

 

Pode ser objeto de contrato de compra e venda qualquer bem jurídico com valor pecuniário. O contrato é uma relação jurídica patrimonial e, como tal, seu objeto tem que ter valor patrimonial, tem que ser suscetível de avaliação econômica. Além disso, todo contrato é, antes de tudo, um ato jurídico em sentido amplo. Qualquer declaração de vontade, feita de conformidade com a lei, e que possa produzir efeitos jurídicos é um ato jurídico em sentido amplo. Ora, o contrato somente é formado mediante a coordenação de pelo menos duas declarações de vontade. Por essa razão, o objeto do contrato tem que ser lícito e possível.

 

Em resumo, o contrato de compra e venda é uma relação jurídica contratual e, por conseguinte, tem que apresentar um objeto lícito (direta e indiretamente), possível (material e juridicamente) e suscetível de valoração econômica, como determinam os arts. 82 e 145, II, do CC.

 

Mas, além de satisfazer os mencionados requisitos objetivos, que são mesmo exigidos para a existência de qualquer ato jurídico e de qualquer contrato, é preciso ainda que o objeto do contrato de compra e venda preencha outros requisitos, específicos desse tipo contratual.

 

Os requisitos objetivos específicos do contrato de compra e venda são os que seguem.

 

(1º) existência do bem objeto do contrato de compra e venda

 

A compra e venda de bem inexistente é nula por falta de objeto para o contrato. O resultado jurídico típico da compra e venda é o de transferir, a título de propriedade, o bem vendido do patrimônio do vendedor parra o patrimônio do comprador, mediante contraprestação de valor em dinheiro. Se o bem a ser transferido não existe, torna-se impossível a formação do contrato.

 

Admite-se, contudo, a compra e venda de bem futuro, respeitados certos critérios (arts. 1.118, do CC e 192, do CComl.). O contrato de compra e venda pode ser formado validamente se o bem vendido, apesar de não existir no momento da celebração do contrato, satisfizer os seguintes requisitos:

 

(a) for bem cuja existência futura seja certa ou muito provável até o instante em que o vendedor tiver que entregá-la ao comprador, em ato de execução do contrato; e

 

(b) forem fornecidos no contrato celebrado critérios objetivos e seguros para a identificação do bem objeto da compra e venda; e

 

(c ) a identificação efetiva do bem ocorra antes do vencimento da obrigação do vendedor de entregar o mesmo bem ao comprador.

 

Imagine-se, por exemplo, que certa pessoa adquira numa confeitaria, pela manhã, um bolo para festejar certa ocasião.  Combina com o confeiteiro a confecção do bolo, que deverá ser retirado no fim da tarde. No momento em que o contrato de compra e venda do bolo foi celebrado, seu objeto (o bolo) não existia, mas sua existência ocorreria ao final do dia e os critérios de identificação do bolo foram adequadamente previstos pelas partes.

 

Do mesmo modo é existente e válido o contrato de compra e venda, por exemplo, de um apartamento em construção. No instante de formação do contrato, o apartamento não existia. No entanto, no contrato as partes indicaram de modo inequívoco todos os elementos que permitiriam a identificação do apartamento referido, bem como o momento em que tal imóvel haveria de ser entregue ao comprador.

 

Em casos como esses citados acima, o contrato de compra e venda é celebrado sob condição resolutiva. Se o bem objeto da compra não vier a existir, o contrato será desfeito por falta de objeto (art. 1.118, do CC).

 

É preciso examinar com cuidado em que momento tornou-se certa a inexistência do bem objeto do contrato de compra e venda.

 

Se o bem não existia no momento de celebração do contrato, nem poderia existir futuramente (art. 1.118, do CC), o contrato de compra e venda não terá existido juridicamente, sendo nulo de pleno direito (arts. 82 e 145, II, do CC).

 

Por outro lado, se o bem existia na ocasião de formação do contrato e, depois, antes do cumprimento desse contrato, o bem vem a perecer (art. 78, do CC), é preciso investigar se o vendedor teve ou não culpa pelo perecimento do objeto. Sendo culpado o vendedor, indenizará o comprador (arts. 1.127 e 865, do CC). Não havendo culpa do vendedor pelo perecimento do objeto, o contrato se extinguirá por impossibilidade objetiva da prestação contratual (arts. 865 e 1.127, do CC). Essas mesmas regras são aplicáveis ao caso da compra e venda de bem futuro cuja existência se impossibilite, respectivamente, por culpa do vendedor ou sem culpa dele.

 

(2º) identificação do objeto da compra e venda

 

Presente ou futuro, o objeto do contrato de compra e venda precisa ser perfeitamente identificado. Essa identificação terá que ocorrer, no máximo, até o momento em que o vendedor tiver que entregar o bem vendido ao comprador. O efeito principal desse contrato é o de possibilitar a transferência do direito de propriedade do bem, do vendedor para o comprador. O direito de propriedade é o mais completo direito real. Os bens objeto de direito real asseguram ao titular desse direito o poder de seqüela (art. 524, CC), ou seja, o poder de reaver o bem objeto de seu direito das mãos de quem quer que injustamente o tenha. Por isto, o bem objeto do direito real precisa ser identificado com precisão, sob pena de não poder ser distinguido de outros que lhe sejam similares.

 

O bem objeto do contrato de compra e venda deve ser identificado com critérios claros, objetivos, seguros. No caso de o bem ainda não ter existência presente, essa necessidade de identificação é satisfeita por meio de indicação de outros dados que permitam reconhecer o bem em questão.

 

Assim, por exemplo, se o contrato de compra e venda tem por objeto um automóvel, esse bem deve ser identificado por sua marca, modelo, ano de fabricação, cor, placa, número de chassis e outras características individuais. Se esse automóvel é adquirido por meio de um grupo de consórcio, ter-se-á que dizer no contrato qual a marca do veículo, seu modelo, anos prováveis de fabricação, características gerais do grupo a que pertencerá o automóvel a ser fabricado.

 

Não se pode esquecer que muitas vezes a compra e venda tem por objeto coisa incerta, especificada apenas pelo gênero e quantidade, ou mesmo só pelo gênero (art. 874, CC). Há ainda as obrigações alternativas, nas quais, havendo mais de um objeto previsto para pagamento da obrigação, o devedor deverá pagar apenas um deles. Nesses casos, a identificação do objeto será feita por meio da escolha a ser realizada de acordo com a disciplina dessas espécies de obrigações.

 

Cabe citar, ainda, a hipótese mencionada no art. 1.135, do CC, que é a do contrato de compra e venda à vista de amostras. Aliás, também o art. 201, do CComl. cuida dessa espécie de compra e venda.

 

A compra e venda à vista de amostras ocorre em casos em que o vendedor apresenta ao comprador elementos representativos do objeto total do contrato. Não havendo possibilidade de o comprador examinar todas as unidades ou o todo do objeto contratual, examina-o em parte, por amostragem. Nesses casos, o vendedor garante ao comprador que o objeto do contrato de compra e venda apresenta, no seu todo, as mesmas qualidades essenciais da amostra do bem.

 

Pode-se citar alguns exemplos bem corriqueiros desse tipo de contrato.

 

Alguém que, num restaurante, deseje beber vinho, normalmente é solicitado a provar uma amostra colhida da garrafa desse vinho. Aprovada a amostra, o vinho então será servido em cumprimento ao contrato de compra e venda que acabou de ser celebrado no instante da aprovação da amostra.

 

Pense-se também no caso de alguém que vai a uma feita livre e lá, antes de adquirir certas frutas, recebe amostras dessas frutas para provar e, se o caso, aprovar. Satisfeito com as amostras oferecidas, o sujeito então poderá adquirir outros exemplares das frutas expostas, convencido de que tais frutas apresentam as mesmas qualidades da amostra.

 

Do mesmo modo, uma loja encomenda de uma confecção certas peças de vestuário. Não podendo conferir individualmente cada uma das peças, até porque isto implicaria na violação de suas embalagens, o lojista confere amostras daquelas roupas. Aprovadas as amostras, aceita comprá-las com a convicção de que as peças não examinadas diretamente apresentam as mesmas qualidades do todo.

 

Idêntico é o procedimento de quem vai a uma loja de automóveis e, após examinar o modelo exposto ao público, formula sua vontade de adquirir um veículo com as mesmas características daquele que lhe serviu de amostragem.

 

Em todos os casos citados até aqui, é imprescindível que o objeto do contrato de compra e venda seja perfeitamente identificado, no máximo, até o momento em que o vendedor tiver que cumprir sua obrigação contratual de entregar o bem ao comprador.

 

(3º) disponibilidade jurídica do objeto do contrato de compra e venda

 

O objeto do contrato de compra e venda tem que ser juridicamente disponível, vale dizer, ser objeto in comercio, objeto que possa ser transferido de uma pessoa para outra por meio de atos jurídicos.

 

Tem que ser assim porque, como já foi tantas vezes esclarecido, a venda significa a transmissão de um bem de uma pessoa para outra, a título de propriedade. O bem é retirado do patrimônio do vendedor e, a título de propriedade, o mesmo bem é incorporado ao patrimônio do comprador. Ora, se o bem for juridicamente indisponível, o contrato de compra e venda com tal bem não pode ocorrer. O bem é juridicamente indisponível quando, por vedação natural, legal ou contratual, não pode ser transferido de uma pessoa para outra por meio de ato jurídico.

 

Sendo indisponível o bem, o vendedor não tem como transmiti-lo juridicamente ao comprador.

 

A indisponibilidade do bem pode ser: (a) natural; (b) legal; ou (c) convencional.

 

O bem naturalmente indisponível é aquele que não pode ser objeto de apropriação exclusiva por um sujeito. Assim ocorre com o ar atmosférico, com o oceano, com os rios, com a luz solar, com a força do vento. Admite-se, contudo, que pequenas porções desses bens, desde que individualizadas, sejam objeto de venda e compra. É o que acontece, por exemplo, com gases engarrafados, com porções de água canalizada ou envasada.

 

A indisponibilidade legal do bem é a imposta pela lei, como é intuitivo. A lei proíbe que o bem seja objeto de negócios jurídicos translatícios de domínio. Ocorre isto, por exemplo, no direito de usufruto. O usufrutuário tem direito de usar, por si mesmo ou por meio de outra pessoa, o bem objeto do direito de usufruto. Mas o usufrutuário está legalmente proibido de transferir a outrem esse direito de usufruto, que é personalíssimo. O mesmo ocorre com os bens públicos, que são insuscetíveis de alienação sem expressa autorização legal. É ainda inalienável o direito hereditário de certo herdeiro enquanto estiver vivo o autor da herança. Do mesmo modo, decretada a falência de um comerciante, não pode ele alienar qualquer bem de seu fundo de comércio, sendo até mesmo anuláveis os bens que ele houver alienado no período suspeito anterior à decretação do estado falimentar. É ainda indisponível o título de crédito com cláusula de não transmissibilidade por ordem legal, como acontece com os títulos de capitalização (que são personalíssimos).

 

A indisponibilidade voluntária, ou contratual, é aquela que torna indisponível um bem por vontade das partes. O bem, em princípio, seria disponível, mas a vontade das partes tornou-o insuscetível de transferência para outrem. Pense-se no caso do sujeito que, querendo adquirir um bem, um automóvel por exemplo, não dispõe de recursos financeiros para esse fim. Então, esse sujeito obtém empréstimo junto a instituição financeira e, com esses recursos, adquire o veículo desejado. Como garantia do pagamento do empréstimo, o adquirente do veículo o aliena fiduciariamente à instituição financeira, que, assim, tornar-se-á proprietária do automóvel até que o empréstimo seja totalmente pago. A instituição financeira, por força do contrato, não pode alienar a terceiros o veículo, exceto nos casos em que a lei a autoriza a adotar esse procedimento.

 

Outro exemplo. O pai doa ao filho um imóvel e impõe nessa doação uma cláusula vitalícia de inalienabilidade do bem doado. Desse modo, o filho donatário, embora seja o proprietário do bem, não pode aliená-lo a ninguém durante toda a sua vida, salvo se obtiver expressa autorização do doador ou do juiz para esse fim (sub-rogação de vínculo, ou sub-rogação objetiva). O bem imóvel em questão, que por princípio é bem disponível, tornou-se indisponível por vontade dos contratantes.

 

Mais um exemplo. Num contrato de constituição de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, é inserida cláusula estabelecendo que as quotas de cada sócio não são transmissíveis a terceiros. Mesmo que haja falecimento de qualquer dos sócios, as quotas a ele pertencentes não serão transmitidas aos herdeiros do falecido. Nesses casos, convencionou-se a indisponibilidade dessas quotas sociais.

 

(4º) possibilidade de transferência do bem ao comprador

 

Não se deve confundir a indisponibilidade do bem com a impossibilidade de transferência desse bem ao comprador.

 

Bem indisponível, já foi visto, é aquele que por sua própria natureza, por disposição legal ou convencional não pode ser retirado do patrimônio de um sujeito e, a título de propriedade, ser incorporado no patrimônio de outro sujeito.

 

Por sua vez, a impossibilidade de transferência do bem para o comprador ocorre porque: (a) o bem já pertence ao comprador; ou (b) o bem não pertence ao vendedor, de modo que este não pode transmiti-lo ao comprador.

 

A venda, repita-se mais uma vez, acarreta a retirada do bem do patrimônio do vendedor e a incorporação desse mesmo bem, a título de propriedade, no patrimônio do comprador. Ora, se tal bem já estiver integrado ao patrimônio do comprador, a título de propriedade, é óbvio que o contrato de compra e venda não pode ter por objeto esse bem.

 

Um exemplo esclarecerá o caso. Imagine-se que um homem é proprietário de um automóvel e, depois, casa-se com sua mulher, adotando o regime da comunhão universal de bens. Esse regime de bens dá origem a um novo acervo patrimonial, dito conjugal. O automóvel que pertencia exclusivamente àquele homem, agora pertence a ele e à sua mulher, em condomínio por partes iguais. Enquanto persistir o casamento, é impossível retirar o carro do patrimônio do marido e, a título de propriedade, colocá-lo no patrimônio da mulher, pois há um único patrimônio conjugal.

 

Outro exemplo. Um sujeito ajuiza uma ação de usucapião sobre um bem imóvel e obtém uma sentença declarando que ele adquiriu a propriedade daquele bem por usucapião. Ao invés de levar a registro imobiliário a sentença de usucapião, o sujeito em questão pensou ser mais prático lavrar uma escritura de venda e compra do imóvel usucapido, por meio da qual o antigo dono do mesmo imóvel lhe vendeu, por certo preço, o referido bem. É lógico que o vendedor não poderá entregar ao comprador, a título de propriedade, bem que já está incorporado a esse título no patrimônio do adquirente.

 

Por outro lado, é impossível transmitir ao comprador bem que não pertence ao vendedor. Somente pode declarar a vontade contratual de vender o sujeito que tiver capacidade genérica e capacidade específica para esse fim. Um sujeito não pode vender bem que não lhe pertence, não pode vender bem alheio. Falta-lhe capacidade específica para isto.

 

No entanto, tem-se admitido que alguém venda bem que não lhe pertence sob a condição de, após a celebração do contrato de compra e venda, adquirir o mesmo bem de seu legítimo proprietário com o propósito de entregar esse bem ao comprador do primeiro contrato. Se o vendedor não conseguir a propriedade legítima do bem, não poderá entregá-lo ao comprador e, então, o contrato de compra e venda assim celebrado:

 

(a) será nulo por falta do objeto;

(b) será nulo por falta de capacidade específica do vendedor;

(c) será absolutamente ineficaz perante o verdadeiro dono do bem, que poderá até mesmo reclamá-lo de volta por meio da evicção.

 

Veja-se um exemplo. Um investidor vende, na bolsa de valores, pelo preço global de 100, certo lote de ações que, na verdade, ainda não tem. Como de praxe, promete entregar essas ações ao comprador no prazo de três dias. Ato contínuo, aquele investidor compra de alguém, pelo preço de 90, o referido lote de ações, esperando recebê-las também no prazo de três dias. No dia convencionado, o investidor recebe seu lote de ações, adquirido pelo valor de 90, e entrega essas mesmas ações ao sujeito que as comprou pelo preço de 100. Esse contrato de compra e venda é perfeitamente existente, válido e eficaz porque foi possível entregar a coisa vendida ao comprador, ainda que o vendedor, na ocasião em que celebrou o contrato, não fosse dono das aludidas ações.

 

A situação seria diferente se o investidor não conseguisse adquirir o lote de ações do terceiro. Nessa hipótese, o investidor não teria as ações que vendeu a alguém pelo preço de 100. O contrato seria nulo e o investidor seria responsabilizado pelos prejuízos causados ao adquirente das ações.

 

Assim também acontece, por exemplo, com o comerciante que vende certa mercadoria ao consumidor, prometendo entregar o bem a este último num certo prazo. Entretanto, no momento em que o comerciante celebrou o contrato de compra e venda com o consumidor não tinha a propriedade do bem que vendeu. O comerciante terá que adquirir o bem de certo fabricante para, depois, poder entregar o mesmo bem ao consumidor. Se o comerciante efetivamente adquirir a propriedade do bem que vendeu ao consumidor, o contrato celebrado com este sujeito será perfeitamente válido. Caso contrário, o comerciante responderá pelos prejuízos que vier a causar ao consumidor por ter celebrado contrato sem objeto possível.

 

(C) Preço da compra e venda

 

O último elemento essencial do contrato de compra e venda é o preço. Esse preço é o valor, em dinheiro, correspondente ao valor do bem vendido.

 

O vendedor vende o bem para retirá-lo de seu patrimônio e para incorporá-lo, a título de propriedade, no patrimônio do comprador. Mas, em contrapartida, o comprador, ao declarar sua vontade contratual de comprar, quer retirar dinheiro de seu patrimônio e, a título de propriedade, quer entregá-lo ao vendedor, como preço de aquisição do bem vendido.

 

O art. 1.122, do CC, estabelece que o preço do bem vendido deve ser fixado em dinheiro. Não diz, em momento algum, que o preço tem que ser pago em dinheiro. A doutrina e a jurisprudência têm entendido, portanto, que: (1º) o preço do bem tem que ser estipulado necessariamente em dinheiro; mas (2º) o preço pode ser pago tanto em dinheiro como por títulos representativos de dinheiro.

 

Assim, o preço de uma televisão oferecida à venda tem que ser fixado em dinheiro, mas tal preço pode ser pago por meio de cheque ou de outro título-valor que represente dinheiro. Poder-se-ia, por exemplo, pagar o preço da televisão com duplicatas, com letra de câmbio, com ações de sociedade anônima e com qualquer outro título representativo do valor do preço.

 

Veja-se, por exemplo, o caso dos vales refeição, que os trabalhadores recebem de seus empregadores. O vale, em si mesmo, não é dinheiro. É título-valor, porque representa o valor monetário expresso no próprio vale. Com esse título, o portador pode adquirir alimentação, que pagará com o vale e não com o dinheiro. O que importa, nesse caso, é que o valor do alimento está quantificado em dinheiro e que o vendedor concorda em receber um título representativo de dinheiro.

 

Em suma, a pecuniariedade é essencial para a formação do vínculo contratual da compra e venda. No momento do pagamento do preço, contudo, o comprador poderá realizar sua obrigação entregando ao vendedor objeto diferente de dinheiro, se assim o vendedor aceitar.

 

O preço deve ter caráter de contraprestação no contrato de compra e venda. Noutras palavras, o preço deve guardar certa correspondência, certa equivalência, certa proporcionalidade com o valor do bem vendido. Não há necessidade de que o preço seja justo, mas não pode ser um preço meramente simbólico, não sério, fictício, simulado.

 

Deve-se buscar no contrato de compra e venda um sinalagma, de modo que, tanto quanto possível, o valor do bem vendido corresponda ao preço fixado para esse bem no contrato.

 

O preço deve ser determinado ou determinável. A determinação do preço tem que ocorrer, no máximo, até o momento do pagamento devido pelo comprador. Se o preço for indeterminado, é muito importante que no contrato, desde o momento de sua formação, sejam fornecidos critérios claros e objetivos com base nos quais o preço haverá de ser determinado.

 

Normalmente, as partes fixam o preço do bem de comum acordo. Não se admite que o preço seja fixado arbitrariamente por apenas uma das partes contratantes. Se isto ocorrer, o contrato será nulo por força dos arts. 115 e 1.125, do CC. Esta situação tem que ser bem compreendida.

 

Tome-se como exemplo um lojista que expõe na vitrine de sua loja uma mercadoria e lhe indica o preço. O consumidor interessado naquela mercadoria, ao informar-se sobre o preço dela, decidirá se lhe interessa ou não adquirir aquele bem. O consumidor não é obrigado a adquirir a mercadoria e muito menos é obrigado a celebrar o contrato de compra e venda com aquele lojista. O consumidor pode perfeitamente pesquisar melhores preços e decidir-se por comprar a mesma mercadoria noutra loja, ou até mesmo pode decidir-se por não comprá-la. No entanto, se o consumidor em questão, por qualquer motivo, não quiser pesquisar melhores preços e, então, entrar na primeira loja para adquirir a mercadoria exposta, é óbvio que não poderá alegar nulidade do contrato com base nos arts. 115 e 1.125, do CC.

 

Assim, o preço do bem tem que ser fixado facultando-se à outra parte aceitá-lo ou não. O que os arts. 115 e 1.125, do CC, proíbem é que o preço seja unilateralmente fixado e que inexista possibilidade de discussão desse preço, obrigando-se uma das partes a celebrar o contrato nessas circunstâncias.

 

A fixação do preço pode ser feita pelas partes, por terceiros por elas indicados ou ainda por meio de mecanismos de mercado.

 

A fixação do preço pelas partes não apresenta dificuldades sérias. Respeitados os limites estabelecidos pelos arts. 115 e 1.125, do CC, têm os contratantes plena autonomia de vontade para fixar o preço do bem a ser vendido.

 

Pode o preço ser fixado por terceiro (art. 1.123, do CC). As partes devem indicar o terceiro incumbido da fixação do preço desde o momento da formação do contrato. Se assim não procederem, podem indicar o terceiro em momento posterior. Em qualquer caso, o terceiro indicado pelas partes, se aceitar tal incumbência, deverá fixar o preço do bem no máximo até o instante em que o comprador terá que pagar a quantia fixada ao vendedor. Se o terceiro não aceitar a incumbência de fixar o preço, ou não o fixar até o momento em que o comprador deveria pagá-lo, então o contrato será nulo por falta de elemento essencial: o preço (art. 1.123, do CC).

 

Assim, podem as partes, por exemplo, deixar que o preço seja fixado por corretores, avaliadores, peritos e pessoas que, em geral, possam cumprir essa tarefa. É bastante comum, por exemplo, que uma loja de automóveis, ao adquirir um veículo usado, indique um avaliador autônomo para dizer por quanto poderá comprar o referido carro. Se tanto a loja como o vendedor do veículo aceitarem essa avaliação, ter-se-á a hipótese do art. 1.123, do CC.

 

Da mesma forma, é comum que o vendedor de um bem imóvel confie a avaliação desse bem a um corretor de imóveis especializado nessa matéria. Também assim poderá proceder o comprador, pedindo ao corretor a estimativa do valor do bem.

 

As partes podem deixar a fixação do preço por mecanismos de mercado, tais como as cotações de bolsa, os preços correntes no mercado, os preços divulgados em tabelas públicas, os preços fixados em leilão.

 

Assim, por exemplo, um sujeito pode desejar vender a outro certa quantidade de carne pelo preço de cotação dessa carne no mercado específico. Alguém pode querer comprar um lote de ações pela cotação dessas ações no pregão da bolsa de valores em certo dia.  Outro sujeito pode celebrar um contrato de compra e venda de soja ao preço desse produto na bolsa de mercadorias e de futuros no pregão a ser realizado na data de entrega da soja, previsto para seis meses após a celebração do contrato.

 

Nesses casos em que a fixação do preço depende dos preços correntes no mercado, ou do preço cotado em bolsas, ou do preço constante de tabelas públicas, ou do preço obtido em leilão, é importante lembrar que o contrato de compra e venda deve prever com precisão: (1º) de que bolsa, de que mercado, de que tabelas ou de que leilão serão tomadas as cotações; (2º) em que lugar situam-se a bolsa, mercado, as tabelas públicas ou o leilão de onde serão colhidas as cotações; (3º) se o preço será fixado pela maior cotação, pela menor cotação, ou pela cotação média.

 

 (4) Classificação do contrato de compra e venda

 

Em vista de tudo o que foi exposto até aqui, pode-se classificar a compra e venda como sendo um contrato consensual, de efeitos bilaterais, típico, oneroso, sinalagmático, comutativo.

 

É consensual porque forma-se mediante simples acordo das partes a respeito do preço e do bem objeto do contrato. Tem efeitos bilaterais porque cada um dos contratantes, simultaneamente, é titular de direitos e de obrigações em decorrência do contrato. É contrato típico porque sua estrutura geral está regulada tanto no Código Civil como no Código Comercial. É também um contrato oneroso, já que cada uma das partes, para obter as vantagens que o contrato lhes reserva, tem que suportar os sacrifícios inerentes à sua posição contratual. O contrato de compra e venda é sinalagmático porque o valor do bem vendido deve corresponder ao preço fixado para esse bem, havendo, portanto, equivalência entre o valor do bem e a quantia em dinheiro que o representa. Por fim, em geral o contrato é comutativo porque a causa da obrigação de uma das partes é o direito que essa mesma parte deseja adquirir por meio do contrato, de modo que as prestações e contraprestações de cada parte guardam interdependência. Apesar de a comutatividade ser a regra geral, é possível haver contrato de compra e venda aleatório.

 

Conforme as circunstâncias, o contrato de compra e venda pode ainda ser aleatório; de execução imediata, diferida ou sucessiva no tempo; individual ou coletivo; de adesão ou paritário; principal ou acessório; preliminar ou definitivo; civil ou comercial.

 

(5) Efeitos principais do contrato de compra e venda

 

Não é objetivo desta exposição examinar todos os efeitos de um contrato de compra e venda, mas apenas os efeitos mais importantes. Muitos desses efeitos já foram examinados durante a exposição do conceito, requisitos essenciais e classificação do contrato de compra e venda. Cabe agora completar a matéria nos limites indicados.

 

(A) Responsabilidade pela evicção

 

No primeiro volume desta obra já se examinou a evicção. A evicção ocorre quando alguém transfere a outrem o domínio, a posse ou o direito de uso sobre bem que não lhe pertencia e, posteriormente, o verdadeiro titular do bem, por via judicial, recupera o objeto de seu direito. Nesse caso, quem foi privado do bem é o evicto e tem direito de receber indenização devida por quem lhe transmitiu o bem.

 

Ao se analisar os requisitos essenciais do contrato de compra e venda, observou-se que o vendedor precisa ter capacidade genérica e capacidade específica para celebrar o contrato. além disso, o bem objeto de compra e venda precisa ser suscetível de transmissão pelo vendedor ao comprador. Alguém que vende bem que não lhe pertence deixa de atender a esses requisitos essenciais.

 

Ocorrendo a evicção, o vendedor responderá perante o comprador pelos prejuízos que causar a este, sempre que os riscos da evicção não tenham sido expressamente excluídos no contrato de compra e venda.

 

(B) Responsabilidade pelos vícios redibitórios

 

Foram examinados anteriormente, também no primeiro volume desta obra, os vícios redibitórios.

 

Os vícios redibitórios são os defeitos ocultos do bem  e que o tornam impróprio para a destinação jurídica que lhe foi reservada, ou que diminuem anormalmente o valor desse bem.

 

O dono do bem, por presunção legal absoluta, deve conhecer os defeitos e qualidades do objeto de seu direito. Daí porque tem que responder pelos vícios ocultos constatados no bem.

 

O vendedor que transfere ao comprador bem com vício oculto tem responsabilidade civil perante o adquirente. Terá, em síntese, que suportar a rescisão do contrato, se for pedida pelo comprador, e ainda terá que indenizá-lo. Se ao comprador interessar a manutenção do contrato, então o vendedor terá que suportar a redução do preço do bem, de maneira a restabelecer o sinalagma do contrato de compra e venda.

 

Observe-se, por fim, a regra do art. 1.138, do CC. Pode ocorrer que o contrato de compra e venda tenha por objeto diversos bens. Na hipótese de algum ou alguns desses bens apresentarem vício oculto, o comprador não poderá rejeitar todos os bens, ou seja, os defeituosos e os não defeituosos. Apenas os bens com vício oculto é que podem ser rejeitados ou terem seus valores reduzidos. Os bens não viciados não podem ser recusados pelo comprador. Mas esta regra não é absoluta. É preciso verificar qual é a relação de interdependência entre os bens viciados e os não viciados. Se estes últimos, embora não tendo defeito algum, perderem sua utilidade ou valor por causa dos defeitos dos demais bens, então o contrato poderá ser desfeito.

 

Pense-se, por exemplo, no caso de alguém que adquire um terno completo. O paletó vem a apresentar defeito oculto. De nada adiantaria ao adquirente rejeitar apenas o paletó, remanescendo o contrato de compra e venda apenas com as calças do terno. Uma peça de vestuário está funcionalmente ligada à outra, de sorte que o vício numa das peças torna inútil a outra.

 

(C) Distribuição dos riscos entre as partes

 

Há um princípio jurídico relativo aos riscos que podem recair sobre o bem objeto de um direito. O titular desse direito deve suportar todos os riscos que recaírem sobre o objeto do direito. Por outro lado, todas as vantagens que o objeto do direito puder proporcionar pertencem ao titular desse direito. Não é um princípio absoluto, pois a distribuição dos riscos e benefícios pode ser modificada pela própria lei ou ainda por vontade dos interessados.

 

No caso específico do contrato de compra e venda, a distribuição dos riscos está disciplinada pelos arts. 1.127 e 1.128, do CC. A lei brasileira, contudo, permite que comprador e vendedor modifiquem, no contrato, as regras de distribuição dos riscos.

 

O vendedor há de suportar os riscos sobre o bem até o momento em que efetivamente transmitir esse bem para o comprador (art. 1.127, CC). Essa é a regra geral. Tratando-se de bem imóvel, a transmissão do bem ao comprador é feita por meio da transcrição do título aquisitivo no cartório imobiliário competente. Sendo móvel o bem, sua transmissão ao comprador deve ser feita pela tradição.

 

Os §§ 1º e 2º, do art. 1.127, do CC, estabelecem regras especiais.

 

No caso de o bem vendido ser daqueles que se recebe contando, marcando, assinalando e, enfim, conferindo, a distribuição dos riscos se faz do seguinte modo (art. 1.127, § 1º):

 

(a) enquanto o bem não for transferido efetivamente ao comprador, os riscos correm por conta do vendedor, tal como determinado no caput do art. 1.127; mas

 

(b) se no momento em que o comprador deveria conferir o bem, sobrevier fato de força maior ou evento fortuito que cause o dano ou o perecimento do mesmo bem, estes riscos correrão por conta do comprador, desde que o vendedor prove que, naquele instante, já havia colocado o bem à disposição do comprador.

 

Há que se examinar agora a regra especial do § 2º, do mesmo art. 1.127. Assim, se o comprador estiver em mora de receber o bem objeto da compra e venda, então os riscos sobre esse bem correrão por conta do comprador. De fato, havendo mora do comprador na sua obrigação de receber o bem, não seria justo que o vendedor tivesse que suportar os riscos sobre esse bem. Por conseguinte, será de responsabilidade do comprador em mora qualquer risco sobre o bem a partir da data em que o vendedor deveria tê-lo entregue ao comprador.  Observe-se, contudo, que se o risco decorrer de vício redibitório pré-existente, a responsabilidade será do vendedor, nos termos do art. 1.104, do CC.

 

Por outro lado, os riscos sobre o preço do bem correm por conta do comprador até o instante da tradição do dinheiro (ou do valor que o represente) ao vendedor (art. 1.127, CC). Evidentemente, os §§ 1º e 2º, do art. 1.127 podem ser aplicados também em casos em que o vendedor esteja em mora no que concerne à sua obrigação de receber o dinheiro, ou em casos em que ele esteja contando o dinheiro no momento em que ocorre caso fortuito ou de força maior.

 

O art. 1.128, do CC, prevê o caso da compra e venda de bem que tenha que ser transportado. Se o bem objeto da compra e venda tiver que ser transportado por ordem do comprador, correrão por conta deste os riscos sobre o bem a partir do momento em que o vendedor entregar o referido bem ao transportador. Mas se o vendedor desobedecer as ordens de transporte dadas pelo comprador, então os riscos correrão por conta do vendedor.

 

(D) Distribuição de despesas

 

A não ser que as partes estabeleçam disposições em contrário no contrato de compra e venda, o art. 1.129, do CC, determina que as despesas contratuais sejam distribuídas entre as partes assim:

 

(a) o vendedor custeará as despesas necessárias à entrega do bem ao comprador;

 

(b) o comprador suportará as despesas necessárias à elaboração da escritura (pública ou particular) de compra e venda.

 

(E) Momento de entrega do bem vendido

 

O art. 1.130, do CC, estabelece a regra geral a respeito do momento em que o vendedor deve cumprir sua obrigação de entregar o bem vendido ao comprador.

 

São duas as hipóteses consideradas no referido dispositivo: (1ª) compra e venda à vista; e (2ª) compra e venda a prazo.

 

Tratando-se de compra e venda à vista, o comprador é obrigado a pagar o preço em primeiro lugar. Somente depois de ter recebido o preço é que o vendedor cumprirá sua obrigação de entregar o bem ao comprador.

 

Contrariamente, se a compra e venda for a prazo, o vendedor deverá cumpri sua obrigação em primeiro lugar, entregando ao comprador o bem vendido. Depois de ter recebido o bem, o comprador deverá pagar o preço devido ao vendedor, observados o prazo e as demais condições de pagamento previstas no contrato. Ocorre, porém, que o art. 1.131, do CC, estabelece regra excepcional à regra geral do art. 1.130, do mesmo Código.

 

A hipótese do art. 1.131 é a seguinte. Celebra-se um contrato de compra e venda a prazo, em razão do qual o vendedor deveria cumprir em primeiro lugar sua obrigação de entregar o bem ao comprador. No entanto, entre a data de celebração do contrato e a data em que o vendedor deveria entregar o bem ao comprador, este último demonstra estar em estado de insolvência. Esse fato novo indica que o comprador não terá possibilidade de cumprir sua obrigação de pagar o preço. Então, nessas circunstâncias, o vendedor pode recusar-se a entregar o bem vendido ao comprador enquanto esse comprador, ou mesmo terceiro, prestem garantia ao vendedor de que o preço será pago normalmente.

 

(F) Venda por medida certa ou venda por corpo certo

 

A disposição do art. 1.136, do CC, aplicar-se-ia apenas ao contrato de compra e venda de bem imóvel. Todavia, combinando-o com o art. 4º, da LICC, é possível aplicá-lo também aos casos de compra e venda de bens móveis.

 

A hipótese de que trata o art. 1.136 diz respeito às espécies de compra e venda de bem imóvel, a saber: a venda por medida certa, ou ad mensuram; e a venda por corpo certo, ou ad corpus.

 

A compra e venda por medida certa, ou ad mensuram, é aquela em que vendedor e comprador medem o bem objeto de compra e venda, confere suas dimensões e, assim, estabeleceram que o bem vendido e comprado tem apresentar exatamente as medidas que encontraram. Desse modo, o preço desse bem é fixado em função das medidas do objeto da compra e venda.

 

Por isto, na compra e venda por medida certa, o comprador adquire o bem com a quantidade medida, pagando preço correspondente a tal medida. Se o bem recebido pelo comprador apresentar diferença de medida maior que 1/20 da medida prevista, poderá o adquirente:

 

(1º) exigir o complemento da medida até o limite previsto; ou

 

(2º) não sendo possível o complemento da medida, então poderá o adquirente: (a) exigir a rescisão do contrato, mais perdas e danos; ou (b) exigir abatimento proporcional do preço do bem.

 

A compra e venda por corpo certo, ou ad corpus, é aquela em que o vendedor vende ao comprador um bem considerado em si mesmo, independentemente das medidas que apresente. O preço do bem, portanto, não é fixado em função de suas medidas, mas em atenção às características globais apresentadas pelo mesmo bem. O comprador compra objeto certo e determinado, sem preocupação de que tenha as dimensões anunciadas.

 

Na venda por corpo certo qualquer indicação de medida é considerada meramente enunciativa. Admite-se que essa medida enunciativa varie, no máximo, para mais ou para menos, 1/20 (ou 5%) da medida total enunciada.

 

O comprador de bem por corpo certo não pode pretender o complemento de medida, nem pode exigir o abatimento no preço do bem, e nem pode rescindir o contrato se constatar que a medida enunciada não corresponde à medida real do bem. Isto porque, repita-se, o comprador adquiriu o bem considerado em si mesmo, independentemente de suas medidas verdadeiras. Todavia, é lógico que se a diferença ultrapassar o limite de 1/20, previsto no art. 1.136, parágrafo único, do CC, então o comprador poderá exercer qualquer das opções acima indicadas.

 

Alguns exemplos podem esclarecer as hipóteses supra examinadas.

 

Alguém adquire um lote de terreno com 10.000 metros quadrados. O contrato de compra e venda estabelece tratar-se de venda ad mensuram, de modo que o preço foi fixado por cada metro quadrado. Recebido o bem, o comprador constada que faltam 500 metros quadrados na área do terreno. Nesse caso, pode exigir que se complemente a área faltante. Se isto for impossível, o comprador pode escolher entre abater o preço proporcionalmente aos 500 metros quadrados faltantes, ou a rescisão do contrato.

 

Se o sujeito houvesse adquirido o mesmo lote, mas com a cláusula ad corpus, os 500 metros quadrados faltantes não poderiam ser reclamados para complementar a área total de 10.000. Também não seria possível pedir abatimento proporcional do preço pelos 500 metros quadrados faltantes. Nem seria possível rescindir o contrato por causa da diferença de área. Assim, o comprador teria que permanecer com o imóvel de 9.500 metros quadrados, sem abatimento de preço.

 

Essas mesmas regras, por analogia, podem ser aplicadas, por exemplo, aos casos de venda de tecidos, de colheitas, de cabos elétricos, etc.

 

(G) Responsabilidade tributária no contrato de compra e venda de imóvel

 

O art. 1.137, do CC, exige que conste de qualquer escritura de compra e venda de imóvel uma  declaração de inexistência de débito tributário referente ao bem e ao vendedor. Essa declaração é feita mediante a prova de inexistência de dívida tributária em nome do vendedor ou em relação ao imóvel. Para esse fim, o vendedor precisa providenciar diversas certidões junto aos órgãos públicos. Adotadas essas providências,  o adquirente do bem imóvel fica exonerado de qualquer responsabilidade tributária até a data de realização da venda e compra por meio da escritura pública. Eventuais débitos somente poderão ser cobrados pela Fazenda Pública em face do vendedor do mesmo bem.

 

(H) Direito de preferência de aquisição por condômino

 

Já foi explicado anteriormente que um mesmo bem pode ser objeto de propriedade de vários sujeitos, chamados condôminos. Se o bem objeto de condomínio é indivisível e se qualquer dos condôminos desejar vender sua cota parte, sua fração ideal sobre o bem, é obrigado a respeitar o direito de preferência dos demais condôminos (art. 1.139, CC).

 

O direito de preferência entre os condôminos consiste no poder que cada condômino tem de, em igualdade de condições com terceiros (isto é, em igualdade de condições com pessoas que não sejam condôminas), adquirir a fração ideal do bem objeto do condomínio oferecida à venda por um dos condôminos. Assim, o condômino vendedor deve comunicar aos demais condôminos seu desejo de vender sua fração ideal, o preço e as condições de pagamento. Observadas as regras de preferência indicadas no art. 1.139, parágrafo único, do CC, os condôminos podem exercer o direito de adquirir a fração ideal oferecida à venda.

 

Havendo vários condôminos interessados na aquisição da fração ideal oferecida à venda, o direito de preferência é reconhecido, em primeiro lugar, ao condômino que tiver feito benfeitorias de maior valor na coisa comum. Não havendo benfeitorias, ou sendo elas de igual valor, o direito de preferência é reconhecido, em segundo lugar, ao condômino que tiver maior fração ideal na coisa comum. Se todos os condôminos tiverem iguais quinhões no bem comum, todos poderão adquirir a fração ideal colocada à venda , na proporção dos quinhões que cada condômino tiver.

 

Há desrespeito ao direito de preferência dos condôminos se o vendedor:

 

(1º) não comunica aos demais condôminos sua intenção de vender a fração ideal da coisa comum, vendendo-a a terceiro (ou seja, a quem não é condômino);

 

(2º) oferece aos demais condôminos, preferencialmente, o direito de adquirir a fração ideal oferecida à venda e, depois, ante o desinteresse desses condôminos, cuida o vendedor de alienar sua fração ideal a terceiro, em condições mais favoráveis que aquelas oferecidas aos condôminos.

 

Constatada a violação do direito de preferência dos demais condôminos, qualquer deles poderá adquirir a fração ideal vendida a terceiro procedendo do seguinte modo (art. 1.139, do CC):

 

(1º) o condômino interessado deverá ajuizar ação de anulação do contrato de compra e venda celebrado entre o vendedor e o comprador da fração ideal da coisa comum;

 

(2º) na referida ação judicial, o condômino preterido no seu direito de preferência deverá depositar o preço fixado para a venda do bem naquele contrato celebrado entre o vendedor e o comprador;

 

(3º) todas essas providências devem ser adotadas pelo condômino prejudicado no seu direito de preferência no prazo máximo (decadencial) de seis meses, contado da data de registro do contrato de compra e venda celebrado entre o vendedor e o adquirente que não era condômino.

 

 

 

 

 

 

MODALIDADES ESPECIAIS DE COMPRA E VENDA

 

 

O contrato de compra e venda apresenta modalidades especiais, destinadas à obtenção de resultados jurídicos diferenciados em relação ao contrato comum. Algumas dessas modalidades estão já disciplinadas no Código Civil (arts. 1.140 até 1.163). Outras estão reguladas em leis especiais, como acontece com a alienação fiduciária, ou com as mercadorias depositadas em armazéns gerais, por exemplo. Outras ainda não foram reguladas pela lei, restando no âmbito da livre autonomia de vontade das partes, como ocorre em vários contratos de compra e venda de títulos negociados em bolsas, operações de crédito e financiamento.

 

Neste momento serão examinadas apenas as modalidades reguladas pelo Código Civil. Noutra oportunidade e à medida em que o estudo do Direito Civil for prosseguindo, muitas outras modalidades serão analisadas.

 

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que essas modalidades diferenciadas de contrato de compra e venda não consistem num outro contrato, separado substancialmente do contrato normal de compra e venda. Na verdade, as modalidades especiais de compra e venda são cláusulas, são disposições que, inseridas no contrato de compra e venda normal, modificam-lhe os efeitos para chegar a resultados jurídicos também especiais.

 

As modalidades que serão estudadas aqui são as seguintes: (1ª) retrovenda, regulada nos arts. 1.140 a 1.143; (2ª) venda a contento, disciplinada pelos arts. 1.135 e 1.144 a 1.148; (3ª) preempção ou preferência, cujas regras encontram-se nos arts. 1.149 a 1.157; (4ª) pacto de melhor comprador, regulado nos arts. 1.158 a 1.162; (5ª) pacto comissário, disciplinado no art. 1.163; e (6º) compra e venda com reserva de domínio, que não está regulada diretamente no Código Civil, mas encontra nele disciplina geral esparsa.

 

 

(I) COMPRA E VENDA COM RETROVENDA

 

 

(1) Generalidades da compra e venda com retrovenda

 

A retrovenda é cláusula acessória inserta no contrato de compra e venda de imóvel. Está regulada nos arts. 1.140 a 1.143, do CC.

 

De acordo com essa cláusula, o vendedor pode reservar-se o direito de readquirir, dentro de certo prazo, o imóvel vendido ao comprador, restituindo a este último o preço, as despesas do contrato e o valor das benfeitorias introduzidas no imóvel pelo comprador.

 

Não se trata de cláusula resolutiva do contrato de compra e venda, porque a compra e venda é existente, válida e eficaz, produzindo todos os seus resultados jurídicos normais. A retrovenda cláusula que caracteriza, na verdade, um pré-contrato. Por força da cláusula de retrovenda, as partes obrigam-se a celebrar um outro contrato de compra e venda, prevendo antecipadamente o bem objeto do contrato, seu preço e as condições de pagamento do futuro contrato. Assim, em decorrência da cláusula de retrovenda as partes têm obrigação de contratar uma nova operação de compra e venda, diferente do contrato de compra e venda original. Neste segundo contrato invertem-se as posições das partes: quem foi vendedor na primeira compra e venda, será comprador na segunda; quem adquiriu o bem na primeira operação torna-se vendedor dele na segunda operação.

 

Como se vê, a cláusula de retrovenda não é cláusula que assegura o direito de arrependimento. Também não se trata de condição resolutiva, porque o exercício do direito de readquirir o bem depende da vontade exclusiva do vendedor original, fato este que descaracteriza a existência de condição (art. 115, CC). Além disto, o primeiro contrato de compra e venda em momento algum é desfeito. Tal contrato remanesce existente, válido e eficaz. A retrovenda representa um novo negócio de venda e compra, por meio do qual o adquirente de um bem imóvel o revende ao sujeito que lhe havia vendido o mesmo bem.

 

A função original da cláusula de retrovenda era a de assegurar ao vendedor o direito de recomprar o bem imóvel que vendera a outrem. A operação tem muita utilidade como modalidade de garantia de operações de mútuo. O comprador, na verdade, não estaria comprando o bem. estaria emprestando ao vendedor o valor que representa o preço do bem imóvel e, assim, o comprador adquiria o mesmo bem como garantia de que o vendedor iria lhe pagar o empréstimo feito. Ao fim do prazo do empréstimo, o vendedor pagaria o seu débito recomprando o bem das mãos do mutuante (comprador original). Esta operação, logo se vê, era usada como negócio simulado. Evidentemente que não é essa a finalidade da retrovenda.

 

Modernamente, a cláusula de retrovenda tem sido utilizada, também, para assegurar ao comprador do bem o direito de revendê-lo ao vendedor, após certo prazo contado desde a celebração do primeiro contrato de compra e venda. É o chamado compromisso de recompra, de acordo com o qual o comprador pode, a seu critério, vender o bem adquirido para o vendedor original, que se obriga a recomprá-lo.

 

Por fim, a cláusula acessória de retrovenda tem sido usada, por analogia (art. 4º, da LICC) também para os contratos de compra e venda de bens móveis.

 

(2) Conceitos de retrovenda

 

À vista de tudo o que foi exposto, é preciso apresentar dois conceitos da cláusula de retrovenda, ou seja, um conceito legal, correspondente ao art. 1.140, do CC; e um conceito amplo, construído de acordo com a lei, mas abrangente de outras operações diferenciadas daquela mencionada no art. 1.140, do CC.

 

(2.1) Conceito legal de retrovenda

 

Retrovenda é cláusula acessória de contrato de compra e venda de bem imóvel, em razão da qual o vendedor, a seu critério, se reserva o direito de readquirir o mesmo bem, após certo prazo contado da celebração do contrato, pagando ao comprador o preço, as despesas de contrato e o valor das benfeitorias acaso introduzidas no referido bem, não podendo o comprador do bem recusar-se a revendê-lo nessas condições.

 

Esse conceito legal apresenta as seguintes características:

 

(1ª) a cláusula de retrovenda é acessória ao contrato de compra e venda, podendo ou não ser inserida nele;

 

(2ª) a cláusula de retrovenda, de acordo com o conceito legal, é instituída em favor do vendedor do bem, pois ele é quem decidirá se desejará ou não recomprar o bem que vendeu;

 

(3ª) o conceito legal aplica-se apenas aos casos de compra e venda de bens imóveis;

 

(4ª) o comprador do bem é obrigado a revendê-lo ao vendedor, se este assim desejar.

 

(2.2) Conceito amplo de retrovenda

 

Retrovenda é cláusula acessória de contrato de compra e venda de bem, móvel ou imóvel, em razão da qual, após certo prazo contado da celebração do contrato,  o vendedor, a seu critério, se reserva o direito de readquirir o mesmo bem, pagando ao comprador, que se obriga a revender o citado bem, o preço, as despesas de contrato e o valor das benfeitorias acaso introduzidas no referido bem; ou em decorrência da qual o comprador, também a seu critério, se reserva o direito de revender o aludido bem ao vendedor, que fica obrigado a recomprá-lo, pagando ao comprador o preço, as despesas de contrato e o valor das benfeitorias eventualmente realizadas no bem objeto do contrato.

 

Esse conceito amplo apresenta as seguintes características:

 

(1ª) a cláusula de retrovenda é acessória ao contrato de compra e venda, podendo ou não ser inserida nele;

 

(2ª) a cláusula de retrovenda, de acordo com o conceito amplo, é instituída tanto em favor do vendedor do bem, pois ele poderá ou não recomprar o bem que vendeu; como em favor do comprador, pois este poderá ou não desejar revender o mesmo bem ao primitivo vendedor;

 

(3ª) o conceito amplo aplica-se apenas aos casos de compra e venda de bens móveis ou imóveis;

 

(4ª) o comprador do bem é obrigado a revendê-lo ao vendedor, se este assim desejar, ou o vendedor é obrigado a recomprar o bem, se assim optar o primitivo comprador.

 

 A cláusula de retrovenda, no seu sentido amplo, é muito usada em diversas operações jurídicas.

 

Por exemplo, nos negócios realizados no mercado de valores mobiliários, ou nos mercados de opções e de futuros a retrovenda é extremamente comum. Assim, certo investidor pode adquirir certos títulos negociados no mercado de valores assumindo a obrigação de revendê-los, após certo prazo, ao sujeito de que quem os comprou, se este sujeito assim o desejar. A operação inversa também é muito comum. É o caso de um investidor que adquire no mercado de valores certos títulos, podendo revendê-los ao mesmo sujeito de quem os comprou, ficando este último obrigado a fazer a aquisição daqueles títulos de o adquirente deles desejar fazer a revenda.

 

Tem sido comum, também, a cláusula de retrovenda no comércio de veículos usados. Certa concessionária de veículos vende um automóvel zero quilômetro e obriga-se a recomprá-lo do adquirente, após um ano, se este desejar revendê-lo e trocá-lo por outro veículo novo do mesmo fabricante.

 

O conceito amplo de retrovenda é mais abrangente e mais utilizado que o conceito restrito. Por essa razão, examinar-se-á os requisitos do conceito amplo.

 

(3) Requisitos da retrovenda (conceito amplo)

 

O conceito amplo da cláusula de retrovenda apresenta os seguintes requisitos:

 

(a) cláusula acessória do contrato de compra e venda

 

A cláusula de retrovenda é acessória ao contrato de compra e venda. Pode ou não ser inserida nele. Este requisito é válido tanto para o conceito amplo de retrovenda como para o conceito legal dela.

 

 

 

 

 

(b) objeto móvel ou imóvel

 

O objeto da retrovenda pode ser bem móvel ou imóvel. O conceito legal de retrovenda refere-se apenas a bem imóvel, mas isto evidentemente não torna ilícita a retrovenda que tenha por objeto bem móvel.

 

(c) direito de recompra ou direito de revenda

 

A cláusula de retrovenda pode ter dúplice finalidade, a saber:

 

(1ª) ou a cláusula de retrovenda é instituída em favor do vendedor do bem, dando a ele o direito de recomprar o objeto que vendeu e, portanto, obrigando o comprador desse bem a revendê-lo ao primitivo vendedor que exerce o direito de recompra;

 

(2ª) ou a cláusula de retrovenda é instituída em favor do comprador do bem, dando a ele o direito de revender o objeto que comprou e, assim, obrigando o vendedor desse bem a recomprá-lo do primitivo comprador que exerce o direito de revenda.

 

A opção de recompra ou de revenda compete, respectivamente, ao vendedor ou ao comprador do bem, a seu critério. A outra parte, satisfeitos os requisitos legais, não pode opor-se á operação de retrovenda, estando obrigada a recomprar ou a revender o bem, conforme o caso.

 

(d) fixação de prazo para exercício da opção de recompra ou de revenda

 

A opção de recompra, ou a de revenda, conforme o caso, deve ser exercida dentro de um prazo máximo. As partes são livres para estabelecer o prazo para exercício da opção. Todavia, esse prazo não poderá ser superior a três anos, considerando-se não escrito prazo superior a esse (art. 1.141, CC). Portanto, até o limite legal de três anos, contado a partir da data de celebração do contrato em que foi inserida a cláusula acessória da retrovenda, as partes podem fixar o prazo que quiserem.

 

Em atenção ao princípio da permanência dos contratos e também do princípio da força obrigatória dos contratos, seria mais razoável reduzir o excesso de prazo para o limite legal máximo de três anos, ao invés de considerar a cláusula de retrovenda não escrita. Assim, a vontade das partes estaria sendo atendida e o contrato cumpriria o resultado jurídico para o qual foi celebrado.

 

O prazo para exercício da opção de retrovenda é decadencial. Uma vez decorrido, extingue-se o direito da parte de revender ou de recomprar o bem, conforme o caso (art. 1.141, parágrafo único, do CC). Evidentemente, mesmo após o decurso do prazo não é impossível que o vendedor recompre o bem, ou que o comprador o revenda. Nesses casos, todavia, não se tratará de retrovenda, mas de compra e venda pura e simples. É que, decorrido o prazo da opção, o vendedor não poderá mais exigir do comprador que revenda o bem nas condições estabelecidas no contrato em que a cláusula de retrovenda foi inserida. Do mesmo modo, após a extinção do prazo de exercício da opção, o comprador não poderá exigir que o vendedor recompre o bem nas condições previstas no contrato primitivo. Por conseguinte, o vendedor somente poderá recomprar o bem se o comprador desejar revendê-lo. Por outro lado, o comprador só poderá revender o bem se o vendedor desejar readquiri-lo.

 

Importante observar que o prazo para exercício da opção de retrovenda corre mesmo contra o contratante incapaz (art. 1.141, parágrafo único, do CC). A medida justifica-se em atenção à estabilidade e segurança das relações jurídicas.

 

 

 

(e) condições para o exercício do direito de retrovenda

 

Como foi visto, a cláusula de retrovenda assegura ao vendedor o direito de recomprar o bem objeto da compra e venda, ou assegura ao comprador o direito de revender esse mesmo bem ao vendedor primitivo.

 

Se o vendedor optar pelo exercício do direito de recomprar o bem, terá que pagar ao comprador original o preço do bem, as despesas que o comprador tiver realizado para adquirir o bem e, também, o valor das benfeitorias que o referido comprador houver realizado no bem objeto da compra e venda.

 

Por outro lado, se o comprador optar pelo exercício do direito de revender o bem, então receberá do vendedor primitivo o preço do bem, as despesas que o comprador original tiver realizado para adquirir o bem e, ainda, o valor das benfeitorias que aquele mesmo comprador tiver introduzido no bem objeto da compra e venda.

 

A lei (art. 1.140, parágrafo único) não esclarece que tipo de benfeitorias devem ser ressarcidas e, nesse caso, compete às partes preverem no contrato de compra e venda se a retrovenda abrangerá o valor das benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias. Na ausência de previsão contratual sobre a matéria, prevalecerá a regra legal de que as benfeitorias necessárias são sempre indenizáveis. Já as benfeitorias úteis e as voluptuárias somente serão indenizáveis se com elas concordar o dono da coisa.

 

(e) forma da retrovenda

 

A retrovenda pode ser pactuada no próprio instrumento de compra e venda a que se refere, ou em instrumento apartado. Em qualquer das hipóteses, será sempre uma cláusula acessória desse contrato de compra e venda.

 

Dada sua natureza, exige-se que a cláusula de retrovenda seja pactuada por escrito, especialmente tratando-se de bens imóveis. Em casos restritos, porém, poder-se-ia admitir a prova destinada a demonstrar a existência de cláusula de retrovenda pactuada verbalmente. Mas esta exceção somente poderia ser aceita para a retrovenda de bens móveis de valor moderado.

 

(4) Espécies de retrovenda

 

A retrovenda, como já foi dito, pode ser instituída em favor do vendedor ou do comprador do bem. No primeiro caso, assegura-se ao vendedor o direito de readquirir o bem que vendeu. No segundo caso, permite-se que o comprador do bem possa revendê-lo a quem lhe transmitiu o bem.

 

Em qualquer caso, a retrovenda pode ser total ou parcial (art. 1.143, § 2º, do CC).

 

A retrovenda será total quando o bem objeto da compra e venda puder ser retrovendido por inteiro. Será parcial quando a cláusula de retrovenda abranger apenas fração do bem objeto da compra e venda.

 

A retrovenda parcial pode acontecer quando houver mais de um comprador ou mais de um vendedor interessado na operação. Se dois ou mais vendedores alienaram o bem, mas não o fizeram em conjunto e no mesmo ato, qualquer deles poderá exercer seu direito de recomprar o quinhão que alienou ao primitivo comprador. Esse comprador, portanto, não poderá recusar-se a revender a fração do bem para o vendedor interessado (art. 1.143, § 2º, do CC).  Por outro lado, se dois ou mais compradores adquiriram o bem, embora não o tenham feito em conjunto e no mesmo ato, qualquer deles poderá exercer seu direito de revender seu próprio quinhão, caso em que os primitivos vendedores não poderão recusar-se a comprá-lo.

 

(5) Efeitos principais da retrovenda

 

Os principais efeitos da cláusula acessória de retrovenda já foram apontados no decorrer da exposição. O mais importante efeito dessa cláusula é o de atribuir à parte em favor da qual a retrovenda foi instituída o direito de recomprar ou de revender o bem objeto da compra e venda conforme se trate, respectivamente, do vendedor ou do comprador.

 

Mas, além desses efeitos predominantes, há outros previstos na lei e que agora se passa a examinar.

 

 (1º) limitação ao direito de propriedade do bem

 

Celebrado o contrato de compra e venda, o adquirente do bem é dono dele, mesmo que exista uma cláusula de retrovenda. Como proprietário do bem, o adquirente pode onerá-lo, vendê-lo, doá-lo e, enfim, cedê-lo a terceiros, no todo ou em parte.

 

No entanto, todos esses atos acaso praticados pelo dono da coisa estão sujeitos ao ônus resolutivo caracterizado pela cláusula de retrovenda. Se o vendedor do bem quiser exercer seu direito de recomprá-lo, esse bem será reintegrado ao patrimônio desse vendedor primitivo. Os terceiros que houverem adquirido o bem gravado com o ônus da retrovenda sabem, ou deviam saber, dessa limitação existente sobre aquele bem.

 

(2º) oponibilidade da retrovenda a terceiros

 

O contrato faz lei apenas entre as partes contratantes. É o que diz o princípio da obrigatoriedade dos contratos. Por conseguinte, a cláusula acessória de retrovenda deveria produzir efeitos apenas entre as partes do contrato de compra e venda. Noutras palavras, a retrovenda não poderia ser oposta contra terceiros, quer para beneficiá-los, quer para prejudicá-los.

 

Entretanto, o art. 1.142, do CC, prevê que a cláusula acessória de retrovenda é oponível a terceiros, mesmo que estes terceiros aleguem que desconheciam a referida cláusula. É que, no sistema do Código Civil, a propriedade de bem imóvel somente é adquirida mediante a transcrição do título aquisitivo do domínio no Cartório de Registro de Imóveis competente. Assim, qualquer sujeito que queira adquirir o bem sobre o qual pesa o ônus da retrovenda saberia, de antemão, da existência dessa restrição ao direito de disponibilidade sobre o aludido bem. Em síntese, o registro do contrato de compra e venda torna público o seu conteúdo. Logo, o proprietário desse bem não pode dispor livremente dele enquanto não decorrer o prazo dentro do qual a outra parte poderá exercer seu direito de recomprar o bem. Daí porque terceiros não podem alegar ignorância da cláusula de retrovenda.

 

O mesmo princípio da publicidade pode ser aplicado ao contrato de compra e venda de bem móvel, no qual tenha sido inserida a cláusula acessória da retrovenda. Desde que tal contrato de compra e venda tenha sido registrado no órgão público competente, de modo a tornar-se público, a cláusula de retrovenda pode ser oposta a terceiros.

 

Assim, por exemplo, imagine-se a situação de uma compra e venda de ações de certa sociedade anônima. O vendedor dessas ações incluiu no contrato de compra e venda uma cláusula de retrovenda, em virtude da qual ele, vendedor, terá o direito de recomprar suas ações no prazo e condições estabelecidos no contrato. Esse ônus da retrovenda será averbado no Livro de Transferência de Ações Nominativas, mantido pela sociedade anônima que emitiu as ações objeto de tal contrato de compra e venda. Se o comprador dessas ações quiser vendê-las a terceiros, pode fazer isto, pois é o proprietário das referidas ações. Todavia, quem comprar essas ações saberá que terá que revendê-las ao primitivo vendedor, pois a cláusula de retrovenda estava averbada nos livros societários.

 

Do mesmo modo, quem adquirir imóvel em cujo registro imobiliário conste cláusula de retrovenda, sabe, ou deveria saber, que o direito de opção da retrovenda poderá ser exercido e, nesse caso, o imóvel retornará ao patrimônio do primitivo vendedor.

 

(3º) condôminos de bem objeto de retrovenda

 

O art. 1.143, do CC, cuida da hipótese em que há vários sujeitos interessados na retrovenda. De fato, pode ser que o imóvel seja vendido por vários vendedores que, posteriormente, podem exercer o direito de recomprar o imóvel. Nesse caso, várias situações podem ocorrer.

 

É possível que todos os vendedores, em conjunto, queiram exercer o direito de recomprar o imóvel. Aplicar-se-á, então, as regras já examinadas até aqui.

 

Entretanto, pode ocorrer de apenas um dos vendedores querer exercitar o direito de recompra. Se isto acontecer, pode o comprador do bem, agora na posição de vendedor do objeto, intimar os demais interessados para que concordem com o fato de apenas um, ou alguns, dos primitivos vendedores agora adquirirem o bem (art. 1.143, caput, CC).

 

Observe-se, porém, que não havendo acordo entre os interessados na retrovenda, ou mesmo que qualquer dos primitivos vendedores não queira pagar sua parte no preço para readquirir o bem, manda a lei que o direito de retrovenda seja extinto (art. 1.143, § 1º, CC). Mais uma vez esta não parece ser a melhor solução. Em atenção aos princípios da força obrigatória dos contratos e o da permanência dos contratos, dever-se-ia permitir que o primitivo vendedor interessado na recompra pudesse exercer isoladamente seu direito de readquirir o bem.

 

As mesmas regras acima estudadas são válidas para o caso em que a cláusula de retrovenda é instituída em favor de mais de um comprador do bem. Nesse caso, esses compradores, em conjunto ou isoladamente, poderão desejar revender o bem para os primitivos vendedores e, acontecendo isto, devem ser analogicamente aplicadas as regras do art. 1.143, do CC.

 

(4º) ônus tributários

 

A retrovenda é nova operação de venda e compra entre as partes que, anteriormente, já haviam celebrado um contrato de compra e venda. Daí porque é importante observar que haverá incidência de tributos na operação de compra e venda e também na de retrovenda.

 

Por exemplo, tratando-se de compra e venda de bem imóvel, deverá ser recolhido o imposto de transmissão de bens imóveis no ato da compra. Mais tarde, exercida a opção de retrovenda, o mesmo imposto incidirá no instante da retransmissão do bem para o patrimônio do vendedor, agora adquirente do bem por força da cláusula de retrovenda.

 

(5º) disciplina da compra e venda

 

A retrovenda, como foi visto, é uma nova operação de venda e compra. Por conseguinte, aplicam-se à retrovenda as regras gerais da compra e venda, especialmente aquelas relativas à evicção, aos vícios redibitórios, aos riscos sobre o bem, etc.

 

 

(II) COMPRA E VENDA COM PACTO DE PREEMPÇÃO OU PREFERÊNCIA

 

 

(1) Generalidades sobre o pacto de preempção ou preferência

 

O pacto de preempção, também chamado pacto de preferência, é cláusula acessória incluída no contrato de compra e venda. Essa cláusula acessória gera uma obrigação de fazer para  sujeito que adquiriu um bem (comprador), a saber, se tal comprador, depois de celebrado o contrato de compra e venda, quiser alienar o bem adquirido, estará obrigado a oferecer com prioridade o mesmo bem àquele sujeito de quem adquiriu o referido bem (vendedor). Se – e somente se – o sujeito comprador do bem quiser vendê-lo, ou dá-lo em pagamento, terá que primeiramente oferecer esse mesmo bem ao sujeito de quem o bem foi adquirido. Nesse caso, o primitivo vendedor do bem terá preempção, ou preferência, para readquirir o bem nas mesmas condições oferecidas a um terceiro qualquer (art. 1.149, do CC).

 

É preciso não confundir o pacto de preempção ou de preferência com a retrovenda. No caso da retrovenda, ao ser celebrado o contrato de compra e venda já se insere nele a cláusula de retrovenda que, como foi examinado, desde logo impõe a obrigação ao comprador de revender o bem ao primitivo vendedor (agora adquirente), ou, então, fica estabelecida a obrigação do vendedor de recomprar o bem se o comprador assim desejar. No caso da retrovenda, o bem, seu preço e as demais condições de revenda ou de recompra, bem como o prazo de exercício da opção, já ficam definidas desde o instante em que o contrato de compra e venda com cláusula de retrovenda é celebrado. Não é isto o que acontece com o pacto de preempção ou de preferência. Nesta situação, o comprador do bem não está obrigado a revendê-lo dentro de certo prazo, por preço e condições já estabelecidas previamente no contrato de compra e venda por meio do qual adquiriu o aludido bem. Esse comprador do bem poderá ou não querer vendê-lo, poderá ou não querer dá-lo em pagamento. Não tem, enfim, obrigação de alienar o bem após a celebração do contrato de compra e venda. Todavia, se o comprador quiser alienar o bem, terá que primeiramente oferecer o referido bem à pessoa que o vendeu.

 

Vê-se, portanto, que o direito de preferência ou de preempção é eventual, já que somente poderá ser exercido se o comprador do bem quiser aliená-lo depois de ter celebrado o contrato de compra e venda por meio do qual adquiriu aquele bem. Esse direito de preempção ou de preferência é instituído em favor do vendedor do bem, ao qual se assegura o direito de readquirir o bem nas mesmas condições em que o comprador iria aliená-lo a terceiros.

 

O art. 1.152, do CC, estabelece que o direito de preempção só existe para o direito real de propriedade, não abrangendo outras situações além daquelas referidas nos arts. 1.149 e 1.150, do mesmo Código. Entretanto, essa regra do art. 1.152 não tem sido aplicada nesse sentido restrito. Em primeiro lugar, várias alterações legislativas posteriores ao Código Civil ampliaram os casos de preempção. Em segundo lugar, o art. 1.152 não tornou nulos nem ilícitos outros negócios que tratem do direito de preferência em casos diversos daqueles mencionados no dispositivo em exame. Assim, a cláusula acessória de preempção atualmente tem uso generalizado nos contratos.

 

Assim, é comum, por exemplo, inserir num contrato de locação cláusula prevendo o direito de preferência do locador para arrendar o ponto comercial que o locatário, eventualmente, queira transferir a terceiros. Igualmente, nos contratos de licenciamento de software, é comum inserir cláusula prevendo que o licenciante terá prioridade para adquirir e para comercializar eventuais melhoramentos que o licenciado realize no software objeto da licença. É também habitual que uma empresa, ao terceirizar parte de seus serviços, contratando outra empresa prestadora dos serviços terceirizados, inclua no contrato uma cláusula em decorrência da qual a empresa prestadora de serviços deverá contratar, preferencialmente, os empregados despedidos pela empresa que está terceirizando suas atividades.

 

Cabe esclarecer, também, que há casos em que o direito de preferência é instituído por lei e há outros casos em que o direito de preempção é instituído pelas partes que celebram um contrato de compra e venda. São exemplos da primeira hipótese (direito de preferência instituído por lei) o caso do condômino que tem preferência para adquirir a quinhão da coisa comum a ser alienada por outro condômino (art. 1.139, CC); o caso do locatário que tem prioridade para adquirir o bem locado oferecido à venda pelo locador (art. 27, da L. 8245/91); o do executado que tem prioridade para remir o bem objeto da execução em hasta pública.

 

Interessa aqui examinar apenas os casos de preempção convencional, isto é, do direito de preferência para a aquisição instituído no contrato de compra e venda.

 

(2) Conceito de preempção ou preferência

 

Pacto de preempção ou de preferência é cláusula acessória inserida em contrato de compra e venda e que estabelece, para o comprador, uma obrigação de fazer, futura e eventual, consistente na conduta de oferecer ao primitivo vendedor o bem adquirido, se o comprador desejar aliená-lo após a celebração do contrato de compra e venda, caso em que tal vendedor poderá readquirir o bem em igualdade de condições com terceiros se, no prazo legal, manifestar essa intenção.

 

O pacto de preempção é acessório ao contrato de compra e venda porque pressupõe a celebração deste contrato. Não há direito de preferência sem que a lei ou o contrato o estabeleçam. Aqui se está examinando apenas o direito de preempção assegurado ao vendedor de certo bem.

 

A cláusula de preferência institui, para o comprador, uma obrigação de fazer. Mas é obrigação de fazer futura e eventual. É obrigação de fazer porque, por meio da cláusula de preferência, o comprador terá que oferecer ao vendedor o bem que adquiriu deste e que agora aquele comprador quer alienar. É futura porque a proposta de alienação, se vier a ocorrer, ocorrerá após a celebração do contrato de compra e venda em que foi inserida a cláusula de preempção. É ainda obrigação eventual porque dependerá exclusivamente da vontade do comprador – agora como dono do bem – de querer ou não aliená-lo. Mesmo que exista no contrato de compra e venda uma cláusula de preempção, será ela completamente inoperante se o comprador não desejar alienar o bem que adquiriu.

 

O vendedor, em favor do qual a cláusula de preempção é instituída, terá o direito de readquirir o bem em igualdade de condições com terceiros. Para isto, deverá exercer seu direito no prazo decadencial referido no art. 1.153, do CC.

 

(3) Requisitos da preempção

 

O direito de prelação, de preferência, ou de preempção, nos moldes até aqui examinados, somente existirá se preenchidos os requisitos seguintes.

 

(1º) cláusula acessória ao contrato de compra e venda

 

A cláusula de preempção ou de preferência é acessória ao contrato de compra e venda. Sendo nulo ou anulável o contrato principal, a cláusula acessória será ineficaz, ainda que em si mesma seja existente e válida.

 

(2º) obrigação do comprador de oferecer o bem ao vendedor

 

A cláusula de preempção tem conteúdo específico. Por meio dessa cláusula, o comprador obriga-se a oferecer ao vendedor o bem objeto da compra e venda, caso aquele comprador deseje aliená-lo após a celebração do contrato. É, portanto, uma obrigação de fazer futura e eventual.

 

(3º) desejo do comprador de alienar o bem

 

O direito de preempção do vendedor somente poderá ser exercido se – e somente se – o comprador desejar alienar o bem objeto da compra e venda após a celebração deste contrato.

 

Como se vê, o direito de preferência do vendedor para readquirir o bem é eventual. Ele não pode obrigar o comprador a lhe revender o bem. O direito de readquirir o bem vendido depende exclusivamente da vontade do comprador de querer, efetivamente, alienar o objeto que adquiriu anteriormente.

(4º) limites do direito de preferência

 

O vendedor poderá readquirir o bem em igualdade de condições com terceiros. O comprador do bem não é obrigado a oferecer ao vendedor melhores condições que aquelas que apresentou a terceiros. O vendedor, portanto, se quiser readquirir o bem que anteriormente alienou ao comprador, terá que colocar-se nas mesmas condições que qualquer terceiro (art. 1.155, do CC).

 

(5º) prazo decadencial para exercício da opção

 

O vendedor pode readquirir o bem se exercitar seu direito de preempção no prazo especificado na lei ou no contrato.

 

O art. 1.153, do CC, estabelece que o direito de prelação para a reaquisição de bens móveis decai em três dias. Já o prazo para a reaquisição de bem imóvel é de trinta dias. Esses prazos são contados a partir da data em que o comprador comunicar ao vendedor sua intenção de alienar o bem.

 

Admite-se que no contrato sejam previstos prazos inferiores aos referidos no art. 1.153, do CC. Discute-se, por outro lado, se as partes poderiam estipular prazos maiores que os indicados na lei. Lembrando-se a regra geral de que os prazos decadenciais podem ser legais, convencionais ou judiciais, não há justificativa para impedir a estipulação no contrato de prazo maior que o legal. Entretanto, há que se lembrar, também, que o instituto da decadência destina-se a estabilizar as relações jurídicas e atribuir segurança a essas relações. Portanto, qualquer prazo superior aos referidos no art. 1.153, do CC, somente seria oponível a terceiros se o contrato de compra e venda em que foi inserida a cláusula de preempção estivesse registrado em órgão público. Caso contrário, o prazo decadencial superior ao legal não poderia ser oposto contra terceiros de boa fé que, eventualmente, viessem a adquirir o bem em prejuízo do direito  de prelação do vendedor original.

 

(4) Modalidades de preempção

 

A cláusula de preempção pode ser instituída por lei ou pode decorrer da livre manifestação de vontade das partes do contrato de compra e venda. Daí porque, no que concerne à sua origem, a preempção pode ser legal ou convencional.

 

O direito de preferência pode ser total ou parcial, conforme abranja todo o bem objeto do contrato de compra e venda ou apenas parte dele. O art. 1.154, do CC, estabelece que o direito de preempção somente pode ser exercido em relação ao objeto por inteiro. Mas trata-se aí de interesse privado, ou seja, se as partes convencionarem o direito parcial de preempção, não há razão lógica para vedá-lo. O que se pode depreender do teor do art. 1.154 é que o vendedor não pode impor, unilateralmente, ao comprador alienante, o direito parcial de preferência. O direito de preempção existe para o vendedor em igualdade de condições com terceiros. Se o comprador desejar alienar parte do bem, o vendedor não pode querer readquirir o bem por inteiro. Por outro lado, se o comprador quiser alienar o bem por inteiro, o vendedor não pode pretender readquirir apenas parte do bem.

 

(5) Efeitos principais da cláusula de preferência

 

Além dos efeitos já referidos durante esta exposição, cabe agora examinar rapidamente os demais a que se refere a lei.

 

(a) direito de preempção do expropriado

 

A desapropriação no Direito brasileiro pode ocorrer por utilidade pública, por necessidade pública ou por interesse social (art. 5º, XXIV, da CF/88). Se a finalidade para a qual a desapropriação foi realizada se frustrar, então o desapropriado tem legalmente assegurado seu direito de preferência para readquirir o bem objeto da expropriação, nos termos do art. 1.150, do CC.

 

(b) exercício do direito de preferência por vários titulares

 

O art. 1.154, do CC, regula o exercício do direito de preempção titularizado por vários vendedores. Os principais aspectos do art. 1.154 já foram comentados no item (4), acima, quando se cuidou das modalidades do direito de preferência.

 

Havendo mais de um titular do direito de preempção, qualquer deles poderá exercitar esse direito no prazo decadencial previsto. Se algum dos titulares desse direito não o exercer, ou vier a perdê-lo, esse fato não prejudicará os demais titulares, que poderão exercer ou não suas respectivas opções conforme lhes seja conveniente.

 

Observe-se, todavia, que o dispositivo examinado veda que um dos titulares do direito de preempção o exerça para readquirir, apenas, o seu quinhão sobre o bem. Se quiser readquirir o bem, qualquer dos vendedores haverá de recomprá-lo por inteiro, a não ser que o alienante concorde em alienar o bem em frações (art. 889, do CC).

 

(c) violação do direito de preempção

 

O comprador do bem pode desejar ou não aliená-lo posteriormente ao contrato de compra e venda. Se quiser alienar o bem, é obrigado a respeitar o direito de preferência instituído a favor do vendedor, de modo que este, se quiser, possa readquirir o aludido bem.

 

O desrespeito, pelo comprador alienante, ao direito de preempção do comprador gera responsabilidade civil contratual para aquele comprador (art. 1.156, do CC).

 

(d) intransmissibilidade do direito de preferência

 

O art. 1.157, do CC, veda que o direito de preferência seja cedido a terceiros. Não pode nem mesmo ser transmitido aos herdeiros do vendedor. Esta proibição legal, contudo, parece ser supletiva da vontade das partes. Não havendo convenção contratual sobre esse ponto, prevalecerá a regra legal de intransmissibilidade do direito de preferência. Mas, se as partes permitirem a cessão desse direito, ou a transmissão dele aos seus herdeiros, então ter-se-ia que reconhecer a validade dessa cláusula. O que parece mais importante é o fato de que tais cessionários ou herdeiros sejam perfeitamente informados a respeito da existência da cláusula de preempção, a fim de que possam respeitá-la ou, se o caso, para que possam ser responsabilizados nos termos do art. 1.156, do CC.

 

(e) intimação do comprador pelo vendedor

 

O comprador do bem, ao decidir-se por aliená-lo, deve comunicar essa intenção ao vendedor, para que este, se quiser, possa exercer seu direito de preempção. No entanto, pode ocorrer que o comprador alienante deixe de dar notícia ao vendedor a respeito de sua vontade de alienar o bem sobre o qual o vendedor tem direito de preferência para reaquisição. Nessa hipótese, a lei (art. 1.151, do CC), permite que o próprio vendedor intime o comprador alienante, comunicando a este último o desejo que tem de readquirir o bem.

 

(III) PACTO DE MELHOR COMPRADOR

 

 

(1) Generalidades sobre o pacto de melhor comprador

 

O pacto de melhor comprador está regulado pelos arts. 1.158 a 1.162, do CC. Trata-se de cláusula acessória inserida num contrato de compra e venda de bem imóvel com o propósito de resolver esse contrato se, dentro de certo prazo após a celebração do contrato, surgir um terceiro que ofereça maior vantagem ao vendedor pela aquisição do bem.

 

O pacto de melhor comprador, portanto, é cláusula que caracteriza uma condição resolutiva, à qual estarão subordinados os efeitos do contrato. É futuro e incerto o fato de alguém, em certo prazo, oferecer ao vendedor maior vantagem para adquirir o bem objeto da compra e venda. Se este fato futuro e incerto efetivamente ocorrer, então duas hipóteses poderão acontecer, a saber:

 

(1ª) o comprador poderá oferecer ao vendedor as mesmas vantagens ofertadas por um terceiro, caso em que o contrato de compra e venda não mais se dissolverá; ou

 

(2ª) o comprador não oferece ao vendedor melhor vantagem e, assim, a compra e venda celebrada entre eles se resolverá.

 

Os efeitos do contrato de compra e venda celebrado com cláusula acessória de melhor comprador ficam, pois, subordinados à mencionada condição resolutiva.

 

É importante lembrar que a condição resolutiva não impede a aquisição do direito a que se reporta, nem obsta o exercício desse direito condicional. A característica essencial da condição resolutiva é a de que o direito a que ela se refere se resolverá se a condição se implementar. Noutras palavras, o titular do direito sujeito a condição resolutiva perderá esse direito quando ocorrer a condição.

 

Por conseguinte, o contrato de compra e venda, com pacto de melhor comprador, é perfeitamente existente, válido e eficaz. O comprador torna-se, efetivamente, proprietário do bem até que a condição resolutiva prevista se verifique. Se tal condição se frustrar e não mais puder ocorrer, então o contrato de compra e venda torna-se definitivo.

 

A disciplina do pacto de melhor comprador no Código Civil foi feita tendo-se em vista o interesse do vendedor. Celebrada a compra e venda, teria o vendedor a possibilidade de desfazê-la se, em certo prazo, terceiro lhe oferecesse maior vantagem para adquirir o bem que já foi adquirido pelo comprador.

 

Ocorre que, modernamente, tem sido praticado também o pacto de melhor vendedor. Noutras palavras, celebra-se a compra e venda e o comprador tem a possibilidade de desfazer esse contrato se, dentro de certo prazo, outro vendedor de bem similar lhe apresentar proposta mais vantajosa. Nesse caso, o vendedor original poderá ou não apresentar ao comprador vantagens iguais àquelas apresentadas por terceiro. Se o vendedor original não proceder assim, então o comprador, se quiser, desfará o contrato e realizará a compra e venda com o outro vendedor que lhe ofereceu melhores condições.

 

Essa prática de pacto de melhor vendedor é extremamente comum no comércio. Por exemplo, certa loja vende uma máquina de lavar com características determinadas, por certo preço e com condições de pagamento também especificadas. Nessa sua oferta de venda, inclui cláusula de melhor vendedor, facultando ao comprador que desfaça a compra e venda se, dentro de certo prazo, outra loja oferecer ao adquirente melhores condições de aquisição daquele produto. Se, de fato, o consumidor encontrar no mercado melhores condições para adquirir a máquina de lavar, o primeiro vendedor tende a cobrir a melhor oferta e manter a compra e venda já celebrada.

 

Nota-se a cláusula de melhor vendedor, em especial, em ofertas de contratação feitas por supermercados, lojas de eletrodomésticos, lojas de departamento, entre outras.

 

A disciplina da cláusula de melhor vendedor pode ser estruturada a partir dos arts. 1.158 a 1.162, do CC, aplicados ao caso novo por analogia, nos termos do art. 4º, da LICC.

 

Além disso, o Código Civil (art. 1.160) estabelece que a cláusula de melhor comprador (e, portanto, também a cláusula de melhor vendedor) somente pode ter por objeto a compra e venda de bens imóveis. Mas na vida prática não é isto o que se vê.

 

Por exemplo, nas operações de compra e venda de valores mobiliários, realizadas no âmbito do mercado financeiro, são extremamente comuns as cláusulas de melhor comprador ou de melhor vendedor. E observe-se que os valores mobiliários são legalmente considerados bens móveis (art. 48, do CC).

 

Por essas razões, o conceito a seguir apresentado abrangerá tanto a compra e venda de bens móveis como de bens imóveis.

 

( 2) Conceitos de pacto de melhor comprador e de pacto de melhor vendedor

 

Feitas as considerações gerais acima, pode-se agora examinar os conceitos de pacto de melhor comprador e de pacto de melhor vendedor.

 

(2.1) Conceito de pacto de melhor comprador

 

Pacto de melhor comprador é cláusula acessória de contrato de compra e venda, nele inserida com a finalidade de submeter os efeitos desse contrato a uma condição resolutiva consistente no fato futuro e incerto de, em certo prazo, terceiro oferecer ao vendedor maior vantagem pela aquisição do bem objeto do contrato, caso em que o vínculo contratual será resolvido se o comprador não oferecer iguais vantagens ao vendedor, ou se este não rejeitar a melhor oferta apresentada pelo terceiro.

 

O pacto de melhor comprador é acessório ao contrato de compra e venda. Sua finalidade é completamente dependente da existência, validade e eficácia do contrato principal. Sendo nulo ou anulável a compra e venda, a cláusula acessória será ineficaz, ainda que, em si mesma, não padeça de qualquer vício.

 

A cláusula de melhor comprador retrata uma condição resolutiva no contrato de compra e venda. O contrato existe, é válido e produz seus efeitos normais. O vendedor se despoja da propriedade do bem vendido. O comprador adquire a propriedade do bem objeto da compra e venda. O vendedor recebe o preço que lhe é pago pelo comprador, à vista ou no prazo convencionado. Todavia, o contrato de compra e venda se resolverá se, no prazo assinalado pelas partes, um terceiro apresentar ao vendedor melhor proposta para adquirir o bem. Se esse terceiro irá ou não surgir, e se apresentará ou não melhor oferta de aquisição do bem, são fatos futuros e incertos. Futuros porque, se acontecerem, serão posteriores à formação do contrato de compra e venda. Incertos porque é possível até que nem se verifiquem.

 

Se, efetivamente, surgir um terceiro adquirente, oferecendo ao vendedor melhores condições de negócio, caberá ao comprador decidir se cobrirá essa nova oferta ou não. Na hipótese de o comprador apresentar ao vendedor iguais condições de negócio, ou mesmo se o vendedor recusar a oferta melhor apresentada pelo terceiro, a compra e venda havida entre ambos deixará de se sujeitar à aludida condição resolutiva. Se o comprador não cobrir a melhor oferta, a compra e venda se resolverá. Mas, nesse caso, é evidente que o vendedor terá que contratar com o terceiro nas condições melhores, porque, se assim não proceder, deverá ressarcir os prejuízos que vier a causar ao primitivo comprador vítima da resolução contratual.

 

O conceito apresentado não limita o pacto de melhor comprador apenas aos contratos de compra e venda de bens imóveis. Como já foi anteriormente esclarecido, a prática contratual tem usado essa cláusula acessória também para os contratos de compra e venda de bens móveis, apesar da vedação expressa do art. 1.160, do CC, que será oportunamente analisada.

 

(2.2) Conceito de pacto de melhor vendedor

 

Pacto de melhor vendedor é cláusula acessória de contrato de compra e venda, nele inserida com a finalidade de submeter os efeitos desse contrato a uma condição resolutiva consistente no fato futuro e incerto de, em certo prazo, terceiro oferecer ao comprador maior vantagem pela aquisição do bem objeto do contrato, caso em que o vínculo contratual será resolvido se o vendedor não oferecer iguais vantagens ao comprador, ou se este não rejeitar a melhor oferta apresentada pelo terceiro.

 

Os comentários feitos ao conceito de pacto de melhor comprador são inteiramente válidos também aqui, fazendo-se, obviamente, a inversão de posições entre o vendedor e o comprador num e noutro conceito.

 

(3) Requisitos dos pactos de melhor comprador e de melhor vendedor

 

Os pactos de melhor comprador e de melhor vendedor precisam preencher certos requisitos, sem os quais não existirão, ou serão inválidos ou mesmo ineficazes. Os requisitos são os que seguem.

 

(1º) cláusula acessória do contrato de compra e venda

 

As cláusulas de melhor comprador ou de melhor vendedor são acessórias ao contrato de compra e venda. Sendo nulo ou anulável o contrato principal, a cláusula acessória será ineficaz, ainda que em si mesma seja existente e válida.

 

(2º) existência e validade da condição resolutiva

 

O contrato de compra e venda em que foi inserida a cláusula de melhor comprador, ou a de melhor vendedor, tem seus efeitos subordinados a uma condição resolutiva. Noutras palavras, o contrato poderá ser resolvido se terceiro oferecer melhores condições de aquisição, ou de venda, do bem objeto do contrato de compra e venda e se a parte interessada na manutenção do contrato não cobrir essa oferta melhor, assegurando ao contratante as mesmas vantagens oferecidas pelo terceiro.

 

Ora, a condição resolutiva, como qualquer condição, deve preencher os requisitos de existência e de validade previstos no art. 114 e seguintes, do CC.

 

Este requisito da condição resolutiva pode ser eliminado pelas partes do contrato de compra e venda em que consta a cláusula de melhor comprador, ou a de melhor vendedor. Deveras, ao invés de as partes preverem a resolução do contrato, podem, por exemplo, pactuar a revisão das condições do contrato. Assim, no caso da cláusula de melhor comprador, se um terceiro apresentar ao vendedor melhores condições para adquirir o bem vendido, podem – comprador e vendedor – estabelecer revisão do contrato (e não a sua resolução) de modo que o comprador seja obrigado a apresentar ao vendedor as mesmas condições de aquisição propostas pelo terceiro (art. 1.159, do CC).

 

Do mesmo modo, na hipótese da cláusula de melhor vendedor, as partes podem obstar a resolução do contrato e, então, estipular a revisão desse contrato, de maneira que o vendedor mantenha para o comprador as mesmas condições de venda ofertadas por um terceiro (art. 1.159, do CC).

 

(3º) fixação do prazo para a condição resolutiva e do prazo para o exercício da opção

 

Tanto o pacto de melhor comprador, como o de melhor vendedor, precisam estabelecer um prazo máximo, dentro do qual um terceiro apresentará, ou não, melhores condições de contratação.

 

Não se sabe se um terceiro apresentará ou não melhores condições de contratação. Mas, se o fizer, terá que fazê-lo dentro do prazo legal ou convencional estabelecido. Esgotado esse prazo, sem que melhor oferta de contratação tenha sido apresentada, ou, mesmo que apresentada, tendo sido a oferta rejeitada, o contrato de compra e venda se estabiliza e deixa de estar subordinado aos efeitos da condição resolutiva prevista (arts. 1.158 e 1.162, do CC).

 

Portanto, dentro do prazo para exercício da opção de melhor comprador ou de melhor vendedor, pode ocorrer o que segue:

 

(a) nenhum terceiro apresenta melhor proposta de compra, ou melhor proposta de venda, conforme o caso;

 

(b) um terceiro apresenta melhor proposta de compra e, então, o comprador a cobre, oferecendo iguais condições para o vendedor e mantendo o contrato de compra e venda já celebrado;

 

(c) um terceiro apresenta melhor oferta de compra, mas o vendedor a rejeita e mantém o contrato de compra e venda já celebrado;

 

(d) um terceiro apresenta melhor proposta de compra e, no entanto, o comprador não oferece ao vendedor idênticas condições, de modo que o contrato de compra e venda é resolvido;

 

(e) um terceiro apresenta melhor proposta de venda e, então, o vendedor a cobre, oferecendo iguais condições para o comprador e mantendo o contrato de compra e venda já celebrado;

 

(f) um terceiro apresenta melhor oferta de venda, mas o comprador a rejeita e mantém o contrato de compra e venda já celebrado;

 

(g) um terceiro apresenta melhor proposta de venda e, no entanto, o vendedor não oferece ao comprador idênticas condições, de modo que o contrato de compra e venda é resolvido.

 

As partes são livres para estabelecerem o prazo em que a condição resolutiva do contrato de compra e venda deverá ocorrer. Todavia, o art. 1.158, parágrafo único, do CC, determina que esse prazo não poderá exceder um ano, contado da data da celebração do contrato de compra e venda.

 

Não diz a lei se a disposição do art. 1.158, parágrafo único, é ou não supletiva, ou seja, se as partes podem ou não estabelecer prazo superior a um ano para as cláusulas de melhor comprador ou de melhor vendedor. A estrutura e a finalidade dessas cláusulas permitem concluir que o prazo máximo é mesmo o que consta da lei. Não fosse assim, a relação jurídica contratual permaneceria instável durante largo período de tempo, iludindo, talvez, terceiros de boa fé. É esta a razão, aliás, pela qual o mesmo dispositivo estabelece que o pacto de melhor comprador, ou o de melhor vendedor, só vale entre os contratantes da compra e venda. Esse pacto, portanto, não beneficia nem prejudica terceiros.

 

Resta saber, agora, se o prazo é decadencial ou não. Parece ser decadencial, já que o exercício do direito de aceitar a melhor condição de compra, ou a melhor condição de venda, não pressupõe, evidentemente, violação desses direitos. Não se trata, assim, de prazo prescricional. Sendo, ao que tudo indica, um prazo decadencial, não pode ser suspenso nem interrompido. Se o fato futuro e incerto a que se reporta a condição resolutiva não acontecer no prazo previsto, frustra-se a condição. Se, ao contrário, tal fato vier a acontecer dentro do prazo, a parte interessada na melhor condição de contratação deverá manifestar-se sem demora, dizendo se aceita ou não as condições melhores.

 

É bom esclarecer que o prazo máximo de um ano a que se refere o art. 1.158, parágrafo único, do CC, diz respeito à verificação ou não verificação da condição resolutiva. Verificada esta condição, é necessário especificar o prazo em que o contratante (o comprador ou o vendedor, conforme o caso) terá que exercer sua opção para manter ou não o contrato. O prazo para exercício dessa opção não foi definido na lei, de maneira que o contrato terá que prevê-lo.

 

(4º) bem objeto da compra e venda

 

O art. 1.160, do CC, proíbe a cláusula de melhor comprador (e, por conseguinte, a cláusula de melhor vendedor) em contrato de compra e venda que tenha por objeto bem móvel. A vedação tem explicação.

 

A propriedade dos bens móveis é transmitida e adquirida por meio da tradição. Feita a tradição, o adquirente terá o bem em seu poder e, assim, perante terceiros, será o aparente proprietário do bem móvel em questão. Esses terceiros não têm como aferir se tal propriedade sobre o bem móvel está ou não sujeita a uma condição resolutiva imposta pelo pacto de melhor comprador, ou pelo pacto de melhor vendedor. Por isto, para proteger esses terceiros, os arts. 1.158, parágrafo único e 1.160, do CC, dispõem no sentido de que o pacto de melhor comprador ( e também o de melhor vendedor) só valem entre as partes do contrato de compra e venda e não podem tem por objeto bens móveis.

 

No caso dos bens imóveis, a transmissão e a aquisição da propriedade deles é feita pela transcrição do título de domínio no cartório imobiliário competente. Por essa razão, qualquer terceiro poderá facilmente constatar a existência ou não de cláusula de melhor comprador, ou de melhor vendedor, no contrato de compra e venda levado a registro público.

 

Ora, apesar da expressa vedação do art. 1.160, do CC, não parece razoável entender que todo e qualquer contrato de compra e venda de bem móvel não poderá conter pacto de melhor comprador, ou pacto de melhor vendedor. Explica-se.

 

Em primeiro lugar, poder-se-ia celebrar um contrato de compra e venda de bem móvel, com pacto de melhor comprador, ou de melhor vendedor e, durante o prazo previsto para a verificação ou não verificação da condição resolutiva, não se faria a tradição do bem objeto da compra e venda. Estando tal bem em poder do vendedor e não do comprador, nenhum terceiro poderia ser prejudicado por ignorar a existência da referida cláusula acessória. O único risco seria o do comprador, que poderia perder o bem adquirido – mas não traditado – por ato de terceiro que, por exemplo, penhorasse aquele bem. Mas, nesse caso, o comprador disporia de vários instrumentos processuais para proteger o bem objeto de seu direito.

 

Em segundo lugar, há diversos bens móveis para os quais a lei criou um sistema de registros públicos. É o que ocorre, por exemplo, com os veículos automotores, com as ações e demais títulos emitidos por sociedade anônima. Nesses casos, a propriedade desses bens é tornada pública por meio do sistema registrário. Logo, não há motivo para vedar que, em relação a esses bens móveis, seja pactuada a opção de melhor compra ou a de melhor venda. Veja-se o caso específico das ações de sociedade anônima: a propriedade desses títulos só é transferida de um titular para ou adquirente mediante transcrição da operação no Livro de Registro de Ações Nominativas, que tem caráter público.

 

Por essas razões, a despeito da vedação do art. 1.160, do CC, é possível inserir pacto de melhor comprador, ou de melhor vendedor, em contratos de compra e venda de bens móveis cuja propriedade seja objeto de registro público, ou em que não ocorra a tradição do bem durante o prazo estabelecido para a verificação ou não verificação da condição resolutiva.

 

(4) Efeitos principais do pacto de melhor comprador e do pacto de melhor vendedor

 

De modo geral, foram examinados os efeitos mais relevantes dos pactos de melhor comprador e de melhor vendedor. Restam apenas dois casos dignos de exame.

 

(a) responsabilidade civil da parte que opta pela melhor condição contratual

 

O vendedor que aceitar a oferta de terceiro para vender o bem em melhores condições, ou o comprador que aceitar comprar bem ofertado por terceiro em condições contratuais mais vantajosas, darão causa à resolução de um contrato de compra e venda já celebrado e, portanto, existente, válido e eficaz.

 

Em atenção ao princípio da obrigatoriedade dos contratos, nenhuma das partes pode unilateralmente dissolver ou revisar o contrato celebrado. Sendo assim, o vendedor não pode burlar esse princípio da obrigatoriedade contratual, dizendo que aceita vender certo bem ao terceiro que – de boa fé ou não – apresentou-lhe melhores condições contratuais que o comprador original. Também o comprador não poderá desvencilhar-se do contrato já celebrado, alegando que prefere aceitar a melhor oferta de venda que um terceiro lhe apresentou. O pacto de melhor comprador, ou o de melhor vendedor, não podem ser usados para esse tipo de simulação ou de fraude.

 

Consequentemente, o vendedor que aceita melhores condições contratuais propostas por terceiro, ou o comprador que aceita melhores condições de venda apresentadas por terceiro, terão efetivamente que celebrar os contratos com esses terceiros. Se assim não procederem por justo motivo, terão fraudado a boa fé contratual da parte com quem contrataram anteriormente, e cujo contrato foi resolvido por força do pacto de melhor comprador ou pelo pacto de melhor vendedor.

 

Assim, a parte prejudicada poderá pleitear contra a outra, e até mesmo contra o terceiro proponente de melhores condições de contratação – se este agiu com má fé – plena indenização pelos danos sofridos (arts. 102 a 113, 159 e 1.056, do CC).

 

(b) direito de preferência do contratante

 

Quer se trate de pacto de melhor comprador, quer de pacto de melhor vendedor, é assegurado ao contratante ameaçado pela melhor oferta contratual o direito de manter o contrato. Esse contratante, em igualdade de condições com o terceiro ofertante de condições contratuais mais vantajosas, tem preferência para manter o contrato já celebrado (art. 1.161, do CC).

 

Trata-se de direito de preferência que tem por objetivo prestigiar o princípio da força obrigatória do contrato e também o princípio da permanência do contrato, fazendo com que o contrato já existente, válido e eficaz cumpra sua finalidade jurídica, ao invés de ser dissolvido e substituído por outro contrato.

 

(IV) PACTO COMISSÓRIO

 

 

O pacto comissório, ou cláusula resolutiva, já foi examinado no primeiro volume desta obra. Não há necessidade de reexaminá-lo novamente. Basta lembrar os seus traços genéricos.

 

O pacto comissório é cláusula acessória inserida em qualquer contrato, com a finalidade de possibilitar a resolução do vínculo contratual em caso de inadimplemento, culposo ou não, de qualquer das partes. Já foi visto que esse pacto comissório pode ser expresso ou tácito.

 

No caso específico da compra e venda, o pacto comissório está regulado no art. 1.163, do CC.

 

A cláusula resolutiva é expressamente inserida no contrato de compra e venda para possibilitar que o vendedor, à sua escolha, possa considerar resolvido o contrato de pleno direito se o comprador não pagar o preço na data convencionada.  Caso o vendedor prefira não resolver o contrato, poderá então exigir do comprador o pagamento do preço.

 

A opção do vendedor de resolver o contrato ou de pedir o preço ao comprador tem que ser exercida no prazo decadencial de dez dias, contado do inadimplemento da obrigação do comprador. Esgotado esse prazo sem que o credor decida-se pela cobrança do preço, o contrato estará automaticamente resolvido por força do disposto no art. 1.163, parágrafo único, do CC.

 

A regra do art. 1.163, parágrafo único, não é absoluta. Trata ela de um prazo decadencial, que pode ser alterado por vontade das partes, por sentença judicial ou mesmo por outra disposição de lei. Aliás, inúmeras leis especiais regulam a cláusula resolutiva em diversos contratos, dando a cada um tratamento diferenciado. É o que ocorre, por exemplo, nos contratos de locação, nos contratos de alienação fiduciária em garantia, nos contratos de compromisso de compra e venda de imóveis, apenas para citar os mais comuns.

 

A lei (art. 1.163, do CC) não diz, mas é certo que o pacto comissório também pode ser instituído em favor do comprador, sempre que este tiver que receber o bem adquirido em prazo especificado no contrato. Se o vendedor não entregar o bem objeto da compra e venda, poderá o comprador, à sua escolha, exigir a entrega desse bem ou considerar resolvido o contrato.

 

Obviamente, a parte que der causa à resolução do contrato (quer seja o comprador que não paga o preço ou o vendedor que não entrega o bem) terá responsabilidade civil contratual em face da parte prejudicada.

 

 

(V) VENDA A CONTENTO

 

 

 (1) Generalidades sobre a compra e venda a contento

 

A compra e venda a contento está regulada nos arts. 1.144 a 1.148, do CC, mas dela também cuida o art. 1.135, do mesmo Código e, ainda, o art. 201, do CComl.

 

A compra e venda a contento é a que tem por objeto bens que precisam ser conferidos pelo comprador, tais como os gêneros que exigem medição, contagem, pesagem, experimentação. De modo geral, o ato de conferência do objeto da compra e venda é feito à vista de amostras, caso em que se aplica o art. 1.135, do CC, ou o art. 210, do CComl., conforme necessário. Mas é importante esclarecer que nem toda compra e venda a contento é simultaneamente uma compra e venda à vista de amostras.

 

A compra e venda à vista de amostras ocorre em casos em que o vendedor apresenta ao comprador elementos representativos do objeto total do contrato. Não havendo possibilidade de o comprador examinar todas as unidades ou o todo do objeto contratual, examina-o em parte, por amostragem. Nesses casos, o vendedor garante ao comprador que o objeto do contrato de compra e venda apresenta, no seu todo, as mesmas qualidades essenciais da amostra do bem.

 

Já na hipótese da compra e venda a contento, o comprador efetivamente deve conferir o objeto que adquiriu. O procedimento de conferência deve abranger a totalidade do bem e não apenas amostra dele. Pesa-se, mede-se, conta-se ou experimenta-se o objeto todo da compra e venda. Se o comprador assim não proceder, a lei (arts. 1.144 a 1.148, do CC) presume que a conferência tenha sido realizada. A lei toma em consideração determinados comportamentos do comprador para, a partir deles, estabelecer a presunção de que a conferência foi realizada normalmente.

 

É interessante observar que a compra e venda a contento é celebrada condicionalmente. Admite-se que a condição seja suspensiva ou resolutiva e, conforme se trate de uma ou de outra espécie de condição, os efeitos do contrato de compra e venda a contento serão muito diferentes.

 

Cabe então examinar essa modalidade de compra e venda condicional.

 

(2) Conceito de compra e venda a contento

 

Compra e venda a contento é o contrato por meio do qual o comprador adquire do vendedor bens que precisam ser conferidos em certo prazo, sob a condição de que, não apresentando esses bens as características prometidas, o contrato não produza efeitos.

 

O conceito de condição já é conhecido (arts. 114 e seguintes, do CC). Condição é elemento acidental do ato jurídico. A condição é agregada ao ato jurídico por vontade das partes. A condição subordina os efeitos do ato jurídico a um evento futuro e incerto. Não é o ato em si mesmo que está subordinado a esse acontecimento futuro e incerto, mas os efeitos do ato. O ato jurídico existe e é válido, mas os seus efeitos estão vinculados a um evento incerto e necessariamente futuro.

 

A condição apresenta basicamente duas espécies, a saber, a condição suspensiva e a condição resolutiva.

 

O ato  jurídico praticado sob condição suspensiva é existente e válido, mas não produz qualquer efeito. O evento futuro e incerto a que se refere a condição suspensiva pode ser positivo ou negativo. As partes podem estabelecer que se determinado evento futuro e incerto ocorrer, o ato jurídico que praticaram passará a produzir seus efeitos. É o que se denomina condição suspensiva positiva, porque o ato somente será eficaz se o fato futuro e incerto realmente acontecer. Mas as partes também podem estabelecer que o ato jurídico que praticaram somente produzirá efeitos se determinado evento futuro e incerto não acontecer. Esta é a condição suspensiva negativo, pois o ato será eficaz apenas se o fato futuro e incerto referido pelas partes não se verificar.

 

No contrato de compra e venda celebrado sob condição suspensiva, os efeitos do contrato ficam paralisados até que a condição se verifique (se positiva) ou não se verifique (se negativa). Portanto, pendente ainda a condição suspensiva, o vendedor não perde a propriedade do bem objeto da compra e venda. Por outro lado, o comprador não adquire a propriedade desse bem. Igualmente, enquanto pender a condição suspensiva, o comprador não tem que pagar o preço ao vendedor, nem este poderá exigir o pagamento do preço. Em síntese, na compra e venda sob condição suspensiva, o comprador tem mera expectativa de direito de adquirir o bem, ao passo que o vendedor tem simples expectativa de direito de receber o preço. Consequentemente, os riscos incidentes sobre o preço, ou os riscos sobre o objeto da compra e venda, correm por conta de seus respectivos titulares, ou seja, o comprador corre os riscos sobre o preço; o vendedor corre os riscos sobre a coisa.

 

A situação é diferente quando a compra e venda é celebrada sob condição resolutiva. O contrato celebrado sob condição resolutiva existe, é válido e é eficaz. Produz seus efeitos normais. Todavia, os efeitos do ato desaparecerão se a condição resolutiva ocorrer, ou esses efeitos se estabilizarão se a condição resolutiva definitivamente não puder ocorrer. Por isto, também a condição resolutiva pode ser positiva ou negativa. As partes podem celebrar o contrato de compra e venda sujeito a condição resolutiva positiva, estabelecendo que o contrato produzirá efeitos normais até o instante em que, efetivamente, determinado evento futuro e incerto vier a acontecer. Verificado tal evento, os efeitos do contrato serão paralisados. Também é possível que as partes celebrem o contrato de compra e venda sob condição resolutiva negativa, ou seja, podem prever que o contrato será eficaz se – e somente se – determinado evento futuro e incerto não acontecer.

 

Celebrado o contrato de compra e venda sob condição resolutiva (positiva ou negativa), o contrato produz efeitos normais. O vendedor transfere ao comprador a propriedade do bem vendido. O comprador transmite ao vendedor a propriedade do preço. Definida a verificação (condição positiva) ou não verificação (condição negativa) do evento futuro e incerto, os efeitos do contrato de compra e venda serão paralisados porque o contrato será resolvido. O vendedor terá que devolver o preço ao comprador. Por seu turno, o comprador haverá de devolver ao vendedor o bem objeto da compra e venda.

 

Se a condição resolutiva se frustrar, o contrato de compra e venda se estabilizará e não mais será resolvido por esse motivo. A condição resolutiva positiva se frustra quando se pode afirmar que o evento futuro e incerto não mais poderá ocorrer, de modo que os efeitos do contrato não poderão ser paralisados em decorrência desse fato que poderia ter ocorrido mas não ocorreu. Já a condição resolutiva negativa se frustra quando se sabe, definitivamente, que aconteceu ou acontecerá, com certeza, o fato que não poderia ocorrer, mas ocorreu ou certamente ocorrerá.

 

Feita essa breve revisão da figura da condição, pode-se retornar ao ponto essencial da presente análise, que é o conceito da compra e venda a contento.

 

Na compra e venda a contento, o objeto do contrato é bem que precisa ser conferido pelo comprador. O adquirente deve medir, pesar, examinar, experimentar, testar e, enfim, conferir o bem que comprou. Somente se o bem apresentar as características prometidas pelo vendedor é que o contrato de compra e venda a contento será mantido. Noutros termos, se o bem não apresentar o peso, a medida, as qualidades prometidas, o comprador poderá rejeitá-lo.

 

O contrato de compra e venda a contento pode ser celebrado sob condição suspensiva, de maneira que, embora o vínculo contratual seja existente e válido, nenhum efeito dele decorrerá enquanto o comprador não terminar a conferência do bem adquirido. Isto quer dizer que a propriedade do bem continua sendo do vendedor, que haverá de suportar os riscos incidentes sobre esse bem. Por outro lado, o comprador não terá que pagar o preço enquanto não concluir os procedimentos de conferência do bem, razão pela qual haverá de suportar os riscos sobre o preço.

 

Assim, imagine-se a situação de uma loja de eletrodomésticos que adquire do fabricante um lote de mil televisores. Se tal compra e venda for realizada a contento, sob condição suspensiva, tal contrato será ineficaz enquanto o lojista não terminar de conferir cada um dos mil televisores adquiridos. O lojista deve certificar-se de que cada unidade corresponde às características dos televisores que deseja adquirir daquele fabricante. Após a conferência – real ou presumida – o lojista, se contente, se satisfeito, declarará que o vendedor cumpriu sua obrigação e, então, efetuará o pagamento do preço devido a esse vendedor. Sendo insatisfatória a conferência, o lojista poderá rejeitar os televisores, resolvendo o contrato, ou poderá pedir a substituição do bem por outros que apresentem as características desejadas.

 

Essas mesmas regras aplicam-se a qualquer contrato de compra e venda celebrado sob condição suspensiva em que o comprador tenha que conferir o bem adquirido.

 

Como já foi explicado anteriormente, é possível que a compra e venda a contento seja celebrada sob condição resolutiva. Nesse caso, o contrato é existente, válido e eficaz. Isto quer dizer que o comprador adquire a propriedade do bem objeto da compra e venda e que, por outro lado, o vendedor pode exigir o pagamento do preço. Mas a eficácia contratual está subordinada à condição resolutiva de que o bem adquirido apresente as características prometidas pelo vendedor. Assim, o comprador realizará o procedimento de conferência do bem e, se ficar satisfeito, se ficar contente, a compra e venda estará estabilizada. Caso contrário, a compra e venda será desfeita. Se o contrato for resolvido, o comprador devolverá ao vendedor a propriedade do bem e, de sua parte, o vendedor restituirá ao comprador o preço recebido.

 

Tome-se novamente o exemplo do lojista que adquiriu, sob condição resolutiva, mil televisores de certo fabricante. O lojista, ao receber os televisores, torna-se proprietário deles. O fabricante, por sua vez, pode exigir o pagamento do preço. Mas os efeitos desse contrato de compra e venda a contento sob condição resolutiva estão subordinados ao fato de que, verdadeiramente, os televisores apresentem as características prometidas pelo fabricante. Se os televisores apresentarem as características prometidas, o contrato tornar-se-á estável, não mais podendo ser resolvido por esse motivo. Todavia, se as características dos televisores forem diferentes das prometidas, o comprador poderá devolvê-los ao vendedor e, além disso, poderá pedir a devolução do preço que pagou.

 

O comprador precisa conferir o bem em prazo certo. O prazo pode ser fixado pelos próprios contratantes, por terceiro, por decisão judicial ou mesmo pela lei.

 

(3) Requisitos da compra e venda a contento

 

A compra e venda a contento exige vários requisitos, sem os quais não se caracteriza. Os requisitos essenciais são os seguintes.

 

(1º) previsão expressa da condição subordinante do contrato

 

A condição tem que decorrer necessariamente da vontade das partes (art. 117, do CC). Não se admite condição que dependa do arbítrio de apenas uma das partes (art. 115, do CC).

 

É preciso, por conseguinte, a inserção expressa de cláusula condicional no contrato de compra e venda a contento. Não estando expressa no contrato essa cláusula, o contrato de compra e venda será simples e não condicional. Há que se lembrar que a condição é elemento não essencial do ato jurídico, de modo que o ato pode ser praticado sem a condição. Para que a condição seja agregada ao ato jurídico, necessária previsão expressa pelas partes.

 

A compra e venda a contento é, em geral, celebrada sob condição suspensiva (art. 1.144, do CC). Se as partes quiserem que tal modalidade de compra e venda seja celebrada sob condição resolutiva, deverão prever expressamente essa circunstância (art. 1.144, do CC).

 

(2º) bem que exija conferência

 

O objeto do contrato de compra e venda a contento tem que ser bem suscetível de conferência e, mais ainda, que exija essa conferência (art. 1.144, parágrafo único, do CC). São em geral os bens que exigem medição, pesagem, experimentação, testagem e, enfim, exame específico. Cabe ao comprador realizar a conferência do bem. Se for negligente e não adotar os procedimentos necessários à conferência, a lei levará em conta certos comportamentos do comprador e presumirá que a conferência foi feita satisfatoriamente, a contento.

 

 

 

(3º) prazo para a conferência

 

As partes devem estabelecer o prazo dentro do qual o comprador deverá realizar a conferência do bem objeto da compra e venda a contento. Essa é a situação mais normal.

 

É possível, também que as partes atribuam a um terceiro a obrigação de conferir o bem, caso em que esse terceiro terá que realizar a conferência no prazo assinalado pelas partes, ou no prazo usual, costumeiro. É o que acontece, por exemplo, em vários contratos internacionais de compra e venda em os contratantes, ou só o comprador, designam terceiro para conferir a mercadoria no ato de embarque ou de desembarque. Não havendo prazo estipulado pelas partes, o terceiro incumbido da conferência do bem realizará essa atividade nos prazos normais praticados no porto, aeroporto ou estação em que o bem se encontrar.

 

Outras vezes, ainda, o prazo dentro do qual a conferência do bem adquirido deve se realizar é fixado pela lei. Por exemplo, de acordo com o Código do Consumidor, no contrato de compra e venda que tenha por objeto bem que deva ser pesado, medido, ou conferido, e em que o consumidor constate divergência entre o que foi prometido pelo vendedor e o que foi efetivamente conferido, pesado ou medido, poderá o consumidor, a seu critério, escolher qualquer das alternativas que a lei lhe oferece no art. 18, do CDC. Mas as eventuais reclamações do consumidor deverão ser formuladas nos prazo referidos no art. 26, também do CDC.

 

Finalmente, há casos em que o prazo para a realização da conferência do bem objeto de compra e venda a contento tem que ser fixado judicialmente. A atividade de conferência desse bem é ônus legal imposto ao comprador. Se esse comprador não realizar a conferência, terá que suportar o ônus decorrente da presunção legal de que o bem apresenta as características prometidas pelo vendedor. Não havendo prazo fixado, o vendedor poderá intimar judicialmente o comprador para que realize a conferência no prazo então indicado pelo vendedor (art. 1.147, do CC). Não sendo atendida a intimação, ou seja, não sendo realizada a conferência no prazo assinalado pelo vendedor, a compra e venda a contento será considerada perfeita e passará a produzir efeitos normais.

 

Quer se trate de prazo fixado por ambas as partes, por terceiro, pela lei ou ainda judicialmente, o comprador tem o ônus de realizar, dentro do referido prazo, a conferência do bem objeto da compra e venda a contento. Se o comprador deixar de realizar a conferência no prazo especificado, a lei presumirá que o bem apresenta as características mencionadas pelo vendedor e, assim, o contrato de compra e venda a contento tornar-se-á indiscutível e não mais sujeito a condição resolutiva ou suspensiva (art. 1.146, do CC).

 

(4) Efeitos da compra e venda a contento

 

Já foram suficientemente examinados os efeitos da compra e venda a contento, especialmente aqueles relacionados com as condições suspensiva ou resolutiva a que o mesmo contrato está subordinado. Há, porém, alguns efeitos complementares que merecem referência.

 

(1º) comprador como comodatário do bem

 

O comodato é espécie do gênero contratos de empréstimo. Comodato é o contrato real de empréstimo gratuito de bens infungíveis (art. 1.248, do CC).

 

Celebrado um contrato de compra e venda a contento sob condição suspensiva, o comprador, ao receber o bem, não se torna proprietário dele, pois os efeitos desse contrato estão subordinados à condição suspensiva. Sendo assim, o referido comprador recebe o bem na qualidade de comodatário, ou seja, a título de empréstimo. Esse comprador terá que restituir o mesmo bem ao vendedor se a condição suspensiva obstar definitivamente a eficácia do contrato de compra e venda a contento (art. 1.145, do CC).

(2º) direitos pessoais das partes

 

O contrato de compra e venda é consensual e não real. Estabelece entre as partes direitos e obrigações pessoais. Já foi examinado que os atos de pagamento do preço e de entrega do bem vendido não são atos de formação do contrato de compra e venda, mas sim atos de execução, de cumprimento desse contrato.

 

Portanto, a compra e venda a contento também gera para as partes apenas direitos e obrigações de natureza pessoal (art. 1.148, do CC). O ato de entrega do bem a ser conferido, e o ato de pagamento do preço, são atos de execução do contrato e estão subordinados à condição suspensiva ou à condição resolutiva estabelecida pelas partes.

 

(3º) aplicação dos princípios gerais da teoria contratual

 

Toda e qualquer contratação deve atender aos princípios da autonomia da vontade contratual, da boa fé e lealdade negocial, da obrigatoriedade dos contratos e da permanência dos contratos.

 

Em atenção a todos esses princípios, deve-se procurar, tanto quanto possível, fazer com que o contrato de compra e venda a contento cumpra sua finalidade, seu resultado jurídico. Assim, se o bem entregue pelo vendedor ao comprador não apresentar as características prometidas, deve-se evitar a simples resolução do contrato. Ao contrário, deve-se investigar se é ou não possível a substituição do bem por outro que corresponda às características prometidas; deve-se averiguar se é possível completar o peso, a medida, a característica que se constatou faltar ao bem. Deve-se, ainda, verificar se interessa ao comprador ficar com o bem, obtendo abatimento do preço. Somente se todas essas alternativas se mostrarem inviáveis é que o contrato deverá ser resolvido.

 

Na verdade, a própria lei estabelece esses mecanismos protetores da relação contratual, como se vê na disciplina dos vícios redibitórios, ou no art. 1.136, e em muitos outros dispositivos legais.

 

Daí porque é conveniente que as partes, ao celebrarem o contrato de compra e venda a contento, não se limitem a simplesmente prever a condição resolutiva ou suspensiva a que se subordina tal contrato. Devem as partes regular, em atenção ao princípio da autonomia da vontade que a lei lhes reconhece, as melhores alternativas para que a compra e venda a contento cumpra satisfatoriamente o seu resultado. Ninguém é melhor do que as partes para disciplinar seus interesses contratuais, nos limites em que a lei lhes permite isto.

 

Entretanto, se as partes não disciplinarem convenientemente mecanismos alternativos de manutenção do contrato de compra e venda a contento, sempre será possível ao juiz tentar manter esse contrato mediante aplicação subsidiária das regras atinentes aos vícios redibitórios e das regras das obrigações em geral.

 

 

(VI) COMPRA E VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO

 

 

(1) Generalidades sobre a compra e venda com reserva de domínio

 

Celebrado um contrato de compra e venda, o vendedor assume a obrigação de transmitir ao comprador a propriedade do bem vendido. A título de contraprestação, a comprador obriga-se a transmitir ao vendedor a propriedade do  preço em dinheiro (ou de título equivalente a esse preço). O pagamento de cada uma dessas obrigações não é ato de formação do contrato de compra e venda, mas sim ato de execução desse contrato.

 

Tratando-se de contrato de compra e venda a vista, o comprador deve cumprir em primeiro lugar a sua obrigação. Assim, compete ao comprador cumprir sua obrigação de pagar o preço para, depois disso, o vendedor entregar ao comprador o bem objeto da compra e venda (art. 1.130, do CC).

 

Quando a compra e venda for a prazo, inverte-se a ordem de cumprimento das obrigações contratuais do vendedor e do comprador. Na compra e venda a prazo, o vendedor tem que cumprir sua obrigação em primeiro lugar, entregando ao comprador o bem objeto do contrato. Depois de haver recebido o bem, competirá ao comprador pagar o preço ao vendedor (art. 1.130, do CC).

 

A compra e venda com reserva de domínio é modalidade especial desse contrato porque altera a regra do art. 1.130, do CC, para a compra e venda a prazo.

 

Por meio do contrato de compra e venda com reserva de domínio, o vendedor vende ao comprador certo bem, mas somente receberá o preço no prazo convencionado. Com o propósito de se resguardar contra eventual inadimplemento do comprador, as partes inserem no contrato a cláusula de reserva de domínio. De acordo com a cláusula de reserva de domínio, o vendedor retém para si a propriedade do bem vendido, que somente será entregue ao comprador depois que este efetivamente pagar o preço devido ao vendedor. Assim, se o comprador deixar de pagar o preço, o vendedor poderá resolver o contrato sem precisar reivindicar o bem vendido das mãos do comprador.

 

Em síntese, a cláusula de reserva de domínio funciona como mecanismo de garantia para o vendedor, pois ele só transmitirá a propriedade do bem para o comprador depois de haver recebido integralmente o preço devido.

 

(2) Conceito de compra e venda com reserva de domínio

 

Reserva de domínio é cláusula acessória de compra e venda a prazo, em decorrência da qual o vendedor reserva-se o direito de só transmitir ao comprador o domínio do bem objeto do contrato depois de haver recebido integralmente o preço convencionado.

 

Se o comprador não pagar o preço, o vendedor não estará obrigado a entregar-lhe o bem objeto da compra e venda. Nessas circunstâncias, esvazia-se, por culpa do comprador, o conteúdo do contrato de compra e venda que, por isto mesmo, terá que ser resolvido.

 

(3) Requisitos da compra e venda com reserva de domínio

 

O contrato de compra e venda com reserva de domínio tem que preencher estes requisitos:

 

(1º) compra e venda a prazo

 

A cláusula de reserva de domínio só é cabível nos contratos de compra e venda a prazo. Cuidando-se de compra e venda à vista, prevalece a regra do art. 1.130, do CC, de acordo com a qual o comprador deve pagar o preço em primeiro lugar para, depois disso, receber o bem vendido.

 

(2º) previsão expressa da cláusula de reserva de domínio

 

Se a compra e venda é a prazo, há que se aplicar a regra do art. 1.130, do CC, a saber, o vendedor tem que entregar ao comprador o bem objeto do contrato e, só depois de cumprir essa sua obrigação em primeiro lugar, poderá o vendedor exigir o pagamento do preço. Ora, a cláusula de reserva de domínio destina-se exatamente a modificar essa regra do art. 1.130, do CC. Daí porque a cláusula de reserva de domínio tem que estar expressamente prevista no contrato.

 

Pactuada a cláusula de reserva de domínio, o comprador terá que pagar o preço em primeiro lugar para, depois disto, poder exigir a entrega do bem cujo domínio quer adquirir.

 

CONTRATO DE TROCA OU PERMUTA

 

 

(1) Generalidades sobre o contrato de troca ou permuta

 

Historicamente, o contrato de troca precedeu o contrato de compra e venda. Foi visto que no contrato de compra e venda o comprador deve pagar ao vendedor preço fixado em dinheiro. A moeda apareceu muito tardiamente nas sociedades antigas, de modo que, em lugar dela, os contratantes davam outros bens como pagamento. Nessas circunstâncias, cada parte transferia à outra a propriedade de um bem, cujos valores eram equivalentes entre si. Trocava-se a propriedade de trigo pela propriedade de cavalos. Trocava-se a propriedade de cevada pela propriedade de ferramentas. Trocava-se um bem por outro de valor correspondente.

 

Consequentemente, o contrato de troca, também denominado de permuta ou de escambo, é aquele em que um contratante transfere ao outro a propriedade de certo bem e, a título de contraprestação, o primeiro contratante recebe deste segundo a propriedade de outro bem, cujo valor é equivalente àquele primeiro objeto.

 

Por essas razões, o contrato de troca é muitíssimo semelhante ao contrato de compra e venda. A única diferença relevante entre esses dois contratos é a de que, na compra e venda, o preço do bem vendido é expresso em dinheiro. Já no caso do contrato de troca, sequer é necessário declarar os valores dos bens trocados.

 

De qualquer modo, em decorrência da semelhança estrutural entre o contrato de troca e o de compra e venda, manda a lei que sejam aplicadas ao contrato de troca as mesmas disposições legais que regulam o contrato de compra e venda (art. 1.164, do CC).

 

(2) Conceito do contrato de troca

 

Troca, permuta ou escambo é o contrato consensual, oneroso e de efeitos bilaterais, pelo qual um dos contratantes obriga-se a transferir para o outro contratante a propriedade um bem, material ou imaterial, e em que este segundo contratante, por sua vez, obriga-se a transferir àquele primeiro, a título de contraprestação, a propriedade de um outro bem, material ou imaterial, mas que não seja dinheiro, de valor equivalente ao valor do bem que recebeu.

 

Nota-se que, ao contrário do que se verifica no contrato de compra e venda, não se exige que no contrato de troca sejam declarados em dinheiro os valores dos bens trocados. Basta apenas que, a critério das partes, os valores desses bens sejam mais ou menos equivalentes entre si.

 

O contrato de troca, como o de compra e venda, é meramente consensual e não real. Os atos dos contratantes de entregarem – um ao outro – os bens objeto de troca são atos de cumprimento de suas respectivas obrigações contratuais. Não são atos de formação do contrato.

 

O contrato de troca é oneroso. Cada contratante tem o direito de exigir que o outro contratante lhe entregue o bem prometido, mas, do mesmo modo, cada contratante tem obrigação de entregar ao outro o bem que prometeu trocar.

 

Os efeitos do contrato de troca são bilaterais, pois cada um dos contratantes tem, simultaneamente, direitos e obrigações em face do outro contratante.

 

 

(3) Requisitos do contrato de troca

 

Os requisitos exigidos para a formação, validade e eficácia do contrato de troca são exatamente os mesmos requisitos exigidos para o contrato de compra e venda, com as seguintes ressalvas:

 

(1ª) declarações de vontade de trocar bens

 

No contrato de compra e venda, o vendedor deve declarar sua vontade contratual de vender o bem por certo preço, ao passo que o comprador deve declarar sua vontade contratual de adquirir o mesmo bem pelo citado preço.

 

No contrato de troca, no entanto, inexiste fixação de preço em dinheiro. Por essa razão, cada contratante deve declarar sua vontade contratual de transferir ao outro contratante a propriedade de certo bem, exigindo que esse outro contratante a quem o bem será transferido, por sua vez,  também transfira à outra parte a propriedade de outro bem, de valor equivalente ao valor do bem que recebeu.

 

Em resumo, no contrato de compra e venda substitui-se a propriedade de um bem por seu valor em dinheiro. Já no contrato de troca, substitui-se a propriedade de um bem pela propriedade de outro bem de valor correspondente e que não seja dinheiro.

 

(2ª) objeto do contrato de troca

 

Como foi dito acima, o contrato de compra e venda as partes transferem entre si a propriedade de dois bens, a saber: (a) o vendedor transfere ao comprador a propriedade do bem vendido; e (b) o comprador transfere ao vendedor a propriedade do dinheiro correspondente ao preço do bem vendido.

 

No contrato de troca não ocorre a substituição da propriedade de um bem por seu equivalente em dinheiro. Troca-se a propriedade de um bem pela propriedade de outro bem, diverso de dinheiro.

 

Portanto, no contrato de troca os dois objetos são bens diferentes de dinheiro, embora devam ter valores correspondentes um em relação ao outro.

 

(4) Efeitos principais do contrato de troca

 

O contrato de troca é regulado pelas mesmas disposições legais aplicáveis ao contrato de compra e venda, como já foi esclarecido. Por isto, os efeitos decorrentes do contrato de troca são os mesmos que se verificam no caso da compra e venda (art. 1.164, do CC).

 

Todavia, o art. 1.164, do CC, estabeleceu duas regras especiais para o contrato de troca, a saber:

 

(1ª) repartição das despesas do contrato de troca

 

As despesas decorrentes da celebração do contrato de troca devem ser divididas igualitariamente entre os contratantes. Todavia, a lei admite que os próprios interessados disponham de modo diferente no contrato (art. 1.164, I, do CC).

 

(2ª) troca entre ascendentes e descendentes

 

O art. 1.132, do CC, proíbe que os ascendentes vendam um bem a um de seus descendentes sem que, expressamente, os demais descendentes concordem com tal contrato. As razões dessa vedação legal já foram detalhadamente examinadas durante a análise do contrato de compra e venda. A finalidade da norma proibitiva é a de impedir que os descendentes que não contrataram com os ascendentes sejam prejudicados nos seus direitos hereditários, especialmente no que concerne à legítima hereditária.

 

Agora, no caso do contrato de troca, o art. 1.164, II, do CC, estabelece regra proibitiva semelhante àquela contida no art. 1.132, do CC.

 

Não se admite, por conseguinte, que ascendentes e descendentes troquem entre si bens com valores desiguais, a não ser que os demais descendentes interessados nesse contrato concordem com tal negócio jurídico. Evidentemente, esses outros descendentes só irão concordar com a troca em exame se esse contrato não lhes for prejudicar os direitos hereditários.

 

Em síntese, as regras proibitivas do art. 1.132 e do art. 1.164, II, do CC, têm o mesmo fundamento jurídico, que é a proteção dos interesses hereditários dos descendentes que não houverem anuído na celebração do contrato de compra e venda, ou no contrato de troca.

 

Celebrado o contrato de troca em desacordo com o art. 1.164, II, do CC, tal contrato será nulo.

 

 CONTRATO DE DOAÇÃO

 

 

(1) Generalidades sobre o contrato de doação

 

O contrato de doação tem sua estrutura geral regulada pelos arts. 1.165 a 1.187, do CC. Esse contrato pertence à categoria mais ampla dos contratos de alienação de domínio, juntamente com a compra e venda, a troca, a alienação fiduciária, entre outros.

 

Por meio do contrato de doação, uma pessoa (doador) transfere gratuitamente a outra pessoa (donatário) a propriedade de um bem, móvel ou imóvel. O doador retira de seu patrimônio a propriedade do bem doado e a transmite ao patrimônio do donatário. A doação diminui o patrimônio do doador e aumenta o patrimônio do donatário. Apesar disto, o donatário não deve qualquer contraprestação ao doador, ou seja, este não pode exigir do donatário nenhum bem cujo valor seja equivalente ao valor do bem doado. Por essas razões, o contrato de doação é chamado de benéfico ou gratuito,  porque reflete um ato de liberalidade patrimonial praticado pelo doador em favor do donatário.

 

O contrato de doação normalmente é puro e simples, vale dizer, não acarreta para o donatário qualquer ônus em face do doador. No entanto, existe também a doação com encargo, na qual o doador impõe ao donatário um certo ônus. Nesse caso, caberá ao donatário avaliar se lhe interessa ou não aceitar a doação onerosa. Se vier a aceitá-la, terá que satisfazer o ônus ou encargo determinado pelo doador. Observe-se, todavia, que o ônus imposto pelo doador jamais poderá ter caráter de contraprestação. As diferenças entre doação simples e doação com encargo serão examinadas no item nº 4, adiante.

 

(2) Conceito de contrato de doação

 

Doação é o contrato típico, consensual unilateral e gratuito por meio do qual uma pessoa (doador), por mera liberalidade, transfere a outra pessoa (donatário) a propriedade de um bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial, sem direito a qualquer contraprestação por parte do donatário (arts. 1.165 e 1.166, do CC).

 

A doação é um contrato típico. Está regulada nos arts. 1.165 a 1.187, do CC, em que se pode encontrar seu conceito, elementos constitutivos e efeitos genéricos. Entretanto, vários outros dispositivos legais cuidam da doação, quer no próprio Código Civil, quer em legislação extravagante ao diploma codificado.

 

Como todo e qualquer contrato, também a doação exige pelo menos duas declarações de vontade para se formar. O doador precisa declarar sua vontade contratual de doar o bem, vale dizer, vontade de retirar o bem doado de seu patrimônio e de transferir esse mesmo bem, a título de propridade, para o patrimônio do donatário. Por sua vez, o donatário há de declarar sua vontade contratual de aceitar a doação, isto é, de concordar que o bem doado seja incorporado ao seu patrimônio a título de propriedade.

 

A contratação da doação é meramente consensual. O contrato forma-se mediante acordo de vontades entre doador e donatário a respeito do bem a ser doado. O ato de entrega do bem doado não é ato de formação do contrato de doação, mas verdadeiro ato de execução desse contrato. O doador entrega ao donatário o bem doado exatamente porque este último já aceitou a doação, ou seja, ao entregar o bem doado o doador está executando, cumprindo, realizando sua obrigação de dar coisa certa, da qual é credor o donatário.

 

O contrato de doação é unilateral, como se disse. O doador tem apenas obrigação em decorrência desse contrato, não podendo exigir do donatário qualquer contraprestação. De sua parte, o donatário somente tem direitos oriundos do contrato de doação, não sendo obrigado a dar nenhuma contraprestação ao doador. Observe-se que mesmo que a doação seja feita com encargo a ser suportado pelo donatário, ainda assim o contrato é unilateral, porque o encargo não se confunde com contraprestação obrigacional. O encargo envolve uma relação de custo benefício para o sujeito que se encontra numa dada situação jurídica. Esse sujeito deseja obter uma vantagem jurídica mas, para consegui-la, tem que suportar um sacrifício, uma desvantagem jurídica. Entretanto, ao contrastar as vantagens a que almeja e os sacrifícios necessários para obtê-las, o sujeito constata que aquelas vantagens são mais significativas que os sacrifícios e, então, decide-se por suportar o ônus ou encargo. Tais desvantagens ou sacrifícios, contudo, não podem ser de tal monta que assumam o caráter de prestação obrigacional a ser cumprida pelo sujeito que persegue a já aludida vantagem jurídica.

 

Assim, por exemplo, se o doador oferece em doação para o donatário um imóvel no valor de R$ 50.000,00 e impõe a esse donatário, em primeiro lugar, o encargo de suportar o usufruto vitalício do doador sobre o imóvel doado e, em segundo lugar, o encargo de que o donatário realize no mesmo imóvel uma reforma cujo valor é de pelo menos R$ 40.000,00, não se tem aí uma verdadeira doação com encargo. Nesse caso, o ônus imposto ao donatário tem caráter de contraprestação. O doador terá doado o imóvel por R$ 50.000,00, mas terá o direito de usufruir um imóvel cujo valor elevou-se para pelo menos R$ 90.000,00 (computado o valor da reforma). Tudo indica tratar-se não de uma doação onerosa, mas de uma troca de bem por serviços de valores semelhantes.

 

O contrato de doação, em geral, é gratuito, também denominado benéfico. Isto porque somente o doador tem desvantagens decorrentes do contrato. O donatário só tem benefícios decorrentes da doação, já que não deve ao doador nenhuma obrigação ou encargo.

 

O bem objeto da doação pode ser móvel ou imóvel, material ou imaterial. Qualquer que seja sua espécie, será retirado do patrimônio do doador e, a título de propriedade, será integrado ao patrimônio do donatário.

 

(3) Requisitos do contrato de doação

 

O contrato de doação insere-se na categoria dos contratos de alienação de domínio. Por esse motivo, muitos dos aspectos já examinados na ocasião em que foi apresentado o contrato de compra e venda são também encontrados no contrato de doação. Vários dos comentários feitos aos requisitos do contrato de compra e venda são também pertinentes ao contrato de doação. Apesar disso, a doação não se confunde com a compra e venda. A doação é um contrato unilateral, ao passo que a compra e venda é contrato bilateral. No contrato de doação inexiste qualquer contraprestação devida pelo donatário, enquanto que no contrato de compra e venda o comprador tem a obrigação de pagar o preço a título de contraprestação de seu direito de exigir a entrega do bem vendido.

 

A lei brasileira (arts. 1.165 e 1.166, do CC) considera o contrato de doação formado desde o instante em que as partes estejam de acordo sobre o objeto a ser doado. Entretanto, as declarações de vontade das partes – doador e donatário – devem ser feitas de modo formal. O art. 1.168, do CC, determina que a doação seja feita por escritura pública quando ocorrerem os casos referidos no art. 134, do mesmo código. O art. 1.168, ainda do CC, permite que a doação seja realizada por meio de instrumento particular assinado pelas partes e por pelo menos duas testemunhas. O instrumento particular de doação poderá ser usado, evidentemente, apenas nos casos em que a lei não exige a adoção de escritura pública. O parágrafo único, do mesmo art. 1.168, tolera doações feitas verbalmente só quando o objeto doado for móvel e for desde logo traditado para o donatário. A exigência legal é correta, porque a propriedade dos bens móveis, como regra geral, é transmitida por meio da tradição do referido bem ao novo adquirente.

 

São exigidos, portanto, três elementos essenciais para a existência do contrato de doação, a saber:

 

(a) a declaração de vontade contratual do doador coordenada com a declaração de vontade contratual do donatário;

 

(b) a determinação do bem objeto da doação; e

 

(c) a adoção da forma exigida pela lei para que a doação se aperfeiçoe.

 

Cada um desses requisitos deve ser examinado separadamente.

 

(A) Declaração de vontade contratual pelas partes

 

São duas, pelo menos, as vontades necessárias à formação do contrato de  doação.

 

O doador deve declarar sua vontade de doar o bem, ou seja, a vontade de que tal bem seja retirado de seu patrimônio para que seja integrado ao patrimônio do donatário a título de propriedade, sem que o doador possa exigir do donatário qualquer contraprestação patrimonial.

 

O donatário deve declarar sua vontade de aceitar a doação do bem, isto é, a vontade de integrar em seu patrimônio a propriedade do bem doado. É interessante observar que a lei admite que a manifestação de vontade do donatário seja tácita (art. 1.166, do CC). Se o doador fixar prazo para que o donatário declare se aceita ou não a doação, presume a lei que a doação tenha sido aceita se, dentro do referido prazo, o donatário não declarar formalmente sua recusa contratual.

 

Para que o doador possa declarar sua vontade contratual, precisa apresentar capacidade genérica e capacidade específica para a formação do contrato. No caso do donatário, contudo, a lei foi mais flexível, dizendo que, mesmo sendo incapaz, o donatário pode declarar vontade de aceitar a doação pura e simples. Portanto, tratando-se de doação com encargo, ou sujeita a outros ônus, o donatário somente poderá declarar sua aceitação se for capaz genérica e especificamente (art. 1.170, do CC).

 

Como já foi esclarecido durante a análise dos requisitos do contrato de compra e venda:

 

“(…), a regra geral que vigora no sistema jurídico brasileiro é a de que todo ser humano é capaz de titularizar relações jurídicas (art. 2º, CC). O poder que todo ser humano tem de titularizar relações jurídicas chama-se capacidade de direito (também denominada capacidade de gozo). A capacidade de direito difere da capacidade de fato. Entende-se por capacidade de fato (também chamada de capacidade de exercício) o poder que o sujeito tem de, por si próprio ou por meio de representante legal, adotar os comportamentos necessários para tornar-se efetivamente titular de direitos ou de obrigações.

 

Embora todo ser humano tenha capacidade de direito, nem todos têm capacidade de fato. Os arts. 5º e 6º, do CC, estabelecem os casos em que certos sujeitos são considerados absolutamente incapazes (art. 5º) ou relativamente incapazes (art. 6º).”

 

Sendo assim, donatário e doador devem apresentar capacidade genérica para celebrarem o contrato de doação, ou seja, não podem ser pessoas absoluta ou relativamente incapazes. A única exceção legal é a contida no art. 1.170, do CC, permissiva da aceitação da doação pura pelo incapaz. Todavia, mesmo que donatário e doador sejam pessoas genericamente capazes, é necessário ainda examinar se tais sujeitos apresentam capacidade específica para celebrarem certo e determinado contrato de doação. É que há casos em que a lei proíbe a celebração do contrato de doação entre certos sujeitos, impondo-lhes restrição para tal contratação. É o que ocorre, por exemplo, nos casos referidos nos arts. 1.170, 1.171, 1.175, 1.176, 1.177, do CC. Este ponto precisa ser bem esclarecido e, para esse fim, vale a pena reproduzir aqui, com as alterações necessárias, o que foi dito durante o exame dos requisitos do contrato de compra e venda.

 

Há pessoas que, sendo capazes, podem praticar os atos jurídicos que quiserem no plano geral. Entretanto, essas pessoas encontram obstáculo legal para celebrarem determinado contrato de doação em que são partes outras pessoas especialmente protegidas pela lei. É o que acontece, por exemplo, com um sujeito que é considerado legalmente capaz para praticar atos jurídicos em geral, mas que não pode – por expressa vedação legal – alienar um imóvel que tem sem o consentimento de sua mulher (art. 235, do CC). Esse sujeito, sendo casado, é capaz e, apesar disso, para o ato específico de doar seu imóvel, precisará que sua capacidade seja integrada pela intervenção de sua mulher no ato jurídico de alienação. Celebrado o contrato sem anuência da mulher, tal ato contratual será declarado nulo por defeito de capacidade do alienante.

 

Em alguns casos, portanto, a lei exige que a capacidade do doador (ou a do donatário) seja integrada – naquele ato contratual específico – pela vontade de outro sujeito. Noutros casos, a lei não restringe a capacidade específica do sujeito para o ato contratual, mas estabelece restrições ou impedimentos para a celebração do contrato. Cabe examinar aqui, a título de exemplo, alguns desses casos de integração de capacidade ou de existência de limitações legais ao direito de contratar.

 

(a) doação feita a nascituro – art. 1.169, do CC

 

Nascituro é o ser humano que ainda não nasceu, que ainda não está definitivamente separado do corpo da mulher gestante (art. 4º, do CC). A personalidade jurídica do ser humano inicia-se apenas no momento em que esse sujeito nasce com vida. Antes do nascimento com vida o nascituro não é tecnicamente uma pessoa, ou seja, um sujeito de direito a quem a ordem jurídica reconhece personalidade jurídica.

 

A existência de personalidade jurídica é a base de todas as relações jurídicas da pessoa. Dessa personalidade é que se irradiarão direitos e obrigações que a pessoa, potencialmente, poderá titularizar. Mediante a prática dos comportamentos concretos e específicos exigidos pela ordem jurídica, a pessoa poderá tornar-se titular de direitos e obrigações.

 

O nascituro, não tendo nascido ainda, não tem reconhecida sua personalidade jurídica. Mas nem por isto deixa de ser um sujeito de direito. O ordenamento jurídico, em caráter excepcional e com o propósito de atender a certas necessidades jurídicas, reconhece entidades que – embora sem personalidade jurídica – podem titularizar relações jurídicas específicas. É o que ocorre, por exemplo, com a sociedade “em constituição”, com a massa falimentar ou com a massa insolvente civil, com a herança, com o espólio, com o condomínio a que se refere a Lei 4.591/64. Todas essas entidades são sujeitos de direito por expressa previsão legal.

 

Ora, o nascituro é considerado pela lei um sujeito de direito. O Código Civil faz referência ao nascituro – nessa qualidade de sujeito de direito – nas disposições contidas no art. 4º, no art. 1.169, no art. 1.718. A legislação processual prevê a figura do curador de ventre, para a defesa dos interesses de sujeito nascituro. A legislação penal pune o crime de aborto, protegendo evidentemente o direito à vida que tem o nascituro. A Constituição Federal é repleta de normas protetoras do ser o humano desde sua mais remota origem isto é, desde sua concepção. O Estatuto da Criança e do Adolescente protege a gestante para, por meio dela, proteger o nascituro. A legislação trabalhista e a previdenciária igualmente protegem a mulher gestante tendo em vista o ser humano que ela carrega dentro de si e que poderá vir a nascer com vida futuramente.

 

Considerando-se, portanto, o nascituro como um sujeito de direito e que pode, por isto mesmo, titularizar relações jurídicas que lhe sejam benéficas, a lei civil permite que o nascituro receba doação (art. 1.169, CC).

 

No entanto, o nascituro não pode declarar sua vontade contratual de aceitar a doação. Para que essa vontade contratual seja adequadamente declarada, a lei estabeleceu que os representantes legais do nascituro deverão declarar – em nome do nascituro donatário – a vontade de aceitar a doação. Por conseguinte, os representantes legais do nascituro integram a capacidade de fato que falta a este sujeito de direito para dizer que aceita a doação do bem feita em seu favor.

 

Deve-se esclarecer, contudo, que a doação feita a nascituro é condicional. Seus efeitos estão subordinados a uma condição resolutiva. A eficácia desse contrato está subordinada ao evento futuro e incerto do nascimento com vida do nascituro contemplado com a doação. Se ocorrer o nascimento com vida do donatário, a doação tornar-se-á estável e não mais será resolvida por falta de sujeito que titularize o bem doado. Caso contrário, se o nascituro não nascer com vida, a doação feita a ele será resolvida, como se jamais houvesse existido. A doação sujeita a essa condição resolutiva foi feita em favor de alguém que já era um sujeito de direito, mas que sobretudo poderia vir a se tornar pessoa se nascesse com vida. Frustrada essa expectativa de vida, a doação teria sido feita a quem não poderia ser pessoa e, retroativamente, a quem não podia ser sujeito de direito porque não tinha vida.

 

(b) doação aceita por pessoa incapaz – art. 1.170, do CC

 

Foi mencionado acima que o art. 1.170, do CC, estabeleceu uma regra excepcional à regra geral que exige capacidade civil do contratante para poder celebrar o contrato.

 

Realmente, como regra geral, a pessoa precisa ser capaz genérica e especificamente para celebrar o contrato. Tem capacidade geral quem não se enquadra em qualquer dos casos referidos nos arts. 5º ou 6º, do CC. Além dessa capacidade genérica, é imprescindível que o sujeito seja também capaz para celebrar um contrato específico, ou seja, é necessário inexistir restrição ou impedimento legal para que o sujeito celebre certo e determinado contrato. Assim, o diretor de uma instituição financeira está legalmente impedido de celebrar com essa instituição que dirige, por exemplo, um contrato de financiamento em que o banco empreste dinheiro ao diretor. Nesse caso, falta ao referido diretor capacidade específica para celebrar o contrato de empréstimo como a instituição que está sob sua direção. Esse mesmo diretor, todavia, poderá celebrar o contrato de empréstimo com qualquer outra instituição financeira que não aquela que ele dirige.

 

Pois bem. O art. 1.170, do CC, estabelece regra excepcional ao sistema de incapacidades e impedimentos para contratar. Esse dispositivo legal permite que um sujeito incapaz ou impedido de contratar aceite a doação de um bem, desde que se trate de doação pura e simples, ou seja, em que não haja encargo. Note-se que a autorização legal excepcional refere-se apenas ao incapaz ou impedido donatário, porque esse é o sujeito que terá seu patrimônio aumentado com o ingresso do bem doado.

 

(c) doação feita pelos pais aos filhos – arts. 1.171 e 1.176, do CC

 

Antes de examinar a hipótese específica do art. 1.171, do CC, que cogita da doação feita pelos pais aos filhos, é conveniente relembrar alguns aspectos já comentados quando se examinou o art. 1.132, do CC, que veda a venda de bem pelos ascendentes aos descendentes. Durante a análise da compra e venda mencionada no art. 1.132 foi dito o seguinte:

 

“O art. 1.132, CC, estabelece impedimento legal para a celebração do contrato de compra e venda a que se refere. Os ascendentes não podem vender um imóvel a um de seus descendentes sem que os demais descendentes concordem com tal contrato. A finalidade da regra do art. 1.132, do CC, é a de evitar que sejam desigualadas as legítimas dos herdeiros necessários (art. 1.721, do CC). Portanto, os descendentes a que se refere o art. 1.132, do CC, são apenas aqueles que poderiam ser prejudicados na sucessão de seus ascendentes.

 

O imóvel vendido a um dos descendentes será retirado do patrimônio dos ascendentes vendedores e integrado ao patrimônio do descendente comprador. No lugar do imóvel retirado de seu patrimônio, os ascendentes vendedores receberão a quantia em dinheiro correspondente ao valor do bem vendido. É preciso que tal valor em dinheiro seja justo, porque, falecendo os ascendentes, o seu patrimônio será transmitido aos deus descendentes herdeiros necessários. Se o valor pago pela aquisição do imóvel for menor que o valor real do imóvel, o descendente que adquiriu tal bem estaria sendo beneficiado, porque: (1º) teria recebido bem de valor maior que o preço pago para a aquisição desse mesmo bem; e (2º) o descendente comprador, agora na qualidade de herdeiro, ainda iria receber, a título de herança, parte do valor que pagou pela aquisição do bem.

 

(…).

 

Por causa de tudo isto, a lei exige que os demais descendentes concordem com a venda de imóvel que os ascendentes pretendam fazer a um dos descendentes. Se a vedação legal do art. 1.132, do CC, for desobedecida, o contrato de compra e venda ainda assim existirá, será válido e eficaz. Poderá, contudo, ser pleiteada sua anulação.”

 

O art. 1.171, do CC, retrata o mesmo tipo de preocupação que o art. 1.132, do CC. Se os ascendentes doarem a um descendente certo bem, esse objeto será retirado do patrimônio dos doadores. Logo, o patrimônio desses doadores terá uma redução. Por outro lado, o patrimônio do descendente donatário aumentará porque o bem doado será nele integrado. Quando os ascendentes doadores falecerem, será aberta a sucessão deles e serão chamados a sucedê-los os seus herdeiros necessários (arts. 1.572, 1.603, I e 1.721, do CC). Esses herdeiros necessários, então, teriam que partilhar entre si o patrimônio dos doadores falecidos – diminuído do bem que eles haviam doado a um de seus descendentes. Como se vê, o herdeiros não contemplados com a doação estariam saindo prejudicados, porque receberiam quinhão hereditário menor que o quinhão que lhes seria devido se a doação não tivesse ocorrido. De outra parte, o herdeiro contemplado com a doação estaria sendo beneficiado, pois já teria recebido um bem provindo do patrimônio dos doadores e, além disto, ainda iria receber seu quinhão hereditário.

 

Por essas razões, o art. 1.171, do CC, estabelece que a regra de que a doação feita pelos ascendentes a um dos descendentes será considerada como adiantamento de legítima, ou seja, o valor desse bem será computado no quinhão que o donatário irá receber como herdeiro legítimo na sucessão aberta dos ascendentes falecidos. Um exemplo esclarecerá a situação.

 

Um pai, já viúvo, tem um patrimônio com valor total de 100. Esse sujeito tem quatro filhos. O pai doa a um dos filhos um bem que tem o valor de 15, nos termos do art. 1.171, do CC. Posteriormente, o pai falece sem deixar testamento e são chamados a sucedê-lo seus quatro filhos, nos termos do art. 1.603, I, do CC. Cada um desses filhos receberá quinhão hereditário com valor de 25, de modo que, juntos, os quatro quinhões da herança perfaçam o patrimônio de 100 deixado pelo falecido pai. Ocorre que um desses filhos, durante a vida do pai, já havia recebido uma doação de um bem com o valor de 15, a título de adiantamento de herança (adiantamento de legítima). Então, nessas circunstâncias, o filho que já recebeu a doação no valor de 15 terá que receber, agora na sucessão do pai, bens no valor de 10. Os demais filhos receberão bens no valor de 25 cada um. Com este mecanismo, nenhum dos herdeiros do falecido doador será prejudicado no momento da sucessão.

 

Se o mecanismo do art. 1.171, do CC, não fosse adotado no caso acima exemplificado, haveria prejuízo para os herdeiros que não foram contemplados com doação. O patrimônio do pai, que era de 100, teria sido reduzido para 85 após a doação feita a um dos filhos. Quando o pai morresse, seus quatro filhos receberiam, cada um, quinhão no valor de 21,25 do patrimônio do falecido pai. Portanto, o filho que já havia recebido doação durante a vida de seu pai teria, no final, o valor total de 36,25 do patrimônio do ascendente doador, enquanto que todos os demais teriam apenas seus quinhões no valor de 21,25. O prejuízo é evidente.

 

Observe-se, todavia, que o art. 1.171, do CC, não proíbe a doação de ascendente para descendente. Essa doação é permitida, mas o efeito dela é o de caracterizar adiantamento de herança (de legítima) para o descendente donatário. Por conseguinte, a doação feita nos termos do art. 1.171, do CC, é inteiramente existente, válida e eficaz, diferentemente do que ocorre com a hipótese de infração ao art. 1.132, do CC, em que a compra e venda poderá vir a ser declarada inválida por falta de consentimento dos descendentes prejudicados.

 

Há que se esclarecer, ainda, que a regra do art. 1.171, do CC, refere-se apenas à legítima. É conveniente, aqui, esclarecer o conceito jurídico de legítima. Não se deve confundir a legítima  com a sucessão legítima. Quando alguém falece, abre-se a sua sucessão (art. 1.572, do CC), isto é, seus bens imediatamente passarão a ser titularizados pelos herdeiros legítimos ou testamentários. Há, portanto, dois tipos de sucessão: (1ª) sucessão legítima; e (2ª) sucessão testamentária. A sucessão testamentária é aquela feita em cumprimento de testamento que o falecido deixou. Morrendo o sujeito sem deixar testamento, tem-se que proceder à sua sucessão legítima e, então, serão chamados a suceder o falecido – pela ordem – os herdeiros indicados no art. 1.603, do CC. Se, ao falecer, uma pessoa deixar descendentes ou ascendentes, diz-se que deixou herdeiros necessários (art. 1.721, do CC). A esses herdeiros necessários a lei reserva a metade do patrimônio deixado pelo falecido. Essa metade do patrimônio do falecido que a lei reserva aos herdeiros necessários chama-se legítima. Se o sujeito tiver deixado testamento, só pode ter disposto nesse testamento de metade de seu patrimônio, porque a outra metade (ou seja, a legítima) necessariamente pertence aos herdeiros necessários (art. 1.176, do CC).

 

Nessas circunstâncias, o art. 1.171, do CC, considera adiantamento de legítima apenas a doação feita pelo ascendente ao descendente de bem que integra a parte indisponível do patrimônio do falecido, ou seja, a metade desse patrimônio que por lei é reservada aos herdeiros necessários do morto. No que se refere à outra metade do patrimônio do falecido – chamada de metade disponível – não se aplica a regra do art. 1.171,  mas sim a disposição do art. 1.176, do CC. Assim, se o bem doado pelo ascendente ao descendente for retirado da parte disponível do patrimônio do doador, essa doação não poderá ser considerada como adiantamento de legítima para esse donatário.

 

Veja-se o mesmo exemplo que foi dado pouco acima, mas agora ligeiramente modificado. O pai tem um patrimônio de 100. Tem quatro filhos e, por isto, esses filhos são considerados seus herdeiros necessários. Metade do patrimônio do pai, isto é, 50, compõe a legítima dos herdeiros necessários, da qual o pai não pode dispor. A outra metade do patrimônio (50) constitui a parte disponível do patrimônio do pai. Logo, o pai pode doar a um de seus descendentes o bem no valor de 15, tirando esse bem da parte disponível de seu patrimônio. Deve, contudo, esclarecer que está fazendo a doação com bem integrante da metade disponível de seu patrimônio (art. 1.176, do CC). Nesse caso, a doação não será considerada adiantamento de legítima para aquele filho donatário. Feita essa doação, o patrimônio do ascendente doador fica reduzido para o valor de 85. Verificando-se o falecimento do pai, sem testamento, os seus quatro filhos partilharão entre si esse patrimônio de 85. Cada filho receberá quinhão hereditário no valor de 21,25. O filho que recebeu doação de bem que não compunha a legítima reservada aos herdeiros necessários terá recebido, por esse modo, o valor de 15 a mais que os outros filhos que não receberam doação. Se o pai quisesse ter doado ao filho em questão, não o bem no valor de 15, mas toda a metade disponível de seu patrimônio, poderia fazê-lo. Nessa hipótese, a legítima do patrimônio do falecido (50) seria partilhada entre os quatro filhos, que receberiam, cada um deles, o quinhão de 12,5. O filho donatário, portanto, receberia sua legítima de 12,5 mais o bem doado no valor de 50.

 

Para que não se aplique o art. 1.171, do CC, às doações feitas pelos ascendentes ao descendente, é preciso que seja esclarecido que o bem doado será retirado da metade disponível do patrimônio do doador (art. 1.176, do CC). Obviamente, essa declaração tem que ser verdadeira.

 

É preciso, agora, esclarecer o conteúdo do art. 1.176, do CC. Como foi visto, o art. 1.171, do CC, permite que o doador disponha livremente da parte de seu patrimônio que não constitua a legítima dos herdeiros necessários. Essa parcela do patrimônio do doador – chamada de parte disponível – pode ser doada sem que se caracterize essa doação como adiantamento de legítima. Pois bem. O doador está legalmente autorizado a doar por inteiro a parte disponível de seu patrimônio. Se o contrato de doação ultrapassar o valor da parte disponível do patrimônio do doador, a doação será nula apenas naquilo que exceder o limite fixado no art. 1.176, do CC.

 

Noutras palavras, tendo o doador um patrimônio de 100, e também tendo ele herdeiros necessários, o valor da legítima desses herdeiros é de 50. Por conseguinte, a parte disponível do patrimônio do doador vale 50. Somente esse valor de 50 pode ser objeto de doação que não seja adiantamento de legítima. Se, por exemplo, o doador doar a alguém o valor de 60, essa doação será nula nos limites do valor de 10, porque o doador somente poderia ter doado o valor de 50 referente à parte disponível de seu patrimônio.

 

Observe-se, contudo, que a regra do art. 1.176 tem que ser interpretada em combinação com o disposto no art. 1.171, do CC. Se o doador tem um patrimônio total de 100, a parte disponível desse seu patrimônio é de 50, como já foi dito. O doador realiza uma doação no valor de 60 para um de seus filhos. Nesta hipótese, é inteiramente válida a doação. De fato, a doação ao filho do valor de 50 foi feita com base na parte disponível do patrimônio do doador (art. 1.176, do CC). A doação ao filho do valor de 10 é considerada adiantamento de legítima (art. 1.171, do CC). A situação seria diferente se a doação tivesse sido feita a quem não é herdeiro necessário do doador. Imagine-se que o doador doou o valor de 60 a um amigo seu. A mencionada doação é válida nos limites do valor de 50, porque esses 50 são a parte disponível do patrimônio do doador. Todavia, o valor de 10, doado ao referido amigo do doador, é nula, porque esses 10 excedem o valor da parte disponível do patrimônio do doador. Os herdeiros necessários, por conseguinte, poderão pleitear a declaração de nulidade da doação desse valor de 10, com apoio no art. 1.176, do CC.

 

(d) doação sem reserva dos bens necessários à subsistência do doador – art. 1.175, do CC

 

Mesmo que o doador seja pessoa capaz, genérica e especificamente, para fazer a doação, a lei lhe impõe restrição a respeito do limite máximo da doação (art. 1.175, do CC).

 

De fato, a doação representa um ato de liberalidade do doador. Ele retira de seu patrimônio um bem e o transfere, a título de propriedade, ao patrimônio do donatário. O doador empobrece em decorrência da doação e, por outro lado, o donatário enriquece com ela. Ora, o patrimônio de uma pessoa é que lhe fornece os bens necessários à sua subsistência. Por essa razão, o art. 1.175, do CC, torna nula a doação de todos os bens do doador. Se tal doação for realizada, o doador deixará de ter bens suficientes para lhe garantir o próprio sustento e subsistência. Poderá até mesmo vir a encontrar-se em estado de penúria e de miserabilidade. Daí porque tal contrato é nulificado pela lei.

 

Note-se bem o que diz o art. 1.175, do CC: a doação de todos os bens do doador somente é nula se não forem reservados para o doador bens ou rendas suficientes para lhe garantir a subsistência. Ora, se parte dos bens for reservada para garantir a subsistência do doador, então a doação não foi total e, assim, não estaria sendo regulada pelo art. 1.175. Por outro lado, se o doador efetivamente doar todos os seus bens, mas tiver renda que lhe garanta a subsistência, então a doação será existente, válida e eficaz. É o que ocorre, por exemplo, quando alguém doa todos os seus bens, porém tem renda de aposentadoria, pensão, salário vitalício ou qualquer outro tipo de rendimento suficiente para lhe assegurar a subsistência.

 

(e) aquisição de bens do doador pelo administrador

 

Há situações em que certas pessoas são impedidas de adquirir bens que estejam sob sua administração e que pertençam a outros sujeitos. Assim, o sujeito que, por determinação legal ou mesmo contratual, administra bens alheios, não pode se prevalecer dessa situação para adquirir tais bens em condições mais favoráveis do que aquelas que um terceiro desinteressado teria que observar. Esses administradores de bens alheios podem livremente ser donatários em contratos de doação com terceiros.

 

É o caso, por exemplo, do tutor. O art. 428, I, do CC, impede que o tutor adquira, como donatário, bem que esteja sob sua administração e que pertença ao tutelado. A mesma vedação se aplica ao curador, por força do art. 453, do CC, que manda aplicar à curatela as mesmas regras atinentes à tutela. Por isto, também o curador não pode ser donatário de bem que esteja sob sua administração e pertença ao curatelado. Igualmente está proibido de ser donatário de bem da sociedade o seu administrador que, por ter essa qualidade, estaria impedido de adquirir esse mesmo bem a título de compra e venda.

 

Enfim, há que se lembrar que o art. 1.133, do CC, proíbe que diversas pessoas adquiram – como compradoras – os bens que estão sob a administração delas. Ora, se tais sujeitos estão proibidos de comprar os referidos bens, com maior razão não poderão adquirir esses bens por meio de doação.

 

(f) contrato de doação entre marido e mulher – art. 1.173, do CC

 

Na exposição dos requisitos do contrato de compra e venda foi esclarecido que:

 

“O matrimônio produz efeitos pessoais, patrimoniais e sociais. No que concerne aos efeitos patrimoniais, verificam-se eles entre os cônjuges e a prole do casal, e também apenas entre os cônjuges. Interessa aqui falar do regime matrimonial de bens.

 

O Direito brasileiro conhece quatro tipos de regime de bens, a saber: (a) o regime da comunhão universal de bens, previsto nos arts. 262 a 268, do CC; (b) o regime da comunhão parcial de bens, disciplinado nos arts. 269 a 275, do CC; (c) o regime da separação de bens, de que tratam os arts. 276 e 277, do CC; e (d) o regime dotal, regulado pelos arts. 278 a 309, do CC.

 

O regime dotal de bens está atualmente em franco desuso.

 

No regime da comunhão universal de bens, o patrimônio conjugal é formado por todos os bens que cada cônjuge tinha antes do casamento, mais aqueles adquiridos no decorrer da vida conjugal, com exceção daqueles bens incomunicáveis referidos nos arts. 263 a 267, do CC. Antes do advento da Lei do Divórcio (Lei 6.515/77), o regime da comunhão universal de bens era o regime oficial do casamento.

 

O regime da comunhão parcial de bens é hoje o regime oficial de bens no matrimônio. Assim determinou a Lei 6.515/77 (art. 51, nº 7 e art. 258, do CC). Nesse regime, os bens que cada cônjuge possuía antes do casamento não se comunicam com os bens do acervo patrimonial conjugal, formado, este último, apenas pelos bens que o casal adquirir no curso da vida comum. São, contudo, excluídos da comunhão parcial os bens indicados nos arts. 269 e 272 a 275.

 

Finalmente, no regime da separação de bens, seja convencional ou legal (art. 258, parágrafo único, do CC), os bens presentes e ou futuros de cada cônjuge não se comunicam.

 

O regime de bens escolhido para vigorar a partir do casamento é imutável. Por isto, não é possível celebrar contratos que tenham como resultado prático alterar o regime matrimonial de bens.”

 

Em consequência desses aspectos legais, não é possível que, após a celebração do casamento, um cônjuge faça doação  ao outro. Somente antes da realização do matrimônio é que os nubentes podem fazer doações um ao outro. São as chamadas doações antenupciais ou pré-nupciais (art. 1.173, do CC).

 

O contrato de doação entre marido e mulher casados sob o regime da comunhão universal de bens é impraticável. Nesse caso, o bem objeto da doação teria que ser retirado do patrimônio conjugal, a título de doação, e entraria nesse mesmo patrimônio, a pretexto de ser titularizado pelo cônjuge donatário. Não seria diferente a situação de uma doação realizada entre marido e mulher que adotaram o regime da comunhão parcial de bens: no que concerne aos bens incomunicáveis, a doação não poderia ocorrer pelos mesmos motivos indicados no regime da separação de bens; no que se refere aos bens comuns, o contrato seria inócuo pelas razões mencionadas no caso do regime da comunhão universal de bens.

 

Por conseguinte, eventual doação entre pessoas que irão se casar deverá ser regulada: (1º) ou por contrato normal anterior ao casamento; (2º) ou, em último caso, por meio do pacto antenupcial a que se refere o art. 256, do CC.

 

Em resumo, é nulo (art. 257, do CC) o contrato de doação de bens celebrado entre pessoas casadas e que, direta ou indiretamente, viole disposição legal de ordem pública ou implique na modificação do regime matrimonial de bens.

 

(g) contrato de doação celebrado por pessoa casada – arts. 235 e 242, do CC

 

Qualquer que seja o regime de bens adotado no casamento, o marido não pode alienar bem imóvel sem consentimento expresso de sua mulher (art. 235, do CC), nem a mulher pode alienar bem imóvel sem o consentimento expresso de seu marido (art. 242, do CC). A doação é contrato que acarreta a alienação do domínio sobre o bem doado e, por conseguinte, está abrangido pelas vedações estatuídas pelos referidos artigos 235 e 242.

 

Os arts. 235 e 242, do CC, têm a finalidade de assegurar à família proteção do patrimônio necessário à manutenção da entidade familiar. Nem o marido nem a mulher têm capacidade específica para alienar bem imóvel sem a integração de sua capacidade por vontade do respectivo cônjuge. O ato contratual praticado em desobediência àqueles dois preceitos legais é anulável (art. 239, do CC).

 

(h) contrato de doação feito por cônjuge adúltero – art. 1.177, do CC

 

Pelas mesmas razões já apontadas na alínea (f), acima, não pode o cônjuge adúltero fazer doação ao seu cúmplice porque, nos termos da lei, isto acarretaria diminuição do patrimônio familiar em prejuízo do outro cônjuge ou dos herdeiros necessários do casal unido pelo vínculo jurídico do casamento.

 

Celebrado o casamento, marido e mulher passam a receber a designação técnica de cônjuges. Os cônjuges devem-se reciprocamente fidelidade recíproca (art. 231, I, do CC). A doutrina e a jurisprudência tradicionalmente falam em fidelidade sexual recíproca, mas o texto do art. 231, I, do CC, não deixa qualquer dúvida de que o dever de fidelidade conjugal não é simplesmente sexual, mas também – e principalmente – moral e ética.

 

A figura jurídica do adultério não tem definição legal. O art. 240, do Código Penal, que deveria definir este tipo criminal, não o fez e remete o intérprete à legislação civil. A doutrina e a jurisprudência têm tentado construir o conceito legal do adultério a partir dos elementos dos arts. 183, VII; 207, 343,1.744, IV; e 1.745, III, todos do Código Civil. Mas o fato é que nenhum desses dispositivos diz que necessariamente o adultério se caracteriza pelo fato de haver relacionamento sexual consumado entre duas pessoas de sexo oposto, sendo pelo menos uma delas já casada. Nem mesmo o art. 317, I, do CC, já revogado, fornecia os elementos necessários à conceituação jurídica do adultério. Disto resulta que o conceito jurídico de adultério, reconheça-se a verdade, tem sido construído com elementos de direito costumeiro. Tornou-se costume jurídico dizer que o adultério é a relação sexual consumada entre duas pessoas de sexos diferentes, sendo pelo menos uma delas já casada e que, ao adotar essa conduta, viola o dever de fidelidade sexual e moral decorrente de seu matrimônio.

 

O conceito costumeiro de adultério tem origens históricas antiquíssimas e não se pretende aqui – durante o exame da matéria contratual – discutir se ele corresponde ou não aos elementos legais que se pode reunir para caracterizá-lo. Por ora basta dizer que nesta obra entende-se que o adultério pode ser sexual, moral ou ético. Entretanto, não se ignora que o art. 1.177, do CC, e todos os demais dispositivos legais acima referidos tratam do adultério sexual. Mas essa interpretação parece ser muito restritiva em matéria contratual.

 

O art. 1.177, do CC, quer exatamente vedar que uma pessoa casada faça doações a alguém que lhe seja cúmplice de relações adulterinas. Restringir o adultério apenas à hipótese de infidelidade sexual do cônjuge doador pode significar a frustração da finalidade do aludido art. 1.177. A questão tem que ser bem examinada.

 

Uma pessoa casada somente pode fazer doação de bem imóvel com o consentimento de seu cônjuge, qualquer que seja o regime de bens adotado no matrimônio (arts. 235 e 242, do CC). Logo, é juridicamente impossível que um cônjuge doe validamente um bem imóvel ao seu cúmplice de adultério, sem antes obter o consentimento do outro cônjuge. Se o cônjuge ofendido consente nessa doação, apesar de ser doação adulterina, o contrato é válido e eficaz. Não havendo o consentimento mencionado, a doação valerá apenas se não for impugnada dentro do prazo prescricional aludido nos arts. 1.177 e 178, § 7º, VI, do CC.

 

Resta agora examinar a doação de bens móveis, feita pelo cônjuge adúltero ao seu cúmplice, em prejuízo do patrimônio da família legítima e dos herdeiros necessários do doador. A doação de bem móvel é consensual e não precisa ser formalizada por escrito (art. 1.168, parágrafo único, do CC). Mesmo que seja formalizada por escrito particular ou público, tal modalidade de doação acarreta a tradição do bem móvel. Quem tem a posse de bem móvel é presumivelmente seu proprietário, salvo prova em contrário. A doação de bens móveis pode ser feita por um dos cônjuges sem consentimento do outro. A anulação dessa doação está sujeita ao mesmo prazo prescricional previsto nos arts. 1.177 e 178, § 7º, VI, do CC.

 

Quer se trate de doação de bem imóvel, quer de bem móvel, o art. 1.177, do CC, exige prova do adultério e, mais especificamente, do adultério de natureza sexual. Essa prova tem se mostrado dificílima na prática forense. Mesmo nos casos de separação judicial, onde é bastante freqüente a alegação do adultério, é rara a existência de prova direta e concludente do adultério. Assim, geralmente o adultério é demonstrado por meios indiretos, por indícios, de modo que o conjunto de provas permita ao juiz concluir que “provavelmente” o adultério ocorreu. Ora, se no âmbito do Direito de Família o adultério é cercado de tantas reservas probatórias, o que dizer então no âmbito do simples Direito Contratual. No âmbito do Direito de Família o adultério tem consequências gravíssimas. No âmbito contratual, o adultério somente provoca efeitos patrimoniais, notoriamente menos importantes do que os bens extrapatrimoniais no contexto do ordenamento jurídico.

 

Nessas circunstâncias, não provado o adultério cometido por parte do cônjuge doador, a doação por ele realizada ao cúmplice teria que prevalecer. Daí porque parece ser muito importante dar ao adultério a conceituação ampla que ele merece ter, pelo menos no âmbito do Direito Contratual.

 

Foi dito acima que a fidelidade conjugal não é meramente sexual, mas também – e sobretudo – moral e ética. Por conseguinte, o conceito amplo de adultério tem que abranger a infidelidade sexual, a moral e a ética, que – embora sejam independentes umas das outras – não são aspectos excludentes entre si, mas, bem ao contrário, geralmente acontecem combinadamente.

 

O cônjuge comete adultério sexual quando se relaciona sexualmente com outra pessoa que não aquela com quem se casou. O elemento relevante aí é o relacionamento sexual, a satisfação libidinosa, pouco importando que ocorra com pessoa de mesmo sexo ou de sexo diverso. Também não importa que o relacionamento sexual seja normal ou que seja realizado por meio de outros atos libidinosos tidos como anti-naturais. Preste-se atenção ao fato de que a doutrina e a jurisprudência tradicionais conceituam o adultério sexual como sendo a relação sexual consumada entre duas pessoas de sexo diferente, sendo pelo menos uma delas já casada. Portanto, o conceito de adultério sexual adotado nesta obra é diferente do conceito tradicional desse tipo de adultério.

 

Tem-se adultério moral quando, por meio de certos comportamentos incompatíveis com os deveres matrimoniais, o cônjuge adúltero prestigia moralmente muito mais a um terceiro do que o seu próprio cônjuge que, por isto mesmo, tem frustrada a confiança moral que até então depositava no cônjuge moralmente adúltero. Nesse caso, não há necessidade de que o cônjuge ofendido comprove o efetivo relacionamento sexual entre o cônjuge adúltero e o terceiro. Basta a prova de que os comportamentos do cônjuge adúltero ofendem moralmente o cônjuge inocente. Trate-se de palavras, de gestos, de comportamentos adotados em certos contextos, pode-se inferir que há intenção do cônjuge adúltero de não ser moralmente fiel à pessoa com quem se casou, mesmo que jamais chegue a se relacionar sexualmente com o terceiro. É o caso, por exemplo, do homem extremamente vaidoso de sua masculinidade e que, habitualmente, oferta desmedidos elogios, presentes e cortesias a toda e qualquer mulher que venha a encontrar, talvez com o único propósito de enciumar sua própria mulher. Num caso como esse, mesmo que tal homem jamais se relacione sexualmente com outra mulher, terá cometido adultério moral.

 

De certa forma, o adultério moral pode ser enquadrado nos conceitos de conduta desonrosa ou de grave violação de dever conjugal, de que trata o art. 5º, da Lei 6.515/77.

 

Por fim, ocorre o adultério ético  numa situação muito especial. Trata-se do caso em que os cônjuges, apesar de ainda estarem legalmente casados, já não têm mais vida conjugal. Não tiveram a coragem ou a iniciativa de formalizar sua separação judicial ou seu divórcio. Na maioria das vezes esses cônjuges sequer continuam a viver sob o mesmo teto. Noutras vezes, os cônjuges até vivem sob o mesmo teto, mas não têm mais vida comum como marido e mulher, mais se assemelhando a pessoas que dividem a mesma moradia, talvez até sem intimidade de qualquer tipo. Num contexto como esse, é no mínimo ridículo que um dos cônjuges alegue adultério (moral ou sexual) por parte do outro, com quem não mais mantém vida conjugal. Os cônjuges são ainda casados, porém eticamente não têm mais entre si dever de fidelidade conjugal, exatamente porque desapareceu entre eles a vida marital.

 

Essas diversas espécies de adultério não podem ter o mesmo resultado jurídico no Direito Contratual.

 

No caso do adultério sexual, uma vez feita a prova desse fato, o contrato de doação celebrado entre o cônjuge adúltero e seu cúmplice há de ser anulado. Mas, observe-se bem, se não for provado esse adultério sexual, o contrato haveria de prevalecer. Para evitar o prejuízo patrimonial à família legítima, é preciso recorrer ao conceito de adultério moral. Assim, demonstrado o adultério moral do cônjuge doador, poder-se-ia anular a doação feita por ele ao cúmplice, mesmo que não se conseguisse provar o relacionamento sexual adulterino. Por exemplo, imagine-se o caso do pai de família, de conduta notoriamente escorreita, que impõe à sua mulher e filhos um regime espartano de vida, fustigando-os com a necessidade de todo tipo de economias e restrições para, depois, ofertar de presente uma jóia caríssima a uma mulher por quem diz ter muita estima. A mulher legítima não poderá alegar conduta desonrosa de seu marido, nem talvez consiga provar grave violação dos deveres do casamento. É muito provável até que o aludido marido nunca tenha se relacionado sexualmente com a mulher a quem presenteou. Talvez o presente dado a ela seja exatamente uma tentativa de aproximação sexual, talvez não seja. Mas inegavelmente esse marido deu mais prestígio moral à mulher mencionada do que costuma dar à sua mulher legítima. Nessa situação, parece muito razoável que a mulher legítima, ou seus filhos, anulem a doação feita pelo marido e pai à mulher estranha, em prejuízo deles próprios.

 

Diferente deve ser a solução no caso do adultério ético. Como foi dito, o adultério ético pressupõe a subsistência do vínculo matrimonial entre os cônjuges, bem como a falta de dissolução formal da sociedade conjugal havida entre eles. A vida conjugal, no entanto, desapareceu de fato, quer os cônjuges ainda vivam sob o mesmo teto, quer não. Na vida real, marido e mulher não mais se ajudam, moral e materialmente, nem têm objetivos comuns. Ora, em situações como esta, é natural que cada cônjuge vá, pouco a pouco, reorganizando sua própria vida, inclusive com o objetivo de estabelecer novo relacionamento marital com terceira pessoa. Se um dos cônjuges, então, vem a doar um bem a alguém com quem se relaciona maritalmente – mas que não é seu cônjuge –  não é justo que seu cônjuge possa anular essa doação sob a alegação de que houve adultério. Cabia a cada cônjuge ter adotado as providências necessárias à separação judicial ou divórcio. Nenhum dos cônjuges adotou essas medidas, ambos contentando-se com a separação fática do casal. Não é ético, agora, um dos cônjuges querer anular doação feita pelo outro alegando adultério. Eticamente não mais existe adultério porque ambos os cônjuges admitiram, ao menos tacitamente, a inexistência de vida conjugal, quer em seus aspectos patrimoniais, quer nos aspectos pessoais. Por isto, a doação em questão há de prevalecer. Ressalva-se, apenas, o eventual direito dos herdeiros necessários impugnarem tal doação, por entenderem que o contrato lhes prejudica a legítima. Fora dessa hipótese de proteção da legítima, não seria justo anular a mencionada doação.

 

Cabe observar, por fim, que mesmo não sendo demonstrado o adultério (sexual, moral ou ético), os herdeiros necessários do doador adúltero poderiam impugnar, com base no art. 1.176, do CC, a doação feita à pessoa cúmplice de adultério naquilo em que tal doação exceder o valor da parte disponível do patrimônio do doador. Evidentemente, o fundamento dessa impugnação não seria a existência de doação adulterina, mas sim de doação que excedeu o valor da parte disponível do patrimônio do doador.

 

(B) Bem objeto da doação

 

Pode ser objeto de contrato de doação qualquer bem jurídico com valor pecuniário. O contrato é uma relação jurídica patrimonial e, como tal, seu objeto tem que ter valor patrimonial, tem que ser suscetível de avaliação econômica. Além disso, todo contrato é, antes de tudo, um ato jurídico em sentido amplo. Qualquer declaração de vontade, feita de conformidade com a lei, e que possa produzir efeitos jurídicos é um ato jurídico em sentido amplo. Ora, o contrato somente é formado mediante a coordenação de pelo menos duas declarações de vontade a respeito do objeto contratual. Por essa razão, o objeto do contrato tem que ser lícito e possível.

 

Em resumo, o contrato de doação é uma relação jurídica contratual e, por conseguinte, tem que apresentar um objeto lícito (direta e indiretamente), possível (material e juridicamente) e suscetível de valoração econômica, como determinam os arts. 82 e 145, II, do CC.

 

Mas, além de satisfazer os mencionados requisitos objetivos, que são mesmo exigidos para a existência de qualquer ato jurídico e de qualquer contrato, é preciso ainda que o objeto do contrato de doação preencha outros requisitos, específicos desse tipo contratual.

 

Os requisitos objetivos específicos do contrato de doação são os que seguem.

 

(1º) existência do bem objeto do contrato de doação

 

A doação de bem inexistente é nula por falta de objeto para o contrato. O resultado jurídico típico da doação é o de transferir, a título de propriedade, o bem vendido do patrimônio do doador parra o patrimônio do donatário. Se o bem a ser transferido não existe, torna-se impossível a formação do contrato.

 

Admite-se, contudo, a doação de bem futuro, respeitados certos critérios (arts. 1.118, do CC). O contrato de doação pode ser formado validamente se o bem doado, apesar de não existir no momento da celebração do contrato, satisfizer os seguintes requisitos:

 

(a) for bem cuja existência futura seja certa ou muito provável até o instante em que o doador tiver que entregá-la ao donatário, em ato de execução do contrato; e

 

(b) forem fornecidos no contrato celebrado critérios objetivos e seguros para a identificação do bem objeto da doação; e

 

(c ) a identificação efetiva do bem ocorra antes do vencimento da obrigação do doador de entregar o mesmo bem ao donatário.

 

Imagine-se, por exemplo, que certa pessoa doe a outra uma escultura que ainda esteja por ser feita pelo escultor. No momento em que o contrato de doação da escultura foi celebrado, seu objeto (a escultura) não existia, mas sua existência ocorreria dentro de certo prazo e as partes estabeleceram os critérios de identificação da obra.

 

Do mesmo modo é existente e válido o contrato de doação, por exemplo, de um apartamento em construção. No instante de formação do contrato, o apartamento não existia. No entanto, no contrato as partes indicaram de modo inequívoco todos os elementos que permitiriam a identificação do apartamento referido, bem como o momento em que tal imóvel haveria de ser entregue ao donatário.

 

Em casos como esses citados acima, o contrato de doação é celebrado sob condição resolutiva. Se o bem objeto da compra não vier a existir, o contrato será desfeito por falta de objeto (art. 1.118, do CC).

 

É preciso examinar com cuidado em que momento tornou-se certa a inexistência do bem objeto do contrato de doação.

 

Se o bem não existia no momento de celebração do contrato, nem poderia existir futuramente (art. 1.118, do CC), o contrato de doação não terá existido juridicamente, sendo nulo de pleno direito (arts. 82 e 145, II, do CC).

 

Por outro lado, se o bem existia na ocasião de formação do contrato e, depois, antes do cumprimento desse contrato, o bem vem a perecer (art. 78, do CC), é preciso investigar se o doador teve ou não culpa pelo perecimento do objeto. Sendo culpado o doador, indenizará o donatário (art. 865, do CC). Não havendo culpa do doador pelo perecimento do objeto, o contrato se extinguirá por impossibilidade objetiva da prestação contratual (art. 865, do CC). Essas mesmas regras são aplicáveis ao caso da doação de bem futuro cuja existência se impossibilite, respectivamente, por culpa do doador ou sem culpa dele.

 

(2º) identificação do objeto da doação

 

Presente ou futuro, o objeto do contrato de doação precisa ser perfeitamente identificado. Essa identificação terá que ocorrer, no máximo, até o momento em que o doador tiver que entregar o bem vendido ao donatário. O efeito principal desse contrato é o de possibilitar a transferência do direito de propriedade do bem, do doador para o donatário. O direito de propriedade é o mais completo direito real. Os bens objeto de direito real asseguram ao titular desse direito o poder de seqüela (art. 524, CC), ou seja, o poder de reaver o bem objeto de seu direito das mãos de quem quer que injustamente o tenha. Por isto, o bem objeto do direito real precisa ser identificado com precisão, sob pena de não poder ser distinguido de outros que lhe sejam similares.

 

O bem objeto do contrato de doação deve ser identificado com critérios claros, objetivos, seguros. No caso de o bem ainda não ter existência presente, essa necessidade de identificação é satisfeita por meio de indicação de outros dados que permitam reconhecer o bem em questão.

 

Assim, por exemplo, se o contrato de doação tem por objeto um automóvel, esse bem deve ser identificado por sua marca, modelo, ano de fabricação, cor, placa, número de chassis e outras características individuais. Se esse automóvel é adquirido por meio de um grupo de consórcio, ter-se-á que dizer no contrato qual a marca do veículo, seu modelo, anos prováveis de fabricação, características gerais do grupo a que pertencerá o automóvel a ser fabricado.

 

Não se pode esquecer que muitas vezes a doação tem por objeto coisa incerta, especificada apenas pelo gênero e quantidade, ou mesmo só pelo gênero (art. 874, CC). Há ainda as obrigações alternativas, nas quais, havendo mais de um objeto previsto para pagamento da obrigação, o devedor deverá pagar apenas um deles. Nesses casos, a identificação do objeto será feita por meio da escolha a ser realizada de acordo com a disciplina dessas espécies de obrigações.

 

Em todos os casos citados até aqui, é imprescindível que o objeto do contrato de doação seja perfeitamente identificado, no máximo, até o momento em que o doador tiver que cumprir sua obrigação contratual de entregar o bem ao donatário.

 

(3º) disponibilidade jurídica do objeto do contrato de doação

 

O objeto do contrato de doação tem que ser juridicamente disponível, vale dizer, ser objeto in comercio, objeto que possa ser transferido de uma pessoa para outra por meio de atos jurídicos.

 

Tem que ser assim porque, como já foi tantas vezes esclarecido, a doação significa a transmissão de um bem de uma pessoa para outra, a título de propriedade. O bem é retirado do patrimônio do doador e, a título de propriedade, o mesmo bem é incorporado ao patrimônio do donatário. Ora, se o bem for juridicamente indisponível, o contrato de doação com tal bem não pode ocorrer. O bem é juridicamente indisponível quando, por vedação natural, legal ou contratual, não pode ser transferido de uma pessoa para outra por meio de ato jurídico.

 

Sendo indisponível o bem, o doador não tem como transmiti-lo juridicamente ao donatário.

 

A indisponibilidade do bem pode ser: (a) natural; (b) legal; ou (c) convencional.

 

O bem naturalmente indisponível é aquele que não pode ser objeto de apropriação exclusiva por um sujeito. Assim ocorre com o ar atmosférico, com o oceano, com os rios, com a luz solar, com a força do vento. Admite-se, contudo, que pequenas porções desses bens, desde que individualizadas, sejam objeto de doação. É o que acontece, por exemplo, com gases engarrafados, com porções de água canalizada ou envasada.

 

A indisponibilidade legal do bem é a imposta pela lei, como é intuitivo. A lei proíbe que o bem seja objeto de negócios jurídicos translatícios de domínio. Ocorre isto, por exemplo, no direito de usufruto. O usufrutuário tem direito de usar, por si mesmo ou por meio de outra pessoa, o bem objeto do direito de usufruto. Mas o usufrutuário está legalmente proibido de transferir a outrem esse direito de usufruto, que é personalíssimo. O mesmo ocorre com os bens públicos, que são insuscetíveis de alienação sem expressa autorização legal. É ainda inalienável o direito hereditário de certo herdeiro enquanto estiver vivo o autor da herança. Do mesmo modo, decretada a falência de um comerciante, não pode ele alienar qualquer bem de seu fundo de comércio, sendo até mesmo anuláveis os bens que ele houver alienado no período suspeito anterior à decretação do estado falimentar. É ainda indisponível o título de crédito com cláusula de não transmissibilidade por ordem legal, como acontece com os títulos de capitalização (que são personalíssimos). Também é legalmente indisponível o conjunto de bens de que precise o doador para garantir sua própria subsistência, de modo que tais bens não podem ser doador (art. 1.175, do CC).

 

A indisponibilidade voluntária, ou contratual, é aquela que torna indisponível um bem por vontade das partes. O bem, em princípio, seria disponível, mas a vontade das partes tornou-o insuscetível de transferência para outrem. Pense-se no caso do sujeito que, querendo adquirir um bem, um automóvel por exemplo, não dispõe de recursos financeiros para esse fim. Então, esse sujeito obtém empréstimo junto a instituição financeira e, com esses recursos, adquire o veículo desejado. Como garantia do pagamento do empréstimo, o adquirente do veículo o aliena fiduciariamente à instituição financeira, que, assim, tornar-se-á proprietária do automóvel até que o empréstimo seja totalmente pago. A instituição financeira, por força do contrato, não pode alienar a terceiros o veículo, exceto nos casos em que a lei a autoriza a adotar esse procedimento.

 

Outro exemplo. O pai doa ao filho um imóvel e impõe nessa doação uma cláusula vitalícia de inalienabilidade do bem doado. Desse modo, o filho donatário, embora seja o proprietário do bem, não pode aliená-lo a ninguém durante toda a sua vida, salvo se obtiver expressa autorização do doador ou do juiz para esse fim (sub-rogação de vínculo, ou sub-rogação objetiva). O bem imóvel em questão, que por princípio é bem disponível, tornou-se indisponível por vontade dos contratantes.

 

Mais um exemplo. Num contrato de constituição de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, é inserida cláusula estabelecendo que as quotas de cada sócio não são transmissíveis a terceiros. Mesmo que haja falecimento de qualquer dos sócios, as quotas a ele pertencentes não serão transmitidas aos herdeiros do falecido. Nesses casos, convencionou-se a indisponibilidade dessas quotas sociais.

 

(4º) possibilidade de transferência do bem ao donatário

 

Não se deve confundir a indisponibilidade do bem com a impossibilidade de transferência desse bem ao donatário.

 

Bem indisponível, já foi visto, é aquele que por sua própria natureza, por disposição legal ou convencional não pode ser retirado do patrimônio de um sujeito e, a título de propriedade, ser incorporado no patrimônio de outro sujeito.

 

Por sua vez, a impossibilidade de transferência do bem para o donatário ocorre porque: (a) o bem já pertence ao donatário; ou (b) o bem não pertence ao doador, de modo que este não pode transmiti-lo ao donatário.

 

A doação, repita-se mais uma vez, acarreta a retirada do bem do patrimônio do doador e a incorporação desse mesmo bem, a título de propriedade, no patrimônio do donatário. Ora, se tal bem já estiver integrado ao patrimônio do donatário, a título de propriedade, é óbvio que o contrato de doação não pode ter por objeto esse bem.

 

Um exemplo esclarecerá o caso. Imagine-se que um homem é proprietário de um automóvel e, depois, casa-se com sua mulher, adotando o regime da comunhão universal de bens. Esse regime de bens dá origem a um novo acervo patrimonial, dito conjugal. O automóvel que pertencia exclusivamente àquele homem, agora pertence a ele e à sua mulher, em condomínio por partes iguais. Enquanto persistir o casamento, é impossível retirar o carro do patrimônio do marido e, a título de propriedade, colocá-lo no patrimônio da mulher, pois há um único patrimônio conjugal.

 

Outro exemplo. Um sujeito ajuiza uma ação de usucapião sobre um bem imóvel e obtém uma sentença declarando que ele adquiriu a propriedade daquele bem por usucapião. Ao invés de levar a registro imobiliário a sentença de usucapião, o sujeito em questão pensou ser mais prático lavrar uma escritura de doação do imóvel usucapido, por meio da qual o antigo dono do mesmo imóvel lhe doou o referido bem. É lógico que o doador não poderá entregar ao donatário, a título de propriedade, bem que já está incorporado a esse título no patrimônio do adquirente.

 

Por outro lado, é impossível transmitir ao donatário bem que não pertence ao doador. Somente pode declarar a vontade contratual de doar o sujeito que tiver capacidade genérica e capacidade específica para esse fim. Um sujeito não pode doar bem que não lhe pertence, não pode doar bem alheio. Falta-lhe capacidade específica para isto.

 

No entanto, tem-se admitido que alguém doe bem que não lhe pertence sob a condição de, após a celebração do contrato de doação, adquirir o mesmo bem de seu legítimo proprietário com o propósito de entregar esse bem ao donatário do primeiro contrato. Se o doador não conseguir a propriedade legítima do bem, não poderá entregá-lo ao donatário e, então, o contrato de doação assim celebrado:

 

(a) será nulo por falta do objeto;

(b) será nulo por falta de capacidade específica do doador;

(c) será absolutamente ineficaz perante o verdadeiro dono do bem, que poderá até mesmo reclamá-lo de volta por meio da evicção.

 

Veja-se um exemplo. O doador doa ao donatário um automóvel que não lhe pertence, prometendo entregar o bem doado no prazo de trinta dias após a celebração do contrato de doação. Nesse prazo, o doador adquire a propriedade do referido veículo e o entrega ao donatário. Esse contrato de doação é perfeitamente existente, válido e eficaz porque foi possível entregar a coisa doada ao donatário, ainda que o doador, na ocasião em que celebrou o contrato, não fosse dono do  aludido automóvel.

 

A situação seria diferente se o doador não conseguisse adquirir o automóvel do terceiro. Nessa hipótese, o doador não teria consigo o bem que doou ao donatário e que precisa entregar a este em cumprimento do contrato de doação. O contrato seria nulo e o doador seria responsabilizado pelos prejuízos causados ao donatário, já que a falta de entrega do bem significa o descumprimento da obrigação contratual do doador.

 

(C) Forma do contrato de doação

 

O último elemento essencial do contrato de doação é a forma. O art. 1.168, do CC, regula essa matéria.

 

A lei exige que a doação seja feita por meio de escritura pública naqueles casos referidos no art. 134, do CC.

 

Assim, tratando-se de doação feita em pacto antenupcial, é essencial a adoção de forma pública. No pacto antenupcial os nubentes regulam suas relações jurídicas de natureza patrimonial que vigerão após a celebração do matrimônio. Já foi comentado que o regime matrimonial de bens é imutável após a celebração do casamento, de modo que o pacto antenupcial presta-se exatamente a regular as peculiaridades do regime de bens a ser adotado pelos futuros cônjuges. Daí porque, querendo os nubentes realizar doações um ao outro, devem fazê-las antes do casamento e por meio de pacto antenupcial.

 

Deve também ser adotada a forma pública para o contrato de doação de bem imóvel ou de doação de direito real sobre bem imóvel cujo valor supere o limite legal.

 

Fora desses casos referidos no art. 134, do CC,  nos quais a escritura pública é forma essencial à existência da própria doação, admite-se que o contrato de doação seja celebrado por forma escrita particular. Deve-se, contudo, observar os requisitos exigidos pelo art. 135, do CC, para que o documento particular tenha existência, validade e eficácia. O contrato de doação feito por meio de escrito particular precisa estar assinado pelas partes e também por duas testemunhas. Observe-se, também, que para que tal contrato de doação seja eficaz em face de terceiros deverá estar registrado no órgão público competente.

 

Em caráter excepcional o art. 1.168, parágrafo único, do CC, admite que a doação seja feita por forma verbal. Mas esta regra excepcional abrange apenas as doações de objetos de pequeno valor e exige que a tradição desses objetos seja feita imediatamente. Logo, contrata-se a doação verbalmente e a execução dessa doação é feita logo em seguida à celebração do contrato. É a hipótese, por exemplo, de alguém que doa um livro e imediatamente entrega esse objeto ao donatário.

 

(4) Espécies de contrato de doação

 

O contrato de doação pode apresentar-se em várias espécies. As principais serão examinadas aqui e são as seguintes:

 

(a) doação simples e doação com encargo;

(b) doação remuneratória;

(c) doação periódica;

(d) doação com reversão ao doador;

(e) doação individual e doação coletiva;

(f) doação definitiva ou temporária.

 

Cabe esclarecer que essas diversas espécies de doação não são excludentes umas das outras. Bem ao contrário, na maioria das vezes combinam-se entre si para que as partes alcancem o resultado contratual desejado.

 

 (A) Doação simples e doação com encargo

 

A doação é chamada simples quando o doador limita-se a transferir, a título de propriedade, o bem doado de seu patrimônio para o patrimônio do donatário, sem exigir deste último que suporte qualquer ônus. Em síntese, o donatário não tem que se sujeitar a qualquer sacrifício para obter a vantagem contratual que a doação lhe proporciona.

 

Por outro lado, a doação é onerosa ou com encargo quando o donatário, para auferir as vantagens que a doação lhe proporcionará, precisa suportar um sacrifício imposto pelo doador, sacrifício este que não tenha caráter de contraprestação.

 

A figura do encargo está prevista no art. 128, do CC. O encargo, ou ônus, envolve dois elementos essenciais, a saber:

 

(a) a vantagem que um sujeito tem ou pretende ter em decorrência de um negócio jurídico, mas que somente pode ser aproveitada mediante um sacrifício, uma desvantagem, a que aquele sujeito tem que se submeter; e

 

(b) o sacrifício, ou desvantagem, que o sujeito tem que suportar para obter a vantagem oriunda do negócio jurídico, mas que não seja (o sacrifício) uma contraprestação correspondente a uma prestação.

 

Para que o conceito de encargo fique claro, é necessário extremá-lo dos conceitos de prestação e contraprestação.

 

A prestação é um dos elementos da relação jurídica, seja esta relação jurídica patrimonial ou extrapatrimonial. A prestação é a conduta de dar, fazer ou não fazer que o sujeito passivo de uma relação jurídica tem que adotar em face do sujeito ativo dessa mesma relação jurídica, porque assim a norma jurídica estabeleceu. A prestação sempre proporciona uma vantagem jurídica para o sujeito ativo da relação, mas nem toda vantagem jurídica decorre de uma prestação cumprida pelo sujeito passivo de certa relação jurídica. Por exemplo, quando um credor perdoa a dívida de seu devedor, este obtém uma vantagem jurídica, porque não precisará pagar sua obrigação. Mas o perdão concedido pelo credor não é uma prestação desse credor em face de seu devedor. Do mesmo modo, quando um credor – por mera tolerância – parcela a dívida em dinheiro para que seu devedor que está em mora possa pagá-la em prestações periódicas, esse fato traz uma vantagem jurídica para esse devedor, porém em hipótese alguma essa vantagem poderá ser considerada como uma prestação do credor em face do devedor.

 

Por outro lado, a contraprestação é a conduta de dar, fazer ou não fazer que o sujeito passivo de uma relação jurídica tem que adotar em face do sujeito ativo dessa mesma relação jurídica, porque, noutra relação jurídica, as mesmas partes invertem suas posições nos pólos ativo e passivo para que possam alcançar, por meio desse negócio jurídico, o resultado jurídico que pretendem. Examine-se alguns exemplos.

 

Num contrato de locação, tem-se, por um lado, uma relação obrigacional em que o locador é devedor e o locatário é credor. O locador é devedor da conduta de dar ao seu credor locatário um certo bem jurídico, qual seja, o direito de usar, temporariamente, o bem cedido em locação. Portanto, ao entregar ao locatário o bem locado, o locador cumpre sua prestação obrigacional em face do inquilino. Por outro lado, nesse mesmo contrato de locação, há outra relação jurídica obrigacional em que o locatário é devedor e o locador é credor. O locatário deve ao locador a conduta de dar um certo bem jurídico, isto é, o valor em dinheiro correspondente ao aluguel em razão do uso temporário que o locatário faz do bem do locador. O pagamento do aluguel é uma contraprestação obrigacional devida pelo locatário porque este, de sua parte, já recebeu a prestação paga pelo locador.

 

A situação é semelhante num contrato de compra e venda. O vendedor, por um lado, é o devedor de uma relação jurídica obrigacional da qual o comprador é credor. O vendedor é devedor da conduta de dar ao seu credor comprador um bem jurídico – o bem vendido. Ao entregar ao comprador o bem vendido, o vendedor cumpre sua prestação obrigacional. De outra parte, no mesmo contrato de compra e venda existe outra relação jurídica obrigacional, na qual o comprador é devedor e o vendedor é credor. O comprador deve ao vendedor a conduta de dar o valor pecuniário – o preço – correspondente ao valor do bem vendido. Ao pagar o preço, o comprador cumpre sua contraprestação obrigacional em face do credor vendedor.

 

Logo se vê, portanto, que toda contraprestação representa uma desvantagem para o sujeito que tem que cumpri-la, porém nem toda desvantagem é uma contraprestação. Assim, a pessoa que tem um automóvel precisa mantê-lo em adequadas condições de segurança e de conservação. Por exemplo, se o limpador de pára-brisa do veículo se quebrar, o usuário do veículo precisa consertá-lo, não porque isto represente para esse sujeito uma obrigação, uma prestação ou contraprestação, mas porque esse sacrifício ou desvantagem de consertar o limpador de pára-brisa é essencial para que o usuário do automóvel possa se sentir seguro na utilização do veículo num dia chuvoso.

 

Da mesma maneira, pense-se em alguém que precisa de um livro para realizar um estudo. Um amigo desse sujeito possui o referido livro e se dispõe a emprestá-lo ao sujeito necessitado daquele bem. Todavia, o emprestador esclarece que o tomador do empréstimo tem que ir buscar o livro no domicílio do emprestador. Ter que ir buscar o livro é uma evidente desvantagem para o tomador do empréstimo, um sacrifício para ele, mas esse sujeito suporta esse sacrifício porque tem interesse naquele livro. Nesse caso, o ato de entrega do livro emprestado por parte do emprestador não é, para este, uma prestação obrigacional (pois o empréstimo é contrato real, que só se forma com a entrega do objeto ao tomador do empréstimo). Por outro lado, a conduta do tomador do empréstimo não é, para ele, uma contraprestação, mas tão somente a desvantagem que precisa suportar para obter o livro de que precisa.

 

Postas essas noções gerais de prestação e de contraprestação obrigacional, pode-se agora ressaltar que nem toda vantagem representa uma prestação e que nem toda desvantagem significa uma contraprestação. Na figura jurídica do encargo, exige-se, como visto, dois elementos essenciais: (a) uma vantagem para o sujeito; e (b) uma desvantagem, que não seja contraprestação obrigacional, que aquele sujeito precisa suportar para obter a vantagem que deseja.

 

Assim sendo, pode-se concluir que a doação simples é aquela na qual o doador não impõe um encargo para o donatário. O doador realiza a doação e não exige do donatário encargo algum para que este se aproveite do bem doado (art. 1.165, do CC).

 

Já a doação com encargo, ou onerosa, é aquela em que o doador impõe ao donatário que suporte um sacrifício, uma desvantagem, que não seja contraprestação obrigacional, para que possa obter as vantagens que o bem doado lhe pode proporcionar (arts. 1.166, segunda parte, 1.167 e 1.180, do CC).

 

Alguns exemplos ajudarão a compreender melhor os aspectos do contrato de doação simples e de doação com encargo.

 

Quando um amigo oferece a outro um presente, por exemplo, por causa do aniversário deste último, tem-se um contrato de doação pura e simples. O amigo que presenteia despoja-se da propriedade do objeto que é dado como presente. O aniversariante adquire a propriedade desse bem. É natural que o amigo que ofertou o presente nada espere receber em troca por parte do aniversariante. Mesmo que o aniversariante promova uma festa comemorativa de seu aniversário, o amigo que deu o presente não terá a preocupação de averiguar se o que lhe foi oferecido na dita festa tem ou não valor compatível com o presente que deu ao amigo aniversariante. Aliás, o aniversariante sequer tinha o dever de preparar a referida festa e, se assim mesmo quis prepará-la, esse fato sequer configura ônus para que ele receba presentes dos convivas. Essa situação bastante comum permite, agora, apresentar outros exemplos de doação pura e simples.

 

Pense-se na situação do pai que doa ao filho um imóvel sem nada pedir a título de contraprestação. Nessa hipótese, o imóvel é retirado do patrimônio do pai doador e, a título de propriedade, é integrado ao patrimônio do filho donatário. O doador não exigiu nada do donatário, não limitou o direito de propriedade do donatário, não estabeleceu o dever de que o donatário use o imóvel para determinado fim. Trata-se, por conseguinte, de doação pura e simples.

 

É normal, também, o caso em que várias pessoas amigas se reúnem para um almoço ou um jantar num restaurante. Se apenas uma dessas pessoas decidir pagar sozinha a conta de consumo apresentada pelo restaurante, esse sujeito terá feito uma doação gratuita a cada um de seus companheiros. Trata-se de doação porque todos comeram e beberam às custas do patrimônio daquele paga a conta de consumo. Quem paga essa conta do restaurante o faz por mera liberalidade. Não pode exigir de seus amigos que, a título de contraprestação ou de encargo, comprometam-se a pagar a conta de consumo de uma refeição futura que venham a fazer em conjunto. É evidente que esse sujeito que pagou não poderá revogar sua doação se, numa próxima refeição conjunta, um dos amigos que se comprometeu a pagar essa nova conta não vier a honrar seu compromisso.

 

Também é doação simples aquela em que um sujeito doa a outro um automóvel sem impor qualquer sacrifício a ser suportado pelo donatário. O doador não vincula o uso do automóvel para certa finalidade, não exige que se faça seguro do bem, não impõe que o donatário tenha o dever de transportar o doador no referido automóvel.

 

Pode-se, agora, examinar alguns exemplos de doação com encargo.

 

Pense-se outra vez na situação do pai que doa ao filho um imóvel, mas impõe no contrato de doação cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e de impenhorabilidade do bem doado. O donatário será o proprietário do bem, mas não poderá aliená-lo, não poderá dá-lo em penhora, nem poderá integrar esse bem no patrimônio conjugal que vier a constituir com seu cônjuge. Tem-se aí encargos impostos pelo doador ao donatário. Se o donatário quiser aceitar a doação e aproveitar o bem doado, terá que suportar os encargos fixados pelo doador.

 

Também se tem doação com encargo no caso em que, por exemplo, o pai doa ao filho certo bem imóvel, impondo que, durante a vida do doador, esse imóvel somente seja usado para fins comerciais e que a renda produzida por esse imóvel seja repartida em partes iguais entre o doador e o donatário.

 

Ainda é contrato de doação com encargo aquele em que o doador doa o bem ao donatário e estipula que, falecendo o donatário antes que o doador, o bem retorne ao patrimônio do doador, a título de propriedade (art. 1.174, do CC).

 

(B) Doação remuneratória – art. 1.167, do CC

 

A doação remuneratória está prevista no art. 1.167, do CC. Trata-se do caso em que o donatário teve conduta profissional ou pessoal que inspirou no doador a vontade de doar a título de retribuição. Já se sabe que a doação é um contrato gratuito. O doador não deve uma contraprestação ao donatário. No entanto, embora o doador não possa contratualmente pagar, remunerar, contraprestar, não está legalmente impedido de atribuir caráter remuneratório à doação feita ao donatário. Pela conduta que teve em face do doador, antes do contrato de doação, o donatário mereceria receber uma remuneração ou outro benefício pecuniário qualquer. Quando o donatário (sempre antes do contrato de doação) manifestar vontade de não receber o pagamento a que teria direito pelo benefício que proporcionou ao doador, este (doador) pode realizar a doação remuneratória, ou seja, doará ao donatário um bem como se fosse um pagamento pelo benefício que lhe foi anteriormente proporcionado pelo donatário.

 

Pense-se no caso do zelador de um prédio que faz o favor de consertar um chuveiro defeituoso do apartamento de alguém. O dono do imóvel, inegavelmente, obteve uma vantagem em decorrência do favor prestado pelo zelador. Por sua vez, o zelador não tinha obrigação legal ou contratual de consertar o referido chuveiro. No entanto, o dono do imóvel doa ao zelador certa importância, ou outro bem economicamente valorável, a título de retribuição pelo serviço prestado pelo donatário. Tem-se, aí, uma típica doação por merecimento do donatário.

 

Da mesma maneira, pode-se imaginar um médico que, com dedicação muito além daquela que lhe impõe a lei, trata de um paciente, sem nada receber por esses serviços e até mesmo negando-se a receber remuneração profissional. Ora, a lei não impede que esse paciente doe ao médico um bem patrimonial, com caráter remuneratório ao donatário.

 

O art. 1.167, do CC, enfim, nos casos que especifica, diz que a doação continua sendo um contrato gratuito, no qual apenas o doador tem obrigação e diminuição patrimonial. Mesmo que o donatário mereça uma retribuição pelo benefício anteriormente proporcionado ao doador, o bem doado por este último jamais assumirá caráter de contraprestação àquele benefício oriundo da conduta do donatário. Quer a doação tenha sido feita porque o doador entendeu que o donatário a merecia, quer porque o doador queria remunerar indiretamente serviços do donatário, em momento algum o bem doado é considerado uma contraprestação do doador em face do donatário.

 

Prevê o art. 1.167, do CC, ainda, que quando a doação for onerosa, ou seja, doação com encargo, o valor do bem doado que exceder ao valor do encargo constitui, efetivamente, o valor doado. Por exemplo, se o doador doa ao donatário um bem com valor de 100, mas, para receber essa doação, o donatário tem que suportar um ônus no valor de 10, então o valor verdadeiro da doação é de 90. Isto quer dizer, na letra e no espírito do art. 1.167, que mesmo quando a doação for onerosa ela não será um contrato bilateral. Esta situação será ainda mais importante no último caso previsto no art. 1.167. Trata-se da hipótese em que alguém presta um serviço a outra pessoa e recebe remuneração por isto. Todavia, o tomador do serviço, além de pagar a remuneração pactuada pelos serviços prestados, ainda entrega ao prestador dos serviços, por mera liberalidade, uma valor adicional. Esse valor adicional é objeto de um contrato de doação. E o caso do sujeito contrata os serviços de transporte a serem prestados por um taxista. A tarifa a ser paga pela prestação de tais serviços é regularmente paga pelo passageiro que, contudo, entrega ao taxista um valor adicional, comumente chamado de gorjeta. Na verdade, essa gorjeta é objeto de um contrato de doação que o passageiro, como doador, celebrou com o taxista, que é o donatário.

 

(C) Doação periódica – art. 1.172, do CC

 

Por meio do contrato de doação periódica, o doador se compromete a transferir ao donatário, periodicamente, bens diversos, ou parcelas de um mesmo bem. O contrato produzirá efeitos até o momento em que ocorrer a morte do doador, salvo se as partes estabelecerem regra diferente, ou seja, se estabelecerem que a doação periódica se extinguirá antes da morte do doador, ou se previrem que a doação periódica continuará mesmo após a morte do doador (caso em que os herdeiros do doador, até o limite das forças da herança e respeitada a legítima, terão que suportar a obrigação de doar).

 

É preciso não confundir a doação periódica com doações feitas periodicamente.

 

Pelo contrato de doação periódica o doador fará – ao longo do tempo – transferências de bens ao donatário. O doador transferirá parcelas do mesmo bem especificado no contrato, ou bens diferentes entre si. Mas todas essas transferências de bens feitas pelo doador ao donatário são atos de execução de um mesmo contrato de doação, que previu essa modalidade de doação. É a hipótese de alguém que se obriga a doar a outrem o valor total de 100, ao longo de dez anos, entregando ao donatário, a cada ano, parcelas com valor de 10. Também é doação periódica aquela em que, no mesmo contrato, o doador obriga-se a doar ao donatário, neste ano, um apartamento; no próximo ano, uma automóvel; no ano subsequente, um valor em dinheiro; no derradeiro ano, uma linha telefônica. Nesses dois exemplos, o doador somente terá cumprido integralmente os mencionados contratos de doação quando houver transferido para o donatário – ao longo do tempo e com a periodicidade prevista – cada um dos bens especificados.

 

Já no caso de doações feitas periodicamente, celebra-se um contrato de doação para cada transferência de bem que o doador quiser fazer para o donatário. O doador quer doar o valor de 100 para o donatário, em parcelas anuais com o valor de 10. Mas, ao invés de declarar isto no contrato de doação, prefere, neste ano, celebrar um contrato em que se obriga a doar ao donatário o valor de 10. No ano seguinte, o doador celebra outro contrato obrigando-se a doar ao donatário outros 10. E assim sucessivamente, até que, ao término de dez anos, o doador terá doado o valor total de 100 ao donatário. O mesmo raciocínio é válido para o exemplo da doação do apartamento, do automóvel, do dinheiro e da linha telefônica. Ao invés de o doador obrigar-se a doar todos esses bens – periodicamente – por força de um mesmo contrato, escolheu celebrar um contrato de doação para cada bem, ao longo do tempo.

 

A doação periódica, portanto, se caracteriza pelo fato de que, por força do mesmo contrato, o doador transferirá bens ao donatário ao longo do tempo, observada uma periodicidade fixada pelo próprio doador. É a esta situação que se refere o art. 1.172, do CC.

 

O contrato de doação periódica se extingue, como regra geral, no momento da morte do doador. Podem as partes, contudo, estabelecer momento diferente para essa extinção. Se as partes fixarem termo final para o contrato em momento anterior à morte do doador, não há grandes dificuldades práticas. Todavia, se as partes fixarem a extinção do contrato para momento posterior à morte do doador, há considerações importantes a serem feitas.

 

A obrigação do doador é pessoal e, por isto, como regra geral, essa obrigação de doar é transmissível aos herdeiros do doador. Logo, os sucessores do doador terão que cumprir a obrigação de doar assumida pelo falecido. Ocorre que, como já foi anteriormente examinado, o art. 1.176, do CC, impõe pena de nulidade da doação que exceder à parte disponível do patrimônio do doador no momento em que assumiu a obrigação de doar. Isto porque a parcela não disponível do patrimônio do doador, ou seja, a legítima, é legalmente reservada aos herdeiros necessários do doador. Assim, por exemplo, se no momento em que celebrou um contrato de doação periódica o doador tinha um patrimônio de 100, essa doação periódica poderá no máximo atingir o valor de 50, que é a parte disponível do patrimônio do doador. Os outros 50 constituem a legítima dos herdeiros necessários. Consequentemente, se tal doação periódica tiver seu termo final previsto para depois da morte do doador, os herdeiros deste terão que cumprir a obrigação contratual assumida pelo doador, pagando ao donatário os bens abrangidos pela doação, com a periodicidade estabelecida em contrato, até o limite máximo de 50 (isto é, até que se alcance o limite da parte disponível do patrimônio do doador).

 

Em síntese, na doação periódica cujo termo final seja posterior à morte do doador, os herdeiros necessários deste doador não poderão ter prejudicada a legítima que lhes é reservada por lei.

 

(D) Doação com reversão ao doador – art. 1.174, do CC

 

A doação é um ato de liberalidade do doador em favor do donatário. Já foi visto que o contrato de doação acarreta um empobrecimento patrimonial para o doador e um enriquecimento para o donatário. Exatamente por esses motivos é que o art. 1.174, do CC, estabeleceu regra especial que permite ao doador recuperar o bem doado se o donatário, eventualmente, vier a falecer antes do doador. O dispositivo legal teve em vista, aí, o caráter personalíssimo do donatário. O doador quis fazer a doação para aquele específico donatário, tendo em vista qualidades ou características que esse donatário apresentava e que motivaram o doador a realizar a doação. Noutros termos, o doador não quis fazer a doação a nenhuma outra pessoa que não aquele donatário que indicou. Falecendo o donatário antes do doador, a regra geral determinaria que o bem doado fosse, então, transmitido aos herdeiros do donatário. Todavia, o doador pode obstar a aplicação dessa regra geral e estabelecer – no contrato de doação – que em caso de falecimento do donatário antes do doador, o bem doado será reintegrado ao patrimônio do doador. Nessa hipótese, os herdeiros do donatário precisarão restituir o bem doado ao doador.

 

Mas, observe-se bem a regra excepcional do art. 1.174, do CC: o doador somente recuperará o bem doado, reintegrando-o ao seu patrimônio, se o donatário vier a falecer antes do doador. Trata-se de cláusula condicional de resolução contratual. Não se sabe se o donatário morrerá antes do doador mas, se isto ocorrer, a doação estará resolvida e o bem retornará ao patrimônio do doador. Portanto, essa cláusula condicional caducará se o doador morrer antes do donatário. Ocorrendo a morte do doador antes da morte do donatário, o contrato de doação tornar-se-á estável. Como se sabe, a condição impossível de se realizar considera-se não escrita ou caduca (arts. 116 e 119, do CC). Ora, se o doador morrer antes do donatário, torna-se impossível – jurídica e materialmente – que o donatário faleça antes do doador. Frustrada assim a condição resolutiva, os efeitos do contrato de doação tornam-se estáveis e tal contrato não mais será resolvido pelo motivo acima indicado. Logo, os herdeiros do doador já falecido não poderão pretender a aplicação do art. 1.174, do CC, no momento em que o donatário vier a falecer. Noutros termos, os herdeiros do doador pré-morte não poderão pedir aos herdeiros do donatário a devolução do bem doado, pois o art. 1.174, combinado com os arts. 116 e 119, do CC, não autorizam esse pedido.

 

(E) Doação individual e doação coletiva – art. 1.178, do CC

 

É mais comum que o doador indique de modo claro e preciso um único donatário para receber o bem doado. Nada impede, todavia, que sejam contemplados vários donatários. Quando isto ocorre (a contemplação de vários donatários), é conveniente que o doador especifique qual a fração real ou ideal do bem a que cada donatário tem direito. Havendo omissão do doador quanto à especificação da parcela cabente a cada donatário, há que se aplicar a regra supletiva do art. 1.178, do CC, isto é, entende-se que cada donatário recebeu igual quinhão sobre o bem doado.

 

Por exemplo, se o doador doar a quatro donatários bem com valor total de 100, deverá especificar que fração daquele valor será atribuída a cada donatário. O doador, por hipótese, pode estabelecer que um donatário receba o valor de 40 e os três outros o valor de 20 para cada um. Inexistindo essa especificação por parte do doador, cada donatário, por força do art. 1.178, do CC, receberá a fração de 25 sobre o bem doado.

 

É muito importante que o doador regule o direito de acrescer no contrato de doação a mais de um donatário. O contrato de doação pode se extinguir por vários motivos, alguns dos quais já foram examinados e por motivos que se examinará mais adiante. É possível estabelecer no contrato de doação em que haja mais de um donatário que, exinguindo-se a doação em relação a um dos donatários, o direito que esse donatário (ou seus sucessores) perdeu em decorrência da causa extintiva seja acrescido ao direito que os demais donatários ainda têm. Isto chama-se direito de acrescer, vale dizer, o direito que os donatários remanescentes têm de acrescentar às suas respectivas frações do bem doado a fração que pertencia a outro donatário que, por qualquer causa, perdeu direito sobre a fração que lhe cabia naquele mesmo bem.

 

Por exemplo, imagine-se que o doador atribuiu a três donatários um bem com valor de 90, cabendo a cada donatário a fração de 30 sobre o bem doado. Nesse contrato, foi regulado o direito de acrescer entre os donatários. Posteriormente, um dos donatários perde seu direito sobre o bem doado, ou seja, a fração de 30 que lhe cabia agora não mais lhe pertence. Por força do direito de acrescer, os dois donatários remanescentes acrescentarão às suas respectivas frações a fração que antes pertencia ao donatário que agora perdeu seu direito. Assim, cada um dos herdeiros remanescentes passará a ter a fração de 45 sobre o bem doado. Eles aumentaram, acrescentaram, a fração que tinham com a fração do donatário que perdeu direito.

 

O direito de acrescer precisa ser regulado no contrato de doação, a não ser que os donatários sejam marido e mulher porque, nesta hipótese, prevalece a regra especial do art. 1.178, parágrafo único. Se os donatários forem marido e mulher e um deles vier a falecer, a fração que lhe cabia no bem doado não será imediatamente transmitida a seus herdeiros. Ao contrário, essa fração será automaticamente acrescida à fração do cônjuge que ainda viver.

 

(F) Doação definitiva ou temporária

 

Por meio do contrato de doação o doador transmite ao donatário a propriedade do bem doado. Em geral, a transmissão dessa propriedade é feita em caráter definitivo. Pode o doador, contudo, estabelecer prazo (determinado ou não) para essa doação. Se o doador especificar no instrumento de doação que, após o decurso de certo prazo, o donatário perderá o direito de propriedade sobre o bem doado, diz-se que a doação é temporária. A propriedade do donatário temporário é resolúvel porque, após o decurso de um prazo, ele perderá aquele direito (art. 647, do CC)

 

Assim, o doador pode doar ao donatário, por cinco anos, a propriedade de um imóvel. O doador deverá especificar a quem o bem será entregue após o fim desse prazo. O doador pode determinar que o bem seja transmitido, pelo donatário, a um outro sujeito, ou poderá determinar que o bem seja reintegrado ao patrimônio do próprio doador.

 

É comum, por exemplo, que um pai doe um automóvel a um dos filhos que já tenha alcançado a idade de dezoito anos e estabeleça, nesse contrato de doação, que esse carro será subsequentemente doado a outro filho, quando este último alcançar também a idade de dezoito anos. Tem-se aí uma doação temporária, porque o primeiro donatário sabe que depois de um prazo o automóvel não lhe pertencerá mais.

 

Não se deve, portanto, confundir doação temporária com doação periódica ou, ainda, com sucessivos contratos de doação ao longo do tempo entre o mesmo doador e o mesmo donatário.

 

Na doação temporária o donatário recebe a propriedade do bem por um lapso temporal, findo o qual perderá o direito de propriedade sobre o bem doado. Na doação periódica, por força de um mesmo contrato de doação o donatário receberá, ao longo do tempo e periodicamente, parcelas de um mesmo bem, ou bens diferentes. Em geral, nessa doação periódica o objeto da doação pertencerá definitivamente ao donatário. Por fim, nas doações feitas periodicamente, o doador, por meio de diferentes contratos de doação, doa ao donatário, ao longo do tempo, os bens objeto desses contratos, também de modo definitivo. As três figuras, então, não devem ser confundidas. Anote-se, porém, que não há impedimento legal de que o doador faça doações periódicas estabelecendo que sejam simultaneamente temporárias, ou, ainda, que as doações feitas periodicamente (por força de contratos de doação diferentes), sejam igualmente temporárias. Alguns exemplos são úteis para ilustrar as hipóteses.

 

Um pai pode celebrar com o filho um contrato de doação, estabelecendo que lhe doará, anualmente, um carro novo, de modo que, ao fim de cada ano, o doador terá que entregar ao donatário um veículo novo e o donatário, para receber essa doação, terá que suportar o encargo de restituir ao doador o veículo mais velho. A doação aí retratada é, simultaneamente, uma doação periódica (porque, anualmente, o donatário receberá uma nova doação) e temporária (porque o direito de propriedade que o donatário tem sobre o automóvel doado perdura pelo tempo de um ano.

 

A situação descrita no exemplo acima poderia, ainda, ser convertida num exemplo de doação feita periodicamente e nas quais o direito de propriedade do donatário fosse temporário. Eis o caso. O pai doa ao filho um veículo pelo prazo de uma ano e estabelece que, após esse prazo, a propriedade do bem doado retornará ao patrimônio do doador. Ao final do período anual, o doador, recebendo o veículo antes doado ao filho, celebra com este outro contrato de doação com as mesmas cláusulas do anterior contrato de doação e assim sucessivamente. Em síntese, o doador fez doações ao donatário por meio de diversos contratos de doação e, em todos esses contratos, o donatário adquiriu a propriedade do bem por apenas uma ano.

 

(5) Principais efeitos do contrato de doação

 

A maior parte dos efeitos do contrato de doação já foi examinada até aqui. Restam apenas alguns efeitos mais específicos a serem comentados à luz do regramento contido no Código Civil.

 

(A) Doação em contemplação de casamento futuro ou de prole futura – art. 1.173, do CC

 

Nos termos do art. 258, do CC, o regime matrimonial de bens tem por finalidade essencial regular as relações patrimoniais dos cônjuges a partir do instante do casamento. O regime matrimonial de bens escolhido pelos cônjuges, sempre antes do casamento, é imutável.

 

A lei brasileira conhece três regimes matrimoniais de bens que aqui interessam ao estudo. O regime da comunhão universal de bens é aquele em que todos os bens que os cônjuges tinham antes do casamento, ressalvadas as exclusões legais, fundem-se num novo patrimônio – o patrimônio conjugal. O regime da comunhão parcial de bens é aquele em que cada cônjuge, nos limites legais, mantém para si os bens que já possuía antes do casamento, não os misturando ao conjunto de bens adquiridos posteriormente ao matrimônio. Por último, há o regime da separação de bens, por meio do qual, mesmo após o casamento, cada cônjuge mantém com exclusividade os bens que tinha antes de casar e também os que adquiriu após o matrimônio.

 

Como os regimes matrimoniais de bens são imutáveis, as eventuais doações que se queira fazer a pessoa que irá se casar devem ser formalizadas antes do casamento. A doação entre pessoas casadas significaria alteração do regime matrimonial de bens, como já se demonstrou durante o exame dos requisitos essenciais do contrato de doação.

 

As doações que envolvam pessoas que irão se casar são as chamadas doações antenupciais ou pré-nupciais. As pessoas que irão se casar chamam-se nubentes. No contrato de doação em exame pode acontecer que um nubente, antes do casamento, queira doar ao outro um certo bem. Também é possível que o doador não seja nenhum dos nubentes e sim alguém que deseje doar a um dos nubentes, ou a ambos, o bem objeto do contrato de doação, desde que esses nubentes realmente se casem entre si. Nos termos do art. 1.173, esses contratos de doações antenupciais produzem efeitos específicos.

 

Quer um dos nubentes doe ao outro um bem, quer alguém que não é nubente doe a um dos nubentes ou a ambos o bem objeto do contrato, a pessoa que se qualifica como doador não pode pretender a dissolução do contrato por falta de aceitação (da doação) por parte do donatário ou donatários. Noutros termos, nessas doações antenupciais a lei presume que o donatário aceitou a doação. Entretanto, há que se observar que a doação antenupcial está sujeita a uma condição, a saber, a celebração do casamento daqueles específicos nubentes entre si. Essa condição pode ser suspensiva ou resolutiva. Se a condição for suspensiva, o donatário terá apenas expectativa de direito sobre o bem doado, de modo que, enquanto o casamento não se realizar, o bem continuará no patrimônio do doador e somente após o casamento é que esse bem será integrado ao patrimônio do donatário. Ao contrário, se a condição for resolutiva, o donatário receberá desde logo o bem doado em seu patrimônio mas, se deixar de se casar, o contrato de doação será resolvido e o bem retornará ao patrimônio do doador. Assim, se por qualquer motivo o casamento entre aqueles nubentes não vier a se celebrar, ou for considerado absolutamente nulo (e, portanto, tratado juridicamente como se jamais tivesse sido celebrado), então a condição (suspensiva ou resolutiva) do contrato operará e a doação ficará desfeita.

 

Na hipótese de a doação antenupcial ser feita sob condição resolutiva e, subsequentemente, o casamento não for celebrado entre os nubentes considerados, a doação será resolvida. Esta é a condição resolutiva que pende sobre o negócio. Nessas circunstâncias, o donatário restituirá ao doador o bem doado. Se o casamento entre os mencionados nubentes for regularmente celebrado, a condição resolutiva da doação estará frustrada e o contrato produzirá seus efeitos normais, ainda que logo após a celebração do matrimônio os cônjuges venham a dissolver a sociedade conjugal ou o vínculo matrimonial venha a se romper.

 

Se o contrato de doação tiver previsto a condição suspensiva (realização do casamento) para a produção de seus efeitos, a celebração do matrimônio terá atendido tal exigência e, então, o contrato de doação produzirá seus efeitos normais.  O bem doado será, então, transferido do patrimônio do doador para o patrimônio do donatário.

 

Algumas hipóteses devem ser examinadas a esse respeito.

 

Imagine-se a situação em que o noivo, antes do casamento, doe à sua noiva um automóvel, a título de doação antenupcial. Celebrado o contrato assim nos termos do art. 1.173, do CC, imagine-se que o casamento desses dois sujeitos entre si não ocorre, por qualquer motivo. Nesse caso, verifica-se a condição resolutiva prevista no contrato de doação e, então, a noiva deverá restituir ao noivo o bem que recebera a título de doação. Evidentemente, esse dever de restituição do bem continuará a existir ainda que o noivo doador venha a se casar com outra mulher, ou se a donatária vier a se casar com outro homem. Enfim, não é qualquer casamento do doador com terceiro ou da donatária com terceiro que obstará a resolução do contrato de doação. A cláusula resolutiva do contrato de doação somente não produzirá efeitos se o noivo doador se casar com a noiva donatária. Se, ao contrário, a doação houver sido feita sob a condição suspensiva e, efetivamente, o casamento for celebrado, então a propriedade do automóvel será transferida do patrimônio do doador para o patrimônio da donatária.

 

Os mesmos princípios regem a doação antenupcial feita por alguém em favor de um dos nubentes ou em favor de ambos. Para evitar a resolução do contrato de doação esses nubentes terão que casar entre si. Se vierem a se casar – mas não entre si – a condição resolutiva do contrato de doação produzirá efeitos. É o caso, por exemplo, do pai que, sob o regime do art. 1.173, do CC, doa um imóvel para servir de domicílio conjugal para o filho que irá se casar com certa mulher. Se esse donatário não se casar, ou se não se casar com aquela noiva específica, a doação ficará resolvida.  De outro lado, imaginando-se que tal contrato de doação tenha sido celebrado sob a condição suspensiva (de ocorrer o casamento), tem-se que o bem continuará no patrimônio do doador e dali só sairá se realmente o casamento for celebrado.

 

É necessário ter um cuidado especial nessas situações acima descritas. O direito que alguém tem de se casar significa, em termos jurídicos, a liberdade de decidir se quer ou não contrair matrimônio e, sobretudo, se o desejo de se casar existir, o nubente precisa ter liberdade para escolher com quem irá se casar. Logo, é ilegal qualquer mecanismo que, direta ou indiretamente, obrigue alguém a contrair matrimônio, ou interfira no direito do nubente de escolher livremente a pessoa com quem se casará. Nessas circunstâncias, o contrato de doação antenupcial não pode se caracterizar como instrumento que coaja um sujeito a se casar, ou imponha a ele o casamento com pessoa que não escolheu livremente. É nula, por exemplo, uma cláusula do tipo em que o doador está doando um bem ao donatário desde que ele se case com certa pessoa escolhida pelo doador. Nesse caso, essa cláusula não produzirá qualquer efeito em detrimento do donatário.

 

Da mesma forma, não pode o contrato de doação servir de instrumento ilegal que obrigue uma pessoa a manter-se casada. Pense-se no caso do pai que doa bem à filha e estabelece, nesse contrato, que a doação se resolverá se a donatária vier a se separar do marido.

 

Por outro lado, parece ser perfeitamente lícito o sobrestamento dos efeitos do contrato de doação feita sob a condição suspensiva de que o donatário venha a se casar. Nesse caso, doador e donatário celebram o contrato de doação, mas, enquanto o donatário não se casar, a doação não produzirá efeitos. Isto quer dizer que a propriedade do bem doado não foi transferida do patrimônio do doador para o patrimônio do donatário. A transferência dessa propriedade somente ocorrerá se o donatário se casar. Não se casando o donatário, o contrato do doação se extinguirá e o donatário terá frustrada sua expectativa de direito de receber o bem doado. A licitude desse contrato celebrado sob condição suspensiva está em que o donatário é livre para decidir se quer se casar ou não e, se quiser, poderá também livremente escolher seu futuro cônjuge. Casando-se, a propriedade do bem doado será integrada ao seu patrimônio, mesmo que venha a desfazer futuramente o vínculo patrimonial.

 

O art. 1.173, do CC, trata também da doação em contemplação de prole futura e eventual de certo casal. O doador especifica, no contrato, que a doação está sendo feita a um potencial sujeito de direito, a saber, a prole daquele casal. O doador identifica no contrato, de modo claro e preciso, o casal e estabelece que, se esse casal vier a ter filho, este filho será o donatário. Cuida-se evidentemente de cláusula condicional (que pode ser suspensiva dos efeitos do contrato ou resolutiva desses efeitos). Se o casal não vier a ter filhos, o contrato de doação ficará dissolvido.

 

Há que distinguir as hipóteses de condição suspensiva e de condição resolutiva desse contrato de doação em benefício de prole eventual de um casal.

 

Se a doação feita em favor da prole eventual do casal estiver sujeita a condição suspensiva, tal contrato não produzirá efeitos enquanto não nascer com vida o filho daquele casal. Nesse caso, o bem continuará no patrimônio do doador até o nascimento com vida do donatário. Verificado esse nascimento, implementa-se a condição suspensiva prevista e o bem será integrado ao patrimônio do donatário.

 

Por outro lado, se a doação feita em favor da prole eventual do casal estiver sujeita a condição resolutiva (a saber, a não existência, definitiva, de prole do casal), as consequências jurídicas são diferentes. Nesse caso, o contrato de doação produz efeitos, o que significa dizer que o bem doado saiu do patrimônio do doador e foi incorporado – condicionalmente – ao patrimônio de um sujeito de direito que sequer existe, mas que está sendo administrado legalmente pelos pais do possível donatário em atenção à possibilidade jurídica de esse donatário vir a existir. Quando se comprova que, definitivamente, esse donatário não poderá existir, resolve-se o contrato de doação e o bem tem que ser reintegrado ao patrimônio do doador, como se dali não tivesse sido retirado, por força dos arts. 116 e 119, do CC.

 

 (B) Irresponsabilidade do doador por juros moratórios e por evicção – art. 1.179, do CC

 

A doação, repita-se, é uma liberalidade que o doador faz em favor do donatário. O doador empobrece patrimonialmente e, de outro lado, o donatário se beneficia de um aumento patrimonial correspondente ao valor do bem doado. Por esses motivos, o art. 1.179, do CC, estabelece a irresponsabilidade do doador em caso de evicção do bem doado, como também o exonera de pagar ao donatário juros moratórios.

 

A evicção já foi estudada no primeiro volume desta obra. Alguém (alienante), por meio de um contrato oneroso, transmite a outro sujeito (adquirente) o direito de propriedade, de posse ou de uso de certo bem. Não importa, aqui, que essa transferência tenha sido feita com boa fé ou com ma é. O adquirente acredita que adquiriu o bem de quem seria o legítimo titular da propriedade, da posse ou do direito de uso. Posteriormente, surge um terceiro, chamado evictor (ou seja, alguém que não o alienante e o adquirente) que reivindica judicialmente o bem, alegando que ele – terceiro – é o legítimo titular do direito de propriedade, da posse ou do direito de uso daquele e bem e que, portanto, o alienante não poderia tê-lo transferido ao adquirente. Finalmente, sobrevém uma declaração judicial reconhecendo que o terceiro (evictor) é o real titular do bem. Por isto, o adquirente, agora denominado evicto, tem que restituir o bem ao evictor. Nessas circunstâncias, o evicto tem direito de ser amplamente ressarcido pelos prejuízos que lhe foram causados pelo alienante, desde que para esse fim o evicto tenha observado as exigências legais.

 

Ora, a doação, como regra geral, é um contrato gratuito, e, assim, falta um dos requisitos legais para que o doador responda perante o donatário pela evicção que este vier a sofrer. A hipótese é a de que o doador doou o bem ao donatário e, depois, esse donatário viu-se despojado daquele bem por força de evicção. Como o donatário nada pagou para receber o bem doado, não pode reclamar do doador a responsabilidade pela evicção. A única exceção prevista na lei é a do art. 285, que cuida do regime dotal de bens, o qual está em absoluto desuso no Direito brasileiro.

 

Apesar da letra do art. 1.179, do CC, parece ser razoável de que o donatário possa cobrar do doador ressarcimento por evicção quando a doação for onerosa e o doador houver procedido com má fé. No caso de doação onerosa ou com encargo, o donatário foi compelido a suportar o ônus para obter o benefício proporcionado pela doação. Logo, o donatário concordou em suportar uma redução patrimonial que, todavia, pareceu-lhe ser largamente compensada pelo valor do bem que lhe estava sendo doado. Se, além disto, ficar provado que o doador procedeu com má fé, ou seja, se o doador sabia que o bem doado não lhe pertencia e, mesmo assim, fez a doação e exigiu do donatário os encargos contratuais, não é justo que o donatário suporte os prejuízos decorrentes do desembolso do valor dos encargos. Por conseguinte, nos estritos limites do valor dos encargos contratuais, o donatário poderia cobrar do doador uma indenização pelos prejuízos decorrentes da evicção do bem doado. Fora dessa hipótese muito restrita, o doador não deve mesmo ser responsabilizado pela evicção.

 

Por outro lado, não deve o doador ser responsabilizado pelos juros moratórios em caso de atrasar a entrega do bem doado ao donatário. O doador graciosamente está proporcionando aumento patrimonial para o donatário. Não é ético que o donatário cobre do doador juros moratórios se assim não tiver sido previsto em contrato.

 

(6) Extinção do contrato de doação por revogação decorrente de ingratidão

 

Durante a exposição dos diversos aspectos do contrato de doação foram apontados vários casos em que tal relação contratual se extingue

 

Deveras, o contrato de doação pode extinguir-se pelos mesmos mecanismos de extinção dos contratos em geral.  Cabe agora examinar uma hipótese específica de extinção do contrato de doação, a saber, a revogação por ingratidão do donatário.

 

Revogação, tecnicamente, é ato jurídico destinado a retirar os efeitos jurídicos de outro ato jurídico anteriormente praticado. A revogação pode ter eficácia ex tunc ou ex nunc. No primeiro caso (eficácia ex tunc da revogação), a revogação suprimirá todos os efeitos jurídicos oriundos do ato jurídico revogado, de modo a restabelecer a situação jurídica que existia antes da prática do ato jurídico cujos efeitos foram eliminados. No segundo caso (eficácia ex nunc da revogação), a revogação obstará a produção dos efeitos do ato revogado a partir do momento da própria revogação, se maneira que os efeitos já produzidos anteriormente ao ato revocatório permanecem. A revogação da doação por ingratidão tem eficácia ex nunc por expressa previsão do art. 1.186, do CC..

 

O doador pode, então, revogar a doação que fez. Isto quer dizer que o doador pode suprimir os efeitos jurídicos da vontade de doar que anteriormente declarou para beneficiar o donatário. Revogando a doação, o doador reintegra o bem doado ao seu patrimônio.

 

A revogação do contrato de doação por ingratidão do donatário tem que ser declarada judicialmente em ação própria. Isto porque, mediante ampla atividade contraditória processual, doador e donatário terão que produzir provas concludentes a respeito dos fatos que autorizam a revogação.

 

O direito do doador de revogar a doação não é absoluto. Bem ao contrário, a lei brasileiro admite a revogação apenas no caso restrito de ingratidão praticada pelo donatário contra o doador. A matéria está regulada nos arts. 1.181 a 1.187, do CC.

 

Inicialmente, cabe esclarecer que o art. 1.182, do CC, proíbe que o doador renuncie, antecipadamente, ao direito de revogar a doação em caso de ingratidão do donatário. Por conseguinte, a lei exige que, primeiro, fique caracterizada a conduta de ingratidão do donatário. Depois disso, a lei deixa a critério do doador o exercício do direito de revogar ou não a doação por causa daquela ingratidão do donatário.

 

O direito do doador de revogar a doação por ingratidão do donatário está sujeito ao prazo prescricional referido nos arts. 187, § 6º, I e 1.184, do CC. Esse prazo conta-se a partir do momento em que o doador toma conhecimento da conduta ingrata do donatário. Esgotado o prazo prescricional sem que o doador ajuize a ação de revogação da doação, presume a lei que houve renúncia do doador do direito de desfazer o contrato.

 

Deve ser ressaltado que a revogação da doação por ingratidão é personalíssima, como estabelece o art. 1.185, do CC. A conduta ingrata praticada pelo donatário atinge exclusivamente a pessoa do doador, o que significa dizer que os sucessores do doador não têm autorização legal para pedirem a revogação da doação que o próprio doador não pediu. Os sucessores do doador têm autorização legal – apenas – para prosseguirem na ação de revogação de doação por ingratidão já ajuizada anteriormente pelo doador. Por outro lado, o direito de pedir a revogação do contrato de doação por ingratidão só pode ser exercido se a conduta ingrata houver sido praticada pelo donatário. A revogação da doação não pode ser pleiteada se a ingratidão houver sido praticada pelos sucessores do donatário. Todavia, praticada a conduta ingrata pelo donatário e ajuizada contra ele a ação de revogação da doação, pode acontecer que sobrevenham sucessores desse donatário. Nesse caso, a ação já em curso continuará contra os sucessores do donatário. É o caso, por exemplo, do donatário ingrato que falece após o ajuizamento de ação contra ele, com o propósito de revogar a doação por sua ingratidão. Acontecendo esse caso, a ação continuará contra os sucessores do donatário ingrato já falecido.

 

Observe-se, porém, uma peculiaridade. Como se verá mais adiante, o doador pode pretender a revogação da doação se o donatário atentar contra a vida do doador. Imagine-se que esse atentado contra a vida do doador acarrete sua morte. Se sobrevivesse, o doador poderia pleitear a revogação da doação, mas, estando morte, lógico que não pode proceder assim. Nesse caso específico, a lei deveria ter autorizado os sucessores do doador a revogar a doação, tal como o doador provavelmente o faria.

 

É interessante notar que a revogação do contrato de doação por ingratidão é cláusula legal resolutiva do contrato. Por isto, os efeitos jurídicos já produzidos pelo contrato de doação devem ser respeitados. Noutras palavras, a revogação por ingratidão impedirá que o contrato de doação produza efeitos jurídicos a partir do instante em que a revogação se verifica. Os efeitos jurídicos já produzidos por esse contrato antes da revogação subsistirão, razão pela qual o art. 1.186, do CC, resguarda os direitos adquiridos por terceiro sobre o bem objeto do contrato de doação revogado.

 

Por exemplo, o doador doa um carro ao donatário e este, por sua vez, posteriormente, vende o mesmo carro para outra pessoa. Após a celebração do contrato de doação, o donatário pratica conduta ingrata contra o doador e este, então, consegue revogar a doação por ingratidão do donatário. Rigorosamente, o donatária teria que restituir ao doador o automóvel que havia recebido em doação. Mas ocorre que o aludido veículo já foi adquirido, legitimamente, por outrem. Para resolver essa situação, o donatário restituirá ao doador não o veículo doado, mas sim uma indenização. É esta a solução dada ao caso pelo art. 1.186, do CC.

 

Por conseguinte, se o bem objeto da doação revogada por ingratidão tiver sido transferido legitimamente para outrem, este não será prejudicado pelo ato revocatório. O donatário, contudo, haverá de indenizar o doador pelo valor do bem doado, como também terá que restituir ao doador os frutos produzidos pelo bem doado e que ele – donatário – tiver aproveitado depois de ser citado para a ação de revogação da doação, tal como manda o art. 1.186, do CC. Já os frutos colhidos pelo donatário ingrato antes de ser citado para a ação a ele pertencem legitimamente.

 

(A) Hipóteses em que cabe a revogação da doação por ingratidão do donatário – art. 1.183, do CC

 

O art. 1.183, do CC, elenca taxativamente as hipóteses em que o doador poderá pedir a revogação. A ocorrência de qualquer dessas hipóteses, como já foi dito, deverá ser reconhecida judicialmente. Os casos tratados no art. 1.183, do CC, são os que seguem.

 

(a) ameaça contra a vida do doador – art. 1.183, I, do CC

 

O donatário que atenta contra a vida do doador dá causa à revogação da doação por ingratidão. Esse atentado, evidentemente, não tem natureza acidental. O dispositivo legal tem em vista a conduta dolosa ou, pelo menos, revestida de culpa grave do donatário capaz de efetivamente por em risco a vida do doador.

 

Por exemplo, se doador e donatário sofrem acidente de trânsito causado pelo donatário, porém sem dolo ou culpa grave deste último, não se pode falar em revogação da doação por esse motivo.

 

Vale ressaltar, outra vez, que os sucessores do doador não podem pedir a revogação da doação por ingratidão do donatário. No caso aqui examinado, se o donatário atentar contra a vida do doador, provocando a morte deste, os sucessores do doador não poderão pretender a revogação do contrato. Essa situação criada pela lei é anti-ética porque, se sobreviver, o doador poderá revogar a doação. Não sobrevivendo o doador, a doação não pode ser revogada pelos sucessores do doador. Em síntese, a regra legal chega a ser um estímulo para que o donatário consiga matar o doador, se assim desejar, para que a doação não seja revogada.

 

(b) ofensa física do doador – art. 1.183, II, do CC

 

Se o donatário praticar ofensa física contra o doador, mesmo que não chegue a por em risco a vida deste, a doação poderá ser revogada por ingratidão.

 

É razoável que, também nesse caso, exija-se dolo ou culpa grave da ofensa perpetrada pelo donatário. De fato, se a ofensa física contra o doador for meramente acidental, não deverá ser admitida a revogação do contrato por ingratidão.

 

(c) injúria ou calúnia contra o doador – art. 1.183, II, do CC

 

Ocorre o delito de calúnia quando uma pessoa, falsamente, atribui a outra pessoa a prática de fato definido como crime.

 

Por outro lado, verifica-se o delito de injúria quando um sujeito refere-se a outro de modo ofensivo à dignidade ou ao decoro do lesado.

 

Tanto no caso da calúnia como da injúria, a lei civil autoriza a revogação da doação por ingratidão. Mas a lei estabelece que a calúnia ou a injúria devem ser graves. Ocorre que a mesma lei não fornece indicação dos critérios com base nos quais a gravidade da ofensa tem que ser caracterizada. Assim, daria ensejo à revogação da doação por ingratidão apenas a calúnia ou a injúria praticada pelo donatário com agravantes definidas na lei penal? Os casos de injúria ou de calúnia simples obstariam o pedido de revogação da doação por ingratidão?

 

Ora, se houver circunstância agravante da calúnia ou da injúria, agravante esta definida na lei penal, não há dúvida de que deve ser decretada a revogação da doação por ingratidão do donatário. Todavia, por outro lado, não parece correto dizer que a calúnia ou injúria praticada pelo donatário contra o doador, mas sem agravantes, deixaria de acarretar a revogação da doação. O entendimento mais correto parece ser o de que a conduta caluniosa ou injuriosa leva à revogação da doação por ingratidão. Mas, em qualquer caso, é preciso que uma sentença judicial, transitada em julgado, declare que o donatário praticou contra o doador o crime de calúnia ou de injúria. Estabelecida, assim, a certeza jurídica do fato calunioso ou injurioso – mesmo que desprovido de circunstâncias agravantes, pode o doador pedir a revogação da doação por ingratidão do donatário.

 

(d) negativa de alimentos ao doador – art. 1.183, IV, do CC

 

Esse dispositivo assenta no pressuposto de existir obrigação alimentar entre o doador e o donatário. Nos termos dos arts. 396 e seguintes, do CC, certos parentes têm entre si, reciprocamente, dever de prestar alimentos em caso de necessidade de um deles. Quem presta os alimentos é demoninado alimentante. Quem recebe os alimentos, chama-se alimentando. Tecnicamente, a palavra alimentos designa tudo aquilo que uma pessoa precisa para viver materialmente conforme sua situação social. Alimentos, portanto, incluem a própria alimentação, o vestuário, a saúde, o lazer, a educação e tudo o mais que o alimentando tiver necessidade e que possa ser proporcionado pelo alimentante.

 

A obrigação alimentar não existe apenas entre os parentes. Também decorre ela do casamento ou de indenização por ato ilícito. Em qualquer desses casos, a obrigação alimentar somente se constituirá se preenchidos pelo menos os dois requisitos seguintes: (a) existência de necessidade alimentar do alimentando que não possa supri-las por si mesmo; e (b) possibilidade de prestação dos alimentos pelo alimentante, sem sacrifício considerável de sua própria necessidade alimentar.

 

Havendo uma obrigação alimentar entre o donatário e o doador, sendo este o alimentando e aquele o alimentante, exige a lei que o donatário a satisfaça regularmente. Se o donatário, podendo prestar alimentos ao doador, recusa-se a cumprir essa obrigação injustificadamente, então a doação poderá ser revogada por ingratidão. O fundamento ético dessa regra jurídica é o de que o doador, ao fazer a doação, empobreceu e, por isto, ficou privado de um bem que poderia lhe proporcionar alimentos. Por outro lado, o donatário, ao receber o bem doado, aumentou seu patrimônio e, assim poderia prestar alimentos ao doador. Caber esclarecer, por oportuno, que a obrigação alimentar do donatário em face do doador não está limitada ao valor do bem doado. O donatário prestará alimentos ao doador observados os requisitos legais já indicados. Se o valor desses alimentos ultrapassar o bem doado, ainda assim o donatário terá que cumprir sua obrigação alimentar.

 

(B) Hipóteses legais em que não cabe a revogação da doação por ingratidão – art. 1.187, do CC

 

A lei relacionou quatro hipóteses proibitivas da revogação da doação por ingratidão do donatário. São as que seguem.

 

 

 

(a) doações puramente remuneratórias – art. 1.187, I, do CC

 

Tratando-se de doação puramente remuneratória, é vedada sua revogação por ingratidão do donatário. É preciso, portanto, prova concludente de que a doação feita foi verdadeiramente remuneratória, ou seja, foi realizada pelo doador com a intenção de remunerar o donatário por benefício anterior que este donatário proporcionou ao doador. Além disso, o valor do bem doador tem que ser proporcional ao benefício que o doador recebeu do donatário, de modo que fique caracterizado o caráter exclusivamente remuneratório dessa doação.

 

(b) doações com encargo – art. 1.187, II, do CC

 

É vedada a revogação de doação por ingratidão se o donatário teve que suportar encargo para manter o bem doado em seu patrimônio. Ao cumprir o encargo imposto pelo doador, o donatário sofre diminuição patrimonial. Esse fato foi considerado pela lei como suficiente para obstar a revogação da doação mesmo que o donatário seja ingrato.

 

(c) doação feita em cumprimento de obrigação natural – art. 1.187, III, do CC

 

Obrigação natural, quer originária, quer superveniente, é aquela reconhecida pela ordem jurídica mas desprovida de ação para que o credor possa exigir do devedor a prestação devida. Por isto, o credor não tem como compelir o devedor a realizar o pagamento. Se, apesar disto, o devedor realiza tal pagamento, satisfazendo o direito do credor, a ordem jurídica atribui efeitos à obrigação natural. É o caso do art. 1.187, III, do CC. Ao pagar uma obrigação natural, o devedor transfere ao credor um certo bem e, no caso específico da doação, o devedor doador transfere ao credor donatário a propriedade do bem doado.  Essa doação é considerada pelo artigo em exame como pagamento de uma obrigação natural. Por conseguinte, mesmo que o donatário manifeste ingratidão em face do doador, a lei veda a revogação da doação. Isto porque tal doação equivaleria ao pagamento da obrigação natural e, assim, o pagamento de uma obrigação não poderia ser revogado por causa de ingratidão do credor perante o devedor.

 

(d) doação em contemplação de casamento específico – art. 1.187, IV, do CC

 

As doações antenupciais foram suficientemente examinadas acima. Essas doações podem ser feitas por um nubente ao outro, ou por alguém a um dos nubentes ou a ambos. Em qualquer caso, os efeitos do contrato de doação estão subordinados a uma condição (suspensiva ou resolutiva), a saber, a realização do casamento do donatário. Realizado esse casamento, o contrato de doação se consolida (se a condição era suspensiva e obstasse os efeitos da doação enquanto o casamento não ocorresse). Ao contrário, se a condição era resolutiva e o casamento não se verifica, o nubente donatário perderá o direito de propriedade que havia adquirido por força da doação.

 

O que importa observar agora é que, realizado o casamento, o bem doado se incorpora definitivamente no patrimônio do donatário. Ainda que esse donatário manifeste ingratidão em face do doador, a doação não poderá ser revogada. O fundamento ético dessa regra é simples: o donatário tem que ser livre para casar ou não e para escolher a pessoa com quem se casará. Além disto, o donatário tem que ser livre também para decidir se quer ou não se manter casado. O bem doado não pode servir como mecanismo ilícito de coação para obrigar alguém a se casar, para compelir esse donatário a casar com certa pessoa ou, ainda, para evitar que o donatário desfaça seu casamento se assim desejar. Portanto, ao fazer uma doação tendo em vista o casamento futuro, o doador não poderá restringir a liberdade matrimonial do donatário, considerando-o ingrato por não ceder aos desejos do doador.

 

(e) considerações finais sobre a proibição de revogação da doação por ingratidão

 

Após o que foi exposto, pode-se concluir que o doador poderá revogar a doação por causa de conduta ingrata do donatário, ou seja, nos casos relacionados no art. 1.183, do CC. Mas esse direito do doador somente poderá ser exercido se o contrato de doação não for um daqueles referidos no art. 1.187, do CC. Configurada qualquer das hipóteses mencionadas no art. 1.187, do CC, a doação não poderá ser revogada pelo doador, ainda que o donatário adote conduta de ingratidão. Assim, por exemplo, se o doador fizer uma doação puramente remuneratória ao donatário e este, posteriormente, caluniar o doador, será impossível juridicamente revogar a doação por ingratidão do donatário.

 

A revogação por ingratidão, portanto, só poderá ser pedida nos casos previstos no art. 1.183, do CC e a respeito dos contratos de doação que não sejam abrangidos pelo art. 1.187, também do CC.

CONTRATOS PRELIMINARES – V.3

Prof. Dr. Renato Seixas 

1.997 – revisão em maio/2003

 

1. Generalidades

O estudo do contrato preliminar, também denominado pré-contrato, é importantíssimo. Já foi dito diversas vezes no decorrer das exposições anteriores que o contrato é o principal meio jurídico de circulação de riquezas. Ao celebrarem um contrato, as partes têm em vista, essencialmente, a circulação de determinado bem jurídico patrimonial entre elas, ou em face de terceiros. Muitas vezes, contudo, a transferência imediata do bem objeto do contrato não é possível por razões diversas, ou mesmo porque as partes não querem, naquele instante, realizar aquela transferência do bem, embora desejem assegurar, para o futuro, esse resultado jurídico. Nessas circunstâncias, podem celebrar um contrato preliminar.

Os contratos, em geral, têm objeto substancial, o que significa dizer que alcançam um resultado jurídico de ordem prática e concreta. Num contrato de compra e venda, por exemplo, o vendedor transfere a propriedade do bem vendido ao comprador. O comprador, por sua vez, transfere a propriedade do preço do bem ao vendedor. No contrato de troca, um dos contratantes transfere ao outro a propriedade de um objeto e, por outra banda, adquire a propriedade de bem diverso que lhe é transferido pelo outro contratante. No contrato de doação, o doador transfere a propriedade do bem doado ao donatário. No contrato de locação, o locador transfere ao locatário, temporariamente e mediante certa remuneração, o direito de uso do bem locado para certa finalidade. No contrato de locação de serviços, o locador põe sua força de trabalho físico ou intelectual à disposição do locatário, temporariamente e mediante pagamento. No contrato de mandato, o mandante transfere ao mandatário poder jurídico para que tal mandatário represente o mandante perante terceiros, como se os atos do mandatário houvessem sido praticados pessoalmente pelo mandante. Em todos esses exemplos, o contrato cumpre objetivos concretos, substanciais. Em síntese, o contrato, em si mesmo, possibilita a produção daqueles efeitos acima apontados. Não é o que acontece com o contrato preliminar.

O contrato preliminar tem objeto formal, ou seja, seu objeto é a celebração – no futuro – de outro contrato. Por meio do contrato preliminar cada uma das partes assume uma obrigação de fazer, consistente no dever de declarar, no futuro, uma outra vontade contratual e, assim, celebrar um novo contrato. Essa a razão pela qual se diz que o contrato preliminar tem objeto formal, porque levará as partes a gerarem novo vínculo contratual, diferente do vínculo do contrato preliminar. As partes dão cumprimento às suas respectivas obrigações de fazer, assumidas no contrato preliminar, exatamente quando declararam novas vontades contratuais destinadas a celebrar o contrato previsto naquele contrato preliminar. Por meio desse novo contrato, as partes obterão o resultado prático definitivo que desejam.

Em síntese, no contrato preliminar as partes assumem a obrigação de fazer, isto é, de celebrar, no futuro, um contrato específico, chamado contrato definitivo ou contrato principal.

Alguns exemplos ajudarão a compreender bem a matéria.

Tem-se um contrato preliminar quando “A” promete a “B” que, no prazo de trinta dias, alugará a “B” certo bem imóvel e, por outro lado, “B” promete a “A” que efetivamente tomará aquele bem em locação. Não se tem, ainda, o contrato de locação propriamente dito porque, nesse exemplo, tanto “A” quanto “B” ainda terão que declarar, no futuro, suas respectivas vontades de alugar e de tomar em locação o bem imóvel especificado. As partes cumprirão o contrato preliminar quando, efetivamente, vierem a celebrar o contrato de locação previsto no contrato preliminar.

Outro exemplo. A empresa “C”, por meio de um contrato preliminar, promete vender à empresa “D”, a preços com significativo desconto, peças de reposição e de manutenção de equipamentos industriais. Por sua vez, a empresa “D” promete a comprar aquelas peças, se delas precisar, somente do fornecedor “C”. Nesse exemplo, a empresa “D” ainda não comprou as peças em questão, pois nem mesmo sabe se irá precisar delas. Todavia, se a empresa “D” desejar adquirir aquelas peças, irá declarar sua vontade de comprá-las do fornecedor “C” que, por seu turno, irá declarar sua vontade de vender as peças à empresa “D”. Celebrarão, assim, o contrato de compra e venda que era objeto do contrato preliminar que haviam celebrado anteriormente.

Mais um exemplo. Determinada empresa de estacionamento de veículos celebra com um consumidor um contrato preliminar de prestação de serviços mensal de guarda futura do automóvel do consumidor. Para esse fim, o consumidor paga à empresa de estacionamento a mensalidade pactuada. Ora, o contrato de depósito do veículo é um contrato real e, assim, somente será celebrado no instante em que o consumidor desejar estacionar o veículo, a empresa de estacionamento desejar receber o mesmo veículo em depósito e, ainda, no momento em que o referido automóvel for efetivamente entregue pelo consumidor à empresa de estacionamento. Antes da entrega do carro, inexiste contrato de depósito entre as partes. Logo, o consumidor e a empresa de estacionamento celebraram um contrato preliminar, ou seja, convencionaram que, no futuro, celebrarão contratos de depósito do veículo, no decorrer de certo mês. A cada vez que o consumidor entregar seu automóvel ao estacionamento, as partes estarão cumprindo o aludido contrato preliminar porque estarão celebrando, a cada entrega do veículo, um contrato de depósito. Como se vê, o contrato de prestação de serviços de guarda mensal, que é um contrato consensual (forma-se apenas com a vontade das partes) foi um contrato preliminar a cada contrato de depósito de veículo que as mesmas partes celebraram no decorrer do mês.

O contrato preliminar é, pois, um contrato preparatório de outro contrato futuro. Não deve ser confundido com a fase das negociações preliminares do contrato. O contrato preliminar é um contrato em si mesmo, com todos os requisitos indispensáveis à formação de qualquer contrato. Tem, em síntese, autonomia funcional e estrutural. O contrato preliminar forma-se desde que presentes os seus próprios requisitos essenciais, independentemente de estarem ou não contidos nesse contrato preliminar os requisitos essenciais do contrato definitivo. Já as negociações preliminares são apenas uma fase anterior à celebração de um contrato. Aliás, as negociações preliminares são a primeira das fases de formação dos contratos. Primeiramente as partes negociam seus respectivos interesses relativos a um contrato que, talvez, venham a celebrar. A fase das negociações preliminares não gera obrigação contratual para qualquer das partes negociantes. Superada a fase das negociações, uma das partes apresenta à outra uma proposta contratual, ou seja, uma declaração de vontade de contratar e que já apresenta todos os elementos essenciais do contrato proposto. Feita a proposta, o proponente tem obrigação de manter os termos e condições que propôs. Para que o contrato seja então celebrado faltará, apenas, que a parte destinatária da proposta a aceite. Formado o contrato, as partes estão obrigadas a cumpri-lo.

Como se vê, são completamente diferentes, na estrutura e nos efeitos, as negociações preliminares e os contratos preliminares. Estes últimos têm autonomia porque são em tudo e por tudo, contratos e, portanto, instrumentos jurídicos aptos a produzir efeitos contratuais. Os contratos preliminares têm autonomia porque existem e têm validade desde que presentes seus próprios requisitos essenciais. Os contratos preliminares prestam-se a atender necessidades específicas do comércio jurídico, fixando alguns dos efeitos do contrato futuro que lhes serve de objeto. O contrato preliminar obriga as partes a contratarem o contrato futuro a que se refere.

 

2. Conceito de contrato preliminar

Contrato preliminar é um contrato com todos os seus respectivos elementos essenciais e que tem por objeto a obrigação de fazer, assumida pelas partes, consistente na conduta de celebrarem outro contrato, futuro, chamado contrato definitivo ou principal.

Após todas as considerações gerais já apresentadas, pode-se concluir que o objeto do contrato preliminar é a celebração futura de outro contrato. Não basta que um contrato tenha outro por objeto para que se caracterize um contrato preliminar.

Por exemplo, imagine-se que “A” e “B” celebraram um contrato de locação e que nesse contrato tenha sido incluída uma cláusula permitindo a “B”, locatário, a cessão do contrato de locação independentemente do consentimento de “A”, locador. O locatário “B”, de fato, transfere sua posição de locatário ao sujeito “C”, apenas comunicando essa cessão ao locador “A”. Ora, o contrato de cessão celebrado entre “B” e “C” teve por objeto o contrato de locação celebrado entre “A” e “B”. Nem por isto se teve, em qualquer dos casos, um contrato preliminar. No contrato de locação entre “A” e “B” nenhum dos contratantes assumiu a obrigação de celebrar, no futuro, outro contrato. Se o locatário “B” quisesse, talvez, ceder sua posição contratual a terceiro, poderia fazer isto. Mas não era obrigado a ceder sua posição contratual. Ao ser feita a cessão da posição de “B” para “C”, o locador “A” não celebrou novo contrato. Ao contrário, continuou sendo locador por força do mesmo contrato de locação que já havia celebrado com “B”. Por outro lado, o contrato de cessão havido entre “B” e “C” não teve por objeto um contrato futuro, mas sim um contrato passado, ou seja, o contrato de locação que fora celebrado entre “A” e “B”.

O contrato preliminar se caracteriza pelo fato de que cada parte assume uma obrigação de fazer. Essa obrigação de fazer de cada parte consiste no dever jurídico de declarar nova vontade contratual para formar o contrato definitivo. Assim, o contrato preliminar é aquele em que as partes se obrigam a celebrar contrato futuro, mediante declarações de vontade que farão para esse fim em cumprimento do contrato preliminar.

 

3. Requisitos do contrato preliminar

O contrato preliminar é um contrato e não apenas a fase preparatória de um contrato. Por isto, deve apresentar todos os requisitos necessários à formação de um contrato, a saber, capacidade das partes contratantes, possibilidade física e jurídica do objeto do contrato e forma correta das declarações de vontade. Em síntese, os requisitos do contrato preliminar são os seguintes.

(1º) Capacidade das partes contratantes do contrato preliminar

Por ser um contrato como outro qualquer, o contrato preliminar precisa apresentar declarações de vontades feitas por partes dotadas de capacidade genérica e, ainda, capacidade específica para a celebração do próprio contrato preliminar.

Não se deve confundir a capacidade para celebrar o próprio contrato preliminar com a capacidade para celebrar o contrato futuro que é objeto do contrato preliminar.

Se, ao celebrar o contrato preliminar, uma das partes não for capaz de para declarar sua vontade de celebrar o próprio contrato preliminar, então esse contrato será juridicamente inexistente por falta de declaração de vontade de agente capaz, como prevê o art. 166, I, do NCC.

Sendo capazes as partes, poderão celebrar o contrato preliminar. O objeto desse contrato preliminar é obrigar as partes a celebrarem no futuro o contrato definitivo. Evidente, portanto, que as partes do contrato preliminar deverão ter capacidade também para celebrar o contrato definitivo. Mas isto não quer dizer que a capacidade das partes para a celebração do contrato definitivo se confunda com a capacidade delas para celebrarem o contrato preliminar. O contrato definitivo é objeto do contrato preliminar e é, por conseguinte, requisito objetivo deste último contrato. Não é necessário que as partes, já na ocasião da celebração do contrato preliminar, tenham capacidade para a celebração do futuro contrato definitivo. De fato, nada impede que somente após a celebração do contrato preliminar as partes venham a adquirir a capacidade para a celebração do contrato definitivo. O que se requer é que, no momento previsto para a celebração do contrato definitivo, as partes tenham efetivamente capacidade para celebrá-lo.

É preciso verificar se a incapacidade da parte para celebrar o contrato definitivo ocorreu antes ou depois da celebração do contrato preliminar. A questão tem que ser examinada tendo-se em vista que o contrato definitivo é requisito objetivo do contrato preliminar, porque o objeto deste contrato preliminar é, exatamente, a declaração de vontade que cada uma de suas partes terá que fazer para dar origem ao contrato definitivo.

 

(2º) Licitude e possibilidade do objeto do contrato preliminar

O contrato definitivo é objeto do contrato preliminar. Portanto, o contrato definitivo precisa preencher os requisitos de qualquer negócio jurídico, a saber: (a) suas partes deverão ser capazes de declarar suas respectivas vontades contratuais; (b) o objeto  há de ser lícito, direta e indiretamente;   (c) o objeto há de ser possível, material e juridicamente; e (d) as vontades declaradas deverão estar revestidas por forma adequada.

Ora, o contrato definitivo, para ser lícito e possível, haverá de preencher, por sua vez, todos os requisitos essenciais que lhe dão existência, validade e eficácia. Para que isto ocorra, o contrato definitivo deverá ser celebrado por partes capazes de declarar as vontades que lhe darão existência, precisará ter objeto lícito e possível e deverá adotar a forma que a lei lhe prescrever ou a que a lei não proibir (art. 104, do NCC).

O contrato definitivo que não apresente partes capazes de celebrá-lo, ou que tenha por objeto bem ilícito ou impossível, ou ainda que não adote a forma adequada, não terá sequer existência jurídica (arts. 104 e 166, I, II e III, do NCC). Por outro lado, se qualquer desses elementos essenciais apresentar vício, o contrato será nulo ou anulável, conforme disposto nos arts. 166, IV e V e 171, do NCC.

Desde logo se pode concluir, então, que os requisitos essenciais do contrato preliminar não se confundem com os requisitos essenciais do bem objeto de tal contrato preliminar. O objeto deste contrato é a celebração futura do contrato definitivo. Este bem jurídico – o contrato definitivo – haverá de preencher seus próprios requisitos, sob pena de prejudicar, como se verá adiante, a existência, a validade ou a eficácia do contrato preliminar.

Para que se tenha bem esclarecida essa situação, imagine-se, a título de exemplo, que não se estivesse tratando aqui de contrato preliminar. Suponha-se que se esteja falando de um contrato de compra e venda de um automóvel. Alguém que não é dono do veículo não pode vendê-lo, pois não tem capacidade específica para isto, ou seja, não é titular da propriedade do automóvel. Se fizesse a venda do carro, o contrato seria nulo por incapacidade específica do vendedor (arts. 104 e 166, I, do NCC). Por outro lado, pense-se no caso de um tutor ser o comprador do automóvel pertencente ao tutelado. O dono do carro (o tutelado), por intermédio de seu tutor, poderia vender o automóvel a qualquer pessoa, menos ao seu tutor, porque este está legalmente proibido de adquirir tal bem (art. 1749, I, do NCC). Se o tutor, por si ou por interposta pessoa, viesse a adquirir o automóvel do tutelado, o contrato seria nulo por falta de capacidade específica do tutor para celebrar tal contrato (arts. 104, 166, I e 1749, I, do NCC). Imagine-se, agora, que tanto o vendedor como o comprador do carro fossem pessoas capazes de celebrar o contrato de compra e venda, mas o veículo estivesse gravado com o ônus de inalienabilidade. Ora, o automóvel  qualificado como bem inalienável não pode ser vendido. Logo, é juridicamente impossível que o carro seja objeto de contrato de compra e venda. Se o contrato for celebrado com esse vício, será nulo por força dos arts. 104 e 166, II, do NCC. Por fim, suponha-se que as partes são capazes, que o objeto é lícito e possível e que o carro tenha valor superior a dez salários mínimos. Nesse caso, esse contrato de compra e venda precisará ser celebrado por escrito, já que inadmissível para ele a prova exclusivamente testemunhal. Ocorre que, de acordo com a legislação de trânsito, há um modelo oficial de documento de transferência de propriedade de veículos automotores. Logo, as partes terão que adotar essa forma mínima na celebração do contrato. Se não a adotarem, não conseguirão obter o efeito desejado, a saber, registrar a propriedade do veículo vendido no nome do comprador. Nesse caso, o defeito de forma não prejudica a existência e a validade do contrato de compra e venda do carro, mas sim sua eficácia natural perante terceiros (arts. 104 e 166, III e IV, do NCC).

Esse exemplo da compra e venda do automóvel é inteiramente aplicável ao caso do contrato preliminar. Imagine-se que o contrato de compra e venda referido no exemplo seja o contrato preliminar, o que significa dizer que o contrato preliminar deve apresentar seus próprios requisitos. Por outro lado, imagine-se que o automóvel mencionado no exemplo seja o contrato definitivo. Assim como o veículo (objeto do contrato de compra e venda) precisou ser lícito e possível, também o contrato definitivo (objeto do contrato preliminar) deverá ser lícito e possível. A licitude e possibilidade do contrato definitivo estão no fato de tal contrato apresentar, por sua vez, todos os seus elementos essenciais previstos nos arts. 104 e 166, do NCC, além dos requisitos específicos que a lei previr para cada modalidade de contrato.

Por isto, ao se proceder ao exame do requisito objetivo do contrato preliminar (isto é, do objeto do contrato preliminar), tem-se que analisar – em relação ao contrato definitivo – a capacidade das partes, a licitude e possibilidade do objeto e a forma.

(A) Capacidade das partes para a celebração do contrato definitivo

As hipóteses aqui examinadas são aquelas em que as partes que têm capacidade para celebrar um contrato preliminar, mas não têm ou não terão capacidade para a celebração do contrato definitivo.

Como já foi evidenciado anteriormente, o objeto do contrato preliminar é a celebração do contrato definitivo, no futuro. Se não for possível celebrar o contrato definitivo previsto no contrato preliminar, então duas situações poderão ocorrer, a saber:

(1ª) o contrato preliminar existe, é válido, mas é inexeqüível por impossibilidade superveniente de seu objeto

Nessa situação, as partes tinham capacidade para celebrar o contrato preliminar e também tinham capacidade para a celebração do contrato definitivo (ou, pelo menos, poderiam vir a ter capacidade para celebrarem o contrato definitivo). Todavia, após a celebração do contrato preliminar, as partes que eram até então capazes (ou poderiam se tornar capazes) para celebrar um contrato definitivo, perdem tal capacidade. Se, após celebrado o contrato preliminar, a parte perder sua capacidade para celebrar o contrato definitivo, então o contrato preliminar terá que ser resolvido por impossibilidade absoluta de execução de seu objeto. Havendo culpa da parte pela perda de sua capacidade, terá que indenizar os prejuízos causados à outra parte. Inexistindo culpa da parte pela perda de sua capacidade, o contrato preliminar será simplesmente resolvido (art. 248, do NCC).

É o que ocorre, por exemplo, quando “A”, sendo solteiro, promete alugar seu imóvel a “B” por prazo superior a dez anos. O contrato de locação, que é o objeto do contrato preliminar entre “A” e “B”, teria que ser celebrado num prazo de até seis meses, a contar da data de celebração do referido contrato preparatório. Nesse prazo, “A” vem a se casar com “C” e, por força da Lei 8.245/91, “C” tem que manifestar sua concordância com a vontade de “A” em alugar para “B” um imóvel por prazo superior a dez anos. Nesse caso, pode-se notar que quando “A” e “B” celebraram o contrato preliminar, “A” era perfeitamente capaz de celebrar, no futuro, o mencionado contrato de locação, já que era solteiro. Depois de casar-se, “A” não tem mais capacidade para, sozinho, celebrar aquele contrato de locação. Precisará inexoravelmente do consentimento do seu cônjuge. Ora, se “C”, justificadamente, negar seu consentimento à celebração do contrato de locação entre “A” e “B”, então “A” não terá como cumprir a obrigação  que assumiu no contrato preliminar por lhe faltar capacidade específica para esse fim. Não havendo culpa de sua parte, o contrato preliminar deve ser resolvido.

Pode-se citar, ainda, outro exemplo bastante semelhante ao apresentado acima. “D”, sendo ainda solteiro, promete vender um imóvel a “E”. Após a celebração do contrato preliminar, “D” casa-se com “F”. Por força dos arts. 1647, I, do NCC, “D” não pode vender imóvel a “E” sem que “F” (cônjuge de “D”) concorde com isto. Se “F” negar-se a dar seu consentimento por motivo justo, o contrato de compra e venda do imóvel não poderá ser celebrado por falta de capacidade específica de “D”.

Um último exemplo. “G” promete vender seu imóvel a “H”. Antes de ser celebrado o contrato de compra e venda objeto do contrato preliminar, o Poder Público expropria o bem e torna-se proprietário dele. Evidentemente, “G” não mais poderá vender o bem a “H” porque “G” deixou de ser o proprietário do imóvel. Nesse caso, o contrato preliminar resolver-se-á sem culpa de “G”.

(2ª) o contrato preliminar não existe por impossibilidade absoluta originária de seu objeto

Esta segunda situação é mais delicada que a anterior. Nesse caso, as partes tinham capacidade para celebrar o contrato preliminar, mas, por outro lado, não tinham e nem poderiam ter capacidade para a celebração do contrato definitivo.

Ora, se ao celebrarem o contrato preliminar as partes não tinham, nem poderiam ter, capacidade para a celebração do contrato definitivo, então é óbvio que tal contrato preliminar não tinha – já na sua origem – objeto possível. A impossibilidade absoluta originária do objeto de um contrato torna o mesmo contrato nulo, como determinam os arts. 166, II,  e 106, do NCC. Assim, se ao celebrarem o contrato preliminar as partes já sabiam, ou deveriam saber, que o contrato definitivo não poderia ser celebrado porque pelo menos uma das partes era e continuaria sendo incapaz para celebrá-lo, fica claro que o objeto do contrato preliminar jamais poderia ser cumprido.

A consequência legal para essa situação é a de que o próprio contrato preliminar não existe juridicamente. Mas, note-se bem, o contrato preliminar inexiste não porque suas partes fossem incapazes de celebrá-lo, mas sim porque seu objeto é absolutamente impossível de ser cumprido (isto é, as partes, embora capazes para celebrar o contrato preliminar, são e permanecerão sendo incapazes para celebrar o contrato definitivo que é o objeto do contrato preliminar).

Sendo assim, a parte que culposamente deu causa à impossibilidade absoluta do objeto do contrato preliminar, impossibilidade esta já existente antes da celebração do contrato preliminar, haverá de responder pelas perdas e danos causadas à parte inocente do mesmo contrato preliminar. Observe-se que essa responsabilidade civil não é contratual, mas extracontratual, porque – por falta de objeto possível – o contrato preliminar não chegou a existir juridicamente.

Por exemplo. O art. 1749, I, do NCC, proíbe que o tutor adquira bens do tutelado. Se, por exemplo, o tutor celebrasse com seu tutelado (este representado nesse ato especial por outrem) um contrato preliminar em que o tutelado prometesse vender ao tutor certo bem, após o encerramento da tutela, tal contrato preliminar seria nulo nos termos do art. 1749, do NCC. É que, embora o contrato preliminar assim celebrado não se confunda com a própria compra e venda a que se refere, está evidente que o tutelado, no futuro, ao cumprir tal contrato preliminar, estaria vendendo ao seu antigo tutor um bem que, durante o exercício da tutela, o tutor não tinha e não poderia ter capacidade específica para adquirir.

(B) Licitude e possibilidade do contrato definitivo

O contrato definitivo é objeto do contrato preliminar. Não se deve confundir, porém, o objeto do contrato preliminar com o objeto do contrato definitivo. Este contrato definitivo, enquanto objeto do contrato preliminar ou não, precisa ter objeto lícito e possível. Se o contrato definitivo tiver objeto ilícito ou impossível, então, por via de consequência, o contrato preliminar igualmente terá objeto ilícito ou impossível. Nessas circunstâncias, o contrato preliminar será juridicamente inexistente por não atender as exigências dos arts. 104 e 166, II, do NCC.

Conclui-se, assim, que o objeto do contrato preliminar somente será lícito e possível se o contrato definitivo contiver todos os seus próprios elementos essenciais e, notadamente, objeto lícito e possível. Essa matéria merece alguns esclarecimentos.

(I) Licitude do objeto de um contrato

(a) ilicitude do objeto e ilicitude dos efeitos contratuais

O objeto de qualquer ato jurídico há de ser lícito, direta e indiretamente. Entende-se por licitude do objeto a inexistência de proibição legal para que o bem seja comercializado juridicamente. Em certas situações, o bem jurídico, em si mesmo considerado, não é lícito ou ilícito e, assim, a lei passa a ter em vista não o citado bem, e sim os efeitos produzidos com a comercialização jurídica daquele objeto. Nesse caso, esses efeitos é que serão lícitos ou ilícitos. Um exemplo comum ajudará a esclarecer esta observação.

Imagine-se um simples toca-fitas. Esse toca-fitas não é, em si mesmo, um bem lícito ou ilícito. Um sujeito furta aquele toca-fitas do verdadeiro dono e, a seguir, vende o mesmo objeto a outrem. Ora, o objeto, isto é, o toca-fitas, não teve alteradas as suas qualidades intrínsecas. O toca-fitas, em si mesmo, não é um objeto lícito ou ilícito. Mas a venda de um toca-fitas furtado é ilícita, porque a lei agregou àquele objeto uma circunstância que o Direito reprova: o furto, a má procedência do bem, sua transmissão em desacordo com as normas vigentes. Portanto, nesse exemplo, o toca-fitas não se transformou num objeto ilícito. No aludido contrato de compra e venda a ilicitude do objeto está na existência do furto, que prejudica a normal circulação jurídica do toca-fitas.

Veja-se, agora, um outro exemplo. Alguém – aliás, de modo absolutamente deplorável – contrata crianças para prestarem serviços de prostituição infantil. Esses serviços de natureza sexual, a serem prestados por crianças, são em si mesmos ilícitos dentro do Direito brasileiro. Não se trata de simplesmente agregar a tais serviços uma reprovação jurídica. A prostituição infantil, enquanto modalidade de prestação de serviço, é em si mesma reprovável, é intrinsecamente anormal, porque a maturidade física e emocional da criança é completamente incompatível com esse tipo de prática sexual. O contrato em questão tem, portanto, um objeto ilícito por sua própria natureza.

Enfim, a ilicitude do objeto de um contrato pode referir-se: (a) ao próprio objeto em si mesmo considerado, em decorrência de suas características intrínsecas; ou (b), aos efeitos decorrentes do contrato, os quais a lei considera incompatíveis com a ordem jurídica. Por economia de linguagem – e só para esse fim – é que se diz, a respeito das duas hipóteses acima indicadas, que o objeto do contrato é lícito ou ilícito. Na verdade, o que se quer dizer é que o objeto é em si mesmo lícito ou ilícito, ou que os efeitos do contrato são lícitos ou ilícitos.

(b) ilicitude direta e ilicitude indireta do objeto

A licitude ou ilicitude do objeto contratual, bem como a licitude ou ilicitude dos efeitos do contrato, precisam ser analisadas sob dois aspectos: (a) deve-se verificar se a lei não veda, diretamente, que certo objeto seja comercializado juridicamente em certo contexto; e (b) deve-se examinar se, embora não havendo vedação legal direta a respeito do comércio jurídico do bem, o contrato teria um objeto ilícito por violar indiretamente a ordem jurídica.

Se a lei proíbe o comércio jurídico de certo bem e, mesmo assim, as partes celebram um contrato tendo por objeto exatamente aquele bem a que se referiu a lei, diz-se então que o contrato tem objeto diretamente ilícito. Posto o contrato em confronto direto com a lei, constata-se a vedação legal do comércio do bem jurídico objeto do contrato.

Alguns exemplos elucidarão a matéria.

O corpo humano vivo e suas partes vitais não podem ser objeto de compra e venda no comércio jurídico, por expressa vedação legal. Esses bens, portanto, seriam objetos diretamente ilícitos do referido contrato de compra e venda. Mas, note-se bem: não é o corpo humano vivo, ou suas partes, que são intrinsecamente bens lícitos ou ilícitos. O que se qualifica como ilícito é o efeito contratual de vender o corpo humano vivo ou suas partes vitais.

A lei proíbe diretamente a venda de entorpecentes por pessoa não autorizada legalmente a comercializar esses bens para fins terapêuticos. O comércio não autorizado de entorpecentes tem objeto ilícito. Também nesse caso não é o próprio entorpecente o bem lícito ou ilícito. Ilícito é o comércio não autorizado desse bem.

Outro exemplo: “A” promete vender a “B”, no futuro, os bens componentes da herança que “A”, como herdeiro, vier a receber de “C”, ainda vivo. Esse contrato preliminar será nulo ilicitude absoluta de seu objeto. O art. 426, do NCC, veda a celebração de qualquer contrato que tenha por objeto a herança de pessoa viva. Logo, enquanto viver “C”, o sujeito “A” não tem e nem terá capacidade para vender a “B” os bens integrantes do patrimônio de “C”. Outra vez deve-se notar que a herança, enquanto conjunto de bens universais, não é em si mesma intrinsecamente lícita ou ilícita. O que veda a lei são os efeitos (ilícitos) do comércio contratual de herança de pessoa viva.

Há situações, contudo, em que a ilicitude do objeto não se manifesta claramente, diretamente. Por via oblíqua, as partes comercializam juridicamente um objeto em contrariedade à vedação legal. Ocorre que, em certos casos, as partes celebram um contrato que não viola diretamente a lei, de modo que não se poderia dizer, a princípio, que o objeto do contrato é diretamente ilícito. Mas, nesses casos, as partes articulam o contrato de tal maneira que, indiretamente, a ordem jurídica é ofendida. Em situações assim, diz-se que o objeto do contrato é ilícito indiretamente, porque não se pode constatar a violação ostensiva da lei. Entretanto, bem examinadas as circunstâncias, observa-se que por vias oblíquas a lei foi desrespeitada.

Exemplo tradicional é o do art. 496, do NCC. Os ascendentes não podem vender bem imóvel a um de seus descendentes sem que os demais descendentes concordem com isto. Se for celebrado o contrato de compra e venda entre os ascendentes e um descendente, sem o consentimento dos demais descendentes, tal contrato teria objeto ilícito. Entenda-se bem que não há ilicitude do imóvel propriamente dito. O objeto ilícito de que aqui se trata é a transferência da propriedade desse imóvel ao comprador em prejuízo dos demais descendentes. Diante dessa proibição legal, os ascendentes, ao invés de venderem o imóvel ao descendente, realizam apenas um contrato de doação do mesmo bem em favor daquele descendente. Por outro lado, o descendente donatário do bem imóvel, por sua vez, realiza outro contrato de doação em favor de seus ascendentes, doando-lhes dinheiro em montante aproximado ao valor do bem imóvel que já recebeu por doação. Isoladamente, os dois contratos de doação aparentam ter objetos perfeitamente lícitos. Combinados esses contratos, percebe-se que indiretamente violaram a proibição contida no art. 496, do NCC.

Outro exemplo. A lei veda o comércio de substâncias entorpecentes. Somente empresas legalmente constituídas e que tenham por objeto a produção de medicamentos podem – se para tanto autorizadas pelo órgão fiscalizador competente – comercializar aquelas substâncias. O comércio de entorpecentes fora dessa situação é ilegal. Um grupo de pessoas, então, constitui uma empresa farmacêutica, obtém todas as autorizações necessárias e passa a adquirir drogas entorpecentes. Entretanto, não usa essas substâncias apenas para a fabricação de medicamentos, mas sim as comercializa com usuários de drogas alucinógenas. Vê-se, nesse exemplo, que os contratos celebrados pela empresa farmacêutica são aparentemente lícitos. Indiretamente, contudo, violam a lei.

(c) efeitos da ilicitude do objeto contratual

A ilicitude, direta ou indireta, do objeto contratual produzirá efeitos diferentes conforme se caracterize antes da celebração do contrato ou após a formação dele.

Caracterizando-se a ilicitude do objeto antes da formação do vínculo contratual, o contrato será juridicamente inexistente por força dos arts. 104 e 166, II, do NCC. É a denominada ilicitude originária do objeto contratual. O bem objeto do contrato era ilícito antes da contratação e continuou a sê-lo após a celebração do contrato. Logo, por falta de objeto lícito, o contrato não se forma e é tratado pela lei como ato nulo. Pode-se repetir, a esse propósito, os exemplos já dados de compra e venda do corpo humano, de prestação de serviços de prostituição infantil, de compra e venda de toca-fitas furtado ou de compra e venda de herança de pessoa viva.

Pode acontecer, contudo, que no momento da formação do vínculo contratual, o bem que lhe serve de objeto seja perfeitamente lícito e, após a celebração do contrato, venha a tornar-se um objeto ilícito. É a chamada ilicitude superveniente do objeto contratual. Tornando-se ilícito o objeto do contrato após a sua celebração, esse contrato terá que ser resolvido. O contrato era existente, válido e eficaz, mas, agora, diante da ilicitude superveniente de seu objeto, precisará ser dissolvido.

Pense-se no comerciante que celebra um contrato por meio do qual deseja transferir a outrem seu ponto comercial. Na ocasião de celebração do contrato de transferência de ponto comercial, esse objeto – o ponto comercial – era perfeitamente lícito. O comerciante poderia, naquele local, praticar regularmente seu comércio. Posteriormente, o Poder Público, por exemplo, altera a lei de zoneamento e veda o exercício da atividade comercial naquele ponto. O contrato de transferência do ponto comercial passou a ter objeto ilícito, porque não é mais permitido o exercício do comércio naquele lugar.

Outro exemplo ilustrativo. Alguém presta serviços a outra pessoa, mediante pagamento de certa remuneração que deve ser reajustada mensalmente de acordo com a variação de certo índice de medição inflacionária. O pagamento dos serviços nessas condições é perfeitamente lícito. No decorrer do contrato muda a legislação e, a partir de então, o reajuste do preço dos serviços somente poderá ser feito anualmente. Assim, o reajuste mensal do preço dos serviços tornou-se ilícito depois de celebrado o contrato. Se as partes não se ajustarem à nova sistemática legal, o contrato terá que ser resolvido.

É interessante notar que tanto a licitude direta como a indireta podem ser absolutas ou relativas. Noutras palavras, há objetos que são ilícitos (direta ou indiretamente) para todos os sujeitos de direito. Por exemplo, ninguém poderá celebrar contrato de compra e venda do corpo humano vivo. É um caso de ilicitude absoluta do objeto. Outras vezes, o objeto é ilícito para certos sujeitos e não o é para outros. Uma pessoa que exerce a tutela poderá comprar bens de qualquer sujeito, exceto os de seu tutelado. Logo, a compra e venda de bens do tutelado é ilícita apenas para o seu tutor, não o sendo para outras pessoas em geral.

(d) consequências da ilicitude do objeto do contrato definitivo sobre o contrato preliminar

A ilicitude do objeto do contrato definitivo afetará também o contrato preliminar. É que, como tantas vezes já foi mencionado, o contrato definitivo é objeto do contrato preliminar.

O contrato definitivo será juridicamente inexistente se seu objeto for originalmente ilícito. Assim acontecendo, também o contrato preliminar será inexistente, pois não terá – já na sua origem – objeto lícito, vale dizer, um contrato definitivo com objeto também lícito.

Como foi mencionado anteriormente, o tutor não pode adquirir bens de seu tutelado (arts. 1749, I, 166, II e 104, do NCC). Se o tutor celebrar com seu tutelado um contrato preliminar, por meio do qual as partes se comprometam, no futuro, após o fim da tutela, a celebrar o contrato de compra e venda que agora não poderiam celebrar, é evidente que esse contrato preliminar seria nulo por ilicitude de seu objeto. Quem não pode vender, não pode prometer vender. Quem não pode adquirir, igualmente não pode prometer adquirir. O contrato preliminar em questão seria inexeqüível. É lógico que, depois de cessada a tutela e aprovadas judicialmente as contas do tutor, poderá ele – já não mais como tutor – adquirir o bem de seu antigo tutelado. Mas esses sujeitos contratarão livremente e não como cumprimento da obrigação de fazer que assumiram num contrato preliminar celebrado durante a vigência da tutela.

Por outro lado, se o contrato definitivo tiver objeto que somente se tornou ilícito após a sua celebração, tal contrato terá existido, terá sido válido e poderá até ter produzido efeitos. A ilicitude superveniente de seu objeto causa sua resolução. Nessas circunstâncias, o contrato preliminar que tivesse por objeto aquele contrato definitivo também seria  resolvido por ilicitude superveniente de seu próprio objeto.

Pode-se retomar, aqui, o exemplo do comerciante que celebra um contrato preliminar por meio do qual promete transferir a outrem, no futuro, seu ponto comercial. Na ocasião de celebração do contrato preliminar, a transferência do ponto comercial seria lícita. Esse objeto – o ponto comercial – era perfeitamente lícito e podia ser objeto de contrato. Posteriormente, o Poder Público vem a alterar a lei de zoneamento e veda o exercício da atividade comercial naquele ponto. O contrato de transferência do ponto comercial não mais poderá ser celebrado porque passou a ter objeto ilícito. Por causa disto, o objeto do contrato preliminar (que era a contratação da transferência do ponto), também não poderá mais ser cumprido e terá que ser resolvido.

 (II) Possibilidade do objeto de um contrato

O objeto de qualquer ato jurídico há de ser possível material e juridicamente. O contrato preliminar é antes de tudo um ato jurídico e, assim, seu objeto – que é o contrato definitivo – precisa ser possível material e juridicamente.

(a) objeto materialmente possível

O objeto é materialmente possível quando existe ou poderá existir no mundo físico. Por exemplo, é perfeitamente possível, atualmente, realizar uma cirurgia num paciente com o emprego de raio LASER. A prestação desse serviço médico é materialmente possível nos dias atuais. Há cem anos atrás, esse mesmo serviço médico seria materialmente impossível e o contrato que o tivesse por objeto seria nulo exatamente porque não era viável a execução do serviço.

A contratação do transporte rodoviário de mercadorias de uma cidade para outra, sem que entre as duas localidades exista uma rodovia, não é materialmente possível. A fissão do átomo era uma atividade materialmente impossível até pouquíssimas décadas atrás, porque não havia tecnologia para isto.

Enfim, a possibilidade material do objeto de um ato jurídico está, exatamente, no fato de ser viável a existência de tal objeto para os fins previstos no contrato.

No que concerne à possibilidade jurídica do objeto do contrato, a questão é um pouco mais delicada e merece detido exame.

(b) objeto juridicamente possível

A literatura e mesmo a jurisprudência, em geral, falam de possibilidade ou impossibilidade jurídica do objeto como se tais designações fossem, respectivamente, sinônimos de licitude ou ilicitude do mesmo objeto. Esses conceitos não devem e não podem ser confundidos.

As normas jurídicas estabelecem padrões de conduta para os seres humanos de certo grupamento social. Essas normas podem impor uma conduta, proibir outra conduta e ainda permitir uma terceira conduta. Ao regular padronizadamente esses comportamentos, as normas jurídicas têm em vista um fato da vida (fato jurídico) ao qual atribuem certos efeitos jurídicos. O objeto das normas jurídicas é sempre o comportamento humano num dado contexto. Esse comportamento, por seu turno, refere-se a bens jurídicos, que são, portanto, os objetos dos comportamentos humanos disciplinados pelas normas jurídicas.

Quando se diz que um objeto é lícito, isto significa que o próprio objeto intrinsecamente considerado, ou ainda o comportamento do ser humano sobre aquele objeto, enquadram-se no padrão especificado pela lei. Noutros termos: (a) a lei impôs a seu destinatário uma conduta sobre certo objeto e, efetivamente, essa conduta foi cumprida; (b) a lei vedou que seu destinatário adotasse determinado comportamento a respeito de um bem e o destinatário, de fato, não realizou o comportamento proibido; ou (c) a lei permitiu ao seu destinatário que se comportasse em relação a um bem jurídico como quisesse e, então, o sujeito escolheu a conduta desejada por ele próprio. Todavia, se o sujeito destinatário da norma jurídica se comporta de modo diferente daquele especificado, comete uma conduta ilícita, ou seja, adota um comportamento que não corresponde ao padrão fixado pela regra jurídica. Esse sujeito será punido pela sua desobediência, por seu desrespeito à norma jurídica.

A conduta ilícita, portanto, é uma conduta: (1º) prevista pelo ordenamento jurídico; (2º) regulada pelo mesmo ordenamento; e (3º) que produz efeitos no sistema jurídico. Quando se fala de objeto ilícito, cogita-se disto tudo. Quer-se saber qual era a conduta a ser obedecida; quer-se conhecer quais as consequências decorrentes da desobediência à conduta padronizada pela norma; quer-se aplicar a punição ao sujeito desobediente.

Mas, fixadas essas premissas todas, pode-se afirmar que nem tudo o que é possível juridicamente é necessariamente lícito. De outro lado, nem tudo o que é impossível juridicamente é sempre ilícito.

A conduta ilícita está sempre regulada pelo ordenamento jurídico. A norma que prevê uma conduta ilícita proíbe que tal conduta seja praticada. Todavia, a conduta que é possível juridicamente nem sempre estará disciplinada pelas normas jurídicas e nem sempre será lícita. Por exemplo, a norma jurídica penal expressa um padrão de conduta ao dizer: “matar alguém: pena …”. O que esta norma diz, em síntese, é que é proibida a conduta de matar outra pessoa. A conduta de matar é prevista pela lei e é considerada ilícita, acarretando para o homicida culpado a pena prevista na norma. Mas, observe-se bem, é juridicamente possível matar alguém, apesar de essa conduta ser considerada ilícita. A norma penal admite a possibilidade de uma pessoa matar outra. Por isto mesmo precisou estabelecer a punição para o sujeito que praticar homicídio. O homicídio é ilícito, porém é possível juridicamente.

Nota-se, assim, que objeto juridicamente possível é aquele conhecido – implícita ou explicitamente – pelo ordenamento jurídico. Muitas vezes as normas jurídicas conhecem o objeto juridicamente possível e o regulam, especificando se aquele objeto será lícito ou ilícito. Outras vezes, as normas jurídicas reconhecem o objeto juridicamente possível, mas não o regulam.  Por exemplo, até há poucos anos atrás, o Direito brasileiro não regulava o contrato de leasing. Entretanto, tal contrato era implicitamente possível, já que nenhuma norma jurídica cogitou dele para proibi-lo.

Da mesma maneira, nem tudo o que é impossível juridicamente é ilícito. A conduta ou o objeto ilícito, como foi esclarecido, estão regulados pelas normas jurídicas. Portanto, essa conduta ou seu objeto existem, são possíveis, dentro do ordenamento jurídico. A conduta juridicamente impossível não está prevista pelas normas jurídicas. Não se trata de dizer que essa conduta impossível juridicamente é ilícita ou é lícita. O objeto lícito e o ilícito são ambos objetos possíveis dentro do sistema normativo. Já o objeto impossível juridicamente é aquele ignorado pelo ordenamento jurídico, que não o aceita nem mesmo de modo implícito.

Outro exemplo. O Direito brasileiro, acompanhando a tradição do direito ocidental romano-germânico, estabeleceu o princípio de que somente a lei pode criar os chamados direitos reais. É o princípio do numerus clausus dos direitos reais, ou seja, só existem os direitos reais que a própria lei – e somente ela – estabelecer. Nenhum direito real pode ser criado senão pela lei. Portanto, é juridicamente impossível que dois contratantes criem um direito real não previsto em lei. Também aqui a questão não é saber se esse direito real criado pelos contratantes é lícito ou ilícito. Esse direito real simplesmente é desconhecido pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Nos dois exemplos citados, como em muitos outros que se poderia apresentar, as características marcantes são estas: (1ª) o objeto juridicamente impossível é desconhecido, ignorado, pelo ordenamento normativo que, por isto mesmo, não qualifica aquele objeto como lícito ou ilícito; (2ª) o ordenamento jurídico não permite a penetração do objeto juridicamente impossível no seu universo.

Mais um exemplo. Anteriormente à emenda constitucional que introduziu o divórcio no Direito brasileiro, esse instituto era desconhecido pelo sistema normativo do país. Ninguém poderia requerer o divórcio no Brasil porque o ordenamento jurídico não o conhecia. O pedido de divórcio era juridicamente impossível. O divórcio, por conseguinte, não era lícito ou ilícito: era impossível dentro do sistema. Depois que o divórcio ingressou no ordenamento jurídico do país, o pedido de divórcio tornou-se juridicamente possível. A lei estabeleceu os requisitos a serem preenchidos pelas pessoas que quisessem se divorciar. Ora, aqueles que preenchessem os citados requisitos, formulariam um pedido de divórcio possível e lícito. Os que formulassem o pedido de divórcio sem preencherem os requisitos legais, formulariam um pedido possível (porque admitido pela ordem jurídica), porém ilícito (porque não cumpriram as exigências legais).

Pode-se concluir, assim, que não é correto assimilar os conceitos de objeto lícito e de objeto possível. Também não é adequado confundir os conceitos de objeto ilícito com o de objeto impossível.

(c) consequências da impossibilidade do objeto do contrato definitivo sobre o contrato preliminar

A impossibilidade material ou jurídica do objeto do contrato definitivo afetará também o contrato preliminar porque, repita-se, o contrato definitivo é objeto do contrato preliminar.

O contrato definitivo será juridicamente inexistente se seu objeto for originalmente impossível. Assim acontecendo, também o contrato preliminar será inexistente, pois não terá – já na sua origem – objeto possível, vale dizer, um contrato definitivo com objeto também possível.

Se as partes celebrarem o contrato preliminar com o propósito de, no futuro, celebrarem um contrato definitivo que constitua em favor de um dos contratantes um direito real não previsto no ordenamento jurídico, o objeto de tal contrato preliminar será impossível já no momento de formação desse vínculo contratual. De fato, as partes não poderiam celebrar o contrato definitivo que criasse direito real impossível no ordenamento jurídico. Como não podem celebrar esse contrato definitivo, o contrato preliminar que celebraram estará sem objeto e, assim, será juridicamente inexistente (arts. 104, 106 e166, II, do NCC).

Por outro lado, se o contrato definitivo tiver objeto que somente se tornou impossível após a sua celebração, tal contrato terá existido, terá sido válido e poderá até ter produzido efeitos. A impossibilidade superveniente de seu objeto causa sua resolução. Nessas circunstâncias, o contrato preliminar que tivesse por objeto aquele contrato definitivo também seria  resolvido por impossibilidade superveniente de seu próprio objeto.

Por exemplo, duas pessoas celebram um contrato preliminar por meio do qual se obrigam, no futuro, a celebrar um contrato definitivo de prestação de serviços físicos. A parte que teria que prestar os serviços sofre um acidente posteriormente à celebração do contrato preliminar e antes de celebrar o contrato definitivo. A vítima desse acidente fica com seqüelas físicas que a impedem, definitivamente, de executar os serviços previstos no contrato definitivo que seria ainda celebrado. Nesse caso, o objeto do contrato definitivo (os serviços) eram possíveis, porém tornaram-se impossíveis após o aludido acidente. Logo, também não será mais possível cumprir o contrato preliminar, cujo objeto (o contrato definitivo) tornou-se impossível. Esse contrato preliminar terá que ser resolvido.

A parte culpada pela impossibilidade superveniente do objeto do contrato preliminar responderá perante a parte inocente pelas perdas e danos que lhe causar. Não havendo culpa de qualquer dos contratantes, o contrato preliminar será resolvido.

 

 

(3º) Forma do contrato preliminar

O contrato preliminar é, antes de tudo, um ato jurídico em sentido estrito ou negócio jurídico. Por essa razão, as declarações de vontade que as partes do contrato preliminar fazem devem ser revestidas por forma adequada, vale dizer, por forma especificada por lei ou por forma não vedada por lei.

Não se deve confundir, por conseguinte, a forma do contrato preliminar com a forma a ser adotada no contrato definitivo que, como tantas vezes já se disse, é objeto do contrato preliminar.

Assim, por exemplo, se o contrato definitivo tiver que ser celebrado por instrumento público, isto não significa que também o contrato preliminar deva ser celebrado por instrumento público. São contratos diferentes e podem ter, então, formas diferentes. Aliás, o art. 1.088, do CC, contemplava exatamente essa situação. Referido dispositivo previa que o contrato preliminar poderia ser feito mediante instrumento particular, ou até mesmo verbalmente, e ter por objeto um contrato definitivo para o qual a lei exija a adoção de forma pública. O art. 462, do NCC, igualmente contempla o princípio da liberdade de forma nos contratos preliminares.

Na prática, contudo, recomenda-se que o contrato preliminar, se possível, adote desde logo a forma exigida para a celebração do contrato definitivo. Isto porque, como se verá mais adiante, se a declaração de vontade contida no contrato preliminar já estiver revestida pela forma exigida para o contrato definitivo, talvez seja possível proceder à execução forçada da obrigação de fazer objeto do contrato preliminar.

 

4. Espécies de contrato preliminar

O contrato preliminar pode apresentar-se sob diversas modalidades. Tem-se os contratos preliminares de promessa de alienação de domínio, de promessa de locação, de promessa de representação, de promessa de empréstimo, de promessa de depósito, entre outros. Não são essas as modalidades que aqui se quer examinar.

Por ora, é mais interessante examinar os contratos preliminares: (1º) unilaterais; e (2º) bilaterais.

(1º) contrato preliminar unilateral

Nessa categoria devem ser incluídos os contratos preliminares em que os contratantes convencionam que um deles, no futuro, terá preferência para a celebração de certo contrato definitivo.

Por exemplo, num contrato de compra e venda pode ser inserida uma cláusula acessória de preempção ou preferência, que atribui ao vendedor do bem o direito de preferência para readquirir o mesmo bem, se, dentro de certo prazo, o comprador decidir aliená-lo. Essa cláusula de preempção tem natureza de contrato preliminar unilateral, porque, se o comprador do bem, no futuro, quiser aliená-lo, deverá respeitar o direito de preferência reservado à pessoa que lhe vendeu o bem e que poderá, então, readquiri o mesmo bem em igualdade de condições com terceiros.

Esse tipo de situação é também muito comum em certos contratos de prestação de serviços, nos quais se insere cláusula prevendo que uma das partes (quer seja o locador dos serviços quer o locatário deles) tem preferência para contratar, no futuro, outros serviços previstos no contrato preliminar.

Em casos assim, o contrato preliminar é unilateral não porque somente exija uma declaração de vontade para se formar. Todos os contratos exigem pelo menos duas declarações de vontade para que se constituam. A unilateralidade aqui referida está em que falta apenas uma vontade para que o contrato definitivo seja formado. Noutras palavras, ao celebrar o contrato preliminar, uma das partes já declara, no próprio contrato preliminar, a vontade que teria que declarar para celebrar o contrato definitivo. Entretanto, esse contrato definitivo ainda não se forma porque, para isto, é necessária ainda a declaração de vontade a ser feita pelo outro contratante. Logo, o contrato preliminar é regularmente celebrado e contém as vontades de todos os contratantes, mas o seu objeto – o contrato definitivo – somente se formará quando o outro contratante do contrato preliminar vier a declarar sua vontade de celebrar o contrato definitivo, cumprindo, assim, sua obrigação de fazer contraída no contrato preparatório. No momento de execução do contrato preliminar, o contratante declara sua vontade de celebrar o contrato definitivo e essa vontade agrega-se à anterior vontade já declarada pelo outro contratante. Por isto, diz-se que esse contrato preliminar é unilateral, o que somente se pode entender como força de expressão jurídica, já que tanto o contrato preliminar como o definitivo exigem, cada um, no mínimo duas vontades para que se formem.

(2º) contrato preliminar bilateral

Foi explicado que, para ocorrer a formação do contrato preliminar, são necessárias no mínimo duas vontades declaradas. Por meio do contrato preliminar, as partes assumem – cada uma delas – a obrigação de fazer consistente na emissão de novas declarações de vontades contratuais, com o propósito de dar origem ao contrato definitivo. Este último, portanto, precisa no mínimo de duas declarações de vontade para se formar (como qualquer outro contrato). Assim, diz-se que nesse caso o contrato preliminar é bilateral, o que, novamente, só pode ser entendido como força de expressão.

 

5. Efeitos principais do contrato preliminar

O contrato preliminar produz importantíssimos efeitos genéricos. É certo que também produz efeitos específicos, mas estes somente serão estudados na medida em que forem examinados os contratos definitivos a que se referem.

Nesta fase da exposição serão examinados, portanto, apenas os efeitos genéricos mais importantes do contrato preliminar.

(a) constituição em mora do devedor de contrato preliminar

Foi esclarecido reiteradamente que o contrato preliminar tem por objeto a obrigação de fazer, isto é, de declarar vontade para formar o contrato definitivo. A obrigação de fazer é tipicamente pessoal. Vale a pena relembrar a estrutura de uma obrigação pessoal.

Na obrigação pessoal o credor tem interesse em obter certo bem jurídico, que é o objeto da relação jurídica obrigacional. O credor, contudo, não pode se apoderar diretamente desse bem que deseja. O credor precisa pedir ao devedor que adote o comportamento devido (dar, fazer ou não fazer) em relação àquele bem e o disponibilize para o credor. Assim, entre o interesse do credor sobre o bem e este próprio bem, interpõe-se o devedor. Por meio de seu comportamento o devedor satisfaz o interesse do credor, colocando à disposição deste o bem referido. Se o devedor não cumprir voluntariamente o comportamento devido, o credor poderá – pelos meios legais – obter coercitivamente o bem sobre o qual tem interesse.

No caso específico da obrigação de fazer, a coerção do devedor é mais difícil. Não há meio técnico que obtenha do devedor, coercitivamente, a conduta de fazer que ele se nega a realizar. Pode-se condená-lo a fazer, pode-se impor contra ele penalidades pecuniárias enquanto ele se negar a fazer o que prometeu, mas não se pode constrangê-lo a fazer algo. Se, apesar de todos os meios de coerção indireta, o devedor ainda se recusar a cumprir sua obrigação de fazer, então essa obrigação será resolvida em perdas e danos. Isto quer dizer que a obrigação deixará de ser obrigação de fazer (algo) e se transformará em obrigação de dar (a indenização ao credor). A execução da obrigação de dar é mais fácil, pois o juiz determina a apreensão de bens do patrimônio do devedor, realiza a alienação judicial desses bens e entrega o produto dessa alienação ao credor. Ou, quando possível, o juiz manda buscar no patrimônio do devedor exatamente o bem devido ao credor e o entrega a este.

Assim, salvo em casos muito especiais, que adiante serão examinados, a regra geral é a de que a obrigação de fazer somente é cumprida com a colaboração, com o comportamento do devedor.

A consequência disto tudo é a de que, nas obrigações de fazer, a constituição em mora do devedor relapso requer notificação por parte do credor. Mesmo que a obrigação de fazer tenha data certa para ser cumprida (art. 397, do NCC), é necessário notificar o devedor para que este faça o que tem obrigação de fazer. É isto o que se deduz da combinação do art. 397, do NCC, com os arts. 632 a 638, do CPC, que tratam da execução forçada das obrigações de fazer. Se o devedor não cumprir sua obrigação de fazer, terá que ser condenado a cumpri-la no prazo especificado pelo juiz ou pelo contrato. Se assim não proceder e se não for possível substituir a conduta do devedor pela conduta de terceiro, a obrigação inadimplida será resolvida em perdas e danos.

Ora, o objeto do contrato preliminar é fazer o contrato definitivo. Se uma das partes do contrato preliminar se recusar a declarar sua vontade necessária à celebração do contrato definitivo, essa parte estará descumprindo sua obrigação de fazer assumida no contrato preliminar. Nessas circunstâncias, se não for cabível a execução forçada e específica dessa obrigação de fazer, o contrato preliminar será resolvido e a parte inadimplente terá que indenizar a parte inocente. Por isto, é muito importante verificar quando e como pode ser feita a execução forçada e específica do contrato preliminar.

 

(b) execução forçada ou específica da obrigação de fazer objeto do contrato preliminar

Foi explicado no item precedente que não há meio técnico direto de forçar o devedor de uma obrigação de fazer a realizar a conduta devida. Todos os mecanismos coercitivos são indiretos, isto é, aplica-se contra o devedor renitente medidas coercitivas que tendem a compeli-lo a fazer o que deve fazer. Para não sofrer os efeitos das medidas coercitivas indiretas, o devedor termina por fazer o que deve. Pode acontecer, contudo, que o devedor até prefira sofrer as penalidades indiretas e, nesse caso, não fará a conduta devida ao seu credor.

Quando a obrigação de fazer não é personalíssima, ou seja, quando não for obrigação de fazer que só possa ser cumprida pelo próprio devedor, pode-se substituir a conduta desse devedor pela conduta de um terceiro, às custas do devedor inadimplente. Por exemplo, o devedor teria que realizar a pintura de uma casa e não quer cumprir essa obrigação. É possível que essa pintura seja realizada por um outro pinto, às custas do devedor relapso. Em casos desse tipo, diz-se ser possível a execução forçada específica da obrigação de fazer, o que significa que o juiz pode determinar a realização dos atos materiais necessários à satisfação do credor. O devedor será punido por sua resistência, mas não realizará pessoalmente o que devia fazer. Essa conduta devida será, então, realizada por um terceiro, de modo a que o credor obtenha o mesmo resultado prático que obteria se o devedor houvesse cumprido normalmente sua obrigação.

A disciplina da execução forçada específica das obrigações de fazer está contida nos arts. 461, 639 e 641, do CPC. Nos casos aí previstos, o juiz poderá: (a) substituir a conduta do devedor pela conduta de terceiro que produza o mesmo resultado prático desejado pelo credor; ou (b) adotar as medidas necessárias para satisfazer o direito do credor independentemente da cooperação do devedor ou de qualquer terceiro.

No caso específico do contrato preliminar, as partes têm obrigações de fazer: fazer declarações de vontade necessárias à formação do contrato definitivo. Ora, nenhum terceiro pode declarar a vontade de contratar que o próprio devedor não deseja manifestar. Também o juiz não está legalmente autorizado a substituir o devedor da obrigação de fazer e, no lugar deste, declarar a vontade contratual que esse devedor não quer declarar. Nesse contexto, são possíveis dois modelos de execução forçada de obrigação de fazer em contrato preliminar: (1º) a execução regulada pelos arts. 632 a 638, do CPC; ou (2º) a execução regulada pelos arts. 461, 639 e 641, do CPC. É necessário examinar esses modelos.

(1º) execução de contrato preliminar pelo rito do art. 632 e seguintes, do CPC

As partes do contrato preliminar têm que cumprir suas respectivas obrigações e, essencialmente, deverão declarar, no futuro, suas vontades de formar um contrato definitivo. A hipótese aqui examinada é aquela em que pelo menos uma das partes do contrato preliminar se recusa a cumprir sua obrigação de fazer: não quer declarar sua vontade indispensável à formação do contrato definitivo.

Ora, a vontade de contratar não pode ser declarada por terceiro em lugar do devedor. Igualmente o juiz não pode substituir o devedor e declarar aquela vontade de celebrar o contrato definitivo. Portanto, o contratante credor terá que ajuizar contra o devedor uma ação condenatória de obrigação de fazer. Obtida a sentença condenatória, o credor procederá à execução forçada da obrigação com observância do art. 632 e seguintes, do CPC. O juiz fixará um prazo para que o devedor executado declare sua vontade de celebrar o contrato definitivo. Enquanto essa vontade não for declarada, o devedor estará sujeito ao pagamento de multa fixada na sentença. Se mesmo assim a vontade de contratar não for declarada, o contrato preliminar será resolvido por culpa do devedor inadimplente, que indenizará os prejuízos causados ao credor exequente.

Em síntese, nas circunstâncias indicadas o resultado prático do contrato preliminar terminou frustrado, pois interessava ao credor a celebração do contrato definitivo e não a substituição dele por indenização.

(2º) execução específica do contrato preliminar pelo rito dos arts. 461, 639 e 641, do CPC

Como já foi explicado, o juiz não pode substituir o devedor de obrigação de fazer e declarar, em lugar deste devedor, uma vontade de celebrar o contrato definitivo que ainda não foi declarada. Somente o devedor – e ninguém mais – pode expressar a vontade de celebrar um contrato definitivo. Por causa disto, é muito importante redigir cuidadosamente um contrato preliminar, de maneira a viabilizar a execução forçada específica da obrigação de contratar nele contida.

O juiz não pode substituir o devedor para declarar vontade contratual que esse devedor não quer declarar. Mas o juiz está legalmente autorizado a substituir a conduta do devedor de repetir, noutro instrumento, uma vontade contratual que esse mesmo devedor já declarou anteriormente no próprio contrato preliminar. Nesse caso, o juiz simplesmente transportará a vontade já declarada de celebrar o contrato definitivo, vontade esta que já está materialmente contida no instrumento do contrato preliminar, e fixará aquela mesma vontade no instrumento do contrato definitivo. Um exemplo simbólico permitirá visualizar essa operação jurídica praticada pelo juiz.

Imagine-se que o contrato preliminar seja uma folha de papel comum, que neste exemplo será designada de folha de papel 1. Nesse contrato preliminar – a folha de papel 1 – as partes convencionam que, no futuro, cada uma delas fará um desenho pessoal numa folha de papel diferente, aqui denominada folha de papel 2. Estes desenhos pessoais ainda não estão feitos na folha de papel 1. Somente serão feitos na folha de papel 2, no futuro, quando essa folha de papel 2 for adquirida. Imagine-se que os dois desenhos pessoais correspondem, simbolicamente, às obrigações de fazer que cada parte assumiu no contrato preliminar, ou seja, os dois desenhos pessoais serão as vontades que cada parte declarará para formar o contrato definitivo. Este contrato definitivo terá, então, estes elementos: um desenho pessoal (vontade) de um contratante; outro desenho pessoal (vontade) de outro contratante; e um suporte material (folha de papel 2) de fixação desses desenhos pessoais (vontades). No momento convencionado, um dos contratantes do contrato preliminar recusa-se a fazer seu desenho pessoal (vontade) na folha de papel 2 (contrato definitivo). Como esse desenho pessoal (vontade) ainda não estava na folha de papel 1 (contrato preliminar), não é possível ao juiz arranjar um outra desenho pessoal (outra vontade) e colocá-lo na folha de papel 2 (contrato definitivo) em lugar da desenho pessoal (vontade) do devedor renitente. Só esse devedor pode fazer seu próprio desenho. Dessa maneira, não será possível ter o dois desenhos pessoais (vontades) na folha de papel 2 (contrato definitivo). O contrato preliminar (folha de papel 1) de nada terá servido. O contratante prejudicado, então, receberá indenização pelos prejuízos sofridos. Em síntese, não possível proceder à execução específica da obrigação de fazer contida no contrato preliminar. A situação seria diferente  se algumas cautelas tivessem sido adotadas pelas partes.

Para ser possível a execução específica do contrato preliminar, as partes deveriam ter procedido como descrito a seguir. As partes deveriam ter feito na folha de papel 1 (contrato preliminar) os dois desenhos pessoais (vontades) que teriam que fazer na folha de papel 2 e estabelecido que, quando tivessem adquirido a folha de papel 2 (ou seja, quando fossem celebrar o contrato definitivo), simplesmente tirariam cópias de seus respectivos desenhos pessoais (vontades) já feitos na folha de papel 1 (contrato preliminar) e as colariam (exatamente os mesmos desenhos pessoais) na folha de papel 2 (contrato definitivo). Deveriam estabelecer, também, que nenhuma das partes retiraria seu respectivo desenho pessoal (vontade) da folha de papel 1 (contrato preliminar) senão para colocá-lo (a vontade) na folha de papel 2 (contrato definitivo). Ora, obtida a folha de papel 2 (isto é, chegado o momento de celebrar o contrato definitivo), uma das partes não quer copiar seu desenho pessoal (vontade) da folha de papel 1 (contrato preliminar) e colocá-lo na folha de papel 2. Nesse caso, o próprio juiz, poderá tirar a cópia do desenho pessoal (vontade) do devedor, já realizado na folha de papel 1 (contrato preliminar), e poderá transportar essa cópia do mesmo desenho pessoal (vontade) para a folha de papel 2 (contrato definitivo). Essa operação de transferência da desenho pessoal (vontade) praticada pelo juiz foi possível porque cada parte já havia feito na folha de papel 1 seu desenho pessoal (ou seja, sua vontade de celebrar efetivamente o contrato definitivo). Logo, com suporte nos arts. 461, 639 e 641, do CPC, o juiz podia praticar o ato material de transferência do desenho pessoal da folha de papel 1 para a folha de papel 2, tal como se esse ato fosse praticado pelo próprio devedor executado. A vontade desse devedor já estava declarada, o juiz apenas a deslocou de um instrumento contratual (o preliminar) para outro (o definitivo).

Enfim, o juiz não criou uma vontade de celebrar um contrato definitivo. Tal vontade – que não se confunde com a vontade de celebração do próprio contrato preliminar – já havia sido exteriorizada pelo devedor. Cabia ao devedor tão somente reproduzir, repetir, dizer de novo, a mesma vontade no instrumento do contrato definitivo. Esse ato material de reprodução da vontade pode ser praticado pelo juiz em lugar do devedor inadimplente, de maneira a assegurar o resultado prático que as partes queriam atingir quando celebraram o contrato preliminar. O juiz, no exemplo citado, não poderia fazer o desenho em lugar do próprio devedor, mas podia copiar o desenho já realizado pelo devedor e fixá-lo no instrumento definitivo.

Tendo em vista o que foi explicado, é muito importante que as partes de um contrato preliminar delineiem muito bem como será executado esse contrato em caso de inadimplência de um dos devedores. As partes podem submeter esse contrato preliminar ao regime do art. 632 e seguintes do CPC, ou podem preferir que a execução se faça nos moldes dos arts. 461, 639 e 641, do CPC.

Se o contrato preliminar contiver todos os elementos essenciais do futuro contrato definitivo, será possível executá-lo como previsto nos arts. 461, 639 e 641, do CPC. Caso contrário, isto é, se o contrato preliminar não tiver dentro de si todos os elementos essenciais do futuro contrato definitivo, a execução forçada de tal contrato preliminar terá que ser realizada nos moldes do art. 632 e seguintes, do CPC.

Para demonstrar bem a importância dessas providências, basta citar um exemplo prático.

Num contrato preliminar consta esta disposição: “A”, no prazo de trinta dias, contado da data deste contrato, venderá a “B” o automóvel “X” e, por sua vez, no mesmo prazo, “B” comprará o referido bem de “A”.

Na hipótese acima descrita tem-se um contrato preliminar que somente poderia ser executado nos moldes do art. 632 e seguintes, do CPC. “A” ainda não vendeu o veículo a “B”. O contratante “A” disse apenas que, no futuro, iria ainda declarar a vontade de vender o citado carro. Do mesmo modo, o contratante “B” ainda não declarou sua vontade de comprar o bem. Somente no futuro é que essa vontade de comprar o veículo será declarada. Além disso tudo, observe-se que as partes do contrato preliminar não disseram qual será o preço de compra e venda do veículo. O preço é elemento essencial à formação do contrato de compra e venda (art. 482, do NCC). Por conseguinte, nesse contrato preliminar falta um elemento essencial à formação do contrato definitivo: o preço. Mesmo que, incorretamente, se entendesse que as palavras “venderá” e “comprará” já significam as declarações de vontade de vender e de comprar o automóvel “X”, ainda assim o contrato de compra e venda não estaria formado por falta de determinação do preço.

As partes poderiam, ao contrário, ter redigido a disposição assim: “A”, no prazo de trinta dias, contado da data deste contrato, reproduzirá em instrumento contratual próprio sua vontade aqui manifestada de vender a “B” o automóvel “X”, pelo preço certo e irreajustável de R$ 10.000,00, pagável no último dia do aludido prazo e, por sua vez, no mesmo prazo, “B” também reproduzirá em instrumento contratual adequado sua vontade aqui manifestada de comprar o referido bem de “A”, nas condições acima especificadas.”

A nova redação da disposição contratual permitirá a qualquer dos contratantes do contrato preliminar proceder à execução forçada específica do contrato pelo rito dos arts. 461, 639 e 641, do CPC. Todos os elementos essenciais do contrato definitivo já foram expressos no contrato preliminar: as vontades de vender e de comprar, a identificação do objeto e a fixação do preço. Para que o contrato definitivo possa produzir seus efeitos normais falta – apenas – que o vendedor e o comprador repitam em instrumento contratual próprio as vontades que já declararam no contrato preliminar. O documento formal que representa a transferência da propriedade de um automóvel é o documento de transferência de propriedade emitido pelo DETRAN. Se o vendedor não quiser assinar esse documento oficial, o juiz proferirá sentença dizendo que a vontade de vender já expressada pelo vendedor no contrato preliminar deverá ser considerada repetida no documento do DETRAN.

(c) autonomia do contrato preliminar

A existência, a validade e a eficácia do contrato preliminar dependem exclusivamente de seus próprios elementos constitutivos. O contrato preliminar tem autonomia constitutiva, estrutural e funcional, não se confundindo com o contrato definitivo que traz dentro de si.

Assim como a gestante é um ser autônomo e independente do feto que carrega dentro de si, também o contrato preliminar é autônomo e independente do contrato definitivo a que se refere. Por mais completo que esteja o contrato definitivo embutido no contrato preliminar, este último ainda será inconfundível com aquele.

(d) celebração do contrato definitivo como ato de execução do contrato preliminar

A finalidade prática do contrato preliminar é a celebração futura do contrato definitivo. Por isto, deve-se fazer o possível para criar as condições favoráveis à celebração espontânea do contrato definitivo.

A celebração do contrato definitivo é ato de cumprimento das obrigações de fazer contidas no contrato preliminar. Quanto mais facilmente essas obrigações de fazer puderem ser cumpridas, mais eficiente será o resultado prático do contrato preliminar.

Deve-se, enfim, prestigiar a execução voluntária do contrato preliminar. A resolução do contrato preliminar em perdas e danos deve ser excepcional. Será decretada somente quando não mais for possível: (a) obter o cumprimento voluntário da obrigação de fazer pela parte inadimplente; e, (b) não for possível substituir pela sentença a reprodução de vontade de celebrar o contrato definitivo, nos termos dos arts. 461, 639 e 641, do CPC.

(e) transmissão das obrigações de fazer previstas no contrato preliminar

O contrato preliminar contém pelo menos duas obrigações de fazer, uma para cada parte. Os contratantes terão que fazer (celebrar) o contrato definitivo. Desde que não haja vedação legal ou contratual, e não se trate de obrigação de fazer personalíssima, tais obrigações de fazer contidas no contrato preliminar são transmissíveis aos sucessores a qualquer título das partes.

No caso da obrigação de fazer personalíssima a não transmissibilidade da obrigação é natural. Por exemplo, alguém celebra com um pintor renomado um contrato preliminar, em razão do qual o pintor se obriga a vender, no futuro, ao outro contratante, um quadro que ainda irá pintar. Após a celebração do contrato preliminar, o pintor vem a falecer sem ter realizado a pintura que iria vender ao outro contratante. É evidente que essa obrigação de fazer do pintor não será transmitida aos seus sucessores, pela óbvia razão de que o pintor havia sido escolhido por causa de suas habilidades artísticas pessoais. Logo, o contrato definitivo de compra e venda do quadro não será celebrado por falta de objeto.

A COLISÃO MONETÁRIA LATINO-AMERICANA – Potencialidade de o capital com base Euro paralisar o projeto ALCA

 Francesco Schettino (tradução do original italiano: Prof. Dr. Renato Seixas)

 

O desenvolvimento normal da fase avançada (ou superior) do modo de produção capitalista evidencia de maneira sempre maior como o processo de tendência ao monopólio financeiro é a realidade que qualifica os três últimos decênios.

 

A união fundamental tornada assim indissolúvel entre capital monetário e capital industrial, gerada no início do século XX, que deu vida ao capital financeiro, é a que caracterizou as dinâmicas imperialistas do século passado e as atuais.

 

As grandes holdings financeiras atualmente, de fato, detêm a maior parte da propriedade das empresas produtivas de mercadorias em todo mundo sem distinções. A propriedade tornada assim um privilégio de poucos, é detida por um número de capitalistas sempre menor e isto, claramente, numa fase crítica como a atual, não faz outra coisa que não exasperar as relações no interior dessa cúpula de senhores do dinheiro. A inimizade desses Irmãos é que naturalmente gera os conflitos interimperialistas a que assistimos constantemente. O processo de atração, num primeiro momento, e, só sucessivamente, de repulsão é o que constantemente ocorreu no século XX e continua, com maior ardor, no atual. A queda tendencial lucro, a superprodução de capital e de mercadorias são mais em geral a causa dessa lei natural do modo de produção capitalista à qual seus agentes principais, os capitalistas, naturalmente não têm a possibilidade de se subtrair. A acentuada diminuição de acumulação no mercado mundial é tal que demonstra e, contemporaneamente, determina as atuais dinâmicas imperialistas. A tendência histórica à mecanização e, ainda, à diminuição de uma parte do valor de mercado das mercadorias em geral e, de outro lado, da produção de (saggio) e da massa de mais-valia, da qual o lucro é somente a forma monetária, é tal que na fase atual inevitavelmente determina uma tendência ao monopólio. A utilização de máquinas mais e mais especializadas, com o objetivo de obter produtos mais competitivos no mercado, inevitavelmente é tal que determina a diminuição inexorável do valor de mercado e com tal rapidez que, associada ao estratagema das patentes, a maior parte dos Irmãos concorrentes, não tem capacidade de adaptar o próprio sistema produtivo de modo a produzir a um valor individual que ao menos não exceda em muito aquele produzido pela maior parte dos Irmãos. E tudo isto acontece num contexto em que o mercado mundial é usado de maneira completa. Há tempo que o capitalismo expandiu seus tentáculos sobre todo o globo, não deixando livre algum possível nicho de mercado, como por exemplo sucedeu na época do primeiro imperialismo britânico nos confrontos da Índia. Nesta situação, portanto, é natural que as empresas produzam a um valor de mercado mais baixo engulam os concorrentes que permanecem fora do entorno de que se falava antes. Isto não determina outra coisa que não a natural tendência ao monopólio e, falando com a linguagem burguesa, o excepcional fluxo de fusões e aquisições que por ao menos 50 anos constantemente aumenta de intensidade.

 

Esta inevitável tendência à redução do número de proprietários da maior parte da produção mundial determina a superação dialética da fase precedente do imperialismo multinacional que, pela própria característica de tal evolução, é corretamente definida como transnacional (M. Donato, G. Pala A cadeia e os elos). Enquanto antes, de fato, a produção qualitativamente mais importante era aquela feita por empresas multinacionais, das quais era bem individualizável a nação de origem que coincidia com a dos proprietários do controle, e tinha como fator qualificador o outsourcing ao exterior e a venda de mercadorias na pátria e ao exterior, agora a situação é mais transversal, transnacional sem dúvida.

 

Tal processo é o que Marx definia como centralização dos capitais, que necessariamente acompanha e qualifica a fase imperialista do capitalismo. Numa situação de crise e de aumento tendencial das maiores multinacionais, é inevitável que uma parte das empresas de dimensões iguais ou inferiores, constantemente em crescimento, seja forçada à crise. Isto ocorre porque as impresas multinacionais, numa fase de crise como a atual, têm a capacidade de poder diminuir os custos, seja pelo capital constante ou pelo variável, incrementando a taxa de exploração (ou a produtividade, como gosta de dizer o economista burguês) e reduzindo o custo das matérias-primas, recorrendo, cada vez mais, ao uso das armas, seja de maneira direta (de comum acordo com a indústria bélica imperialista, como no caso do Iraque), ou de maneira indireta (como ocorre quotidianamente na opulenta África centro-meridional [cfr. Contr. Número 92]). Torna-se fundamental, portanto, por esta razão, uma estreita aliança com a indústria bélica que, desta maneira, aumenta sua relevância política e determina, como no caso USA, eleições de grupos da proporção do de Cheaney-Bush-Rice. O objetivo natural, portanto, não pode ser outro que diminuir os custos de produção, coisa necessária vista a diminuição tendencial da massa de mais-valia produzida em todo o globo. Mas este é um jogo em que a única lei que existe é mors tua vita mea; claramente a morrer são os que não conseguem comprimir os custos, em paridade da mais-valia extraída, e, portanto, não conseguem fazer diminuir o valor de mercado, em torno do qual oscilam os preços de mercado, j´que, por causa do excepcional desenvolvimento tecnológico, em alguns casos, serão obrigados a vender a própria mercadoria a um preço inferior ao preço de custo individual. Nesse processo em que, fique bem claro, não é criado neo-valor, é óbvia a tendência à diminuição do número de proprietários: e isto é o que determina a superação da fase multinacional com o emergir da nova forma transnacional.

 

Tudo isto, claramente, determina uma difícil individualização dos arranjos proprietários e da “nacionalidade” das empresas produtivas. Como exemplo esclarecedor pode ser tomado em consideração o caso da FIAT. Atualmente é uma empresa multinacional com base na Itália, propriedade italiana, com uma parte da produção deslocada para o Brasil (Minas Gerais) e para a Polônia, um mercado de venda que abrange (coinvolge) mais ou menos todo o mundo e com um sistema de organização publicitária e de serviços conexos que envolve grande número de nações, entre as quais, como é lógico, também a Itália. É normal hoje pensar que o “Palio” seja um automóvel italiano. Mas, todavia, 20% das ações da FIAT são detidos pela General Motors que, por enquanto, é de propriedade de uma holding principalmente norte-americana. A vontade dos proprietários da General Motors de adquirir a FIAT que, claramente, está em crise por nenhum outro motivo além dos que se falou antes, poderia evidenciar-se dentro de poucos dias ou meses. E, quando se verificasse esta hipótese, com o estado muito provável das coisas, poderia também definir-se o “Palio” um carro italiano? Se obteria assim, de fato, uma situação tal em que os proprietários da azienda seriam norte-americanos, a empresa teria sua direção central na Itália, emitiria obrigações em Euro, produziria em pelo menos dois continentes e venderia a própria mercadoria em numerosos Estados de todo o globo. E neste contexto, quem deveria tutelar-lhe os interesses? O Estado norte-americano ou o Estado italiano?

 

Nesse panorama caracterizado por uma forte e difusa conotação de transnacionalidade da produção, é erro significativo ainda considerar como dominante o embate entre imperialismos, por exemplo, norte-americano, alemão ou japonês. A tripolaridade imperialista parece agora ser superada por uma forma sucessiva. E é esta que pretendemos examinar.

 

Na literatura econômica burguesa se discutiu muito no passado sobre a possibilidade de adoção de áreas monetárias com base na diferente composição geográfica ou mercadológica de uma determinada zona do mundo. Uma contribuição fundamental foi proposta por Robert Mundell em 1961 com um artigo publicado na maior revista econômica burguesa norte-americana American Economic Reveiw, com o título A theory for the optimal currency areas, em que se chegava a definir como área monetária ótima aquela em que houvesse uma homogeneidade mercadológica de produção. A contribuição seguinte [McKinnon, 1963], a partiu da análise mundelliana e, focando atenção sobre o papel que a ilusão monetária dos trabalhadores deveria ter tido, concluiu com a afirmação de que a otimização de uma área monetária é determinada pelo grau de autarquia dela própria, quando a dependência do exterior de uma área fosse baixa, a possibilidade de ela utilizar uma única moeda seria mais ótima.

 

As contribuições na literatura burguesa foram notáveis, mas, claramente, todas se esqueceram que o problema não é puramente monetário, pois na realidade a moeda que se discute é dinheiro suscetível de transformação em capital.

 

Portanto, partindo exatamente desta premissa, é necessário individualizar o papel que o surgimento do Euro pode ter no interior da dinâmica imperialista apontada anteriormente. Na atual fase de crise, de fato, vimos como é necessária a compressão dos custos para obter o máximo de competitividade, ou diminuir o valor de mercado, mantendo a mais-valia produzida [que, todavia, é em nítida e tendencial diminuição]. Mas, além disso, notamos como, ao menos desde 1980, a produção ocorre na predominância dos casos que contam, por meio de uma cadeia de valor cujos elos são disseminados sobre toda a superfície global. O deslocamento de todas as fases da produção, de fato, cria uma verdadeira fileira produtiva que, portanto, no estado atual das coisas, utilizaria no próprio processo um número notável de moedas, uma para cada país em que está instalado um ou mais dos elos. Isto, considerada a grande volatilidade dos câmbios mundiais (veja-se, por exemplo, o mencionado caso do Brasil em relação à FIAT), poderia determinar grande insegurança e indeterminação dos resultados (lucros) de cada empresa transnacional, numa fase tão crítica como a atual. Vão oltretutto considerados o grave custo empresarial, da tributação e das eventuais barreiras alfandegárias que ainda são muito altas, relativamente ao volume dos negócios que cotidianamente ocorrem e, sobretudo, à lentidão que é imposta à produção pela utilização de diferentes moedas nos diferentes elos. A utilização de uma única moeda, ao inverso, garantiria um tempo de rotação do capital bem mais rápido, assegurando, assim, um resultado de lucro bem mais elevado. Até agora relacionou-se o problema unicamente à importância da dinâmica monetária ligada à produção de mais-valia e à apropriação na fase de circulação dela sob a forma monetária representada pelo lucro.

 

Numa fase em que é absolutamente prevalente o número de investimentos financeiros sobre os “produtivos” é necessário ver como a dinâmica monetária pode ser utilizada no âmbito especulativo. Mesmo porque em crise permanente, desde cerca de 1968 (bem antes do exaltado choque petrolífero), o sistema capitalista mundial registra um notável excesso de capital. Incapaz de produzir mais-valia e, portanto, insuscetível de se auto-valorizar por meio do uso produtivo-material, grande parte do capital é empregada com objetivo especulativo, ou por meio do instrumento dos investimentos de portfólio, que não são outra coisa senão a tentativa de drenar uma parte da mais-valia já produzida ou de outro modo aumentar uma bolha especulativa em nível mundial que, mais cedo ou mais tarde, como diz a própria palavra, tende a estourar porque claramente não está em linha com a mais-valia produzida, e, portanto, com a riqueza realmente produzida. É claro que na detonação alguém deverá literalmente eximir-se das penas, e é outro tanto claro que, na maioria dos casos, as vítimas são os pequenos poupadores, pessoas assim tão caras à (a)sinistra burguesa européia e de além-mar. Os resultados dessa especulação, necessária exatamente porque o capital só é tal se produz lucro, chegaram já na década de 1970 com a grande aquisição dos títulos de dívida pública dos países subdesenvolvidos (em particular aqueles latino-americanos), concedidos sem muitos obstáculos pelos governantes da época, ditadores claramente filo-norte-americanos o filo-europeus – o exemplo da Argentina é emblemático, pois, sob a ditadura, o débito com o exterior aumentou 369%.

 

Nesse contexto, ainda uma vez, emerge a centralidade da estabilidade do câmbio e, portanto, da utilização da moeda forte, pois essa é exatamente o requisito determinante do fluxo de investimentos especulativos. E, claramente, isto estaria garantido por um tipo de ancoragem, mais ou menos vinculante, de todas as moedas dos países subdesenvolvidos, e por isto particulamente de risco, a moedas fortes como o Euro ou o dólar norte-americano. O caso da Argentina e o do Equador são emblemáticos onde, no primeiro caso, após a ancoragem fixa da moeda local ao dólar, com o Plano de conversibilidade de 1991 os investimentos de portfólio são incrementados em mais de 35 bilhões de dólares e, no segundo caso, com a dolarização completa, esses foram aumentados de 45,8 milhões de dólares do ano precedente – 1999 – para 5.582 milhões de dólares de 2000, fugindo  dentro dos outros poucos meses posteriores e determinando, como já ocorrido antes no sudeste asiático e depois na Rússia, as crises dramáticas.

 

Alogoskoufus, Portes e Rey (1997) estimam que os custos de transação internacional entre moedas que asseguram volatilidade praticamente nula,[1] são próximos a 0,05% que, apesar de parecer uma cifra irrisória, se comparada ao excepcional fluxo quotidiano de investimentos e de comércio internacional, determina um custo bem notável, sendo uma alíquota cinco vezes maior que a tão exaltada Tobin tax. Além disso, Bénassy-Quéré (1998), nota como esse dado é indicativo unicamente para as transações entre países que utilizam moeda forte ou que têm sistemas de ancoragem monetária parcial ou total. No caso em que, de fato, exista um grau de volatilidade, os custos de transação crescem proporcionalmente com ele.

 

É importante ver, brevemente, como ocorre o processo de aquisição de títulos estrangeiros para compreender como e onde processos de monetarização encontram conveniência para existir. Tomemos por hipótese, retomando fielmente o exemplo de Bénassy-Queré (1998), que um capitalista japonês tenha intenção de adquirir um pacote (minoritário) de ações da Fiat, claramente denominado em Euro. Os metodos alternativos que ele teria para fazer isto são:

 

Vender Yen para adquirir uma quantidade de Euro correspondente al valor das ações que deseja adquirir;

 

Vender Yen para adquirir uma quantidade de dólares norte-americanos em quantidade tal para poder adquirir a quantidade necessária de Euro para a aquisição das ações da Fiat.

 

O primeiro método, que chamaremos direto, produz dois tipos de custos de transações: o de câmbio e o doméstico do Euro [relativamente à Itália, portanto], como por exemplo os ligados à imposição fiscal.

 

O segundo método, claramente indireto, determinaria três tipos de custo: o de câmbio Yen-USD e USD-Euro, mais o doméstico.

 

É claro que a escolha será determinada pelo menor entre o custo do método direto e o do método indireto.

 

Mais interessante, pelo que estamos analisando, é claramente o caso em que o capitalista japonês tenha intenção de adquirir ações, por exemplo, da Petrobrás brasileira. Os métodos à sua disposição, desta vez, são três:

 

O método direto Yen-Real;

O método indireto via Euro;

O método indireto via dólar.

 

Também nesses casos, claramente, escolherá o método que garanta um custo inferior. Claramente, quando o Real estivesse ancorado estavelmente ao dólar e o utilizasse como moeda de referência para as trocas internacionais, os custos ligados ao método três (Fdi) seriam inferiores aos ligados ao método dois (Fei).

 

Portanto, o objetivo que a dolarização de qualquer tipo deveria ter é o de obter uma situação deste tipo:

 

Fi = Fdi >> Fei

 

Com maior razão, portanto, neste caso, em que o Real é hipoteticamente ancorado ao dólar, utilizando-o como moeda de referência, seguramente um capitalista que emite obrigações em dólares e, portanto, tem um capital monetário predominantemente denominado em dólares, preferiria investir adquirindo ações de empresas brasileiras, economizando dessa maneira muito dos custos de transação, mais que de empresas de outros países que não são ancorados ao dólar ou que têm ancoragem em moedas de outros países.

 

O quanto asseverado até agora sobre custos de transação, claramente, pode ser estendido também ao comércio, na medida em que a estrutura dos pagamentos é geralmente a mesma. Num estudo da CEPAL de 2001 [Surgimento do Euro e suas implicações para a América Latina e Caribe] foi feita uma estimativa dos coeficientes de correlação entre as variáveis até agora consideradas. Dessa estimativa sublinhamos como notavelmente significativos os coeficientes que correlacionam estrutura do comércio exterior de um país com a ancoragem a uma moeda forte.

 

Tabela 1

ancoragem USD EURO YEN
Esrutura do comércio exterior      
Em USD 0,355 -0,352 -0,195
Em EURO -0,451 0,458 0,211
Em YEN 0,251 -0,240 -0,164

Fonte: Emergencia del Euro y suas implicaciones para America Latina y el Caribe, CEPAL 2001

 

Pela tabela 1, vemos como existe uma correlação positiva entre a moeda de referência utilizada por um país no comércio exterior (portanto importações e exportações) e um país com a ancoragem em tal moeda, seja em dólar norte-americano ou em Euro. No que concerne ao Japão, a situação é diferente, mas, dada a atual situação recessiva do país asiático, os dados são pouco indicativos. Isto faz refletir, além de tudo, o fato de que o coeficiente de correlação cruzado entre o uso de moeda de referência em Euro ou em dóloar norte-americano e a ancoragem cambial é negativo. Isto, claramente, não faz outra coisa senão confirmar o que foi dito antes: a ancoragem de um país a uma das duas moedas fortes, de qualquer modo, exclui os capitalistas que usam a moeda inimiga. Da mesma maneira é considerada, por meio de uma estimativa econométrica, a probabilidade de adotar uma moeda forte como âncora com base na prevalência dos fluxos comerciais. Os resultados são similares aos precedentes na medida em que se evidencia como a probabilidade de adotar uma âncora cambial com o dólar é positiva para os países que têm uma estrutura de comércio preponderantemente em face dos Estados Unidos. Simetricamente, ocorre com o Euro. Os resultados cruzados ainda uma vez são negativos, demonstrando outra vez como as duas moedas são sempre alternativas.

 

Uma outra variável que parece fundamental na decisão de adquirir uma moeda como âncora é o débito externo. Também neste caso, como no caso do comércio, a denominação do débito em dólares implica numa correlação positiva na adoção de uma âncora com o dólar norte-americano. A mesma coisa ocorre com o Euro e, também neste caso, os efeitos cruzados são negativos. Tudo isto, além de tudo é confirmado pelos trabalhos de Dooley, Lizondo e Mathieson (1989) e de Eichengreen, Mathieson (2000), que observam dependência da moeda utilizada para as trocas internacionais em relação à denominação do débito e do pagamento de juros que, desse modo, confirmaria o que se observa na tabela 1.

 

O que obtivemos nesta primeira parte do trabalho é que:

 

  1. A ancoragem a uma moeda forte favorece o investimento (produtivo e financeiro) por parte dos capitalistas que utilizam tal moeda para sua própria atividade;
  2. A ancoragem a uma moeda forte favorece o uso de tal moeda, por parte do país ancorado, como referência para o comércio exterior;
  3. O volume de comércio preponderante por parte de um terceiro país em relação a um país emissor de moeda forte favorece àquele a adoção daquela moeda como âncora;
  4. A denominação dos títulos do débito externo e o conseqüente pagamento dos serviços favorece de maneira muito forte a adoção como âncora da moeda em que os títulos são denominados, por meio da adoção da moeda pelo próprio país como referência para as trocas com o exterior e o uso dela como prevalente na cesta de moedas que compõem as reservas oficiais do banco central do país considerado;
  5. O uso de uma moeda como referência para as trocas internacionais, reduzindo-lhes os custos, favorece tanto os investimentos como o comércio com os capitalistas que utilizam tal moeda para sua própria atividade.

 

Pela absoluta centralidade assumida, portanto, pela ancoragem – a partir do nível mínimo descrito pela simples adoção da moeda como referência para as trocas internacionais, até a dolarização completa – sobre todo o sistema capitalista mundial, é de crucial importância ver quais tem sido as últimas vicissitudes da política econômica que influenciaram tal situação.

 

Pelo que se acabou de ver, parece bastante provável que o projeto de extensão do NAFTA (North Amarican Free Trade Agreement) para todo o continente americano (ALCA), com a óbvia exclusão de Cuba, deva andar pari passo com qualquer forma de ancoragem ao dólar norte-americano. Que o processo é terrivelmente contraditório foi bem demonstrado pela falência do Plano de Conversibilidade argentino e pelas imensas dificuldades em que atualmente está o Equador. De fato, quanto maior for o grau de dolarização da economia latino-americana, maior será a possibilidade dos capitalistas de produzirem mais-valia e de realizá-la, pelo que se viu anteriormente. Todavia, uma situação de completa dolarização, assim como prevista no projeto IMSA, comportaria riscos altíssimos. Além de tudo a crise generalizada em todo o subcontinente sul-americano, não produz outra coisa que uma situação duvidosa difusa sobre suas reais capacidades estruturais de poder sustentar uma dolarização que comportaria a perda da autoridade monetária por parte dos Estados e, conseqüentemente, de um emprestador de última instância em condições de garantir liquidez ao sistema em caso de crise.

 

As dificuldades que, além de tudo, o projeto ALCA está encontrando são de natureza estritamente imperialista. Com isto se quer sublinhar como os interesses dos capitalistas-irmãos-inimigos ligados ao Euro estão também apontados para o continente latino-americano. A afirmação do neo-presidente espanhol Zapatero pela qual é objetivo “recuperar-se a América Latina” é direta em reforçar este conceito. E nisto não há nada de neo-colonialista ou qualquer grosseria desse tipo, mas, simplesmente, o resumo do embate imperialista no interior da América do Sul, e é exatamente isto que pretendemos examinar.

 

Historicamente o fluxo de investimentos externos e de investimentos de portfólio tem rápido crescimento vertiginoso, progressivamente, a partir da década dos anos 70 do século passado. Sem entrar na análise específica, para a qual se remete a outros trabalhos precedentes, é mister sublinhar como eles foram, a partir da última crise não resolvida, uma necessidade para o capital imperialista internacional. A impossível auto-valorização na pátria determinou este fluxo excepcional que interessou, além dos países capitalistas avançados, também aos países subdesenvolvidos e, por esta razão, também à América Latina. Qualitativamente os investimentos diretos interessaram transversalmente a todo o subcontinente sul-americano, aproveitando-se, em particular, das relações já estreitas como um laço no pescoço das populações, instaurados durante o período do primeiro endividamento, precedente ao máximo fluxo de investimentos estrangeiros diretos e investimentos de portfólio. O processo de privatização em toda parte foi, durante os anos 90, uma ocasião única a disposição do capital esquizofrênico, para poder encontrar possibilidade de acumulação. Empresas locais, de dimensões e de saúde econômica pouco menos que ótimas, foram assim privatizadas, garantindo um desembarcadouro seguro para os capitais estrangeiros. Foi assim que as maiores empresas de telefonia, de energia, de recursos energéticos e quantas outras, foram adquiridas por proprietários estrangeiros, claramente do primeiro mundo. Não é por outra razão que a América Latina resulte, em 2001, segundo a UNCTAD, como a zona do mundo que recebeu o maior percentual de investimentos estrangeiros diretos determinados pelas privatizações (mais de 40%), o dobro em relação ao segundo classificado (sudeste asiático).

 

Neste processo, um papel bem substancial foi assumido pelo setor bancário e, por tudo que se viu até agora, interessa-nos um modo particular.

 

As principais aquisições por parte do capital estrangeiro de bancos, já existentes nos últimos quinze anos, foram notáveis e se ajuntam para definir uma situação tal pela qual no México, de 1992 a 2001, o percentual de ativos dos bancos estrangeiros sobre o total passou de 1,2 a 80; na Argentina, por causa do Plano de convesibilidade que, como já visto, antecipou esse fluxo, a passagem no mesmo período é de 21,7 a 48,6 em 1999; e, no Brasil, de 11% em 1992 a 27,4% em 2000. O sistema bancário latino-americano, assim estruturado, é, portanto, caracterizado por destacada presença estrangeira que, além de tudo administra 60% do total de empréstimos e 50% do patrimônio bancário total em 1999 (Salomon, Smith-Barley).

 

A concentração do capital financeiro mundial, como ilustrado antes, criou gigantes também do ponto de vista bancário que, com a oportunidade latino-americana, tiveram possibilidade de aumentar posteriormente com as fusões e aquisições, alcançando as posições de absoluta prevalência no território: é este o caso do BSCH (Grupo Santander), Citibank, BBVA (Banco de Bilbao), BankBoston, HSBC (Hong Kong e Shangai) e ABN Amro. A soma das atividades destes bancos alcança cerca de 60% dos ativos de todos os bancos estrangeiros latino-americanos.

 

No interior desse grupo de senhores do dinheiro, o peso relativo percentual é o seguinte:

 

 

Tabela 2

Banco Origem %
     
BSCH Espanha 34
Citibank Usa 21,8
BBVA Espanha 19,6
BankBoston Usa 8,7
HSBC Inglaterra 9,15
ABN Amro Holanda 6,7

Fonte: CEPAL(2000)

 

Os dados inseridos na tabela mostram como os bancos de propriedade de capitalistas residentes na Europa e emissores de obrigações em Euro são 70% contra 30% dos norte-americanos. O dado torna-se ainda mais relevante se, com o objetivo de relacionar tal questão à ALCA, excluirmos o México: neste caso, o peso percentual dos bancos com base em Euro é o triplo com certeza nos confrontos com aqueles com base em dólar. Se se considera, além de tudo, que os títulos de débito externos (público e privado) ainda hoje estão preponderantemente nas mãos dos bancos estrangeiros (muito provavelmente estes mesmos grupos bancários), deveria aparecer bem nítido qual é o problema e quais as potencialidades de um forte atrito entre os dois tipos de imperialismo. De fato, até o nascimento do Euro, o financiamento por parte dos bancos privados europeus realizou-se preponderantemente em euro-dólares; mas até então, suas obrigações eram prevalentemente denominadas em moedas menores (se não em dólares norte-americanos) que, sendo mais débeis, não eram facilmente utilizáveis como moedas de denominação de empréstimos. Agora que, todavia, as coisas mudaram, e que gradualmente as obrigações são emitidas em Euro, por que motivo estes bancos deveriam continuar a fazer empréstimos em euro-dólares, indo ao encontro a custos notáveis e diminuições de lucro de que se falava acima? Claramente, a tendência é de substituição, embora lenta, da moeda de denominação de empréstimo dólar norte-americano pelo Euro. Mas, pelo que se viu anteriormente, uma chuva de Euro sobre a América Latina – situação certamente potencial – poderia desorganizar, segundo as relações já vistas, qualquer projeto de ancoragem cambial em qualquer nível.

 

Anteriormente vimos como uma ALCA sem âncora cambial não é um projeto particularmente ótimo para os capitalistas ligados ao dólar norte-americano, sobretudo se, pelo que se viu, a estrutura bancária devesse permanecer inalterada. Se, além da crise profunda que, atualmente, envolve todos os países do subcontinente, se devesse acrescentar a incômoda presença do Euro, as perspectivas da ALCA poderiam ser tudo que não rosas.

 

Nesta ótica, provavelmente, vê-se a aceleração das operações que a ALCA está obtendo neste período, não obstante a evidente calamidade latino-americana; da mesma maneira é vista, além disso, a estranha oposição de alguns governantes, definida por muitos com a habitual grosseria, como antiimperialismo sujo.

 


[1] A análise em realidade éfeita sobre moedas esistentes em 1997, ovvero Dólar norte-americano, Franco francês, Marco alemão, Libra esterlina e Yen.

O PRINCÍPIO DA ISONOMIA APLICADO À RELAÇÃO JURÍDICA DE CONSUMO NA LEGISLAÇÃO ARGENTINA E BRASILEIRA

Prof. Dr. Renato Seixas

Doutor em Ciências da Integração da América Latina pelo PROLAM-USP[1]

Professor de Direito Civil e de Direito Processual Civil

 

 

APRESENTAÇÃO

 

 

Nas sociedades contemporâneas mais evoluídas, em que se procura assegurar tratamento justo e igualitário para todos os indivíduos, o princípio da isonomia é, com certeza, um dos mais importantes para a organização do ordenamento normativo jurídico. O aludido princípio está impregnado nas normas jurídicas e rege a interpretação e aplicação delas na vida social. Esse princípio, portanto, é universal, aplicável a todos os ramos do Direito e não apenas ao Direito do Consumidor. Para que seja realizado o princípio da isonomia, é necessário que cada ramo do Direito adote outros princípios, quer gerais, quer especiais, de modo a criar condições materiais adequadas ao tratamento mais igualitário possível entre os indivíduos e em determinadas circunstâncias. É o que ocorre, por exemplo, no Direito do Trabalho, no Direito Tributário, no Direito Previdenciário, no Direito Penal, no Direito Locatício e em tantos outros ramos da ciência jurídica.

 

A literatura de Direito do Consumidor aponta reiteradamente os princípios gerais e específicos que governam esse ramo do Direito. Por exemplo, fala-se freqüentemente no princípio da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, a fim de justificar a existência e a aplicação de normas protetoras dos consumidores. Ocorre que todos esses princípios e normas disciplinadoras das relações de consumo pressupõem a necessidade de realização do princípio da isonomia que, como dito, é princípio universal em Direito. De fato, não seria necessário cogitar do princípio da isonomia se os sujeitos que estabelecem entre si relações de consumo estivessem em idêntica situação jurídica, se tivessem igual poder social, econômico, cultural, técnico. Enfim, se tais sujeitos pudessem negociar entre si em situação de plena igualdade, é claro que a realização do princípio da isonomia independeria de proteção jurídica adicional para algum desses sujeitos. Mas nem sempre essa situação de igualdade real acontece. Por isto, é preciso que o Estado intervenha nas relações jurídicas, sociais e econômicas criando mecanismos que eliminem ou minimizem as situações de desigualdade entre os diversos sujeitos e assegure tanto quanto possível, de acordo com as circunstâncias, a realização do ideal de isonomia.

 

Este estudo tem por objetivo examinar, de modo geral e sumário, quais foram as causas históricas, econômicas, sociais e jurídicas determinantes da criação e do desenvolvimento da chamada sociedade de produção e consumo massificados. Quer-se também apontar as razões gerais que provocaram a situação de vulnerabilidade dos consumidores em face dos fornecedores e, em conseqüência, criaram a necessidade de intervenção do Estado para disciplinar as relações de consumo. Fixado esse contexto geral, examinar-se-á como esses fenômenos foram transferidos para a América Latina, incorporando-se à vida econômica, social e jurídica dos povos latino-americanos. Esse encadeamento de fatos explica por quê o Direito do Consumidor é razoavelmente uniforme nas nações em que o mercado de consumo atingiu certo grau de desenvolvimento e de maturidade. Essa consistência teórica e prática do Direito do Consumidor é extremamente importante no mundo contemporâneo, em que se fala insistentemente em “globalização” cultural, econômica, jurídica e até social. Sabendo-se que o Direito do Consumidor apresenta essa consistência e uniformidade teórica, adotando princípios e normas semelhantes em diversos países, é evidente que as relações de consumo transnacionais tornam-se mais seguras. Nessas circunstâncias, as condutas de consumidores e fornecedores serão disciplinadas de maneira razoavelmente uniforme e, por outro lado, os eventuais conflitos de consumo entre esses sujeitos tenderão a ser resolvidos com critérios bastante semelhantes em cada país. Esse estudo foi realizado de modo mais amplo e mais profundo em nosso trabalho apresentado como dissertação de tese de mestrado[2]. No presente trabalho, serão examinados apenas os critérios a partir dos quais as leis argentina e brasileira de proteção ao consumidor estabeleceram os elementos essenciais da relação jurídica de consumo. A análise aqui realizada parte exatamente da necessidade de realização do princípio da isonomia nas relações jurídicas de consumo. Sob essa perspectiva, pretende-se explicar a razão pela qual foram criados, na legislação examinada, conceitos de consumidor por equiparação e, ainda, por quais motivos é preciso admitir que a entidade abstrata (personificada ou não) seja considerada consumidora.

 

 

(1) CAUSAS DETERMINANTES DO SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE DE CONSUMO

 

O processo de expansão comercial e de colonização européia ocorrido principalmente nos séculos XV a XVII teve duas grandes e importantes conseqüências, a saber: (a) estruturou-se com base numa inafastável divisão de funções econômicas entre as metrópoles e suas respectivas colônias; e (b) possibilitou para as nações colonialistas enorme acumulação de capitais disponíveis (Prado Júnior, 1984).

 

As nações colonialistas organizaram a atividade econômica de suas respectivas colônias de tal modo que estas últimas, sempre em benefício das metrópoles a que estavam vinculadas, deveriam produzir e fornecer apenas produtos naturais e matérias primas com alto valor no mercado europeu. Por outro lado, todos os demais bens industrializados necessários à vida colonial seriam fornecidos pela metrópole. Estabeleceu-se, assim, o chamado “Pacto Colonial”, por meio do qual a atividade econômica, comercial e cultural da colônia com o exterior somente poderia realizar-se por intermédio da respectiva metrópole, sendo vedado à colônia estabelecer qualquer relação internacional com terceiros (Prado Júnior, 1984). Esta bipolaridade colônia-metrópole possibilitou que as metrópoles européias colonialistas tivessem uma impressionante acumulação de capitais excedentes disponíveis, os quais poderiam ser investidos noutras atividades lucrativas (Cipolla, 1974). Ora, podendo as metrópoles dispor de matérias-primas baratas e fornecidas com exclusividade por suas colônias, para depois revendê-las por altíssimo preço no mercado europeu e, além disso, podendo também dispor de enormes recursos acumulados pela exploração comercial colonialista, criou-se um contexto favorável ao desenvolvimento técnico e tecnológico que veio a desencadear a chamada Revolução Industrial, cujo marco histórico é fixado na segunda metade do século XVIII, especialmente na Inglaterra (Heers, 1981).

 

De fato, as nações européias colonizadoras tinham interesse em manter colônias capazes de lhes fornecer os gêneros primários com o menor custo possível (Marx, 1996). As colônias não tinham como interferir nas oscilações de preços de seus produtos no mercado internacional. De outro lado, as metrópoles acumulavam lucros fantásticos em decorrência do exercício do monopólio comercial com suas colônias, já que obtinham os gêneros primários a baixo custo e os vendiam no mercado mundial a preços muito altos (Castro, 1992). A acumulação capitalista comercial européia criou as condições necessárias para o surgimento do capitalismo industrial na Europa (Prado Júnior, 1984). Os excedentes econômicos gerados na fase do capitalismo comercial, em grande parte drenados das colônias, permitiram a elevação do nível social dos países europeus e o aumento populacional na região. Isto possibilitou a formação de um potencial mercado interno consumidor dos produtos industrializados na Europa (Heers, 1981). Parte dos excedentes econômicos foi investida em novas tecnologias produtivas, gerando bens de melhor qualidade e menor custo. A população, então, pode adquirir maior quantidade de bens a custo mais reduzido e, assim, os mercados europeus ampliaram-se progressivamente, fomentando ainda mais a atividade industrial e agrícola (Prado Júnior, 1984). Mais tarde, em meados do século XVIII, quando o capitalismo europeu adentrou a fase industrial de produção e consumo de massa, tornou-se imperativo expandir os mercados consumidores (Ferro, 1996). A Revolução Industrial, como se comentará um pouco mais adiante, transformou significativamente o universo cultural europeu e mundial. Estabeleceu-se novo modelo sócio-econômico em que a produção de bens e serviços deixou de ser artesanal e destinada preponderantemente ao comércio local ou colonial. Essa produção passou a ser massificada e destinada ao consumo também massificado em escala mundial (Kemp, 1985). Essas tendências da então nova economia mundial desde logo se mostraram incompatíveis com a manutenção do “Pacto Colonial”. Consequentemente, as nações européias industrializadas, lideradas pela Inglaterra, exerceram fortes pressões contra as nações colonialistas que ainda mantinham o dito Pacto em vigor. Foi nessas circunstâncias que, paulatinamente, o sistema colonial estabelecido a partir do século XV foi se desmantelando para, já no início do século XIX, ceder espaço para o chamado capitalismo industrial (Prado Júnior, 1984). Contando com esses novos mercados, as nações européias industrializadas conseguiram escoar em grande escala seus produtos manufaturados e passaram a adquirir, a baixo custo, mais gêneros primários produzidos pelos povos colonizados e, mais tarde, pelas nações independentes subdesenvolvidas (Kemp, 1985).

 

Com o paulatino desenvolvimento do capitalismo industrial, o panorama cultural e sócio-econômico da Europa e das regiões expostas à sua influência sofreu transformações muito mais profundas e definitivas. Um dos mais importantes aspectos dessa Revolução Industrial consistiu exatamente na modificação dos processos de produção, de distribuição e de circulação comercial dos bens industrializados (Fioravante et al., 1991). Antes do amadurecimento da fase capitalista comercial de produção e, portanto, antes do advento da Revolução Industrial, a produção de bens tendia a ser feita artesanalmente ou, ainda, desde a Idade Média, por meio das chamadas “Corporações de Ofício”. Os serviços também eram organizados e executados de modo artesanal ou por meio de pequenas entidades produtivas. Nesse contexto, produziam-se bens e realizavam-se serviços em pequena escala e que eram destinados, preponderantemente, ao consumo local, embora também ocorresse a produção de excedentes para exportação para outras regiões ou países, especialmente para as regiões coloniais (Kemp, 1985). Além de tudo isto, o processo de divisão do trabalho ainda não tinha alcançado o grau de complexidade e de sofisticação que mais tarde apresentaria (Marx, 1996). Assim, por exemplo, o artesão fabricante de um objeto qualquer o produzia em pequena quantidade e participava de todas as fases de fabricação desse bem, controlando melhor a qualidade do produto, apesar do pouco desenvolvimento tecnológico. Esse objeto fabricado de modo artesanal tendia a ser comercializado diretamente pelo fabricante na comunidade em que vivia, de tal maneira que o fornecedor e consumidor estavam muito próximos um do outro, tendiam a se conhecer e a resolver entre si eventuais conflitos decorrentes das relações de consumo. A produção excedente desses objetos seria secundariamente destinada ao comércio noutras regiões da Europa ou à exportação. A Revolução Industrial transformou essa realidade de modo irreversível (Marx, 1996). Acentuou-se a divisão das atividades produtivas rurais e urbanas. Os artesãos e trabalhadores em geral foram deslocados de suas casas e pequenas oficinas e instalados em grandes fábricas. Nessas fábricas, ocorreu um complexo processo de divisão do trabalho para que os bens fossem produzidos em série (Smith, 1996). Cada operário tornou-se altamente especializado num detalhe do produto final. Máquinas sofisticadas substituíram diversas etapas do trabalho manual e viabilizaram a produção massificada de bens industrializados. A produção assim obtida não era mais destinada preponderantemente ao consumo local. Ao contrário, a produção passou a ser organizada para a exportação em escala mundial e com vistas a um consumo massificado (Galbraith, 1996). A atividade dessas indústrias e o seu aperfeiçoamento tecnológico geraram a oportunidade para o desenvolvimento de variados serviços igualmente especializados, tais como a armazenagem, o transporte, a distribuição, a pesquisa para aperfeiçoamento do maquinário, os serviços bancários e securitários, os serviços de profissionais liberais de todas as espécies, a criação de infraestrura naval, portuária e viária, a criação de empregos públicos, apenas para citar alguns (Kalecki, 1997).

 

Esses fenômenos todos acrescentaram novos elementos à cultura dos povos europeus e também à cultura dos povos sujeitos à sua influência em todo o mundo. De meados do século XVII até meados do século XIX predominaram os dogmas da filosofia liberalista e do racionalismo. Os indivíduos, governados pela Razão, deveriam gozar da maior liberdade possível para auto-regularem seus interesses privados, de modo que a atividade estatal deveria restringir-se exclusivamente aos assuntos de interesse público (Smith, 1996). Um dos principais dogmas da filosofia liberalista que regeu a Revolução Industrial inglesa e, depois, a Revolução Francesa, era exatamente o de que o Estado deveria ocupar-se apenas de assuntos absolutamente indispensáveis para a manutenção da sociedade. Assim, o Estado deveria cuidar da organização das cidades, dos serviços públicos essenciais, da distribuição de Justiça pública, das vias de transporte, da segurança pública, da Administração Pública, da tributação uniforme, abstendo-se o mais possível de interferir em todo e qualquer assunto atinente às atividades privadas. Os indivíduos regulariam seus próprios interesses por meio de contratos, dispensando a intervenção estatal para esse fim (Smith, 1996). Essa concepção de laissez faire, laissez passer que prevaleceria no âmbito privado provocou situações de desequilíbrio econômico e social que poriam em risco o próprio sistema produtivo e a integridade das nações européias, como se verá a seguir.

 

 

(2) CAUSAS DA CRISE DO ESTADO LIBERALISTA E INTERVENCIONISMO ESTATAL NA ECONOMIA PRIVADA

 

Num ambiente de liberalismo inebriante, as forças produtivas e sociais do continente europeu desorganizaram-se. Sem que qualquer controle estatal abrangente fosse exercido sobre a produção e a comercialização de bens, os agentes econômicos podiam produzir tudo o que queriam e nas quantidades que desejassem (Marx, 1996). Dispondo potencialmente de imensos mercados consumidores espalhados em todo o mundo, as nações européias industrializadas pareciam acreditar que toda a sua produção poderia sempre ser consumida (Myrdal, 1997). No entanto, as regiões colonizadas ou recém egressas do colonialismo não contavam com população capaz de consumir toda a produção européia. A mão-de-obra daquelas regiões ainda era servil ou semi-servil e, portanto, sem recursos para adquirir os bens industrializados postos à sua disposição (Mill, 1996). Nesse contexto, a Europa deparou-se com sucessivas crises de superprodução, queda de preços, desemprego e conflitos sociais.

 

A expansão das atividades fabris acarretou grande aglomeração nas cidades da Europa industrializada (Kemp, 1985). Grandes bairros operários foram criados e isto provocou intenso processo de especulação imobiliária. Apesar da generalizada pouca qualidade das habitações e da quase inexistente infraestrutura para saneamento básico nos bairros operários, os aluguéis alcançaram níveis elevadíssimos para a época. Tornou-se prática comum a ameaça de retomada dos imóveis locados como meio de pressão dos proprietários para aumentarem os aluguéis. A necessidade de melhor aproveitamento do solo urbano possibilitou maior desenvolvimento da construção de edifícios com planos horizontais sobrepostos. As condições de higiene eram tão precárias nesses bairros que se tornou comum a ocorrência de epidemias e doenças crônicas. Por outro lado, também as condições de trabalho nas fábricas e nas minas de carvão (que eram fundamentais para o funcionamento das indústrias) eram, em geral, deploráveis. A indústria, sempre em expansão tanto para atender à demanda dos mercados internos como dos mercados internacionais, precisava de abundante mão-de-obra barata e de carvão a baixo custo para prover o funcionamento dos fornos industriais. Por isto, pouco a pouco foram sendo absorvidas na atividade industrial e de mineração todas as pessoas disponíveis para o trabalho. Famílias inteiras integraram-se nessa nova realidade. Assim, além do homem, a quem tradicionalmente competia o sustento material da família, passou-se a usar também a mão-de-obra feminina e a de crianças que, em qualquer idade, tivessem condições de produzir. Os operários não tinham direitos trabalhistas, podendo ser sumariamente demitidos a qualquer tempo. As jornadas de trabalho eram em geral muito longas, chegando a dezoito horas diárias, sem descanso semanal ou férias. Os salários eram muito baixos e não havia a menor preocupação com os acidentes laborativos (Marx, 1978 e 1996). Se o operário de acidentasse ou adoecesse, seria demitido e prontamente substituído, já que havia enorme contingente de desempregados disposto a trabalhar por diminuta remuneração (Kemp, 1985). Essa população proletária estava marginalizada e excluída da maior parte dos serviços estatais (Marx, 1978). Como a produção industrial era destinada preponderantemente à exportação em escala mundial, não se tinha em vista a necessidade de melhorar as condições de vida da população local, a fim de aumentar a base de consumidores nacionais e de fomentar o consumo interno em maior escala. Em decorrência do novo modelo produtivo apontado, o consumidor final dos produtos industrializados poderia estar em qualquer lugar do mundo. Entre tal consumidor e o fornecedor dos bens interpunham-se incontáveis intermediários de todas as espécies. Em razão disto, tornou-se difícil, ou mesmo impossível, para o consumidor resolver diretamente com o fornecedor os eventuais conflitos de consumo. Esses consumidores não recebiam, em geral, informações sobre as especificações dos bens de consumo, sobre os cuidados a serem observados para evitar riscos à saúde, à segurança ou à vida dos adquirentes ou usuários desses bens. Ora, um dos princípios em que se fundamentava filosofia liberalista era o de que todos os cidadãos eram iguais perante a lei, igualdade essa que era apenas formal (Gaxote, 1945). Na realidade, as imensas diferenças econômicas, sociais, culturais, étnicas e tantas outras impediam que, materialmente, os cidadãos fossem mesmo iguais uns aos outros. Num contexto de tantos abusos, irromperam inúmeros conflitos sociais, econômicos e políticos no território europeu. Não se pode deixar de observar que os movimentos comunistas e socialistas formaram-se e tomaram corpo e força especialmente no decorrer do século XIX (especialmente com o “Manifesto Comunista” de F. Engels e em conseqüência das influências marxistas). Esses conflitos contrapunham as classes menos privilegiadas a um Estado controlado pela burguesia comercial, industrial e financeira e, também, pelo clero (Marx, 1978 e 1996).

 

A situação de vulnerabilidade de certos grupos ou setores sociais em face de outros desencadeou grave crise dos fundamentos da sociedade liberalista. O princípio da isonomia formal de todos perante a lei sofreu sérios questionamentos e, em conseqüência, passou-se a buscar maior igualdade substancial entre os indivíduos e entre os diferentes grupos sociais. Também o princípio do liberalismo econômico foi revisado, já que as diversas forças atuantes no mercado não conseguiram alcançar um ponto de equilíbrio natural capaz de evitar as sucessivas crises sociais e econômicas registradas pela história. Esses fenômenos determinaram a necessidade de uma crescente e generalizada intervenção estatal na vida privada, especialmente no que diz respeito à autonomia de vontade privada. Por isto é que a intervenção estatal na economia privada ocorreu, de início, em pontos importantes da estrutura social e econômica, tais como nas relações trabalhistas, previdenciárias, locatícias e de ocupação do espaço urbano. Um dos aspectos mais importantes da autonomia de vontade privada é a autonomia de vontade negocial ou contratual. A autonomia de vontade contratual tem conteúdo complexo, pois abrange a liberdade do sujeito de decidir por si mesmo: a) se quer contratar ou não; b) com quem irá contratar; c) que tipo de contrato celebrará; d) qual será o conteúdo do contrato. A situação de desequilíbrio crônico em que se encontravam certos grupos sociais em face de outros impedia que os grupos vulneráveis exercessem com plenitude sua autonomia de vontade negocial ou contratual. Para corrigir essas distorções e restaurar a autonomia contratual dos indivíduos vulneráveis, o Estado precisou editar leis especiais protetoras daqueles sujeitos. Essa intervenção estatal tinha, e ainda tem, por objetivo essencial a restauração ou a criação de pontos de equilíbrio econômico e social no âmbito de determinados países. Uma das mais importantes formas de intervencionismo estatal no contexto apontado foi o surgimento das leis de proteção aos consumidores. O dirigismo estatal em matéria contratual nas relações de consumo é, por conseguinte, apenas um dos múltiplos aspectos dessas transformações que aqui se indicou em linhas muito gerais (Alpa, 1977).

 

Como se pode notar a partir dessas resumidas informações, modificou-se profunda e amplamente o universo cultural da Europa e das regiões do mundo que estavam sob sua influência. Novos valores sociais, econômicos, políticos, ideológicos, religiosos foram incorporados à cosmologia européia. Esses valores foram sendo paulatinamente transferidos às nações sujeitas à hegemonia da Europa. 

 

 

(3) TRANSFERÊNCIA DO SISTEMA JURÍDICO EUROPEU PARA A AMÉRICA LATINA

 

A estruturação legal das relações jurídicas nos países latinos proveioessencial e indiretamente, do Direito Romano. Os princípios que informam essas relações foram essencialmente extraídos do Direito Romano e daí passaram para a legislação dos povos e países que um dia estiveram sob influência do Império Romano (Trabucchi, 1967). Grande parte do Direito Romano, adaptado a cada fase da evolução das nações européias, foi adotada como direito vigente em vários países europeus desde o século XIII até o início do XIX. Somente quando começaram os movimentos das grandes codificações legislativas européias, no século XIX, é que o sistema do Direito Romano veio a ser substituído pelos códigos que foram sendo editados em cada país, a começar pelo Código Civil francês de 1804 (Colin e Capitant, 1975). Mas, note-se bem, grande parte do sistema do Direito Romano foi incorporada como base dos referidos códigos. O Direito Romano deixou de ser aplicado como direito produzido pelo Império Romano, mas foi sendo paulatinamente incorporado, por meio do costume ou de normas oficiais, ao ordenamento jurídico de cada nação e, por fim, foi absorvido pelas grandes codificações (Lehmann, 1956). Sendo assim, observando-se a estrutura dos institutos jurídicos encontrados no Direito Romano e contrastando-a com a estrutura desses institutos existentes no direito moderno dos países que se filiam àquele sistema jurídico, constata-se a enorme influência do pensamento jurídico romanista (Enneccerus-Kipp-Wolff, 1981). O Direito brasileiro e também o Direito argentino têm sua estruturação básica espelhada no sistema jurídico Romano, especialmente as teorias obrigacional e contratual (Stiglitz, 1993 e 1994). De fato, o Direito Romano havia sido absorvido, em grande parte, pela legislação lusitana, que, por sua vez, vigorou durante largo período no Brasil (Diniz, 1991). Mesmo depois de declarada a independência política do Estado brasileiro, a legislação lusitana continuou a ser usada e aplicada como direito nacional brasileiro. Por isto, o Direito brasileiro recebeu enorme influência das codificações européias que, por sua vez, inspiraram-se no Direito Romano (Gomes, 1995). Por outro lado, o mesmo Direito Romano influenciou a legislação espanhola e daí passou para o Direito argentino que, além disso, também foi muitíssimo influenciado pela legislação civilista brasileira (Espínola, 1977). Não se pode deixar de observar que o Código Civil argentino foi elaborado a partir do projeto de Código Civil brasileiro desenvolvido por Teixeira de Freitas (Diniz, 1991).

 

Foi nesse contexto de influências legislativas européias que se organizaram tanto o Direito brasileiro como o argentino (Diniz, 1991). No Direito Privado desses dois países encontram-se princípios e fundamentos que refletem a concepção filosófica liberalista que predominava na Europa daquela época, já com algumas restrições decorrentes do intervencionismo estatal (Pereira, 1989). A disciplina geral das obrigações e dos contratos é regida, por conseguinte, por tais princípios e fundamentos (Gomes, 1997). Por esses motivos, os princípios que regem o Direito brasileiro e o Direito argentino são muito semelhantes. Essa semelhança ocorre também no sistema legal que Brasil e Argentina desenvolveram para regular as modernas relações de consumo (Stiglitz, 1994).

 

Pode-se afirmar, então, que estão presentes nos ordenamentos jurídicos da Argentina e do Brasil diversos elementos da cultura jurídica, social e econômica da Europa. Conseqüentemente, a disciplina legal do mercado de consumo massificado da América Latina também surgiu e se desenvolveu sob a influência da legislação européia. O mercado de consumo latino-americano foi criado para atender aos interesses coloniais e industriais dos países centrais da Europa durante os séculos XV a XIX. Mais tarde, nos séculos XIX e XX, sobreveio a inequívoca influência dos Estados Unidos da América (Padis et al., 1979). Por essas razões, as normas jurídicas que compõem o sistema de proteção ao consumidor são mais ou menos homogêneas na legislação dos países em que o mercado de consumo já atingiu certo grau de maturidade. As normas de proteção ao consumidor são regidas por princípios jurídicos mais ou menos uniformes, são organizadas em subsistemas normativos especiais, resguardam aproximadamente os mesmos interesses jurídicos dos consumidores, prevêem sanções muito semelhantes a serem aplicadas contra quem vier a desobedecê-las (Ferrier, 1996). A legislação de proteção ao consumidor é preponderantemente intervencionista, ou seja, as normas jurídicas editadas pelo Estado interferem nas relações jurídicas de consumo para, por um lado, limitar a liberdade de conduta dos fornecedores, impedindo-os de adotar certos comportamentos considerados nocivos aos consumidores ou obrigando-os a observar determinadas condutas em favor dos consumidores; e, por outro lado, para assegurar aos consumidores condições equilibradas para que possam exercer sua autonomia de vontade nas contratações de consumo (Alpa e Patti).

 

 

(4) FUNDAMENTOS GERAIS DA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR E EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

 

O Direito do Consumidor é ramo do Direito constituído por um conjunto de princípios, institutos e preceitos jurídicos que têm por objetivo disciplinar as relações jurídicas de consumo (Rosa, 1995). O Direito do Consumidor reconhece que existe um acentuado desequilíbrio entre consumidores e fornecedores no âmbito do mercado de consumo. Essa situação de desequilíbrio torna os consumidores vulneráveis em face dos fornecedores e frustra o ideal do princípio da isonomia. Essa inferioridade do consumidor pode manifestar-se de variadas formas, ou seja, a inferioridade pode ser econômica, cultural, técnica, social, entre outras. Exatamente por isto, o consumidor não pode exercer com plenitude sua autonomia de vontade privada em face do fornecedor. A situação de inferioridade do consumidor em face do fornecedor permite que este último cometa abusos no mercado de consumo. Por essas razões, o Estado tem que intervir nas relações de consumo para eliminar ou reduzir o desequilíbrio e a vulnerabilidade dos consumidores diante dos fornecedores (Sidou, 1977).. Como se verá mais adiante, essas relações jurídicas de consumo formam-se pelo menos com três elementos essenciais: a) o sujeito fornecedor de bens no mercado de consumo; b) os bens introduzidos no mercado de consumo; e c) o sujeito consumidor dos bens introduzidos no mercado de consumo (Lucca, 2000). Sendo assim, as normas jurídicas integrantes do Direito do Consumidor regulam os direitos, deveres e obrigações tanto dos consumidores como dos fornecedores de bens no âmbito do mercado de consumo (Almeida, 1993). O fato de a lei conceder essa proteção jurídica ao consumidor não significa, absolutamente, que o consumidor não tenha deveres e obrigações em face do fornecedor, que é a outra parte da relação jurídica de consumo. Certamente que o consumidor os tem e deve cumpri-los. Por outro lado, também o fornecedor de bens tem muitos direitos em face do consumidor. Na verdade, bem analisada cada situação, verificar-se-á que existe uma constante correlação entre os direitos do consumidor e os do fornecedor (Ferrara, 1983). Por exemplo, se o fornecedor tem o dever de dar ao consumidor informações claras, precisas, verdadeiras e de fácil entendimento a respeito do consumo de certo bem, o consumidor, por seu turno, tem o dever de consumir o bem de acordo com as recomendações dadas pelo fornecedor. Em muitos casos as normas de Direito do Consumidor permitem ao fornecedor e ao consumidor que negociem, dentro de certos limites, seus respectivos interesses jurídicos (Calais-Auloy, 1986). Isto acontece porque, nesses casos, a norma jurídica estabelece que a vulnerabilidade do consumidor diante do fornecedor não existe ou, se existe, é mais branda, de tal modo que o consumidor, em tese, pode exercer sua autonomia de vontade privada em igualdade de condições com o fornecedor. Noutras situações, porém, a norma jurídica previamente define uma situação jurídica como prejudicial ao consumidor vulnerável. A norma estabelece que, em tais casos, o consumidor não pode exercer plenamente sua autonomia de vontade privada em face do fornecedor, que se apresenta mais poderoso em relação ao consumidor. A vulnerabilidade do consumidor, nessas circunstâncias, agrava-se a tal ponto que é presumível que ele sofrerá prejuízos (Lorenzetti, 1997). Para eliminar ou minimizar esse efeito nocivo, a norma jurídica estabelece regras pétreas de conduta, tanto para o consumidor quanto para o fornecedor, no sentido de obrigá-los a observar o comportamento que a norma prescreve para cada um deles (Marques, 1999). Nessas circunstâncias, ambos ficam adstritos àquele comportamento e, mesmo que queiram proceder de modo diverso, não podem fazê-lo. Não podem porque a norma, ao descrever o comportamento que deseja ver observado, estabelece a sanção jurídica punitiva de tornar absolutamente ineficaz qualquer comportamento em desacordo com seu mandamento (Filomeno, 1991). Logo, ainda que o consumidor queira convencionar com o fornecedor algo diferente do que a norma determina, essa convenção, juridicamente, não tem efeitos em tudo aquilo que possa ser prejudicial ao consumidor. Não há, pois, qualquer vantagem para o fornecedor em proceder em desacordo com a norma em questão. Essa é a razão pela qual a maior parte das normas do Direito do Consumidor é de ordem pública e de interesse social. Nesses casos o consumidor e o fornecedor não podem contrariá-las, sob pena de ineficácia jurídica da conduta adversa à lei (Grinover et al., 1997).

 

Há, ainda, outro sentido em que as normas de Direito do Consumidor são de ordem pública e de interesse social. São muitas as razões jurídicas, históricas, sociais e econômicas pelas quais o Estado precisou intervir na economia privada[3]. No estágio atual desse processo de intervencionismo estatal, cada vez mais o Estado precisa disciplinar diversos aspectos das relações jurídicas de consumo (Gomes, 1980 e 1994). O desenvolvimento econômico e social de uma nação depende de uma enormidade de fatores, entre os quais estão, apenas a título de exemplo, a existência de poupança popular, os instrumentos de financiamento da produção e do consumo de bens, a organização dos mercados, a capacidade de tal nação de exportar bens ou sua necessidade de importá-los, a distribuição de renda, a saúde e a educação da população, as taxas de crescimento populacional, a ocupação do território, a existência de recursos naturais exploráveis de modo sustentado (Fadlallah et al., 1982). Em maior ou menor grau, todos esses aspectos fomentam, direta ou indiretamente, a formação, o desenvolvimento e o crescimento do mercado de consumo, interno e externo (Rosa, 1995). Portanto, é preciso buscar incessantemente, o equilíbrio e a harmonia entre todos os fatores relacionados ao desenvolvimento econômico, social e jurídico, de tal modo que os benefícios desse desenvolvimento sejam partilhados do modo mais justo possível no ambiente social. Assim, mais uma vez o princípio da isonomia mostra-se de fundamental importância para a realização desses objetivos. Nesse contexto, o intervencionismo estatal no mercado de consumo ocorre, por princípio, para atender a relavantíssimos interesses sociais e para proteger bens jurídicos considerados, pela lei, essenciais à consecução dos objetivos daquela nação. Como se vê, o intervencionismo estatal no âmbito do Direito do Consumidor não decorre apenas de uma reconhecida necessidade de proteger os consumidores vulneráveis. Tal intervencionismo decorre, preponderantemente, da necessidade de realizar o princípio da isonomia do modo mais amplo e profundo possível, de sorte a resguardar os bens e interesses sociais que estão associados às diversas relações jurídicas de consumo, tendo-se em vista os objetivos mais elevados do país. Essas considerações são muito importantes porque, além da proteção específica do consumidor vulnerável, as normas de Direito do Consumidor protegem, direta ou indiretamente, muitos outros interesses sociais, tais como, por exemplo, a cultura, os valores éticos, a não discriminação, a função social das empresas, a dignidade da pessoa humana.

 

Enfim, quando atualmente se fala em Direito do Consumidor, é preciso que se tenha sempre em mente que as normas que o compõem destinam-se a promover o desenvolvimento harmônico e equilibrado das relações jurídicas de consumo. Essa evolução das relações de consumo é essencial para o bem estar da sociedade (Rosa, 1995). Quer-se proteger o consumidor vulnerável, porém não se deseja, de outro lado, desestimular a atividade econômica produtiva. Se a proteção do consumidor, de modo geral, for tão rigorosa, tão implacável, tão intransigente, o fornecedor, em geral, poderá sentir-se desestimulado para produzir e para introduzir bens no mercado de consumo (Ferrara, 1983). Se os fornecedores assim procedessem em quantidade significativa, seria inexorável uma desaceleração da economia, que desencadearia crises sociais, trabalhistas, fiscais, entre outras. É claro que tudo isto contraria os mais elevados interesses sociais. Portanto, não se pode deixar de proteger o consumidor de modo eficiente, mas também não se pode inviabilizar ou desestimular a atividade econômica do fornecedor. Encontrar o equilíbrio nesse contexto não é tarefa fácil, até porque o mercado de consumo massificado é extremamente mutável. Acrescente-se a isto tudo o fenômeno da globalização econômica. O fluxo de bens e de recursos entre os diversos países torna ainda mais delicado o equilíbrio antes mencionado (Baudrillard, 1991). É então preciso criar e adotar normas jurídicas uniformes para a proteção dos consumidores dos diversos países que têm intensa atividade de troca econômica entre si. No caso específico do Brasil e da Argentina, a legislação de proteção aos consumidores é razoavelmente uniforme. Não é possível, neste estudo, examiná-las com a abrangência e profundidade desejadas[4]. No entanto, mesmo no que concerne às normas examinadas nos limites deste trabalho, é fácil verificar a possibilidade de harmonizar dispositivos contidos nas leis editadas pelos dois países. Isto facilita sobremaneira a proteção dos consumidores argentinos que consomem na Argentina bens de consumo fornecidos por brasileiros, e vice-versa.

 

 

(5) O PRINCÍPIO DA ISONOMIA E SUA IMPORTÂNCIA NAS RELAÇÕES JURÍDICAS DE CONSUMO

 

Como foi explicado, o fundamento ético essencial das normas de proteção ao consumidor está no princípio da isonomia, segundo o qual é preciso assegurar tratamento igualitário aos sujeitos de direito que se encontram em situação jurídica igual, e dar tratamento diferente aos sujeitos de direito que estejam em situações jurídicas diferentes, de modo a reduzir as desigualdades entre eles tendo-se em vista determinados fins (Bastos e Martins, 1989). O princípio constitucional da isonomia tem duplo conteúdo jurídico: refere-se tanto à igualdade de todos perante a lei (isonomia formal) como à igualdade de todos no que concerne ao tratamento que lhes é dado pela lei (isonomia material). Sucintamente, o mencionado princípio exige, por um lado, que se trate igualmente os sujeitos de direito que estão na mesma situação jurídica definida com certos critérios legais e em consideração a determinados fins jurídicos e, por outro lado, que se trate diferentemente os sujeitos que estão em situação jurídica diversa, caracterizada com critérios legais distintos e para fins jurídicos também diferentes (Meirelles, 1992). Por isto, a aplicação do princípio constitucional da isonomia requer que: a) sejam fixados os critérios discriminadores com base nos quais será distinguida uma situação jurídica de outra; e b) seja estabelecida uma correlação lógica entre os critérios discriminadores adotados para caracterizar uma dada situação jurídica e as finalidades jurídicas que se tem em vista para aquela situação específica. Depois de breves considerações sobre a evolução histórica do princípio constitucional da isonomia, BASTOS e MARTINS (1989, p. 7-9) explicam:

 

“(…). É sabido que o Texto Constitucional veda que certas situações sejam erigidas em elemento discriminador. (…).

 

É forçoso, todavia, considerar que, a despeito do destaque dado à proibição desses discrímens, não é, na verdade, neles que repousa o exato conteúdo do princípio da isonomia. O que este realmente protege são certas finalidades, o que, de resto, não é uma particularidade do tema em estudo, mas de todo o direito, que há de ser sempre examinado à luz da teleologia que o informa. Assim é que o discrímen “sexo” torna-se inegavelmente inaceitável sempre que o mesmo seja eleito com o propósito de desnivelar materialmente o homem da mulher. Será suficiente, contudo, evidenciar que o discrímen “sexo” foi escolhido precisamente com a finalidade de atenuar os desníveis entre eles, para torná-lo válido. Em síntese, só se tem por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontre a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito.

 

(…).

 

Quem com invulgar mérito despertou a atenção de nossas letras jurídicas para a importância da finalidade na compreensão do princípio isonômico foi Celso Antonio Bandeira de Mello, em “Vantagens pessoais e vantagens de carreira” (RDP, 18:107-15, out./dez. 1971):

 

“O problema do reconhecimento das diferenciações que não podem ser feitas sem quebra do princípio da isonomia se biparte em duas questões. A primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação. A segunda reporta-se à correlação existente entre fator erigido em critério de discriminação e a disparidade estabelecida no tratamento. Esclarecendo melhor: tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada.

 

(…).

 

Como a discriminação de situações pela lei é normal (por ser esta mesma sua função), a indagação correta a propósito do problema na isonomia é: o que não pode ser discriminado sem ofensa ao princípio da igualdade? ou seja, quando não é possível à lei desigualar situações?

 

A proibição de desequiparações encontra restrição efetiva muito menos no elemento erigido como critério diferencial que no vínculo relacionador do critério assumido com a diferenciação realizada.”

 

(…).

 

Daí se conclui quão insuficiente é, na verdade, a afirmação de grande parte de nossa doutrina e jurisprudência de que o princípio da igualdade consiste em “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam”. Não que seja errada tal assertiva. É que ela é tautológica, uma vez que o cerne do problema remanesce irresolvido, qual seja, saber quem são os iguais e quem os desiguais. A igualdade e a desigualdade não residem intrinsecamente nas coisas, situações e pessoas, porquanto, em última análise, todos os entes se diferem entre si, por mínimo que seja. O que acontece é que certas diferenças são tidas por irrelevantes, segundo o critério que se tome como discrímen. Assim, por exemplo, ao se aglutinarem diversas pessoas debaixo da noção de funcionário público estão-se ignorando muitas distinções que estas efetivamente apresentam no que diz respeito, v.g., a estatura, posição econômica, cor etc.

 

(…).

 

Mais uma vez resulta claro que o problema da isonomia só pode ser resolvido a partir da consideração do binômio elemento discriminador – finalidade da norma.”

 

Também SILVA (1994, p. 211), comentando o princípio constitucional da isonomia, esclarece:

 

“(…), o princípio não pode ser entendido em sentido individualista, que não leve em conta as diferenças entre grupos. Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstratamente iguais, pois o tratamento igual (…) não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica que os “iguais” podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo legislador. Este julga, assim, como “essenciais” ou “relevantes” certos aspectos ou características das pessoas, das circunstâncias ou das situações nas quais essas pessoas se encontram, e funda sobre esses aspectos ou elementos as categorias estabelecidas pelas normas jurídicas; por conseqüência, as pessoas que apresentam os aspectos “essenciais” previstos por essas normas são consideradas encontrar-se nas “situações idênticas”, ainda que possam diferir por outros aspectos ignorados ou julgados irrelevantes pelo legislador; vale dizer que as pessoas ou situações são iguais ou desiguais de modo relativo, ou seja, sob certos aspectos. Nesse sentido, já se pronunciou, também, Seabra Fagundes, para lembrar que os “conceitos de igualdade e de desigualdade são relativos, impõem a confrontação e o contraste entre duas ou várias situações, pelo que onde uma só existe não é possível indagar de tratamento igual ou discriminatório.”

 

Portanto, é certo que o princípio constitucional da isonomia veda o tratamento discriminatório de sujeitos que se encontram em situação jurídica igual, como também veda o tratamento igualitário dos sujeitos que se encontram em situação jurídica distinta. Todavia, a igualdade ou desigualdade entre as situações jurídicas é caracterizada em função dos critérios discriminadores escolhidos,os quais, por sua vez, são definidos em atenção à finalidade jurídica correlacionada a cada uma daquelas situações consideradas. [5] É preciso verificar qual o critério discriminante adotado e para qual finalidade jurídica tal critério foi escolhido. Nesse sentido, é interessante trazer ao contexto da análise a lição de MELLO (1993, p. 134):

 

“Em decorrência do disposto no art. 5º (sic), XXX, não é admissível estabelecer discriminações por motivo de idade ou sexo para admissão em empregos, vedação esta que também se aplica aos certames para provimento de cargos públicos, dada a remissão a ele feita pelo art. 39, § 2º. É evidente, entretanto, que o que o Texto Constitucional quis interditar foi que os fatores sexo e idade fossem tomados, só por si, como causas de discriminação. Por isto mesmo não é inconstitucional estabelecer limite de idade quando o concurso destinar-se a determinados cargos ou empregos cujo desempenho requeira esforços físicos ou cause acentuados desgastes intoleráveis a partir de faixas etárias mais elevadas. O mesmo se diga, analogamente, no que atina a restrições de sexo. Podem ocorrer hipóteses em que a especifidade das funções justifique a limitação. Assim, exempli gratia, não afrontaria a Constituição proibir que pessoas do sexo masculino participassem de concurso para cargos de “polícia feminina”.

 

O consagrado MEIRELLES (1992, p. 374) compartilha do entendimento de que o princípio da isonomia não é violado se o critério discriminante estiver vinculado a uma finalidade jurídica específica que justifique a discriminação, e exemplifica:

 

“(…) se determinado cargo de datilógrafo pode ser exercido indiferentemente por pessoas do sexo feminino ou masculino, a discriminação fundada nesse atributo pessoal do candidato será indevida; entretanto, se o que a Administração deseja é uma pessoa do sexo feminino para ocupar o cargo de datilógrafo numa penitenciária de mulheres, o estabelecimento desse requisito não constituirá discriminação ilegal, uma vez que visa a atender a uma legítima conduta administrativa. Daí porque a jurisprudência tem admitido como válidas exigências que, à primeira vista, pareceriam atentatórias ao princípio da isonomia, tais como as que limitam a acessibilidade a certos cargos em razão da idade, sexo, categoria profissional, condições mínimas de capacidade física e mental e outros requisitos de adequação ao cargo. (…).”.

 

Desse modo, a legislação de proteção ao consumidor se justifica na medida em que é instrumento para realizar, tão plenamente quanto possível, o princípio da isonomia, tanto no que concerne à isonomia formal quanto à substancial. A legislação consumerista reduz ou elimina a vulnerabilidade do consumidor em face do fornecedor, no âmbito do mercado de consumo, naquelas situações em que o consumidor não poderia exercer de modo razoável e equilibrado a sua autonomia de vontade privada. Sendo assim, o princípio da isonomia permeia as normas de Direito do Consumidor e tem importantíssima função na atividade interpretativa do conteúdo daquelas normas. Entre outros argumentos, é exatamente o princípio da isonomia que explica a razão pela qual a pessoa jurídica, em certos casos, é considerada consumidora e, então, passa a merecer a proteção das leis consumeristas. É também o princípio da isonomia que justifica a inserção das entidades jurídicas despersonalizadas no âmbito do Direito do Consumidor, quer como fornecedoras, quer como consumidoras. Por fim, é ainda o princípio da isonomia que dá consistência jurídica à disciplina da conduta de fornecedores nacionais e estrangeiros em face dos consumidores de certo país, na medida em que tal princípio exige que todos esses fornecedores respeitem os direitos dos consumidores. O consumidor, em qualquer nação, tende a estar em situação de vulnerabilidade em face dos fornecedores nacionais ou estrangeiros. Logo, as normas consumeristas procuram sempre neutralizar ou reduzir essa situação de vulnerabilidade e restaurar a isonomia entre as partes das relações jurídicas de consumo. Esse fenômeno retrata coincidência teórica e finalística às leis consumeristas dos diversos países que já atingiram certo grau de maturidade nas relações de consumo.

 

 

(6) OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR

 

Em cumprimento ao mandamento constitucional contido nos artigos 5º, inciso XXXII e 170, inciso, V, da Constituição Federal brasileira, e do artigo 48 de suas Disposições Transitórias, foi editada, em 11 de setembro de 1990, a lei ordinária nº 8.078, que é o atual “Código de Proteção e Defesa do Consumidor”, ou simplesmente CDC, como será designado daqui por diante[6].

 

O artigo 1º, do CDC, assim está redigido:

 

“Art. 1º. O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e de interesse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.”

 

A Argentina, por sua vez, estabeleceu a necessidade de proteção do consumidor no artigo 42 de sua Constituição (Stiglitz, 1994), nos seguintes termos:

 

“Artículo 42. Los consumidores y usuarios de bienes y servicios tienen derecho, en la relación de consumo, a la protección de su salud, seguridad e intereses económicos; a la información adecuada y veras; a la libertad de elección y a condiciones de trato equitativo y digno.

 

Las autoridades proveerán a la protección de eses derechos, a la educación para el consumo, a la defensa de la competencia contra toda forma de distorción de los mercados, al control de los momopolios naturales y legales, al de la calidad y eficiencia de los servicios públicos, y a la constitución de asociaciones de consumidores y usuarios.

 

La legislación establecerá procedimientos eficaces para la prevención y solución de conflictos, y los marcos regulatórios de los servicios públicos de competencia nacional, previendo la necesaria participación de las asociaciones de consumidores y usuarios y de las provincias interesadas, en los organismos de control.”

 

O dispositivo constitucional argentino, por si só, já atribui à lei de proteção ao consumidor o status de lei de ordem pública, que deverá conformar-se àqueles mandamentos do artigo 42 retro transcrito. Não há possibilidade, portanto, de a lei infraconstitucional dispor em desarmonia com a norma da Carta Maior da Argentina. Por outro lado, não podem os consumidores e fornecedores proceder de modo divergente da norma constitucional ou da própria lei de proteção ao consumidor (Stiglitz, 1994). Em obediência a esse mandamento constitucional, foi então editada a lei 24.240, de 22.09.1993, que disciplina as relações jurídicas de consumo. O artigo 65 da lei dispõe:

 

“ARTÍCULO 65. – La presente ley es de orden público, rige en todo el territorio nacional (omissis)”.

 

Como se vê, tanto o artigo 1º do CDC, quanto o artigo 42 da Constituição da República Argentina têm regras semelhantes e contemplam os mesmos princípios para a proteção ao consumidor (Lorenzetti, 1997). Observa-se desde logo que os mencionados dispositivos preocuparam-se essencialmente com a situação de vulnerabilidade dos consumidores em face dos fornecedores. Por essa razão, as leis consumeristas em ambos os países são de ordem pública e de interesse social, nos termos já explicitados anteriormente. Procura-se assegurar o maior equilíbrio possível entre os interesses de consumidores e de fornecedores, de modo a realizar o princípio da isonomia conforme já comentado.

 

 

(7) RELAÇÕES JURÍDICAS DE CONSUMO E CONCEITOS DE CONSUMIDOR

 

O Direito do Consumidor disciplina apenas as relações jurídicas de consumo, isto é, tem por objeto as relações jurídicas estabelecidas entre o fornecedor de bens de consumo e o consumidor desses bens, no âmbito do mercado de consumo (Nunes, 2000). As relações jurídicas estabelecidas pelos fornecedores entre si, bem como aquelas formadas pelos consumidores entre si, continuam todas regidas pelo Direito comum, Civil ou Comercial, conforme o caso. Pode-se dizer, então, que as relações jurídicas de consumo têm três elementos essenciais, a saber (Lucca, 2000): a) um sujeito qualificado como fornecedor de bens de consumo; b) os próprios bens de consumo a serem fornecidos; e c) consumidor daqueles bens de consumo. Ausente qualquer desses elementos essenciais, não se forma uma relação jurídica de consumo e, por conseguinte, será inaplicável o Direito do Consumidor (Lorenzetti, 1997). Deve-se, pois, examinar detidamente cada um dos referidos elementos essenciais.

 

 

(7.1) CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE FORNECEDOR DE BENS DE CONSUMO

 

No CDC, o conceito de fornecedor de bens de consumo é dado pelo caput do artigo 3º, que tem esta redação:

 

“Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestações de serviços.

 

(omissis).”

 

A lei argentina de proteção ao consumidor estabelece o conceito  de fornecedor no seu artigo 2º, com os seguintes termos:

 

“ARTÍCULO 2º – Proveedores de cosas o servicios. Quedan obligados al cumplimiento de esta ley todas las personas físicas o jurídicas, de naturaleza pública o privada que, en forma profesional, aun ocasionalmente, produzcan, importen, distribuyan o comercialicen cosas o presten servicios a consumidores o usuarios. Se excluyen del ámbito de esta ley los contratos realizados entre consumidores cuyo objeto sean cosas usadas.

 

No tendrán el carácter de consumidores o usuarios quienes adquieran, almanecen, utilicen o consuman bienes o servicios para integrarlos en procesos de producción, transformación, comercialización o prestación a terceros. No están comprendidos en esta ley los servicios de profesionales liberales que requieran para su ejercicio título universitario y matrícula otorgada por colegios profesionales reconocido oficialmente o autoridad facultada para ello, pero sí la publicidad que se haga de su ofrecimiento.”

 

Ambos os conceitos legais, o brasileiro e o argentino, têm em comum o fato de serem amplos (Stiglitz, 1994). Além disso, identificam o fornecedor de bens de consumo sempre como um sujeito de direito que desenvolve uma atividade profissional, com finalidade lucrativa, relacionada à introdução de bens de consumo no mercado de consumo (Nunes, 2000). Deveras, fornecedor pode ser uma pessoa humana ou uma entidade jurídica fictícia, personificada ou não. Esse sujeito de direito, o fornecedor, ocupará um dos pólos da relação jurídica de consumo que vier a estabelecer com o consumidor, quer tal relação tenha natureza contratual ou meramente obrigacional.

 

O fornecedor exerce profissionalmente alguma atividade relacionada aos bens que são introduzidos no mercado de consumo. Essa atividade profissional pressupõe habitualidade e busca de lucratividade por parte do fornecedor (Lorenzetti, 1997). O fornecimento de bem para o mercado de consumo sem essas características de profissionalismo afasta-se do conceito legal de fornecedor (Marques, 1999). Se alguém introduzir bens no mercado de consumo com lucro, mas de maneira não habitual, não será fornecedor. Por exemplo, se alguém, sem habitualidade, vender seu automóvel usado para alguém no mercado de consumo, mesmo com vantagem financeira, não será reputado um fornecedor. De outro lado, o fato de alguém habitualmente introduzir bens no mercado de consumo, porém sem interesse comercial, igualmente descaracteriza o fornecedor de que se ocupa o Direito do Consumidor. Por exemplo, se uma entidade beneficente, habitualmente, produzir e distribuir refeições para pessoas carentes, não será considerada fornecedora.

 

A atividade profissional do fornecedor há de estar relacionada com o funcionamento do mercado de consumo (Bittar, 1990). Cuida-se aqui das atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestações de serviços. É óbvio que este elenco legal não é exaustivo. Qualquer outra atividade semelhante a estas, exercida em caráter profissional pelo fornecedor com o propósito de abastecer o mercado de consumo, pode ser suficiente para a identificação do fornecedor (Lorenzetti, 1997).

 

 

(7.2) CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DOS BENS DE CONSUMO

 

Os bens de consumo são os objetos das relações jurídicas de consumo. Os fornecedores tornam esses bens disponíveis no mercado de consumo e os consumidores os adquirem ou utilizam (Lorenzetti, 1997). Não há conceito legal de bem de consumo. Trata-se de conceito econômico que a ciência jurídica adota. No CDC, os elementos caracterizadores do bem de consumo estão nos parágrafos 1º e 2º do artigo 3º. Eis o texto da lei brasileira:

 

“Art. 3º. (omissis).

 

§ 1º Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

 

§ 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive os de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”

 

A lei argentina de proteção ao consumidor igualmente preocupou-se reunir os elementos caracterizadores do bem de consumo, conforme consta em seu artigo 1º, que tem esta redação:

 

“ARTICULO 1°.- Objeto. La presente ley tiene por objeto la defensa de los consumidores o usuarios. Se consideran consumidores o usuarios, las personas físicas o jurídicas que contratan a título oneroso para su consumo final o beneficio propio o de su grupo familiar o social:

 

a) La adquisición o locación de cosas muebles;

 

b) La prestación de servicios;

 

c) La adquisición de inmuebles nuevos destinados a vivienda, incluso los lotes de terreno adquiridos con el mismo fin, cuando la oferta sea pública y dirigida a personas indeterminadas.”

 

Os bens de consumo são de duas espécies, portanto: (a) os produtos; e (b) os serviços (Stiglitz, 1994).

 

Os produtos são bens econômicos e jurídicos introduzidos no mercado de consumo pelo fornecedor. Apesar da linguagem da lei brasileira, que se refere aos produtos como bens móveis ou imóveis, materiais ou não, é evidente que a interpretação da norma tem que ser extensiva, de modo a compatibilizá-la com as demais normas de Direito do Consumidor e de todo o ordenamento jurídico (Diniz, 1989). Como se verá mais adiante, o artigo 7º do CDC expressamente introduz no sistema normativo do Direito do Consumidor todas as demais normas do ordenamento jurídico brasileiro compatíveis com a proteção do consumidor. Por isto, as disposições do Código Civil brasileiro que classificam os bens em diferentes espécies podem perfeitamente ser invocadas para o fim de caracterizar os bens de consumo (Marques, 1999). Considerações semelhantes são cabíveis à disciplina argentina referente aos bens de consumo (Lorenzetti, 1997).

 

Os serviços também são bens de consumo, com conteúdo econômico e jurídico. Não é qualquer serviço que poderá ser caracterizado como bem de consumo. A lei argentina, por exemplo, excluiu os serviços dos profissionais liberais. A lei brasileira, por seu turno, excluiu os serviços decorrentes de relações de emprego. Mas, além dos serviços trabalhistas, estão ainda excluídos todos os demais serviços prestados sem remuneração. Por conseguinte, pela lei brasileira, somente poderá ser considerado bem de consumo o serviço prestado mediante remuneração e que não tenha natureza trabalhista (Nunes, 2000). Essa conclusão, que decorre da letra da lei, é corroborada em face do conceito de fornecedor de bem de consumo. Esse fornecedor introduz no mercado de consumo, em caráter profissional (ou seja, com habitualidade e com objetivo de lucratividade), os bens de consumo, que são os produtos e os serviços. Ora, se o serviço for prestado gratuitamente, embora de modo habitual, faltará um dos requisitos para que seja considerado bem de consumo: a remuneração, que corresponde exatamente ao objetivo profissional que o fornecedor há de ter. Alguém que preste serviço gratuitamente não é fornecedor, e esse serviço não é bem de consumo. Não se forma, então, uma relação jurídica de consumo (Grinover et al., 1997).

 

É preciso ter atenção especial para uma hipótese: pode ocorrer que um fornecedor preste ao consumidor um serviço denominado “gratuito” e, desse modo, alegue precisamente essa “gratuidade do serviço” para tentar descaracterizar uma dada relação jurídica de consumo. Tome-se um exemplo, apenas. É bastante comum que estabelecimentos comerciais (supermercados, restaurantes, farmácias, bancos, lojas, centros de compras) “ofereçam” a seus clientes “estacionamento gratuito” durante o período de permanência desses clientes naqueles estabelecimentos. Ora, de modo geral esses serviços de estacionamento nada têm de gratuitos! Seu custo já está embutido no preço de outros serviços ou produtos comercializados por aqueles fornecedores. Os consumidores pagam – e muito bem – por tais serviços de estacionamento. Exatamente porque a remuneração por esses serviços, ou seu custo para o fornecedor, está diluída no preço dos demais bens fornecidos pelo mesmo fornecedor, é evidente que mesmo os clientes que não se utilizam dos estacionamentos pagam pelo serviço. Os clientes que se utilizam do estacionamento fazem-no apenas por um tempo reduzido, mas pagam indiretamente uma fração do custo total de manutenção desses serviços “gratuitos”. Em casos como esses, a aparente gratuidade dos serviços não os desqualifica como verdadeiros bens de consumo.

 

 

 (7.3) CONCEITOS DE CONSUMIDOR

 

A conceituação do consumidor é questão tormentosa, tanto no CDC como na lei argentina de proteção ao consumidor. A dificuldade de se fazer essa conceituação precisa ser bem explicada. O Direito do Consumidor surgiu e desenvolveu-se preponderantemente na América do Norte e na Europa ocidental (Bittar, 1990). O sistema jurídico que prevalece na América do Norte é o da Common Law, de modo que teve menor influência na organização do Direito do Consumidor na América do Sul, cujas nações filiam-se, todas, ao sistema jurídico romano-germânico (Souza, 1996). A legislação européia sobre proteção do consumidor e sobre as relações jurídicas de consumo foi surgindo paulatinamente (Bougoignie, 1988). Assim, apenas para exemplificar, editava-se uma lei para regular o uso de contratos de adesão no mercado de consumo e, para esse fim, criava-se um conceito de consumidor. Editava-se outra lei para regular a atividade publicitária nos meios de comunicação de massa e, para essa finalidade, criava-se outro conceito de consumidor. Depois, fazia-se outra lei para disciplinar a responsabilidade civil dos fabricantes de produtos industrializados por danos causados aos usuários de seus produtos e, mais uma vez, criava-se ainda outro conceito de consumidor. Durante algumas décadas, foi esse o procedimento de organização do Direito do Consumidor na Europa ocidental. O Brasil buscou inspiração na legislação européia para criar e organizar o seu próprio Direito do Consumidor e, por conseguinte, precisou assimilar todos aqueles diversos conceitos de consumidor que haviam sido criados para situações muito específicas (Marques, 1999). Entretanto, ao invés de editar também leis específicas para situações específicas, o Brasil optou por fazer uma lei geral, abrangente, disciplinadora das relações jurídicas de consumo em todos os seus aspectos mais relevantes (Grinover et al., 1997). Essa lei teria estrutura substancial típica de uma codificação, estabelecendo princípios, diretrizes, regras gerais e também específicas, de natureza civil, criminal e administrativa, de maneira a criar um verdadeiro sistema de Direito do Consumidor e incorporá-lo ao ordenamento jurídico do Brasil. Introduziu nesse novo sistema elementos de muitas das normas então existentes na legislação européia de proteção ao consumidor (Grinover et al., 1997). E foi com esse projeto arrojado que sobreveio o CDC. A Argentina adotou o mesmo modelo, embora não com a mesma amplitude e organização sistemática encontrada no CDC (Lorenzetti, 1997). Em decorrência desses fatos, o CDC, bem como a lei argentina de proteção ao consumidor, precisaram utilizar conceitos diferentes de consumidor para situações também diferentes que ocorrem no mercado de consumo. Procedendo desse modo, as leis argentina e brasileira procuraram realizar, em certas circunstâncias, o princípio da isonomia no âmbito do mercado de consumo. O CDC apresenta quatro diferentes conceitos de consumidor. A lei argentina, três (Stiglitz, 1994). Esses conceitos devem ser analisados.

 

 

(7.3.1) CONCEITO GERAL DE CONSUMIDOR NO CDC

 

O CDC criou um conceito geral de consumidor e mais três conceitos de consumidor por equiparação. Isto quer dizer que há três situações jurídicas descritas no CDC em que os sujeitos protegidos não são verdadeiramente consumidores, porém, para certos fins, são tratados como se fossem consumidores, vale dizer, recebem a mesma proteção legal que seria dada a um consumidor que estivesse na mesma situação jurídica em que tais sujeitos se encontram (Mukai et al., 1991). Portanto, os efeitos da equiparação não são universais. Os consumidores por equiparação somente são tratados como consumidores, por ficção legal, nas situações e casos específicos indicados pelo CDC. É claro que, se a equiparação tivesse efeitos universais, não teria o menor sentido o CDC criar quatro conceitos distintos de consumidor (Almeida, 1993).

 

O conceito geral de consumidor está estampado no caput do artigo 2º, do CDC, nestes termos:

 

“Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

 

“(omissis).”

 

A pessoa humana é, por natureza, consumidora. Entretanto, para os fins do Direito do Consumidor, para que a pessoa humana seja considerada consumidora é necessário que adquira ou utilize o bem de consumo como destinatária final. Isto quer dizer que esse consumidor final retira o bem de consumo da cadeia de distribuição e de circulação de bens existente no mercado de consumo para usá-lo privativamente, ou no interior de pequena coletividade (Nascimento, 1991).

 

Com relação à “pessoa jurídica”, isto é, às entidades jurídicas fictícias, várias observações precisam ser feitas. O artigo 2º do CDC diz que o consumidor é o adquirente ou usuário final do bem de consumo. Pois bem. De modo geral, as entidades jurídicas fictícias não adquirem os bens de consumo para seu uso próprio e tão pouco se apresentam como usuárias finais desses bens. O normal é que as entidades jurídicas fictícias adquiram ou utilizem bens como “insumos”, ou seja, como bens que serão empregados na sua atividade empresarial e que, após serem transformados ou incorporados a outros bens, serão reintroduzidos na cadeia de produção, distribuição e circulação existente no mercado de produção e consumo massificados. Nessas situações em que entidades jurídicas fictícias realmente adquirem bens como insumos (pois sem esses bens não conseguiriam cumprir seus respectivos objetivos), é claro que não podem então ser qualificadas como consumidoras, já que não são as adquirentes ou usuárias finais dos bens em questão (Marques, 1999). Não obstante isto, a lei diz que há situações em que as pessoas jurídicas podem ser consumidoras. Em que hipóteses, então, essas entidades seriam adquirentes ou usuárias finais dos bens de consumo? O problema merece muita reflexão e não é neste breve estudo que se vai resolvê-lo. Todavia, algumas observações podem ser feitas.

 

Há casos em que as pessoas jurídicas adquirem ou utilizam bens que não são essenciais para a consecução de seus respectivos objetivos. Poderiam prescindir desses bens e nem por isto seriam prejudicadas. Ao adquirirem ou usarem os referidos bens, fazem-no com o propósito de retirá-los do mercado de consumo, interrompendo a circulação deles nesse ambiente. Desse modo, tornaram-se adquirentes ou usuárias finais de bens de consumo e, por conseguinte, devem ser tratadas como consumidoras (Marques, 1999). Não se pode ignorar que a lei brasileira refere-se a “pessoa jurídica” como consumidora, na medida em que tal entidade adquira ou utilize, como destinatária final, um bem de consumo. Acrescente-se a esses argumentos um outro. Com apoio no sistema de Direito do Consumidor e também no princípio constitucional da isonomia, é preciso ressaltar que um dos principais fundamentos que justificam a proteção do consumidor é, precisamente, sua vulnerabilidade em face do fornecedor no âmbito do mercado de consumo. As normas componentes desse sistema de Direito do Consumidor gravitam em torno da situação de vulnerabilidade do consumidor e do princípio da isonomia, conforme já examinado neste estudo. Há uma presunção legal absoluta, que não admite prova em contrário, no sentido de que a pessoa humana consumidora é sempre vulnerável diante do fornecedor nas relações de consumo (Grinover et al., 1997). A entidade jurídica fictícia, por seu turno, presumidamente não é vulnerável em suas relações no mercado de consumo, mas pode produzir prova de sua vulnerabilidade circunstancial diante de certo fornecedor. Nesse último caso, se for provado que a entidade fictícia é vulnerável em suas relações no mercado de consumo, então deverá ser protegida como consumidora (Marques, 1999). Imagine-se uma pequena empresa de contabilidade que, para realizar sua atividade, tenha adquirido um único computador da IBM e alguns poucos programas da Microsoft. Esses bens, na verdade, são insumos necessários à prestação dos serviços de contabilidade. Contudo, a pequena empresa os adquiriu para uso próprio, sem intenção de reintroduzi-los no mercado de consumo, até porque rapidamente ficarão obsoletos. O computador não funciona bem e os programas apresentam defeitos. Essa pequena empresa teria tido condições técnicas, econômicas, jurídicas para negociar em igualdade de condições com a IBM e com a Microsoft quando adquiriu os bens? Essa empresa de contabilidade não seria visivelmente vulnerável em face dos fornecedores apontados? Se exatamente os mesmos bens houvessem sido adquiridos por uma pessoa física, e se apresentassem os mesmos vícios e defeitos, essa pessoa física não mereceria a proteção das leis consumeristas? A empresa de contabilidade não é um sujeito de direito exposto às práticas existentes no mercado de consumo? Onde estaria o critério discricionário justo e legítimo que permitiria, no âmbito do Direito do Consumidor, dar tratamentos diferentes à pessoa física e à pequena empresa de contabilidade? Parece que, com base na prova de vulnerabilidade da empresa contábil, seria justíssimo que ela merecesse a proteção como consumidora. A situação seria completamente diferente se, por exemplo, aqueles bens houvessem sido adquiridos por uma empresa de desenvolvimento e prestação de serviços de redes de informática. Essa empresa teria todas as condições técnicas e, talvez, também econômicas e jurídicas para negociar em condições razoáveis com a IBM e com a Microsoft.

 

Nessas circunstâncias, para que uma entidade abstrata, personificada ou não, seja considerada consumidora é preciso, em primeiro lugar, que seja adquirente ou usuária de bem de consumo (e não de insumo), como destinatária final, de tal maneira que retire o aludido bem da cadeia de produção, distribuição e circulação existente no mercado de produção e consumo massificados. Além disso, é ainda preciso que essa pessoa jurídica seja reconhecida como vulnerável em certa situação jurídica em face do fornecedor do bem. Ora, se a referida entidade abstrata adquire ou utiliza, como destinatária final, um bem de consumo e se, além disso, encontra-se em situação de vulnerabilidade diante do fornecedor daquele bem no mercado de consumo, não há razão jurídica para negar-lhe a proteção do Direito do Consumidor. Proceder de modo diverso significaria lançar por terra não só o princípio da isonomia, como também os demais princípios que regem o Direito do Consumidor.

 

Há, ainda, outras ponderações importantes a fazer. A denominação “pessoa jurídica” tem significado técnico específico e identifica uma entidade jurídica fictícia dotada de personalidade jurídica própria (Ruggiero, 1999). Mas há outras entidades jurídicas fictícias que não são dotadas de personalidade jurídica e que, contudo, adquirem ou utilizam, como destinatárias finais, bens de consumo. Imagine-se, por exemplo, a massa falida, a massa insolvente civil, o espólio, o condomínio regido pela lei 4.591/64, os condomínios organizados em forma de fundos de investimento, os fundos de pensão (Pereira, 1989). Todas essas entidades adquirem produtos e serviços no mercado de consumo ou são usuárias desses bens (Marques, 1999). Estariam elas excluídas do conceito geral de consumidor, em razão da expressão técnica “pessoa jurídica” usada pela lei brasileira? Não parece ser razoável uma resposta negativa. Ora, se uma pessoa jurídica, que é em essência um sujeito de direito, pode ser considerada consumidora, porque outros sujeitos de direito – que se encontram na mesma situação jurídica – não poderiam ser também consumidores? Lendo-se o CDC inteiro (e também a lei argentina de proteção ao consumidor), não se encontra um só dispositivo que justifique tratamento desigual para as entidades jurídicas fictícias personalizadas em comparação com as despersonalizadas. Ao que tudo indica, a linguagem do artigo 2º do CDC utilizou a palavra “pessoa” porque ela é mais comum do que a expressão “sujeito de direito”. Ora, no contexto do dispositivo e do próprio CDC, seria muito mais lógico usar-se a expressão “sujeito de direito”. Adotando-se também uma interpretação sistemática, relacionando o artigo 2º do CDC com todo o sistema normativo brasileiro, especialmente com a Constituição Federal, conforme recomenda DINIZ (1987 e 1989), chega-se à conclusão de que é possível considerar consumidoras quaisquer entidades jurídicas fictícias que sejam adquirentes ou usuárias finais de bens de consumo e que sejam vulneráveis em face do fornecedor. A não ser assim, ter-se-á que reconhecer a inconstitucionalidade parcial do aludido artigo 2º, naquilo em que ele discrimina, sem justo motivo, as entidades jurídicas fictícias personalizadas em comparação com as despersonalizadas.

 

 (7.3.2) CONCEITOS DE CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO NO CDC

 

Como foi mencionado antes, o CDC criou três conceitos de consumidor por equiparação. Em todos os três casos, observa-se que a equiparação fundamenta-se no princípio da isonomia. A lei estabelece critérios jurídicos a partir dos quais define a igualdade ou a desigualdade entre determinadas situações jurídicas relacionadas a fins específicos. A seguir, a lei realiza o princípio da isonomia, concedendo proteção jurídica a sujeitos que, embora não sendo rigorosamente consumidores, estão na mesma situação jurídica em que estaria o consumidor. Mais uma vez é importante ressaltar que essas equiparações não são universais, isto é, são equiparações feitas pela lei em situação específica e para fins restritos.

 

 O primeiro deles encontra-se no parágrafo único do artigo 2º, que assim se lê:

 

“Art. 2º (omissis).

 

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.”

 

A relação jurídica de consumo tem no mínimo duas partes: o fornecedor de bens de consumo e o consumidor desses bens, que normalmente os adquire ou usa como destinatário final. Quem não é parte na relação de consumo é terceiro e, a rigor, não seria consumidor. Ocorre que o artigo aqui analisado foi sensível à realidade do mercado de consumo. De fato, há sujeitos que não são partes na relação de consumo, mas nela intervêm para fruir certo bem (Nascimento, 1991). Esses sujeitos podem ser considerados individual ou coletivamente. Nesse último caso, os integrantes da coletividade podem ser determináveis ou não, sem que isto afete negativamente seu direito à proteção como consumidores. O fundamento ético dessa norma legal é, mais uma vez, o princípio da isonomia. Os referidos sujeitos não são consumidores porque não adquiriram os bens de consumo e nem utilizam esses bens como destinatários finais. Todavia, esses sujeitos comportam-se em relação aos bens de consumo como se fossem verdadeiros consumidores, como se os tivessem realmente adquirido como destinatários finais. Por esses motivos, esses intervenientes em relação jurídica de consumo alheia devem ser tratados como se fossem consumidores (Mukai et al., 1991). Veja-se um exemplo. Um casal organiza sua festa de matrimônio, contratando para esse fim o fornecimento de diversos produtos e serviços. Aluga-se o imóvel em que a festa ocorrerá, contrata-se o fornecimento da decoração, da comida, das bebidas, dos músicos, dos manobristas de estacionamento de veículos, de pessoal de apoio e tudo o mais de praxe. As relações jurídicas de consumo foram estabelecidas entre o casal e cada um dos fornecedores de bens necessários à festa. Os convidados para a festa de matrimônio não são partes naquelas relações jurídicas, mas intervêm em todas elas. Usam o imóvel locado, apreciam a decoração do salão, comem, bebem, ouvem música e dançam, deixam seus veículos com os manobristas que os estacionarão em local próprio, utilizam-se dos serviços dos garçons, dos seguranças e, enfim, de tudo que o evento festivo lhes proporciona. No que concerne ao modo de fruição de todos esses bens de consumo, não há diferença entre eles e os verdadeiros consumidores (o casal de noivos). Dada a igualdade da situação em que se encontram (a de fruir os bens de consumo), não há razão para não conceder a eles a mesma proteção que é concedida ao casal consumidor.

 

Outro conceito de consumidor por equiparação encontra-se no artigo 17, do CDC. Eis o texto do dispositivo:

 

“Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.”

 

A Seção a que se refere o artigo 17 é a de número II, do Capítulo IV, do CDC. A Seção II trata da responsabilidade civil do fornecedor pelo fato danoso provocado por defeito do produto ou do serviço, causador de prejuízos ao consumidor, reparáveis por meio de indenização pecuniária. O artigo 17 equipara ao consumidor qualquer pessoa que seja vítima de um acidente de consumo. A hipótese do artigo 17 é muito interessante. A vítima do evento danoso não é a consumidora nos termos do conceito geral de consumidor (não é adquirente ou usuário final do bem de consumo). Não há exigência de que a vítima do acidente de consumo seja um interveniente em relação de consumo alheia (não se trata, portanto, da hipótese prevista no artigo 2º, parágrafo único, do CDC). A vítima do acidente de consumo é equiparada ao consumidor porque está na mesma situação jurídica em que o consumidor estaria se tivesse, ele próprio, sofrido a lesão. Deveras, se o consumidor verdadeiro sofrer um acidente de consumo, terá direito a ser indenizado. Por outro lado, se um interveniente numa relação de consumo sofresse o mesmo acidente de consumo, seria indenizado porque interveio naquela relação e foi por isto equiparado ao consumidor. Nesses dois casos, as vítimas tinham a legítima expectativa de consumo seguro e isento de riscos para a vida, saúde, segurança e patrimônio. Ora, se o fornecedor tinha que cumprir esses deveres e obrigações em face do consumidor, porque estaria isento de cumpri-los em face de terceiros? O artigo 17 do CDC, então, colocou a vítima do acidente de consumo na mesma situação em que estaria o consumidor verdadeiro. O fornecedor passou a ter em relação a ambos (o consumidor e a vítima do acidente) os mesmos deveres e obrigações concernentes à segurança e aos riscos dos produtos e serviços que introduz no mercado (Nunes, 2000). Por exemplo, o fabricante de bebidas tem o dever de desenvolver um vasilhame seguro e sem riscos, ou com riscos controlados, a fim de evitar danos ao consumidor. Um sujeito adquire num bar uma garrafa dessa bebida. Formam-se relações jurídicas de consumo entre o consumidor, o dono do bar e o fabricante da bebida. No balcão em que a bebida é servida, está sentado ao lado desse consumidor um outro sujeito. No instante em que a garrafa de bebida está sendo aberta, a pressão do gás a faz explodir e um dos estilhaços de vidro fere a pessoa que estava ao lado do verdadeiro consumidor. Ora, para os fins do artigo 17 do CDC, é indiferente que a pessoa ferida não seja o verdadeiro consumidor. A regra da lei considera de modo peremptório que o fabricante da bebida descumpriu sua obrigação de segurança e esta conduta foi a causa do dano. Se o estilhaço tivesse ferido o consumidor, a indenização seria devida. Como feriu terceiro, este é equiparado ao consumidor para receber a mesma proteção que o verdadeiro consumidor teria recebido. O artigo 17 realiza, então, o princípio da isonomia.

 

Finalmente, o último conceito de consumidor por equiparação contido no CDC está no seu artigo 29, cuja redação é a que segue:

 

“Art. 29 Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.”

 

O artigo 29 do CDC refere-se aos Capítulos V e VI do Código. O Capítulo V disciplina as práticas comerciais que se ocorrem no mercado de consumo. Nesse Capítulo do CDC encontram-se as normas referentes à oferta e às informações a serem fornecidas aos consumidores; as regras específicas sobre a atividade publicitária no mercado de consumo; as disposições repressoras das práticas comerciais abusivas contra os consumidores; as normas sobre os procedimentos inidôneos de cobrança de dívida dos consumidores; o regramento básico sobre a constituição e funcionamento dos bancos de dados de consumidores. Já o Capítulo VI do CDC contém as normas de proteção contratual dos consumidores, inclusive no que concerne aos contratos de adesão; apresenta um elenco exemplificativo de cláusulas contratuais que são consideradas pela lei como objetivamente abusivas e prejudiciais aos consumidores.

 

Pois bem. O artigo 29 do CDC apresenta o conceito mais amplo de consumidor por equiparação. O consumidor verdadeiro, conforme conceituado no caput do artigo 2º do CDC, expõe-se às práticas do mercado de consumo referidas pelo artigo 29 do mesmo Código. Assim, se os direitos do consumidor viessem a ser violados pelos fornecedores, tal consumidor poderia invocar a proteção legal a que se refere aquele artigo 29. Observe-se, porém, que não só os consumidores propriamente ditos estão expostos às praticas comerciais aqui consideradas (Filomeno, 1991). Veja-se alguns exemplos.

 

Ao ser veiculada uma mensagem publicitária na televisão, é impossível para o fornecedor segregar os destinatários da publicidade: esta atingirá consumidores e não consumidores dos produtos ou serviços anunciados (Pasqualotto, 1997).

 

O fornecedor está proibido de introduzir no mercado de consumo bens perigosos e, se assim proceder, estará obrigado a dar ampla notícia sobre a periculosidade daqueles bens. Essa obrigação de informar abrange consumidores e não consumidores dos produtos e serviços que o mencionado fornecedor introduzir no mercado de consumo. Do mesmo modo, o fornecedor é obrigado a informar os riscos que seus produtos e serviços oferecem e, ainda, é obrigado a fornecer instruções de uso correto e seguro desses bens. Esses deveres e obrigações precisam ser cumpridos, indistintamente, em face de consumidores e não consumidores (Campos, 1996).

 

Os bancos de dados de consumidores são alimentados por informações fornecidas, preponderantemente, pelos diversos fornecedores que atuam no mercado de consumo. Pode ocorrer que certos consumidores mantenham relações jurídicas de consumo com alguns fornecedores, mas não com outros tantos. Apesar disto, o fornecedor que dispõe dos dados de seus consumidores pode, abusivamente ou não, fornecer tais dados a outros fornecedores sem o consentimento de cada consumidor interessado. Por essas razões, um consumidor que não tem relação de consumo com determinado fornecedor pode ver-se exposto a essa situação em que seus dados e informações são revelados.

 

Em decorrência de casos como os exemplificados, o artigo 29 preferiu equiparar ao consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, que estejam expostas às práticas existentes no mercado de consumo (Nunes, 2000). O dispositivo, por conseguinte, concede a esses sujeitos a proteção do Direito do Consumidor independentemente do fato de cada um deles ter ou não uma relação jurídica de consumo já estabelecida com certo fornecedor. Mais que isto, a dita proteção é outorgada mesmo que o sujeito protegido nem mesmo venha a estabelecer a relação de consumo com qualquer fornecedor (Marques, 1999). Enfim, para que haja a equiparação de que trata o artigo 29 do CDC, basta que o sujeito esteja exposto à atividade dos fornecedores no mercado de consumo (Grinover et al., 1997). A lei define determinados critérios para estabelecer pontos de identidade entre as situações jurídicas em que estão o consumidor e o sujeito equiparado ao consumidor. Definidos os parâmetros de identificação dessas situações jurídicas, a lei realiza o princípio da isonomia, concedendo proteção a quem não é consumidor, porém encontra-se em situação jurídica que a lei considera igual à situação em que estaria o próprio consumidor.

 

Esse sistema de equiparação de certos sujeitos à figura do consumidor tem o mérito de conceder a proteção do Direito do Consumidor para todos aqueles que, direta ou indiretamente, interagem com os fornecedores em certas situações que a lei, com critérios por ela definidos, considera iguais às situações em que o consumidor estaria. Os fornecedores, por seu turno, precisam ser conscientes, responsáveis, diligentes, e prudentes de modo constante, cumprindo seus deveres e obrigações com probidade. Sabem que se esses deveres ou obrigações forem ignorados, estarão sujeitos a graves sanções civis, criminais e administrativas. Além disto, sabem também que a proteção dos consumidores existe nos planos individual, coletivo e difuso (Alvim et al., 1991). Dessa maneira, a violação de qualquer dever ou obrigação do fornecedor poderá acarretar para ele, por exemplo, a obrigação de indenizar o consumidor individual, a coletividade de consumidores ou mesmo os grupos de consumidores titulares de interesses difusos. Acrescente-se a isto a possibilidade de se impor aos fornecedores relapsos pesadas multas e outras sanções administrativas, bem como as punições criminais.

 

Examinados os conceitos de consumidor existentes no CDC, cabe agora verificar os que existem na lei argentina de proteção ao consumidor. Ver-se-á que eles, na essência, correspondem aos da lei brasileira.

 

 

(7.4) CONCEITOS DE CONSUMIDOR NA LEI ARGENTINA

 

(7.4.1) CONCEITO GERAL DE CONSUMIDOR

 

Os artigos 1º e 2º da lei argentina fornecem o conceito geral de consumidor nos termos que seguem:

 

“ARTICULO 1°.- Objeto. La presente ley tiene por objeto la defensa de los consumidores o usuarios. Se consideran consumidores o usuarios, las personas físicas o jurídicas que contratan a título oneroso para su consumo final o beneficio propio o de su grupo familiar o social:

 

a) La adquisición o locación de cosas muebles;

b) La prestación de servicios;

c) La adquisición de inmuebles nuevos destinados a vivienda, incluso los lotes de terreno adquiridos con el mismo fin, cuando la oferta sea pública y dirigida a personas indeterminadas.

 

ARTICULO 2°.- (omissis).

 

No tendrán el carácter de consumidores o usuarios quienes adquieran, almacenen, utilicen o consuman bienes o servicios para integrarlos en procesos de producción, transformación, comercialización o prestación a terceros. No están comprendidos en esta ley los servicios de profesionales liberales que requieran para su ejercicio título universitario y matrícula otorgada por colegios profesionales reconocidos oficialmente o autoridad facultada para ello, pero sí la publicidad que se haga de su ofrecimiento.”

 

Da disposição legal decorrem imediatamente dois conceitos: o de consumidor geral e o de grupo de pessoas que intervêm em relação de consumo alheia (Stiglitz, 1994). É o mesmo modelo da lei brasileira. Também para a lei argentina o consumidor é um sujeito de direito (pessoa humana ou entidade jurídica fictícia). É consumidor quem adquire a título oneroso o bem de consumo para uso próprio, retirando-o, portanto, da cadeia de distribuição e de circulação de bens do mercado de consumo. Em suma: é consumidor o adquirente ou usuário final do bem de consumo (Lorenzetti, 1997). Quem adquirir o bem como insumo não é reputado consumidor. Esse conceito da lei argentina corresponde ao conceito geral de consumidor adotado pelo CDC no Brasil.

 

 

(7.4.2) CONCEITOS DE CONSUMIDOR POR EQUIPARAÇÃO

 

A leitura do caput do artigo 1º da lei argentina de proteção ao consumidor permite, como foi dito, a construção de outro conceito: o de consumidor por equiparação. Quando a lei diz que considera “consumidor” o “grupo familiar ou social” que utiliza como destinatário final o bem de consumo, está obviamente se referindo a sujeitos que não são os adquirentes daquele bem, mas que intervieram em relação jurídica de consumo celebrada por outro sujeito que é consumidor e ao qual o grupo está vinculado (Stiglitz, 1994). Deveras, se o grupo, por si mesmo, for o adquirente do bem de consumo, será considerado consumidor nos termos do conceito legal geral de consumidor. Inversamente, quando o grupo não adquire, por si mesmo, o bem de consumo, não deveria ser considerado como consumidor. No entanto, tendo em vista que o referido grupo: (1º) relaciona-se com alguém que é verdadeiramente um consumidor; e (2º) é interveniente em relação jurídica de consumo estabelecida por aquele consumidor; a lei argentina cuidou de equiparar o grupo familiar ou social ao consumidor, como se de fato os elementos desse grupo tivessem estabelecido as aludidas relações de consumo (Lorenzetti, 1997). Esse conceito de consumidor por equiparação, estabelecido no caput do artigo 1º da lei argentina corresponde, visivelmente, ao conceito de consumidor por equiparação de que trata o artigo 2º, parágrafo único, do CDC (Stiglitz, 1994).

 

Por fim, o artigo 7º da lei argentina de proteção ao consumidor cria mais um conceito de consumidor por equiparação, como segue:

 

“ARTICULO 7°.- Oferta. La oferta dirigida a consumidores potenciales indeterminados, obliga a quien la emite durante el tiempo en que se realice, debiendo contener la fecha precisa de comienzo y de finalización, como así también sus modalidades, condiciones o limitaciones.

 

(omissis).”

 

O dispositivo refere-se a “consumidores potenciais indeterminados”, ou seja, a pessoas que não são consumidoras, mas que são tratadas como se fossem para aqueles fins específicos referidos na lei argentina de proteção ao consumidor (Lorenzetti, 1997). Essa regra legal corresponde, então, ao artigo 29 do CDC, que também equiparou ao consumidor todos os sujeitos que estiverem expostos às práticas existentes no mercado de consumo. Observe-se, porém, que a lei argentina refere-se a pessoas que sejam potenciais consumidoras, vale dizer, que possam ser adquirentes ou usuárias finais de bens de consumo (Sozzo, 1996). O conceito não abrange as entidades que adquiram ou utilizem os bens como insumos  (Stiglitz, 1994).

 

(8) CONCLUSÕES

 

O Direito do Consumidor surgiu e se desenvolveu num contexto jurídico, econômico, social e político bastante específico, no qual o consumidor se encontrava em situação de séria vulnerabilidade em face do fornecedor. Essa vulnerabilidade do consumidor impedia que ele exercesse com plenitude sua autonomia de vontade privada nas suas relações de consumo. Essa situação frustrava a realização do princípio da isonomia entre os consumidores e fornecedores no âmbito do mercado de consumo. A legislação consumerista surge, então, como instrumento de intervenção estatal destinado a restaurar o equilíbrio de interesses dos agentes no mercado de consumo. Essa legislação, de ordem pública e de interesse social, pretende eliminar ou reduzir a vulnerabilidade dos consumidores em face dos fornecedores. As normas do Direito do Consumidor asseguram que as relações de consumo sejam estabelecidas de acordo com o princípio da isonomia. Trata-se diferentemente sujeitos que se encontram em situações jurídicas distintas, em função de certas finalidades jurídicas. Nesse contexto, as normas do Direito do Consumidor protegem os sujeitos de direito que, na qualidade de consumidores, ou que na condição de sujeitos legalmente equiparados aos consumidores, estão em situação de vulnerabilidade em face dos fornecedores. A estes últimos a lei impõe deveres e obrigações que não podem ser afastados nem mesmo com a concordância dos consumidores. A realização do princípio da isonomia permeia, assim, o conteúdo das normas de Direito do Consumidor.

 

Por essas razões, pode-se dizer que, nos seus aspectos estruturais e essenciais, as leis argentina e brasileira de proteção ao consumidor surgiram em decorrência do mesmo contexto evolutivo do mercado de consumo. Adotam os mesmos princípios e coincidem em vários dos critérios necessários à caracterização das relações jurídicas de consumo. Em especial, as duas leis comentadas coincidem bastante com relação aos conceitos de fornecedor e de consumidor, e ao indicarem os critérios a partir dos quais se pode classificar o bem como bem de consumo ou como insumo. Tudo isto possibilita que as normas mencionadas sejam interpretadas e aplicadas de modo razoavelmente uniforme no Brasil e na Argentina, sempre com atenção ao princípio da isonomia. Fornecedores brasileiros que introduzam bens de consumo no mercado argentino estarão sujeitos a normas semelhantes às que encontram no Brasil. Por outro lado, os fornecedores argentinos que fornecem bens de consumo no mercado brasileiro também estarão sujeitos a leis consumeristas bastante parecidas com as vigentes na Argentina.

 

Em síntese, as leis argentina e brasileira de proteção ao consumidor inserem-se no contexto evolutivo do mercado de consumo organizado pelas nações hegemônicas ocidentais. É natural, portanto, que a legislação dos países abrangidos por esse processo evolutivo adote os mesmos princípios e diretrizes para a disciplina do mercado de consumo. Esse fenômeno é facilmente observável em relação aos dispositivos das leis argentina e brasileira de proteção ao consumidor que estabelecem os elementos caracterizadores da relação jurídica de consumo. A uniformidade de conceitos possibilita que as relações de consumo entre fornecedores de um desses países e consumidores do outro país sejam estabelecidas de modo seguro, de acordo com os mesmos paradigmas e princípios do Direito do Consumidor. Nesse sentido, o princípio da isonomia é fundamental para dar estabilidade às relações jurídicas de consumo e, em especial, para permitir a correta identificação dos sujeitos merecedores da proteção especial concedida pelo Direito do Consumidor.

 

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[1] O Programa de Integração da América Latina – PROLAM é um curso de pós-graduação multidisciplinar em Mestrado e Doutorado, oferecido pela USP, e que tem por objetivo a realização de estudos e pesquisas voltados para a integração da América Latina.

 

[2] Dissertação de mestrado apresentada no PROLAM-USP em maio/2001 com o título “Análise comparativa da legislação argentina e brasileira de proteção ao consumidor contra publicidade enganosa e abusiva no contexto cultural desses países”.

 

[3] Esse tema foi desenvolvido em nossa obra “Análise comparativa da legislação argentina e brasileira de proteção ao consumidor contra publicidade enganosa e abusiva no contexto cultural desses países”.

 

 

[4] Em nossa obra “Análise comparativa da legislação argentina e brasileira de proteção ao consumidor contra publicidade enganosa e abusiva no contexto cultural desses países” foi realizado um estudo comparativo razoavelmente abrangente dos principais dispositivos da lei argentina de proteção ao consumidor e do CDC.

 

[5] Ferreira Filho, Manoel Gonçalves, in “Comentários à Constituição Brasileira de 1.988”, São Paulo, Ed. Saraiva, 1990, 1.v, p. 27, diz que “O imperativo do tratamento desigual dos que estão em situação desigual na medida em que se desigualam impõe, por exemplo, ao legislador o estabelecimento de leis especiais, que protejam determinadas categorias. Para isto, editam-se leis destinadas a amparar os economicamente fracos: os trabalhadores; os mal alojados; os inquilinos, e assim por diante. Ocorre, porém, que a apreciação dessas desigualdades que devem ser compensadas ou reparadas é sujeita a critérios políticos. (…). O legislador há de estabelecer tratamento desigual para situações desiguais, mas, se tratar desigualmente situações que não são desiguais, o que sucede quando beneficia desarrazoadamente determinadas categorias, incide em inconstitucionalidade.” No mesmo sentido Pinto Ferreira, in “Comentários à Constituição Brasileira, Ed. Saraiva, 1989, 1.v., p. 62, quando esclarece: “Não se trata evidentemente de igualdade absoluta, nem de igualdade econômica, conduzindo ao nivelamento social. Balladore Pallieri salienta que o princípio não obriga a tratar igualmente situações de fatos desiguais, proibindo apenas o arbítrio diante de diferenciações fundamentadas em qualidades pessoais do indivíduo, tais como raça, riqueza, sexo, profissão, classe etc. A igualdade deve ser proporcional. A cláusula que fundamenta o princípio da igualdade tem sentido específico: ’O que o princípio da isonomia propõe é o tratamento igual aos realmente iguais, igualdade real e não nominal, igualdade integral e não incidental ou particular’ (decisão do TJSP, RT 411:182).”

 

[6] Formalmente, o CDC é uma lei ordinária, pois o processo legislativo adotado para sua elaboração foi o correspondente ao de lei ordinária. Para que, do ponto de vista formal, o CDC fosse verdadeiramente um Código, teria sido imprescindível a obediência ao processo legislativo reservado à elaboração de Código legal. Os Códigos legais, em geral, envolvem maior e mais profunda reflexão legislativa, já que essa categoria de normas jurídicas, de modo preponderante, incorpora princípios jurídicos, regras e institutos de maior relevo social. Logo, considerado apenas o aspecto formal de elaboração legislativa, o CDC não é um Código. Todavia, do ponto de vista substancial, o CDC organizou um sistema normativo de extrema importância no que concerne à disciplina das relações jurídicas de consumo. O CDC contém princípios, institutos, diretrizes e normas essenciais ao desenvolvimento harmônico das relações de consumo (Grinover et al., 1997). Por isto, substancialmente, o CDC é um Código legal e representa, sem dúvida, importantíssimo sistema jurídico dentro do ordenamento jurídico brasileiro. O CDC é lei de ordem pública e de interesse social. Isto significa dizer que suas disposições não podem ser contrariadas nem mesmo se os agentes que atuam no mercado de consumo estiverem de acordo com tal contrariedade (Almeida, 1993). 

ESTRUTURAÇÃO SOCIETÁRIA E PROTEÇÃO PATRIMONIAL EM EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS

Prof. Dr. Renato Seixas

 

1. Introdução. 2. Incorporação imobiliária tradicional. 3. Modelos societários para empreendimentos imobiliários. 3.1. Sociedade comum. 3.2. Sociedade em nome coletivo. 3.3. Sociedade de capital e indústria. 3.4. Sociedade em conta de participação. 3.5. Consórcio empresarial. 3.6. Sociedade em comandita simples e sociedade em comandita por ações. 3.7. Sociedades cooperativas. 3.8. Fundos de investimentos imobiliários. 3.9. Sociedade limitada. 3.10. Sociedade anônima. 4. Contratos sistêmicos. 5. Estruturação societária e captação de financiamentos imobiliários. 5.1. Noções gerais sobre patrimônio e afetação de bens. 5.2. Afetação patrimonial em empreendimentos imobiliários. 5.3. Propriedade fiduciária como instrumento de segregação patrimonial. 5.4. Securitização de recebíveis imobiliários. 5.5. Contratos híbridos de capital e dívida

 

 1. Introdução

 O objetivo deste trabalho é apresentar visão geral de algumas das formas de organização societária para captar financiamentos para empreendimentos imobiliários. Não há pretensão de esgotar a matéria. A cada dia surgem estruturas novas e mais criativas. Nesse contexto, os limites deste trabalho exigem que seja conciso, muitas vezes apenas apresentando as linhas gerais da figura examinada. Quando necessário, conceitos específicos serão desenvolvidos para permitir melhor entendimento da matéria àqueles que não estão familiarizados com determinadas estruturas negociais.

As transformações tecnológicas e econômicas em desenvolvimento desde a chamada Era Moderna e, agora, intensificadas pela chamada Era Pós-moderna, provocaram amplo processo de urbanização. Imensos contingentes populacionais aglutinam-se nas cidades. Há déficit de moradias, escritórios, centros comerciais, hospitais, escolas, espaços de lazer e, em geral, de obras de infra-estrutura imobiliária. Há demandas para quase todos os tipos de empreendimentos imobiliários. Os instrumentos tradicionais de financiamento são cada vez mais insuficientes ou inadequados para a realização dos atuais empreendimentos imobiliários. Por isto, novos modelos de estruturação têm sido adotados no mundo todo para dar mais versatilidade e segurança aos negócios imobiliários. No caso específico do Brasil, timidamente a legislação tem incorporado, pouco a pouco, alguns desses modelos mais amplamente aceitos pelo direito estrangeiro. Na sua grande maioria, tais estruturas negociais provêm de países que adotam o sistema jurídico da Common Law, especialmente dos Estados Unidos da América. Por outro lado, os Tribunais brasileiros dão freqüentes sinais de que não compreenderam ou não aceitaram plenamente muitos dos aspectos das novas estruturas negociais. Com ou sem razão, tendem a vislumbrar tentativas de fraude à lei ou a terceiros em situações que, no direito estrangeiro, são consideradas práticas negociais normais e, além disso, necessárias à segurança e estabilidade dos negócios. Portanto, é preciso que cada estrutura negocial adiante apresentada seja utilizada de modo lícito e com prudência. O objetivo deve ser a realização de negócios com boa-fé, lealdade, segurança e satisfação para empreendedores, financiadores e adquirentes de imóveis. De qualquer modo, é sempre bom lembrar, em Direito Privado prevalece o princípio multimilenar de que as partes podem criar novos negócios jurídicos sempre que a lei não impuser ou não proibir conduta específica. O princípio foi contemplado – aliás, desnecessariamente – no artigo 425 do atual Código Civil.

De modo geral, os empreendimentos imobiliários podem ser realizados: (i) com capital próprio do empreendedor; (ii) por incorporação imobiliária; (iii) com captação de recursos por meio de emissão de títulos negociáveis no mercado de capitais; (iv) com recursos captados junto a fundos de investimentos imobiliários; (v) com recursos tomados de empréstimo no mercado financeiro; (vi) com empréstimos tomados junto a investidores privados; (vii) com leasing imobiliário Portanto, o empreendedor pode realizar o empreendimento imobiliário com recursos próprios ou com recursos tomados de terceiros a título de empréstimo. Em qualquer desses casos, é preciso adotar estruturação societária e contratual que ofereça a maior segurança possível para todos os envolvidos no empreendimento imobiliário. Neste trabalho serão examinadas algumas estruturas que contemplam esses aspectos.

 

 2. Incorporação imobiliária tradicional

É importante começar este estudo pela incorporação imobiliária tradicional porque muitas das novas estruturas de empreendimentos imobiliários se baseiam na incorporação, ou se coordenam com ela. A incorporação imobiliária tradicional estava regulada pela lei 4591/64, no artigo 28 e seguintes. Recentemente, foram agregados à dita lei aspectos mais modernos da incorporação, quase todos importados de países mais desenvolvidos. Esses aspectos novos ingressaram no direito brasileiro por via da lei 9514/97 e pela lei 10931/04. São inovações importantes, embora incompletas.

Essencialmente, a incorporação imobiliária é modo especial de financiar a construção de imóveis condominiais e de ofertá-los para a venda ao público em geral. O incorporador oferece à venda os imóveis condominiais que irá construir. Os adquirentes compram unidades privativas (por exemplo, um apartamento) e frações ideais das partes condominiais da construção que será realizada no futuro. Pouco importa que paguem o preço a vista ou em parcelas. Com esses recursos, o incorporador realizará a construção dos imóveis e os entregará aos compradores nas condições previstas nos contratos. É conveniente fixar o conceito de incorporação imobiliária. Trata-se de complexo de atividades de sujeito de direito (pessoa física ou jurídica, ou entidade despersonalizada) que, após cumprir formalidades legais, pode ofertar, alienar ou prometer alienar, para o público em geral, por qualquer modo, edificações compostas por unidades autônomas e frações ideais de áreas comuns condominiais, com o propósito de arrecadar fundos para construir, por si ou por intermédio de construtor contratado, tais frações ideais e unidades autônomas (artigo 28, § 1º, lei 4591/64). Convém examinar esse conceito.

A incorporação é um complexo de atividades realizadas pelo incorporador, por si mesmo ou por meio de quem contratar para implementá-las. Depois de cumprir formalidades legais, o incorporador ofertará e venderá ao público em geral edificações compostas por unidades autônomas e frações ideais de áreas comuns condominiais a serem construídas.  Em seguida, com os recursos dessas vendas, construirá o imóvel condominial. O imóvel adquirido pelo comprador é composto de duas partes: (i) uma parte para seu uso privativo, denominada unidade autônoma (por exemplo, o apartamento residencial, o escritório num prédio comercial, a loja num shopping center); e (ii) frações ideais das partes de uso comum pelos condôminos no imóvel condominial (por exemplo, alicerces do edifício, telhado, lajes dos pisos, fachada, escadarias, elevadores, áreas de circulação e de lazer, etc.). Incorporador é o sujeito de direito (pessoa física ou jurídica, ou entidade despersonalizada) que assume os riscos do empreendimento. É quem constrói ou se compromete a construir, por si ou por intermédio de construtor contratado, as aludidas edificações condominiais (artigos 29 e 30, lei 4591/64). Portanto, não se deve confundir o incorporador com o construtor. O mesmo sujeito de direito pode ser simultaneamente incorporador e construtor, mas também é possível que o incorporador contrate outro sujeito de direito para realizar a construção. Nesse caso, os riscos do empreendimento permanecem com o incorporador e, por outro lado, os riscos técnicos da construção são assumidos pelo construtor.

Como dito, o processo contemporâneo de intensa urbanização provoca grande carência de imóveis e, por isto, a incorporação imobiliária experimentou notável desenvolvimento. Isto fez com que surgissem no mercado imobiliário incorporadores ineficientes ou inescrupulosos. Alguns deles lançaram-se em diversos empreendimentos simultâneos e não conseguiram administrá-los ou, o que é pior, desviaram o dinheiro arrecadado dos adquirentes para outras finalidades que não a própria construção dos imóveis prometidos à venda. Por exemplo, imagine-se um mesmo incorporador que tenha simultaneamente os empreendimentos 1, 2 e 3. Havendo carência de recursos no empreendimento 1, desvia recursos do empreendimento 2 para cobrir o déficit. Isto provocava déficit no empreendimento 2 e, a seguir, para cobri-lo, o incorporador retira recursos do empreendimento 3. Esse círculo vicioso continua até o ponto em que o incorporador não conseguisse entregar aos adquirentes os imóveis prometidos. Em razão de situações como essas, milhares de adquirentes são prejudicados, incorporadores caem em insolvência e o mercado imobiliário apresenta graves crises. Para eliminar ou diminuir esses efeitos nocivos, novas estruturas de negócios imobiliários foram desenvolvidas. A legislação brasileira disciplinou de modo específico algumas dessas novas estruturas. A maior parte delas, no entanto, permanece na vala comum dos negócios atípicos e continua a ser disciplinada pelos princípios e normas gerais do sistema jurídico. É importante conciliar essas novas estruturas com os modelos societários para dar maior segurança aos empreendimentos imobiliáros.

 

 3. Modelos societários para empreendimentos imobiliários

A incorporação imobiliária é meio tradicional para financiar empreendimentos imobiliários. Além dela, ou em conexão com ela, há outros modos de estruturação de negócios imobiliários com obtenção de financiamento.

O empreendedor imobiliário (seja ele um incorporador ou não) pode realizar seu empreendimento com capital próprio ou com capital de terceiros dispostos a financiá-lo. Há diferenças importantes entre as duas hipóteses. Quando os recursos aportados ao empreendimento são extraídos do patrimônio do próprio empreendedor, diz-se que este usa capital próprio. Mesmo que o empreendedor obtenha esses recursos a título de empréstimos junto a outras pessoas, o fato importante é que tais recursos primeiro são incorporados ao patrimônio do empreendedor. Somente depois é que os aludidos recursos são destacados do patrimônio do empreendedor e destinados ao negócio imobiliário específico. Consequentemente, os emprestadores de recursos são credores do empreendedor e não do empreendimento imobiliário em si mesmo considerado. Se os empréstimos não forem pagos, como regra geral esses credores atacarão o patrimônio do empreendedor e não necessariamente os bens vinculados ao empreendimento imobiliário (a não ser que estes bens tenham sido dados em garantia específica daquelas obrigações). Por outro lado, quando os recursos aportados ao empreendimento provêm do patrimônio de outras pessoas que não o próprio empreendedor, diz-se que há financiamento imobiliário com capital de terceiros. As diferenças entre essas duas situações (empreendimento com capital próprio ou com capital de terceiros) ficam mais claras quando o empreendedor se utiliza de uma sociedade formalmente constituída para realizar o empreendimento. No primeiro caso (empreendimento com capital próprio), o empreendedor pode: (i) usar bens que já tinha e destacá-los de seu patrimônio, transferindo-os para a sociedade que realizará o empreendimento; e ou (ii) tomar recursos emprestados de outras pessoas, incorporá-los ao seu patrimônio e, depois, transferi-los para sociedade que realizará o empreendimento. Nessa hipótese, os emprestadores de recursos são credores do empreendedor e não da sociedade referida. No segundo caso (empreendimento com capital de terceiros), os emprestadores fornecem os recursos necessários à realização do empreendimento diretamente à sociedade mencionada. Portanto, tornam-se credores da sociedade e não do empreendedor. Em caso de não pagamento dos empréstimos, atacarão o patrimônio da sociedade e não o do empreendedor (exceto se este tiver assumido a qualidade de garantidor das obrigações da sociedade). É claro que as duas hipóteses não são reciprocamente excludentes, ou seja, é possível que um empreendimento imobiliário seja custeado em parte com recursos próprios do empreendedor e em parte com capital de terceiros. Todavia, os efeitos patrimoniais acima referidos só ocorrerão se o empreendedor efetivamente adotar estrutura negocial que mantenha: (a) seu patrimônio próprio separado do patrimônio ou dos bens destinados ao empreendimento; e ou (b) sua personalidade jurídica inconfundível com a personalidade jurídica da sociedade que vier a constituir para realizar o empreendimento. Como se sabe, há formas societárias que não segregam os bens dos sócios e os da sociedade, considerando-os todos abrigados num mesmo e único patrimônio societário. Disto decorre responsabilidade pessoal, solidária e ilimitada dos sócios pelas obrigações da sociedade em face de terceiros. Logo, é importante ponderar sobre qual organização societária e melhor para cada empreendimento imobiliário.

 3.1. Sociedade comum (ou de fato)

A sociedade comum ou de fato está regulada pelos artigos 986 a 990 do atual Código Civil. Não tem personalidade jurídica própria e consiste numa agremiação societária informal entre pelo menos dois sujeitos de direito de qualquer espécie, muitas vezes transitória por ser destinada a um único empreendimento. Por esses motivos, gera responsabilidade pessoal ilimitada e solidária para todos os sócios. Tendo em vista a grande insegurança jurídica que esse modelo societário traz para os sócios e para a consecução do próprio empreendimento, não é recomendável que seja usado em operações de financiamento imobiliário. É útil ressaltar: se uma sociedade qualquer, mesmo que constituída regularmente, vier a estabelecer uma sociedade de fato com outros sujeitos de direito (pessoas físicas, ou jurídicas, ou entes despersonalizados), estará sujeita à disciplina legal acima referida.

Como ocorre com as sociedades de fato, também as sociedades irregulares não se prestam aos empreendimentos imobiliários. A diferença técnica entre a sociedade de fato e a sociedade irregular está em que a primeira não é constituída de modo formal, enquanto que a segunda o é. Entretanto, apesar de a sociedade irregular ser constituída de modo formal, ou seja, por documento escrito, tal sociedade é irregular porque: (i) ou não está registrada no órgão competente; (ii) ou, apesar de estar registrada competente, apresenta vício formal ou substancial que a lei não tolera. A sociedade irregular padece dos mesmos inconvenientes que a sociedade de fato. Esse modelo societário, portanto, deve ser rejeitado para empreendimentos imobiliários.

 3.2. Sociedade em nome coletivo

A sociedade em nome coletivo está disciplinada nos artigos 1039 a 1044 do Código Civil de 2002. Nesse tipo de sociedade os negócios sociais podem ser conduzidos por todos os sócios, porém esses sócios atuam sempre usando o nome de firma, o nome comum pelo qual a sociedade é identificada. Os sócios que usarem a firma social geram direitos e obrigações para a sociedade, estabelecendo solidariedade entre todos os sócios. Noutros termos, por um lado, todos os sócios gerenciam os negócios sociais e podem agir isoladamente; e, por outro lado, todos os sócios respondem com seus patrimônios pessoais, de modo ilimitado, pela conduta dos demais sócios na condução dos negócios sociais.  Por isto, os credores da sociedade, à sua escolha, poderão atacar o patrimônio social ou o patrimônio pessoal de qualquer dos sócios da sociedade em nome coletivo. Em decorrência dessa responsabilidade pessoal, solidária e ilimitada de todos os sócios perante os credores da sociedade em nome coletivo, logo se vê que não é modelo recomendável para a realização de empreendimentos imobiliários.

 3.3. Sociedade de capital e indústria

A sociedade de capital e indústria vinha regulada pelo artigo 317 e seguintes do Código Comercial O dispositivo foi revogado, mas nada impede a utilização desse modelo societário quando lícito e útil a determinado negócio. Há sociedade de capital e indústria quando pelo menos dois sujeitos de direito se unem para a realização de objetivos comuns, ou seja, objetivos a serem realizados pela sociedade, de modo que um dos sócios forneça o capital necessário e o outro sócio, por seu turno, forneça apenas seu trabalho (físico ou intelectual) para a realização de tais objetivos. Os sócios dividirão entre si, na proporção que estabelecerem, os lucros acaso auferidos pela sociedade. Em caso de prejuízos, apenas o sócio capitalista os suportará. Esse modelo societário é desestimulante para o sócio capitalista. Os empreendimentos imobiliários apresentam vários riscos e, mesmo que o sócio que contribui apenas com seu trabalho seja extremamente diligente, poderá ser impossível ou muito difícil que evite todos os riscos do negócio. Claro que a partilha dos resultados do empreendimento deverá ser proporcional aos riscos que cada parte assumir. Nesse caso, é provável que esse modelo societário se torne desinteressante para o sócio que contribui apenas com trabalho. Assim, a sociedade de capital e indústria é pouco útil nos negócios imobiliários.

 3.4. Sociedade em conta de participação

O Código Civil de 2002 previu a sociedade em conta de participação nos artigos 991 a 996. É formada por pelo menos dois sócios, sendo um chamado sócio ostensivo e o outro sócio oculto. Perante terceiros, o empreendimento objeto da sociedade é realizado apenas pelo sócio ostensivo, em seu próprio nome e sob sua responsabilidade. No que diz respeito ao empreendimento, os credores são credores do sócio ostensivo, que responde ilimitadamente com seu patrimônio pessoal. Como o contrato societário (mesmo que verbal) produz efeitos apenas entre os sócios, o sócio oculto, em princípio, não tem direitos ou obrigações em face dos terceiros com quem o sócio ostensivo negociar na condução do empreendimento. Se o sócio oculto intervier nas relações estabelecidas entre o sócio ostensivo e os referidos terceiros, passará a ser solidariamente responsável pelas obrigações sociais. Por outro lado, o contrato societário deve disciplinar as relações entre o sócio ostensivo e o oculto, especialmente no que concerne às suas respectivas obrigações e responsabilidades. Por esses motivos, a sociedade em conta de participação exige grande confiança entre os sócios.

Enfim, o que caracteriza a sociedade em conta de participação é, em primeiro lugar, sua informalidade e, depois, sua tendência à transitoriedade relacionada a um empreendimento específico. Não é preciso que essa sociedade seja constituída por escrito e sequer precisa ser registrada em órgãos públicos. Pode realizar um ou mais empreendimentos, porém, concluídos esses empreendimentos, a sociedade tende a se dissolver. Por isto, a sociedade em conta de participação é muitíssimo utilizada para a realização de empreendimentos imobiliários. Permite que o empreendedor imobiliário se associe a outros sujeitos que possam contribuir, com capital ou com outros recursos, para o desenvolvimento do empreendimento imobiliário. O empreendedor, como sócio ostensivo, recebe capital dos demais sócios e o usa para os fins sociais, lançando em contabilidade específica as entradas e saídas de capital relacionadas ao empreendimento imobiliário. Desse modo, sempre terá condições de prestar aos demais sócios informações muito precisas sobre o andamento dos negócios comuns. Além disso, é muito freqüente que o empreendedor imobiliário, para o mesmo empreendimento, celebre contratos de sociedade em conta de participação separadamente com cada sócio oculto. Por exemplo, para captar fundos para certo empreendimento imobiliário, o empreendedor pode celebrar dez contratos separados de sociedade em conta de participação com cada um dos dez sócios ocultos. Pouco importa que esses sócios ocultos saibam ou não da existência dos demais, pois suas relações com o empreendedor serão reguladas apenas pelos respectivos contratos. Quer esses sócios ocultos forneçam ao empreendedor fundos, tecnologia, trabalho ou qualquer outro tipo de recurso, caberá ao empreendedor organizar e administrar todos esses recursos para realizar o empreendimento, assumindo responsabilidade pessoal e ilimitada perante os terceiros com quem vier a contratar em decorrência do mesmo empreendimento.

Não é comum que os contratos de sociedade em conta de participação sejam levados a registro em órgãos públicos. Essa prática decorre de pelo menos dois fatos: (i) há sócios que, por variados motivos, querem mesmo permanecer ocultos; e (ii) há a crença de que ,feito o registro da sociedade, os sócios ocultos deixariam de sê-lo e, por isto, estariam expostos a todos os riscos e responsabilidades inerentes ao empreendimento da sociedade. Todavia, não é isto o que ocorre. Pode acontecer que os sócios tenham motivos para realizar os registros da sociedade. A lei não veda que sejam feitos. Se isto acontecer, é óbvio que quem era sócio oculto deixará de sê-lo. Mas a revelação da existência dos sócios ocultos não altera em nada suas relações com os terceiros que tenham negociado com o sócio ostensivo em razão da sociedade. O efeito é bem outro: o registro torna pública a existência da sociedade em conta de participação. Os sócios “ocultos” poderão alegar perante qualquer terceiro as limitações de suas responsabilidades em razão do empreendimento societário. Aliás, de maneira semelhante, é exatamente isto o que ocorre ao ser registrado o contrato de consórcio empresarial a que se refere o artigo 278 da lei de Sociedades Anônimas. Os consorciados dão publicidade do contrato que celebraram entre si e podem alegar em face de terceiros as limitações de responsabilidades assumidas no consórcio. Todas essas características tornam o modelo da sociedade em conta de participação muito interessante para a realização de empreendimentos imobiliários.

 3.5. Consórcio empresarial

O consórcio empresarial de que trata o artigo 278 da lei nº 6404/76 (lei das Sociedades Anônimas) é uma parceria comercial que, por sua vez, é uma das espécies do gênero de negócios denominado joint venture. O consórcio empresarial é formalizado em documento próprio e com os requisitos exigidos pelo artigo 279 da mesma lei. O contrato de consórcio deve ser registrado no Registro de Comércio, ou noutro órgão registrário especificado por lei, para ter eficácia em face de terceiros. Por meio do contrato de consórcio, entre outras matérias, define-se qual o empreendimento a ser realizado pelos consorciados; como cada um contribuirá para realizá-lo; seus respectivos direitos e obrigações entre si e em face de terceiros; o prazo de duração do consórcio; os critérios de partilha dos resultados do negócio (riscos, prejuízos e lucros); a que consorciado caberá a liderança do consórcio. Prevê a lei que cada consorciado responde pelas obrigações consorciais nos limites definidos no contrato de consórcio.

Tudo isto faz do consórcio empresarial modelo extremamente útil para a consecução e empreendimentos imobiliários. Tem o mérito de delimitar e repartir riscos e benefícios entre os consorciados, de maneira que cada qual participe do empreendimento comum de acordo com seu respectivo interesse. Além disso, o consórcio ocupa-se de empreendimento único que, uma vez realizado, dissolve o contrato consorcial. É notório que o consórcio empresarial é uma das principais estruturas para a realização de empreendimentos imobiliários, especialmente os encomendados pelo Poder Público.

 3.6. Sociedade em comandita simples e sociedade em comandita por ações

A sociedade em comandita simples está disciplinada pelos artigos 1045 a 1051 do atual Código Civil. Neste trabalho basta analisar as características mais relevantes desse modelo societário. A sociedade em comandita simples é constituída no mínimo por dois sócios. Um dos sócios dessa sociedade é chamado sócio comanditado, sendo necessariamente pessoa física. Tal sócio tem responsabilidade pessoal e ilimitada pelos negócios da sociedade. Logo, se o patrimônio da sociedade for insuficiente para a satisfação de suas obrigações, os credores da sociedade poderão atacar o patrimônio pessoal do sócio comanditado. O outro sócio dessa sociedade é o chamado sócio comanditário, ou sócio capitalista, que ingressa na sociedade como simples prestador de capital necessário aos negócios sociais. Sua responsabilidade é limitada ao capital que integrar ao patrimônio social. O sócio capitalista aqui examinado tem tratamento legal semelhante ao acionista da sociedade anônima, ou ao do sócio cotista da sociedade por cotas de responsabilidade limitada. Ao integralizar cotas do capital da sociedade em comandita simples, o sócio capitalista destaca de seu próprio patrimônio o valor pago por aquelas cotas e, desde então, fica desobrigado de responder com qualquer outra contribuição patrimonial para satisfazer qualquer credor da sociedade. Por essas razões, o sócio capitalista, comanditário, não pode exercer qualquer ato de gerência da sociedade em comandita, sob pena de perder essa proteção legal de limitação de sua responsabilidade ao montante do capital que integralizar na mesma sociedade (artigo 1047, do Código Civil). De fato, seria injusto que esse sócio capitalista pudesse administrar a sociedade e, ao mesmo tempo, tivesse responsabilidade limitada, enquanto o sócio comanditado continuaria tendo responsabilidade ilimitada.

O modelo da sociedade em comandita simples é interessante instrumento para captar recursos de terceiros (financiadores) para a realização de empreendimentos imobiliários. Numa sociedade em comandita simples, o empreendedor imobiliário (pessoa física) estabelece vínculo societário formal e regular com o sócio comanditário. O contrato de sociedade é levado a registro nos órgãos competentes. O empreendedor deve assumir a posição de sócio comanditado no empreendimento imobiliário da sociedade e terá responsabilidade pessoal ilimitada perante os credores da mesma sociedade. Entretanto, os riscos dessa responsabilidade podem ser completamente eliminados ou diminuídos com a adoção combinada de diversas outras estratégias negociais. Não há possibilidade de examiná-las nos limites deste trabalho. É suficiente dizer que: (i) nenhum devedor responde por suas dívidas com mais patrimônio do que tem, ressalvados os casos de redução patrimonial por fraude, situação em que os bens de terceiros envolvidos na fraude poderão ser recuperados pelo credor fraudado; e (ii) o credor não pode contar com bens que, ao tempo da constituição do seu crédito, não integravam o patrimônio do devedor, ou estavam segregados de outros bens desse patrimônio, ou eram inconfundíveis com o aludido patrimônio por justo motivo jurídico. Por outro lado, o prestador de capital necessário à realização do empreendimento assumirá, dentro da sociedade em comandita simples, a posição de sócio capitalista, comanditário, que terá responsabilidade limitada ao capital que integrar ao patrimônio social.

Além da sociedade em comandita simples, pode-se usar também a sociedade em comandita por ações, regulada pelos artigos 1090 a 1092 do Código Civil de 2002 e pela lei 6404/76 (lei de Sociedades Anônimas) com suas modificações posteriores. Na sociedade em comandita simples, o sócio comanditário (capitalista) adquire cotas da sociedade. Na sociedade em comandita por ações, o sócio capitalista adquire ações da sociedade e está sujeito às disposições da lei de sociedades anônimas. Os comentários feitos a respeito da utilização da sociedade em comandita simples em empreendimentos imobiliários aplicam-se, também, à sociedade em comandita por ações.

 3.7. Sociedades cooperativas

As sociedades cooperativas estão reguladas pelos artigos 1093 a 1096 do atual Código Civil. Os cooperados constituem a cooperativa por meio de estatuto e aportam capital para a entidade, tornando-se titulares de cotas proporcionais ao montante de capital investido. A cooperativa passará a ter seu próprio patrimônio e com ele realizará seus objetivos. Um dos possíveis objetivos é a realização de empreendimentos imobiliários. Entretanto, convém observar que, conforme dispuser o estatuto, os cooperados poderão ou não responder com os seus próprios bens pelas dívidas da entidade. Se o estatuto dispuser que a responsabilidade dos sócios é limitada, cada cooperado responderá apenas com o valor das cotas de que é titular. Se o estatuto previr responsabilidade ilimitada dos cooperados, estes responderão solidariamente pelas dívidas da sociedade.

 

 

3.8. Fundos de investimentos imobiliários

Além das normas legais gerais, os fundos de investimento são disciplinados por normas editadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Há muitas espécies de fundos de investimentos. Fazem investimentos em imóveis, energia, telecomunicações, saneamento, preservação ambiental, moedas estrangeiras, ações, títulos da dívida pública, commodities, ativos financeiros, turismo, etc. O fundo de investimento, em si mesmo, é entidade despersonalizada, mas tem patrimônio próprio administrado por entidade credenciada pela CVM. Esse patrimônio é formado, inicialmente, com recursos financeiros, ou com bens suscetíveis de avaliação econômica, que cada investidor aplica no fundo. O patrimônio do fundo é dividido em cotas e cada investidor passa a ser titular de certo número de cotas correspondentes ao montante de sua aplicação. O administrador aplicará os recursos conforme as diretrizes fixadas no estatuto constitutivo do fundo, sempre observando as normas legais e regulamentares disciplinadoras desse tipo de negócio. No caso dos fundos imobiliários, o administrador investirá os recursos em negócios imobiliários que potencialmente gerem rendimentos ao fundo. O administrador apurará os resultados das carteiras de negócios do fundo e, se for o caso, distribuirá os rendimentos ou prejuízos aos cotistas na proporção em que participem do patrimônio total. O fundo de investimentos imobiliários pode e deve diversificar sua carteira de negócios. Por exemplo, pode investir recursos na construção, para venda ou locação, de edifícios comerciais, residenciais, condomínios horizontais fechados, loteamentos, resorts, hotéis, flats, shopping centers e, também, em empreendimentos de lazer como cinemas, parques temáticos, teatros e assim por diante.

É cada vez mais freqüente que o financiamento de empreendimentos imobiliários seja feito, no todo ou em parte, com recursos fornecidos por fundos de investimentos imobiliários. É possível que o fundo de investimentos imobiliários seja o empreendedor direto do negócio imobiliário, organizando os recursos empresariais necessários à sua realização. Também é muito comum que o aludido fundo seja simplesmente o financiador do empreendimento a ser realizado pelo empreendedor. Em qualquer dessas hipóteses, a realização de empreendimentos imobiliários com a participação direta ou indireta desses fundos tem se revelado, no geral, bastante satisfatória. Basta andar pelas ruas de grandes cidades e observar quantos empreendimentos imobiliários foram ou estão sendo realizados com a participação dos fundos de investimentos imobiliários.

 3.9. Sociedade limitada

A sociedade limitada é um dos modelos societários mais utilizados no Brasil. Está regulada pelos artigos 1052 a 1087 do Código Civil de 2002. Nesse tipo de sociedade, dois ou mais sócios aportam recursos para formar o capital social da entidade. Esse capital é dividido em cotas e cada sócio recebe número de cotas proporcional à sua participação na sociedade. O aspecto importante a destacar é este: desde que totalmente integralizado o capital social, a responsabilidade dos sócios fica limitada ao valor de suas respectivas cotas. Isto quer dizer que os sócios não respondem com seus próprios bens por dívidas da sociedade. Os credores desta contam apenas com o patrimônio da entidade. Logo, a responsabilidade dos sócios fica limitada ao valor que já aportaram para formar o capital social da entidade. Por essas razões, a sociedade limitada é largamente usada em empreendimentos imobiliários. Claro que limitação da responsabilidade dos sócios pressupõe a inexistência de fraudes por meio da sociedade.

 3.10. Sociedade anônima

A sociedade anônima está disciplinada na lei 6404/76 (Lei de Sociedades Anônimas). Por definição legal é sociedade de natureza mercantil. É criada por meio de estatuto e seus membros são acionistas da entidade, pois subscrevem ou adquirem ações emitidas pela sociedade. Ao adquirirem essas ações, os acionistas aportam capital para a sociedade, com o qual ela realizará seus objetivos. Se tal sociedade estiver registrada na CVM – Comissão de Valores Mobiliários, poderá negociar suas ações e outros títulos que emitir para captar empréstimos no Mercado de Capitais. Nesse caso, chama-se sociedade anônima aberta, pois qualquer interessado poderá adquirir suas ações e títulos negociados em Bolsas de Valores. Se as ações não são negociadas em Bolsas de Valores, a entidade é denominada sociedade anônima fechada. O interesse em usar a sociedade anônima para realizar empreendimentos imobiliários reside na possibilidade de a entidade captar recursos no Mercado de Capitais. Só é útil no caso de grandes empreendimentos imobiliários que exijam muito capital e justifiquem os altos custos para estruturar tais captações.

 

4. Contratos sistêmicos

O contrato é importante instrumento para possibilitar a circulação de bens em qualquer sociedade. Por meio dele as partes procuram realizar seus respectivos objetivos. Todavia, a complexidade das sociedades contemporâneas muitas vezes exige que, para atingir certos objetivos, as partes tenham que celebrar mais de um contrato entre si, ou entre qualquer delas e outros sujeitos. Esses vários contratos precisam ser coordenados uns com os outros para que os objetivos das partes sejam alcançados. Por exemplo, o sujeito “A” deseja alugar seu imóvel ao sujeito “B” que, por sua vez, quer receber em locação tal imóvel. Tem-se aí um contrato de locação de imóvel. No entanto, o locador “A” exige uma garantia para celebrar o contrato de locação com “B”. Nessas circunstâncias, o sujeito “C” torna-se fiador do inquilino “B”, garantindo, assim, as obrigações locatícias que “B” tem em face do locador “A”. Configura-se, então, um contrato de fiança entre o sujeito “A” e o fiador “C”. Os objetivos das partes e do fiador somente são alcançados se forem celebrados esses dois contratos: o de locação e o de fiança. Esse exemplo é simples e envolve apenas dois contratos. Há casos, porém, em que os sujeitos precisam celebrar dezenas ou centenas de contratos coordenados uns com os outros para que seus objetivos específicos sejam realizados. Nessas circunstâncias, tem-se os denominados negócios jurídicos complexos, ou negócios jurídicos relacionais, ou ainda negócios jurídicos ou contratos sistêmicos. Não se trata necessariamente de contratos complexos no sentido de que são complicados (embora às vezes sejam mesmo bastante complexos). O que essas denominações querem expressar é que esses vários negócios jurídicos ou contratos são relacionados, coordenados, articulados uns com os outros. Formam um sistema contratual, em que cada contrato cumpre determinadas funções para que os sujeitos neles envolvidos realizem seus respectivos objetivos. Por isto, a designação contratos sistêmicos parece expressar mais precisamente essas conexões multidimensionais entre os vários contratos, que são peças de verdadeira engenharia contratual concebida e desenvolvida pelas partes para que realizem os mencionados objetivos.

É cada vez mais necessário usar contratos sistêmicos nos empreendimentos imobiliários. Coligam-se contratos societários, financiamentos, constituição de garantias, mandatos, prestação de serviços, etc. O sistema contratual assim formado permite que os objetivos das partes sejam alcançados com maior eficiência e segurança, distribuindo riscos e benefícios entre os diversos contratantes. Tendo em vista as circunstâncias específicas de cada empreendimento, o empreendedor imobiliário precisa ponderar sobre quais contratos podem ser usados para formar um determinado sistema contratual. Adiante serão examinados os aspectos gerais de alguns dos contratos sistêmicos aplicados aos empreendimentos imobiliários.

 

 5. Estruturação societária e captação de financiamentos imobiliários

Para realizar certo empreendimento imobiliário, o empreendedor pode usar capital próprio ou captar recursos de terceiros. Em qualquer caso, é recomendável que tais recursos desde logo sejam segregados – e assim permaneçam – de outros bens e negócios do empreendedor. Há diversos instrumentos ou técnicas para isolar os bens destinados ao empreendimento dos demais bens, direitos e obrigações do empreendedor. A finalidade essencial desses instrumentos e técnicas de segregação de bens é tornar o empreendimento imobiliário mais eficiente e seguro, na medida em que eliminam, minimizam ou confinam os riscos do negócio em situações específicas. Por isto, são benéficos para o empreendedor, para os financiadores e para os adquirentes do empreendimento imobiliário.  Cabe agora examinar alguns desses casos, pelo menos nos seus aspectos mais relevantes.

 5.1. Noções gerais sobre patrimônio e afetação de bens

De ponto de vista jurídico, o patrimônio é um complexo de relações jurídicas com valor econômico titularizadas por um sujeito. Abrange os direitos e obrigações desse sujeito. Quando o sujeito está no pólo ativo da relação, é credor; se ocupa o pólo passivo, é devedor. Tais relações jurídicas devem ser suscetíveis de avaliação econômica. Caso contrário, serão consideras relações jurídicas extra-patrimoniais. Cada sujeito de direito tem apenas um patrimônio, que é composto por um ou mais bens valoráveis economicamente. É possível que, por determinação legal ou por vontade do sujeito de direito, alguns dos bens componentes de seu patrimônio sejam segregados dos demais bens e fiquem vinculados de modo específico para certos objetivos. Por exemplo, por disposição legal, no casamento celebrado sob o regime da comunhão parcial de bens, o patrimônio de cada cônjuge é composto por dois grupos de bens: (i) os pertencentes a ambos os cônjuges porque adquiridos após o casamento; e (ii) os pertencentes exclusivamente a apenas um dos cônjuges, por terem sido adquiridos antes do matrimônio. A mesma segregação de bens pode acontecer por meio de declaração de vontade do sujeito de direito. Exemplo dessa situação é o denominado mútuo de escopo, em que o mutuante (emprestador) faz o empréstimo ao mutuário (tomador do empréstimo) para que o bem emprestado seja usado para fim específico, não podendo ser destinado a qualquer outra finalidade. É o caso do empréstimo para aquisição e certo bem (móvel ou imóvel), em que o mutuante empresta dinheiro para que o mutuário o use exclusivamente para tal aquisição. Juridicamente, o dinheiro emprestado ingressa no patrimônio do mutuário, mas só pode ser usado para a destinação prevista no contrato de mútuo. Isto significa que aquele dinheiro não pode ser destinado a pagamento de dívidas que o mutuário acaso tenha em face de outros credores. Em síntese: quando por mandamento legal ou por manifestação de vontade privada um bem fica vinculado a certo objetivo, diz-se que o bem está afetado para tal objetivo. Afetar bens significa destiná-los a finalidades específicas, impedindo que sejam usados para outros fins. Pode-se afetar um patrimônio inteiro para determinada finalidade, como é o caso das fundações; e pode-se afetar apenas alguns bens de um patrimônio para certo objetivo.

O patrimônio empresarial (quer seja o de pessoa física, pessoa jurídica ou ente despersonalizado) é afetado para o empreendimento. Deve permanecer segregado de outros bens e dos patrimônios dos empreendedores. Os credores do empreendimento têm como garantia de pagamento de seus respectivos créditos os bens ou o patrimônio afetado para o empreendimento. O patrimônio empresarial é composto por ativos comuns (dinheiro, máquinas, imóveis, etc.), passivos comuns (dívidas de qualquer espécie) e, também, por bens imateriais, como o capital intelectual (capacidade criativa e organizadora das pessoas envolvidas no negócio) e o valor intangível da empresa, chamado good will (potencialidade de a empresa produzir riqueza com sua atividade).

 5.2. Afetação patrimonial em empreendimentos imobiliários

A afetação de bens ou de patrimônio é importante instrumento no planejamento de empreendimentos imobiliários. Presta-se a vincular certos bens, ou determinado patrimônio, exclusivamente à realização do empreendimento. Desse modo, os direitos e obrigações inerentes ao empreendimento ficam vinculados apenas aos bens (ou ao patrimônio) afetados. Por meio da afetação, os credores do empreendimento não podem atacar outros bens não vinculados ao negócio e, por sua vez, o empreendedor não pode usar os bens afetados para outros fins que não os do próprio empreendimento. Por isto é importante escolher modelo societário compatível com a técnica de afetação de bens.

A legislação brasileira disciplinou alguns dos casos de afetação de bens ou de patrimônio para a realização de empreendimentos imobiliários. A lei 9514/97 trata de caso específico de afetação de bens no artigo 9º e seguintes, ao disciplinar o regime de cessão fiduciária de créditos imobiliários. Nesse caso, os créditos originados em decorrência do empreendimento imobiliário são afetados para garantir dívidas do empreendedor relacionadas ao negócio. A lei 4591/64, em seus artigos 31-a a 31-f , cuida da afetação de bens ou de patrimônio para tornar mais eficiente e segura a incorporação imobiliária. A lei 10931/04 instituiu regime especial tributário para o patrimônio de afetação e criou vários títulos de crédito para viabilizar financiamentos imobiliários (Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário e Cédula de Crédito Bancário). Para produzir efeitos em face de terceiros, a afetação de bens ou de patrimônio deve ser registrada em órgãos adequados.  

 5.3. Propriedade fiduciária como instrumento de segregação patrimonial

O direito patrimonial mais completo existente no direito é a propriedade, que é composta por quatro poderes atribuídos ao proprietário, a saber: (i) poder de dispor do bem, isto é, poder de transferir o bem a outro sujeito; (ii) poder de fruir do bem, ou seja, aproveitar os benefícios que o bem proporciona; (iii) poder de usar o bem, no sentido de dar-lhe a destinação que quiser, nos limites permitidos por lei; e (iv) poder de seqüela, que permite ao proprietário recuperar o bem que esteja em posse de outra pessoa. O proprietário pode exercer tais poderes sempre com atenção à função social da propriedade e nos limites permitidos pela lei. Chama-se propriedade plena aquela em que esses quatro poderes estão reunidos nas mãos do proprietário exclusivo do bem. É esta a propriedade de que trata o artigo 1228 do Código Civil de 2002. Além dessa propriedade plena, a lei também prevê a denominada propriedade limitada[1], que se caracteriza pelo fato de o proprietário sofrer limitações em seus poderes de controle jurídico sobre o objeto de seu domínio. Como regra geral, o direito de propriedade é perene e deve ser exercido com exclusividade por apenas um proprietário. No entanto, há casos em que a propriedade é limitada no tempo; e também há situações em que o objeto da propriedade é, simultaneamente, objeto de outro direito pertencente a outro sujeito, de modo que o proprietário precisa conciliar o exercício dos seus poderes sobre o bem com os poderes que outro sujeito tem sobre o mesmo objeto.  Nos casos em que o proprietário sofre tais limitações ao exercício dos seus poderes sobre o bem fica caracterizada a propriedade limitada. Em resumo, há propriedade limitada quando: (i) for resolúvel, isto é, estiver sujeita a condição resolutiva[2] ou a termo final[3]; e ou (ii) a tiver que coexistir com outro direito real[4] sobre o mesmo objeto. A propriedade limitada, por sua vez, tem subespécies. Entre essas subespécies merecem atenção a propriedade de afetação e a propriedade fiduciária.

A propriedade de afetação tem por objeto bem vinculado a certa e específica finalidade, que não pode ser alterada livremente pelo proprietário. Por exemplo, os artigos 31-a 31-f, da lei 4591/64, permitem que o empreendedor afete bens de que seja proprietário para vinculá-los exclusivamente a certo empreendimento imobiliário.

A propriedade fiduciária é resultado de uma das espécies do denominado negócio fiduciário, que existe em variadas formas no direito brasileiro[5], podendo ou não ser afetada para a função de garantia. Como exemplo de propriedade fiduciária sem função de garantia, tem-se o caso em que o sujeito “A” transfere fiduciariamente para o sujeito “B” a propriedade de certo bem, estabelecendo que “B” será seu proprietário até que ocorra uma condição resolutiva da propriedade, ou até que ocorra o termo final fixado para a duração da propriedade fiduciária de “B”. É o que ocorre quando o estatuto de uma sociedade anônima exige que seus administradores sejam necessariamente acionistas da companhia e esta, no entanto, quer contratar um administrador profissional que não é acionista. Para cumprir o estatuto, é feita a doação fiduciária de uma ação ao administrador profissional contratado que, assim, passa a ser acionista da sociedade. Mas sua propriedade sobre a referida ação é fiduciária, resolúvel e afetada exclusivamente para o exercício da administração da sociedade. A propriedade lhe foi transferida apenas para poder administrar a sociedade e perdurará enquanto exercer o cargo de administrador. Se, por qualquer motivo, deixar de ser administrador da sociedade, sua propriedade sobre a ação será extinta. Portanto, não deve causar estranheza o fato de existir uma propriedade fiduciária sem a finalidade de garantir uma outra obrigação. Por outro lado, é possível afetar a propriedade fiduciária para que tenha função de garantia. Nesse caso, o devedor de uma obrigação transfere ao seu credor a propriedade fiduciária de um bem para que sirva de garantia de pagamento daquela obrigação. Se o devedor não cumprir sua obrigação, o credor – na qualidade de proprietário fiduciário do bem objeto de garantia – pode vendê-lo e, com o preço apurado, satisfazer seu crédito, devolvendo ao devedor eventual sobra de valor. A propriedade fiduciária afetada para a função de garantia está prevista em várias hipóteses na legislação. Como exemplos, pode-se mencionar os casos que seguem. Para garantir pagamento de financiamentos imobiliários, a lei 9514/97 previu no artigo 9º e seguintes a alienação (cessão) fiduciária de créditos imobiliários e, no seu artigo 22 e seguintes, previu a alienação fiduciária de bens imóveis. O decreto-lei 911/69 previu a propriedade fiduciária com função de garantia em operações de financiamento de bens móveis. Para o mesmo fim, o atual Código Civil a previu em seus artigos 1361 a 1368.

O uso da propriedade fiduciária, afetada ou não para a função de garantia, é especialmente relevante nas operações negociais de securitização de recebíveis imobiliários, cujos aspectos mais importantes serão examinados a seguir.

 5.4. Securitização de recebíveis imobiliários

A denominação desse negócio – securitização de recebíveis imobiliários – é tradução literal (um tanto quanto questionável) da denominação usada nos Estados Unidos da América para o mesmo negócio. Securitização vem de security que, no caso, tem o significado de tornar seguro um certo bem ou negócio. Recebíveis vem de receivables, que corresponde à expressão créditos a receber, ou direitos creditórios. Assim, securitização de recebíveis é o negócio por meio do qual títulos de crédito e títulos creditícios são segregados de outros bens e afetados para determinada finalidade.

No contexto dos empreendimentos imobiliários, o empreendedor realiza atividades que geram créditos a seu favor. Ao vender imóveis do empreendimento, passa a ter direito de receber o preço combinado com os adquirentes. Esses créditos a receber (recebíveis) são segregados de outros bens do empreendedor e são afetados para certa finalidade vinculada ao empreendimento. Por exemplo, o empreendedor pode fazer a cessão fiduciária desses créditos como garantia de pagamento de empréstimo que tenha captado junto a algum financiador (artigo 9º e seguintes, da lei 9514/97); pode também ceder os recebíveis a uma sociedade securitizadora de recebíveis imobiliários (nos termos do artigo 6º e seguintes da mesma lei). Em seus aspectos fundamentais, a operação de securitização de recebíveis é estruturada como segue: 

 1) o empreendedor tem créditos em face de seus clientes (recebíveis), mas esses créditos têm vencimentos no futuro;

 2) o empreendedor precisa antecipar o recebimento de seus créditos e, para esse fim, deseja cedê-los com deságio a alguém disposto a lhe antecipar recursos;

 3) os recebíveis são cedidos a uma sociedade securitizadora de recebíveis imobiliários, que tem como único objeto social adquirir referidos créditos;

 4) a sociedade securitizadora paga ao empreendedor o valor fixado entre as partes;

 5) para adquirir recebíveis imobiliários, a sociedade securitizadora pode usar recursos próprios ou pode tomar empréstimos junto a outros sujeitos. Se preferir tomar empréstimos, a sociedade securitizadora pode emitir o chamado CRI – Certificado de Recebíveis Imobiliários, que é título por meio do qual capta empréstimos. Para garantir o pagamento desses empréstimos, a sociedade securitizadora oferece aos emprestadores os recebíveis imobiliários relacionados no próprio certificado;

 6) se a sociedade securitizadora não pagar o empréstimo tomado por meio do CRI, os emprestadores automaticamente tornam-se cessionários dos recebíveis dados em garantia, de modo que os devedores de cada recebível pagarão suas respectivas dívidas diretamente aos credores de quem a sociedade securitizadora tomou empréstimos, até que o crédito desses financiadores seja completamente pago.

 

Por meio da operação de securitização de recebíveis, o empreendedor consegue antecipar (embora com deságio) recursos que só receberia no futuro e, assim, obtém financiamento que lhe permite realizar com mais segurança e eficiência o empreendimento imobiliário que deseja. Por outro lado, a sociedade securitizadora de recebíveis imobiliários também aufere ganhos com a operação e, o que é mais importante, funciona como sociedade veículo para a captação de empréstimos junto a diversos investidores interessados em aplicar recursos no setor imobiliário. Esses investidores, em conjunto, financiam empreendimentos imobiliários potencialmente lucrativos, coisa que talvez não pudessem fazer isoladamente ou em grupos menores. Os adquirentes do empreendimento imobiliário (que são os devedores dos recebíveis) também são beneficiados, pois o empreendedor realizará suas atividades com recursos disponíveis em prazos menores e afetados especificamente para o empreendimento.

 5.5. Contratos híbridos de capital e dívida

Quando duas ou mais pessoas celebram entre si contrato por meio do qual constituem uma sociedade, cada qual aportando recursos (capital) para a realização de objetivos comuns, diz-se que celebraram contrato sociedade ou instrumento de capital. Nos termos da lei, o sócio tem vários deveres e obrigações. Por isto, há casos em que alguém quer aportar capital para a realização de um empreendimento por meio de uma sociedade, mas não quer assumir a qualidade de sócio. Nessas circunstâncias, o sujeito pode aportar capital por meio empréstimos à sociedade mencionada. Nesse caso, diz-se que o contrato de empréstimo é um contrato ou instrumento de dívida (porque o tomador do empréstimo fica endividado em face do emprestador). Pode ocorrer que a taxa de juros oferecida ao emprestador não seja atrativa e isto o desestimularia de fazer o empréstimo, embora acredite na viabilidade do empreendimento. Em suma, por um lado, esse sujeito é atraído pela potencial lucratividade do empreendimento, mas não quer assumir os riscos que a qualidade de sócio acarreta; e, por outro lado, considera insuficiente a taxa de juros que pode cobrar pelo empréstimo a sociedade que conduzirá o empreendimento. Nesse contexto pode-se usar os chamados contratos ou instrumentos híbridos de capital e dívida. A estrutura desse negócio jurídico é a que segue.

Por meio de contrato específico (de mútuo), o emprestador fornece recursos à sociedade que realizará o empreendimento imobiliário. As partes estabelecem uma taxa de juros para o empréstimo (por exemplo, 12% ao ano) e fixam o prazo para pagamento dessa dívida (por exemplo, um ano). Além disso, as partes inserem no contrato de empréstimo disposições que dão ao emprestador, a seu critério, o direito (não a obrigação) de até certo momento converter o empréstimo em capital social e, assim, tornar-se sócio da sociedade que realizará o empreendimento. A título de exemplo, pode-se dizer que esse direito concedido ao emprestador deve ser exercido no até a data de vencimento do contrato de mútuo (isto é, no prazo de um ano). Com os recursos tomados de empréstimo, a sociedade desenvolverá o empreendimento, cujo prazo de execução é de um ano (apenas para facilitar o exemplo). Ao final desse prazo, a sociedade faz seu balanço e apura seus resultados. Nesse momento, a sociedade terá pago todas as suas obrigações e recebido todos os seus direitos gerados pelo empreendimento. Portanto, todos os riscos e benefícios do empreendimento são conhecidos e mensurados. Se a sociedade houver apurado lucro, e se esse lucro for inferior a 12% (naquele ano de operação), o emprestador, obviamente, não terá interesse em converter o empréstimo em participação societária. Preferirá cobrar o empréstimo e receber os 12% de juros convencionados. Se o lucro apurado pela sociedade for de 12%, também não haverá interesse do emprestador de converter o empréstimo em participação societária. Será mais conveniente receber o pagamento do empréstimo com os juros de 12%. Finalmente, se o lucro apurado pela sociedade for superior a 12%, o emprestador terá vantagem se converter o empréstimo em participação societária. Suponha-se que o lucro da sociedade tenha sido 20% no referido ano. O emprestador converterá o empréstimo em participação societária. Ao invés de receber 12% de juros sobre o capital emprestado à sociedade, receberá 20% sobre o mesmo capital, agora a título de lucro.

O contrato híbrido de capital e dívida é, portanto, opção bastante interessante para a captação de financiamento para empreendimentos imobiliários. Estabelece a remuneração mínima para o empréstimo e oferece ao emprestador a possibilidade de obter remuneração maior para seu capital se o converter em participação societária.

 

 6. Considerações finais

Foram apresentados os modelos societários por meio dos quais é possível desenvolver empreendimentos imobiliários, apontando-se as principais vantagens e desvantagens de cada um deles. O modelo societário a ser adotado poderá facilitar ou dificultar a captação de recursos para a realização do empreendimento. Além disso, o modelo societário deverá ser complementado por um ou mais instrumentos destinados à segregação e securitização dos bens afetados para a realização do empreendimento, de maneira a eliminar ou minimizar os riscos do empreendedor, de seus financiadores e também dos adquirentes de imóveis resultantes do negócio imobiliário. Em síntese, o contrato societário é apenas uma das peças componentes de um planejamento contratual sistêmico, em que vários contratos são coordenados para que, juntos, possibilitem que as partes atinjam seus respectivos objetivos com mais segurança.

 

 

 

 

 

 

 

 

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[1] O atual Código Civil não tem um dispositivo exatamente correspondente ao artigo 525 do Código Civil de 1916. Em lugar deste último, o novo Código Civil apresenta alguns dispositivos que, interpretados lógica e sistematicamente, levam à conclusão de que não foi abolida a figura da propriedade limitada.

[2] Condição resolutiva é declaração de vontade feita por um sujeito de direito com o propósito de submeter os efeitos de certo negócio jurídico a um fato futuro e incerto, sobre o qual as partes não têm controle, e que, se vier a ocorrer, acarretará a extinção dos efeitos  de tal negócio. No caso específico da propriedade resolúvel, a verificação da condição resolutiva extinguirá o direito de propriedade do sujeito que a tinha sob essa condição.

[3] Termo é o evento certo e futuro ao qual estão subordinados os efeitos de um negócio jurídico. Termo inicial é o momento em que o negócio jurídico começa a produzir efeitos; termo final é o momento em que terminam os efeitos do negócio jurídico. No caso da propriedade limitada por termo final, verificado este, extingue-se o direito de propriedade para o sujeito que a tinha com essa limitação. 

[4] Todos os direitos reais derivam do direito de propriedade. Somente a lei cria direitos reais. Retira-se um ou alguns dos quatro poderes componentes da propriedade, no todo ou em parte e, com esses fragmentos, forma-se outro direito que incide sobre o mesmo bem objeto da propriedade. Por exemplo, tirando-se do proprietário os poderes de fruir e de usar o bem, ele não poderá mais exercer esses poderes. Atribuindo-se aqueles poderes de usar e fruir o bem a outro sujeito, cria-se o direito real de usufruto. O proprietário e o titular do direito de usufruto exercem seus respectivos poderes sobre o mesmo objeto e, por isto, limitam-se reciprocamente.

[5] De fato, a matéria não está regulada apenas no atual Código Civil ou no decreto-lei 911/69, havendo muitos outros casos que podem ser encontrados em legislação especial.